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A democratização do conhecimento médico e seus desafios

EDITORIAL

A democratização do conhecimento médico e seus desafios

Newton Kara-Junior

Professor colaborador livre-docente da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Professor de pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo; Editor da Revista Brasileira de Oftalmologia

Até a década de 1980, em geral, para que o profissional se mantivesse atualizado e informado sobre os principais avanços da Medicina era necessário viajar ao exterior, para participar de congressos ou para estagiar em hospitais de referência. Até então, os poucos médicos que tinham a oportunidade de disponibilizar tempo e recursos para este investimento, frequentemente, ao regressar, se tornavam referência nacional em subespecialidades e podiam escolher entre transmitir seus conhecimentos para os demais colegas ou guardá-los somente para sua prática.

A realidade que predominava nos eventos científicos nacionais era a de apresentações complexas, mas que, na prática, não atingiam o objetivo por completo, ou seja, transmitir o conhecimento e tornar outros profissionais aptos a melhor atuarem. Mesmo nos hospitais de ensino, a mentalidade, muitas vezes, era a de ensinar a todos, mas não passar todas as informações e atualizações. O conhecimento médico era restrito e aqueles que os detinham, em geral, procuravam mostrar que o tinham, mas não o transmitiam totalmente. Havia a percepção de que era este conhecimento o principal diferencial profissional. (1)

Os livros-textos sempre foram e sempre continuarão a ser importantes para a formação básica do médico e do especialista. Porém, com relação às novidades em técnicas diagnósticas e terapêuticas representam uma fonte limitada, pois o intervalo de tempo entre a escrita e a publicação do livro é relativamente grande, comparado ao ritmo com que a Medicina avança. Os três anos do Programa de Residência Médica, em geral, proporcionam uma adequada formação generalista ao residente e uma boa formação em subespecialidade aos estagiários. Porém, após esta fase, os profissionais que não se mantiverem ligados às instituições de ensino, rapidamente deixarão de estar atualizados, caso não busquem sistematicamente outras fontes de informação. Estima-se que a cada 5 anos, cerca de 50% do conhecimento médico, especialmente na área diagnóstica e terapêutica, seja renovado. Um indicativo são as aproximadamente 1.000 novas drogas lançadas anualmente no mercado médico.

Atualmente, o fator que vem mudando esta situação, em favor do profissional em prática, é a disponibilização de artigos científicos em bancos de dados eletrônicos. Pesquisas publicadas em periódicos científicos sempre foram a principal fonte da atualização médica. Porém, antes da popularização da internet, as principais revistas científicas só estavam disponíveis para seus assinantes ou para aqueles com acesso a bibliotecas institucionais. Hoje em dia, é possível acessar, via internet, ao menos o resumo de qualquer artigo das principais revistas do mundo.

No meio científico, não existe reserva de informação. Uma vez terminado um experimento, o maior desejo dos pesquisadores é o de divulgar rapidamente para o mundo seus achados, consolidando assim sua posição como autoridade no assunto. Existem muitos estímulos para que esta mentalidade predomine, como vaidade de grupos de pesquisa, obtenção de recursos em agências de fomento para estudos científicos e prêmios.

Neste contexto, a Revista Brasileira de Oftalmologia, fundada em 1942 pelos Drs. Evaldo Campos, Jonas de Arruda e Oswaldo Barbosa, sempre contribuiu para a atualização da comunidade oftalmológica, difundindo conhecimento médico. Por ser distribuída gratuitamente aos membros da Sociedade Brasileira de Oftalmologia, para as bibliotecas das faculdades de medicina e, recentemente, para os membros das Sociedades de Catarata e Cirurgia Refrativa, tradicionalmente representou uma importante fonte de atualização. Em 2007, graças à dedicação do então editor Riuitiro Yamani, a Revista foi indexada na plataforma eletrônica SciELO (Scientific Electronic Library on Line) e passou a disponibilizar seu conteúdo na íntegra e gratuitamente, também, para toda América Latina, desempenhando uma valiosa contribuição educacional e estimulando autores nacionais e estrangeiros a publicarem estudos de boa qualidade em suas edições. A gratuidade da difusão do conhecimento produzido é uma constante reivindicação de pesquisadores e acadêmicos, a qual tem sido respeitada pelos principais periódicos científicos nacionais. Ainda em 2007, a Revista também obteve outra importante indexação, na base de dados ISI - Thomson Reuters®, a qual permitiu a disseminação de seu conteúdo para o resto do mundo(2-4).

A atualização médica continuada é importante para o exercício da medicina com boa qualidade e segurança. Com o advento da internet, observamos que as informações e atualizações são mais facilmente disponibilizadas aos médicos e também aos pacientes, que podem acessá-las a qualquer tempo. Desta forma, muitas vezes o médico é confrontado por pacientes que já estudaram sobre seu diagnóstico no "Dr Google" e outros sites divulgadores de informações e, eventualmente, podem até saber mais sobre o assunto do que o profissional que esteja desatualizado. Este é mais um estímulo para o aprendizado constante do médico.

Não há dúvida de que a maneira mais prática, barata, acessível e confiável de se adquirir conhecimentos médicos é por meio da revisão da literatura em bancos de dados eletrônicos. Porém, para que esta via de informação se popularize no Brasil, são necessários dois pré-requisitos: 1- criar o costume de procurar em periódicos científicos respostas para as dúvidas da prática diária; e 2- aprender a avaliar criticamente artigos científicos(5).

Embora revistas com elevado "fator de impacto" submetam os estudos recebidos ao crivo de competentes revisores (revisão por pares), ainda assim, não há garantia de que todos os artigos nela publicados sejam de qualidade adequada, da mesma forma como é possível existir bons estudos publicados em revistas de baixo "fator de impacto". Neste sentido, faz-se necessário um conhecimento mínimo por parte do leitor para avaliar criticamente um artigo científico, a fim de evitar basear sua prática clínica em informações que possam não representar uma verdade científica(6,7).

É importante considerar também que as publicações nem sempre expressam a verdade científica. Existem níveis de valores de estudos. Por exemplo, um trabalho retrospectivo é menos confiável do que um ensaio clínico randomizado, que, por sua vez, apresenta um valor científico menor do que uma metanálise, que é o tipo de publicação que mais se aproxima da verdade científica daquele momento.

Somente na base de dados MEDLINE, são adicionados cerca de 700.000 novos artigos por ano. É este excesso de informação que muitas vezes estimula jovens médicos a não só se subespecializar, mas se superespecializar, restringindo demasiadamente sua área de atuação e focando seu conhecimento em doenças ou procedimentos específicos. Porém, esta opção também traz consequências negativas, como a dificuldade de compreender um problema clínico em relação ao ser humano como um todo e a valorização excessiva de problemas pouco significantes. Esta valorização excessiva, inclusive, aumenta o custo da medicina, além de comprometer a prática individual do profissional, o qual necessariamente teria de fazer parte de um grupo multiespecializado ou depender da indicação de colegas. Espaço para este tipo de profissional existe, porém é limitado e instável. Por exemplo, um superespecialista em cirurgia de catarata por facoemulsificação há 15 anos, certamente era muito melhor remunerado do que atualmente. E será que daqui a 15 anos ainda haverá cirurgia por facoemulsificação?

Acreditamos que a opção profissional mais equilibrada e segura seja a de exercer a Oftalmologia geral, acrescida da subespecialização em uma determinada área. Após a formação, o conhecimento geral pode ser reciclado em livros e congressos, e o conhecimento da subespecialidade predominantemente por meio da literatura científica. O desafio, neste caso, será como reconhecer, em meio a tantos artigos publicados, a informação confiável, que pode ser transferida para a prática diária.

Idealmente, deveria partir da própria comunidade médica o desejo de participar de treinamentos em análise crítica da literatura. Havendo esta demanda, provavelmente os eventos científicos incorporarão estes assuntos em sua programação. Este treinamento capacita o leitor a reconhecer os desenhos de estudos mais confiáveis e a identificar falhas metodológicas que possam influenciar os resultados e conclusões dos estudos (vieses). Uma das partes mais importante da publicação é a descrição da metodologia, empregada para obtenção dos dados. É neste item que se deve atentar para questões, tais como: a) de que maneira a amostra foi formada (identificar possível viés de seleção); b) exposição a outros fatores além da intervenção de interesse (identificar possível viés de condução); c) perdas ou exclusões de indivíduos incluídos no estudo (identificar possível viés de seguimento) ou de como o desfecho é diagnosticado (identificar possível viés de detecção). Assim, não é confiável valorizar somente o resumo ou a conclusão do artigo, sem que seja verificado se a metodologia está adequada(8).

Em 2003, houve um divisor de águas na história da Revista Brasileira de Oftalmologia. Por iniciativa do então editor dr. Paulo Augusto de Arruda Mello, foi instituída a revisão por pares dos artigos submetidos. Esta medida foi fundamental para que a qualidade dos artigos publicados na Revista Brasileira de Oftalmologia fosse mais apurada, de forma que os leitores pudessem acessar um conhecimento científico previamente avaliado e aprovado por especialistas no assunto. Desta forma, ficava ainda mais evidente o comprometimento da Revista com a qualidade da informação nela veiculada(9,10).

Atualmente, a Revista Brasileira de Oftalmologia é indexada nas bases de dados Scopus®, ISI Web of Knowledge® (Thomson Reuters®), SciELO e LILACS. Em 2009 a Revista recebeu seu primeiro Fator de Impacto (Impact Factor of the Journal of Citation Reports - ISI_Thomson). A indexação e o Fator de Impacto permitiram a exposição internacional da Revista, atraindo autores internacionais e estimulando autores nacionais a publicar artigos de ótima qualidade. Foi uma vitória da Oftalmologia brasileira, que, agora, dispunha de mais um periódico científico de grande circulação e com melhor qualidade científica(11).

Periódicos de boa qualidade, avaliados pelos padrões de mensuração internacional e disponíveis em bases de dados eletrônicas, são importantes para a soberania científica nacional. É a garantia de que estudos importantes de pesquisadores nacionais serão publicados e revelados ao mundo científico, sem que haja interferência de interesses corporativistas estrangeiros. Só assim, pode-se assegurar o reconhecimento internacional de descobertas científicas brasileiras. Neste sentido, os dois periódicos científicos nacionais, os Arquivos Brasileiros de Oftalmologia e a Revista Brasileira de Oftalmologia, são fundamentais para garantir a divulgação, tanto de estudos de nível internacional como de estudos de importância regional, que revelam para a comunidade médica brasileira situações que dizem respeito à nossa realidade(6,7,12,13).

Com o diligente trabalho do editor que nos antecedeu, dr. Arlindo Portes, a Revista Brasileira de Oftalmologia melhorou sua frequência de publicação, acelerou as revisões pelos pares, melhorou a qualidade de seus artigos, digitalizou o fluxo editorial e passou a contar com uma versão eletrônica em inglês, na qual a tradução é custeada pela própria Revista, sem que os autores sejam onerados.

Dar continuidade ao valioso trabalho dos Editores que nos antecederam será uma tarefa árdua. Nosso plano de ação como editor da Revista Brasileira de Oftalmologia será, em conjunto com uma experiente equipe de coeditores, melhorar ainda mais a qualidade dos artigos publicados; reduzir ainda mais o intervalo entre o recebimento e a publicação dos estudos; divulgar a Revista no exterior, atraindo outros autores de renome. Além disso, sobretudo, estimular e ensinar jovens autores a realizar pesquisas com metodologia adequada e orientar leitores para a avaliação crítica de artigos científicos.

Para cumprir este objetivo, orientaremos, nas revisões dos artigos submetidos aos autores melhorar a metodologia, ajudando a equipe editorial a investir em temas que sejam promissores. Ministraremos cursos de imersão em pesquisa científica e análise crítica da literatura, em diversas regiões do país.

Para este desafio, contaremos com o valioso apoio da Sociedade Brasileira de Oftalmologia, da Sociedade Brasileira de Catarata e Cirurgia Refrativa, de nossos coeditores e revisores, dos assessores João e Marcelo Diniz, e, principalmente, de todos os oftalmologistas e pesquisadores brasileiros.

  • 1. A situação do ensino da facoemulsificação no Brasil Rev. Bras.Oftalmol. [online]. 2011, vol.70, n.5, pp. 275-277. ISSN 0034-7280.
  • 2. PORTES, Arlindo José Freire. A RBO na era da informação digital Rev. Bras.Oftalmol. [online]. 2011, vol.70, n.1, pp. 5-6. ISSN 0034-7280.
  • 3. BICAS, Harley E. A. and CHAMON, Wallace. Sobre o preço e valor das publicações científicas: reclamação ou indignação? Arq. Bras. Oftalmol. [online]. 2012, vol.75, n.3, pp. 157-158. ISSN 0004-2749.
  • 4. YAMANE, Riuitiro; ROTHER, Edna Terezinha and PORTES, Arlindo José Freire. Revista Brasileira de Oftalmologia e sua bem-sucedida trajetória rumo às indexações Rev. Bras.Oftalmol. [online]. 2008, vol.67, n.6, pp. 271-272. ISSN 0034-7280.
  • 5. KARA-JUNIOR, Newton. A situação da pós-graduação stricto sensu no Brasil: instituição, docente e aluno Rev. Bras.Oftalmol. [online]. 2012, vol.71, n.1, pp. 5-7. ISSN 0034-7280.
  • 6. Rocha e Silva, Maurício. Qualis 2011-2013: os três erres Clinics, 2010, vol.65, no.10, p.935-936. ISSN 1807-5932
  • 7. Rocha e Silva, Maurício. Reflexões críticas sobre os três erres, ou os periódicos brasileiros excluídos. Clinics, 2011, vol.66, no.1, p.3-7. ISSN 1807-5932
  • 8. LIRA, Rodrigo Pessoa Cavalcanti and ARIETA, Carlos Eduardo Leite. Boas práticas de redação e o CONSORT Arq. Bras. Oftalmol. [online]. 2012, vol.75, n.2, pp. 85-85. ISSN 0004-2749.
  • 9. MORAES JR., Haroldo Vieira; ROCHA, Eduardo Melani and CHAMON, Wallace. Funcionamento e desempenho do sistema de Revisão por Pares Arq. Bras. Oftalmol. [online]. 2010, vol.73, n.6, pp. 487-488. ISSN 0004-2749.
  • 10. Gallagher R. Taking on peer review. The Scientist. 2006;20(2):13.
  • 11. CHAMON, Wallace and MELO JR, Luiz Alberto Soares. Fator de impacto e inserção do ABO na literatura científica mundial Arq. Bras. Oftalmol. [online]. 2011, vol.74, n.4, pp. 241-242. ISSN 0004-2749.
  • 12. ROCHA, Eduardo M. Uma boa fase para a internacionalização da pesquisa biomédica brasileira Arq. Bras. Oftalmol. [online]. 2011, vol.74, n.6, pp. 391-392. ISSN 0004-2749.
  • 13
    PORTES, Arlindo José Freire. Rev. Bras.Oftalmol. [online]. 2012, vol.71, n.6, pp. 351-352. ISSN 0034-7280.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Mar 2013
  • Data do Fascículo
    Fev 2013
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