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A influência da ética, da moral e do bom senso nas controvérsias da medicina

EDITORIAL

A influência da ética, da moral e do bom senso nas controvérsias da medicina

The influence of ethics and good judgment on the controversies of medicine

Newton Kara-Junior

Professor colaborador, livre-docente e professor de pós-graduação da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo – USP. Membro do Comitê de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do Hospital das Clínicas da FMUSP e da Comissão de Ética da Faculdade de Medicina da USP

Etica é o conjunto de princípios que norteiam a conduta humana na sociedade. A ética médica é a disciplina que avalia méritos e riscos nas atividades da medicina. Assim sendo, é um conjunto de regras que definem limites na relação do médico com pacientes e com seus pares, pois a prática médica envolve muito mais do que somente os aspectos técnicos da maioria das demais profissões. Desta forma, a ética médica seria as regras que impediriam que o médico deliberadamente se aproveitasse de sua condição especial para colocar em risco a saúde do vulnerável paciente (1,2). Porém, na prática, a essência do Código de Ética Médica está defasada, pois seus princípios não acompanharam as mudanças sócioculturais das últimas décadas. Nas relações pessoais atuais, o antagonismo absoluto do que é ou não ético, não é suficiente para nortear condutas adequadas, pois na maioria das situações, o certo e o errado podem ser relativos e depender de ponto de vista diferentes. Neste caso, a caracterização da conduta antiética seria reservada somente para uma situação extrema e inquestionável. Assim, para se evitar que médicos, eventualmente, coloquem em risco a saúde dos pacientes, seria necessário considerar muito mais do que somente as regras do Código de Ética Médica.

Moral é o conjunto de normas adquiridas a partir da consciência individual e que orientam o modo de agir das pessoas em sociedades. Os princípios morais são a honestidade, a bondade, o respeito, a virtude, etc. Assim, a moral orienta o comportamento humano diante das diretrizes instituídas pela sociedade. Diferencia-se da ética, que julga o comportamento moral de cada pessoa. Enquanto a ética é teórica, a moral é prática. É como se a Ética fosse um conjunto de regras pré-determinadas de conduta e a moral, a norteadora de decisões pessoais diante de situações específicas (1).

O bom senso está associado à sabedoria e à sensatez e diz respeito à capacidade de ajustar regras e costumes a realidades específicas, para poder fazer bons julgamentos e escolhas. Bom senso é o que todas as pessoas acham que tem de sobra, mas que na realidade percebe-se se tratar de uma qualidade não tão frequente.

Um paciente de cinquenta anos de idade, assintomático, que realizava acompanhamento anual com determinado oftalmologista resolveu experimentar outro médico. O profissional, ao final do exame, lhe disse que estava tudo bem com a saúde ocular, porém apresentava catarata, a qual ainda não necessitaria ser operada. Preocupado com o diagnóstico e confuso por seu médico original nunca ter lhe falado nada a respeito deste problema, o paciente procurou por uma terceira opinião. O novo médico, confirmou o diagnóstico e sugeriu a cirurgia por dois motivos: 1- considerando que a catarata iria evoluir, o quanto antes ela fosse operada, mais segura seria a cirurgia; 2- aquele seria um bom momento para realizar o procedimento, pois o paciente estava bem de saúde. Inconformado com a disparidade das condutas sugeridas, um determinado sujeito não compreende como uma condição objetiva, no caso de opacidade do cristalino, pode gerar tanta controvérsia, especialmente em uma especialidade em que os avanços tecnológicos permitem grande precisão diagnóstica.

Em um julgamento estritamente ético, acredito que nenhum dos médicos estaria errado ou poderia ser classificado como desonesto, pois todos os pareceres teriam alguma justificativa. Porém, em uma análise mais abrangente, seria possível identificar alguns padrões de conduta. O primeiro oftalmologista, provavelmente, teve o bom senso de, ao identificar uma catarata inicial, que na prática das atividades cotidianas não influenciava a função visual do indivíduo, optou por acompanhar a evolução e só alertar o paciente quando a visão começasse a ser comprometida. Afinal, se cada especialista consultado para um exame de rotina realizar testes muito sensíveis, seria grande a possibilidade de se encontrar alguma alteração anatômica na maioria dos examinados, sem que houvesse relevância clínica (3). Com os recentes avanços tecnológicos, talvez um dos mais importantes méritos dos profissionais, além do diagnóstico precoce de doenças, seja a sensibilidade de definir o que, como e quando contar ao paciente sobre os achados.

Quanto ao segundo oftalmologista, é possível que, na tentativa de impressionar o paciente, tivesse optado por contar tudo o que achou no exame. Afinal, ainda existem médicos que, para valorizar seu trabalho, acreditam que nenhum cliente deve sair da consulta sem uma prescrição de medicamento ou diagnóstico de doença, ainda que inicial. Com as recentes mudanças no acesso à informação, capitaneadas pela internet, considero que o médico precise refletir muito sobre a relevância do que foi achado durante o exame, antes de comunicar um diagnóstico, pois é grande a chance do paciente se preocupar em demasia e buscar na internet mais informações sobre sua condição, além de, eventualmente, procurar outras opiniões. Neste sentido, o que diferenciaria o bom profissional não seria necessariamente o que ele conseguiu achar no exame, mas sim a explicação do motivo de todas as etapas da avaliação. Na minha opinião, o médico diferenciado é aquele que consegue passar segurança ao cliente hígido, somente com a explicação sobre o que examinou durante consulta (e quando necessário), orientando medidas preventivas específicas.

Já o terceiro médico, provavelmente diante de um diagnóstico anterior de catarata, aproveitou para indicar a cirurgia. Como a indicação cirúrgica depende em parte de critérios subjetivos, existe a possibilidade de o médico valorizar alguns critérios, que justifiquem a tomada de uma decisão predominantemente benéfica para apenas uma das partes envolvidas. Em última instância, são os princípios morais que norteiam as condutas dos profissionais. São estes princípios que impedem que médicos tomem uma decisão mais vantajosa para eles do que para os pacientes. Talvez, o compromisso com estes valores seja a principal diferença entre o médico e os demais profissionais. Atualmente, com a facilidade de acesso a informações e a outras opiniões médicas, muitos pacientes são capazes de perceber a dissociação entre seus sintomas e a conduta proposta, ocasionalmente revelando reais interesses de alguns profissionais.

Um eventual quarto oftalmologista, poderia, por exemplo, resolver a questão, ao explicar que a catarata pode ser definida anatomicamente como qualquer opacidade do cristalino, independente da visão, e que após os cinquenta anos de idade, muitas pessoas, embora apresentem início de opacidade cristaliniana, levam décadas para que a catarata influencie na visão. E ainda que na indicação da cirurgia, deve-se considerar principalmente o fato da diminuição visual pela catarata estar comprometendo a qualidade de vida (4,5,6). Assim, reforço minha percepção de que a adequada explicação sobre o que foi examinado e o que foi encontrado (em caso de já ser comunicado), além do impacto desta condição na qualidade de vida da pessoa são a principal ferramenta do médico para se diferenciar perante seus clientes, considerando que o bom senso e o compromisso com princípios morais são necessários para solidificar a base da relação médico-paciente.

  • 1. Monte F.Q. Revista Bioética; 2009 17 (3): 407 428
  • 2. Chamon, W.C. As letras pequenas no final da página. Arq. Bras. Oftalmol., Jun 2013, vol.76, no.3. ISSN 0004-2749
  • 3. Valbon, Bruno Freitas, Alves, Milton Ruiz and Ambrósio Jr, Renato Correlações entre straylight, aberrometria, opacidade e densitometria do cristalinoem pacientes com catarata. Rev. bras.oftalmol., Ago 2013, vol.72, no.4, p.244-248. ISSN 0034-7280
  • 4. Marback, R.F.; et al. Emotional factors prior to cataract surgery. Clinics (USP. Impresso), v. 62, p. 433-438, 2007.
  • 5. Temporini, E.R.; et al. Popular beliefs regarding the treatment of senile cataract.. Revista de Saúde Pública, v. 36, n.3, p. 343-349, 2002.
  • 6. Marback, R.F.; et al. Cataract surgery: emotional reactions of patients with monocular versus binocular vision. Revista Brasileira de Oftalmologia (Impresso), v. 71, p. 385-389, 2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2014
  • Data do Fascículo
    Dez 2013
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