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O uso do manguito pneumático em pacientes submetidos a artroplastia total do joelho com ou sem calcificação da artéria poplítea Trabalho desenvolvido no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia, Centro de Cirurgia do Joelho, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

RESUMO

Objetivo:

Identificar as complicações clínicas e cirúrgicas associadas ao uso de torniquete na artroplastia total de joelho em pacientes com ou sem calcificação da artéria poplítea.

Métodos:

O estudo foi feito de modo retrospectivo, analisou 64 pacientes com calcificação da artéria poplítea e 57 pacientes como grupo controle.

Resultados:

Os pacientes do grupo de casos eram significativamente mais velhos do que os pacientes do grupo controle. Entretanto, tal fato não teve repercussão quanto ao desfecho clínico no período analisado. Não houve complicações durante o ato cirúrgico nos grupos estudados, bem como não houve diferenças estatisticamente significantes entre a incidência de intercorrências locais ou sistêmicas no período analisado.

Conclusão:

O presente estudo observou baixos índices de complicações em pacientes submetidos a artroplastia total do joelho com uso de torniquete com ou sem calcificação da artéria poplítea.

Palavras-chave:
Artroplastia do joelho; Complicações pós-operatórias; Torniquetes; Artéria poplítea

ABSTRACT

Objective:

Identify the clinical and surgical complications associated with the use of a tourniquet in total knee arthroplasty in patients with or without calcification of the popliteal artery.

Methods:

The study was performed retrospectively, analyzing 58 patients with calcification of the popliteal artery and 57 patients as a control group.

Results:

The case group patients were significantly older than patients in the control group; however, this had no impact on the clinical outcome in the analyzed period.There were no complications during surgery in the groups studied, as there were no statistically significant differences between the incidence of local or systemic intercurrences in the analyzed period.

Conclusion:

This study found low rates of complications in patients undergoing total knee arthroplasties with use of a tourniquet, with or without calcification of the popliteal artery.

Keywords:
Arthroplasty replacement knee; Postoperative complications; Tourniquets; Popliteal artery

Introdução

A artroplastia total de joelho (ATJ) é um procedimento ortopédico de alta complexidade indicado no tratamento de pacientes portadores de osteoartrose avançada do joelho. O objetivo primário do procedimento é o alívio da dor e secundariamente fazer o alinhamento mecânico do membro inferior e promover uma melhoria significativa na qualidade de vida do paciente.11 Diduch DR, Insall JN, Scott WN, Scuderi GR, Font-Rodriguez D. Total knee replacement in young, active patients. Long-term follow-up and functional outcome. J Bone Jt Surg Am. 1997;79(4):575-82.,22 Dixon MC, Brown RR, Parsch D, Scott RD. Modular fixed-bearing total knee arthroplasty with retention of the posterior cruciate ligament. A study of patients followed for a minimum of fifteen years. J Bone Jt Surg Am. 2005;87(3):598-603.

Estudos atuais demonstram altos índices de satisfação e melhoria funcional dos pacientes submetidos à ATJ, apresenta resultados bons e excelentes em mais de 90% dos casos em longo prazo.33 Ritter MA. The Anatomical Graduated Component total knee replacement: a long-term evaluation with 20-year survival analysis. J Bone Jt Surg Br. 2009;91(6):745-9.,44 Rand JA, Ilstrup DM. Survivorship analysis of total knee arthroplasty. Cumulative rates of survival of 9200 total knee arthroplasties. J Bone Jt Surg Am. 1991;73(3):397-409.

Apesar da alta taxa de sucesso do procedimento, 11 a 20,8% dos pacientes evoluem com complicações perioperatórias.55 Morrey BF, Adams RA, Ilstrup DM, Bryan RS. Complications and mortality associated with bilateral or unilateral total knee arthroplasty. J Bone Jt Surg Am. 1987;69(4):484-8.,66 Ayers DC, Dennis DA, Johanson NA, Pellegrini VD. Instructional course lectures: the American Academy of Orthopaedic Surgeons - common complications of total knee arthroplasty. J Bone Jt Surg Am. 1997;79:278-311. Dentre as complicações mais comuns destacam-se as relacionadas à ferida operatória, doença tromboembólica, infecção, lesão neurovascular, fratura periprotética, lesão do mecanismo extensor e rigidez articular.77 Brassard MF, Insall JN, Scuderi GR, Faris PM. Complications of total knee arthroplasty. In: Scott WN, editor. Insall & Scott surgery of the knee. 4th ed. Philadelphia: Churchill Livingstone-Elsevier; 2006. p. 1716–60.,88 Smith TO, Hing CB. Is a tourniquet beneficial in total knee replacement surgery? A meta-analysis and systematic review. Knee. 2010;17(2):141-7.

O manguito pneumático é usado rotineiramente durante a cirurgia de substituição articular do joelho. As vantagens no seu uso seriam promover um campo operatório mais limpo, menor sangramento perioperatório, melhor qualidade da cimentação do implante e uma cirurgia mais rápida,99 Barr L, Iyer US, Sardesai A, Chitnavis J. Tourniquet failure during total knee replacement due to arterial calcification: case report and review of the literature. J Perioper Pract. 2010;20(2):55-8. diminui também o risco do cirurgião de adquirir doenças como Aids ou hepatite. Contudo, seu uso está associado à incidência de neuropraxia, lesão vascular, dano muscular, dor pós-operatória, alterações cardiovasculares e complicações na cicatrização da ferida operatória.99 Barr L, Iyer US, Sardesai A, Chitnavis J. Tourniquet failure during total knee replacement due to arterial calcification: case report and review of the literature. J Perioper Pract. 2010;20(2):55-8.

Na artroplastia total do joelho o torniquete é aplicado no nível da coxa para ocluir a artéria femoral. Normalmente, o manguito pneumático no membro inferior é insuflado a 100 mmHg acima da pressão sistólica.1010 Lindbom A. Arteriosclerosis and arterial thrombosis in the lower limb; a roentgenological study. Acta Radiol Suppl. 1950;80:1-80. Há uma tendência da literatura de não recomendar o uso do manguito pneumático em pacientes com calcificação da artéria poplítea.1111 Woelfle-Roos JV, Dautel L, Wernerus D, Woelfle KD, Reichel H. Vascular calcifications on the preoperative radiograph: predictor of ischemic complications in total knee arthroplasty? J Arthroplasty. 2016;31(5):1078-82.

12 Abu Dakka M, Badri H, Al-Khaffaf H. Total knee arthroplasty in patients with peripheral vascular disease. Surgeon. 2009;7(6):362-5.

13 DeLaurentis DA, Levitsky KA, Booth RE, Rothman RH, Calligaro KD, Raviola CA, et al. Arterial and ischemic aspects of total knee arthroplasty. Am J Surg. 1992;164(3):237-40.
-1414 Kobayashi S, Isobe K, Koike T, Saitoh S, Takaoka K. Acute arterial occlusion associated with total knee arthroplasty. Arch Orthop Trauma Surg. 1999;119(3-4):223-4.

A arteriosclerose seria a explicação mais plausível para a calcificação das artérias. O depósito de cálcio na camada íntima das artérias geraria essa alteração.99 Barr L, Iyer US, Sardesai A, Chitnavis J. Tourniquet failure during total knee replacement due to arterial calcification: case report and review of the literature. J Perioper Pract. 2010;20(2):55-8.,1414 Kobayashi S, Isobe K, Koike T, Saitoh S, Takaoka K. Acute arterial occlusion associated with total knee arthroplasty. Arch Orthop Trauma Surg. 1999;119(3-4):223-4. A artéria é elástica e a sua calcificação torna esse vaso menos complacente e mais vulnerável a oclusão aguda ou ruptura de sua parede.99 Barr L, Iyer US, Sardesai A, Chitnavis J. Tourniquet failure during total knee replacement due to arterial calcification: case report and review of the literature. J Perioper Pract. 2010;20(2):55-8.,1313 DeLaurentis DA, Levitsky KA, Booth RE, Rothman RH, Calligaro KD, Raviola CA, et al. Arterial and ischemic aspects of total knee arthroplasty. Am J Surg. 1992;164(3):237-40.,1515 Kumar SN, Chapman JA, Rawlins I. Vascular injuries in total knee arthroplasty. A review of the problem with special reference to the possible effects of the tourniquet. J Arthroplasty. 1998;13(2):211-6.

16 Chandrappa HN, Deepak BS. Tourniquet failure during total knee replacement due to femoral arterial calcification. J Anaesthesiol Clin Pharmacol. 2010;26(4):551-2.
-1717 Jeyaseelan S, Stevenson TM, Pfitzner J. Tourniquet failure and arterial calcification. Case report and theoretical dangers. Anaesthesia. 1981;36(1):48-50.

O exame radiográfico do joelho é um método simples de imagem e de baixo custo solicitado a todo paciente que será submetido a uma artroplastia total do joelho. Nesse exame dimensionamos o grau do desgaste articular e a presença ou não da calcificação da artéria poplítea.1313 DeLaurentis DA, Levitsky KA, Booth RE, Rothman RH, Calligaro KD, Raviola CA, et al. Arterial and ischemic aspects of total knee arthroplasty. Am J Surg. 1992;164(3):237-40.,1717 Jeyaseelan S, Stevenson TM, Pfitzner J. Tourniquet failure and arterial calcification. Case report and theoretical dangers. Anaesthesia. 1981;36(1):48-50.

O objetivo do nosso estudo foi identificar as complicações clínicas e cirúrgicas em pacientes com ou sem calcificação da artéria poplítea submetidos a artroplastia total do joelho com o uso do torniquete.

Material e métodos

Após aprovação do protocolo do estudo pelo comitê de ética em pesquisa da instituição (CAAE 44349315.1.0000.5273), foi feito um estudo observacional retrospectivo e os dados foram coletados através da revisão dos documentos médicos (prontuários e radiografias). A análise foi feita no banco de dados da instituição por um médico especialista em ortopedia e traumatologia.

Foram incluídos na pesquisa todos os pacientes submetidos à ATJ entre janeiro e dezembro de 2013 que apresentavam calcificação arterial no nível do joelho identificada nos exames de radiografia pré-operatórios, 64 pacientes (fig. 1). Os critérios de exclusão foram a necessidade do uso de implante mais constrito, tempo de seguimento menor do que seis meses ou dados incompletos no prontuário, seis pacientes excluídos ao longo da pesquisa.

Figura 1
Radiografia em perfil pré-operatória.

Como grupo controle foram selecionados 57 pacientes operados no mesmo período, sem a presença de calcificação arterial ao nível do joelho.

Nosso hospital usa como padronização radiográfica para a osteoartrose do joelho as incidências: panorâmica do membro inferior, a radiografia em anteroposterior bipodal com carga e o perfil de 30º de flexão sem carga. No momento da internação essas imagens radiográficas são avaliadas e classificadas por Ahlback.

Os pacientes foram submetidos ao procedimento de substituição articular com o uso do implante Press Fit Condylar Sigma póstero estabilizado (DePuy-Synthes, Warsaw, Indiana). A técnica cirúrgica foi feita através de acesso parapatelar medial com uso de manguito pneumático insuflado a 100 mmHg acima da pressão sistólica minutos antes da incisão cutânea. O mesmo foi mantido até a cimentação do implante, não ultrapassou o prazo máximo de duas horas, quando então é feita a desinsuflação para revisão da hemostasia. O dreno de sucção no subcutâneo foi usado de forma rotineira. Todos os pacientes foram submetidos ao mesmo protocolo de profilaxia para infecção e trombose venosa profunda.

Foram analisadas variáveis quantitativas relacionadas a idade, tempo de cirurgia e tempo de oclusão arterial efetuada pelo manguito pneumático, assim como o escore de risco anestésico e a presença de comorbidades documentadas no prontuário médico.

As complicações ou os desfechos analisados para fins da pesquisa foram divididos entre eventos sistêmicos ou locais, identificados e registrados no prontuário médico. Sua frequência foi analisada desde o intraoperatório até os primeiros seis meses subsequentes à cirurgia. Os eventos sistêmicos foram subdivididos em: pulmonares -embolia pulmonar; cardíacos - infarto agudo do miocárdio e outros. Já as complicações locais foram subdivididas em: oclusão arterial aguda, trombose venosa profunda, necrose de pele, infecção superficial ou profunda do sítio cirúrgico e amputação.

O banco de dados construído a partir dos dados coletados foi analisado pelo programa SPSS (Statistical Package for the Social Science), versão 23.0, e pelo aplicativo Microsoft Excel 2007.

Na análise descritiva, para caracterização da amostra global e dos grupos de casos e controle, os dados foram sintetizados por meio do cálculo de estatísticas descritivas, razão de chances (odds ratio - OR), gráficos e distribuições de frequências e de proporções.

Na análise inferencial de variáveis qualitativas, a relação entre a calcificação e as complicações ou os diagnósticos foi investigada pelo teste qui-quadrado. Quando o teste qui-quadrado se mostrou inconclusivo, se possível, tal relação foi investigada pelo teste exato de Fisher. Para análise da significância da razão de chances, foi calculado o intervalo de confiança da razão de chances no nível de 95% de confiança.

Na análise inferencial de variáveis quantitativas (idade, tempo de isquemia e tempo de cirurgia), a hipótese de normalidade da distribuição das medidas foi verificada pelo teste de Kolmogorov-Smirnov e pelo teste de Shapiro-Wilk. Foi considerado que a variável tinha distribuição normal se ambos os testes não rejeitavam a hipótese nula de normalidade da distribuição. Uma vez que as variáveis não seguiam distribuição normal, as comparações das medidas nos grupos de casos e controle foram feitas pelo teste não paramétrico de Mann-Whitney.

Todas as discussões acerca dos testes de significância foram feitas considerando o nível de significância máximo de 5% (0,05), ou seja, foi adotada a seguinte regra de decisão nos testes: rejeição da hipótese nula sempre que o p-valor associado ao teste for menor do que 0,05. Nos testes que forneceram os p-valores assintóticos e exatos, foram considerados os p-valores exatos.

Resultados

A média de idade do grupo sem calcificação arterial foi de 67,5 anos, enquanto no grupo de casos foi de 72 anos. Pelo teste de Mann Whitney pôde-se concluir que as diferenças na idade dos pacientes dos dois grupos são significativas sob o ponto de vista estatístico (p-valor = 0,000).

O tempo de isquemia variou entre 70 e 180 minutos no grupo controle e entre 36 e 145 minutos no grupo de casos, com medianas de 90 e 104 minutos, respectivamente. Tais diferenças não foram significativas sob o ponto de vista estatístico (p-valor = 0,161 do teste de Mann Whitney).

O tempo médio de cirurgia foi de 124,9 minutos no grupo com calcificação arterial e de 119,5 minutos no grupo controle. As diferenças nas distribuições verificadas não são significativas sob o ponto de vista estatístico (p-valor = 0,192 do teste de Mann Whitney).

O teste qui-quadrado acusa que a distribuição dos escores de risco cirúrgico ASA é significativamente distinta nos grupos de casos e controle. De fato, a frequência de pacientes com risco ASA I foi maior no grupo de casos (23,2%), enquanto a frequência de pacientes com risco ASA II foi maior no grupo controle (91,2).

A tabela 1 traz para os grupos de casos e controle a incidência de intercorrências durante ou após a cirurgia. Tais dados foram investigados pelo teste qui-quadrado (ou teste exato de Fisher quando o teste qui-quadrado se mostrou inconclusivo).

Tabela 1
Frequências absolutas e percentuais das intercorrências nos grupos de casos e controle e a significância estatística

Apesar de uma maior incidência de trombose venosa profunda e um caso de tromboembolismo pulmonar nos pacientes com calcificação ao nível do joelho, tais dados não tiveram significância estatística. Nenhum caso de oclusão arterial aguda foi relatado em ambos os grupos avaliados.

A incidência de necrose de pele foi de 8,9% no grupo de casos e de 10,5% no grupo controle, dados também sem significância estatística.

A incidência de complicações clínicas foi baixa em ambos os grupos, houve apenas um caso de infarto agudo do miocárdio em um paciente do grupo de casos, porém sem significância estatística. Também foi observado em outro paciente do grupo de casos um quadro de celulite no joelho tratada com antibiótico terapia oral.

Pelos p-valores exibidos, todos maiores do que 5%, conclui-se que não há diferença significativa entre as incidências das intercorrências nos grupos de casos e controle. As razões de chance possíveis de serem calculadas são também exibidas na tabela 1, mas não são significativas, uma vez que os intervalos de confiança das razões de chance todas apresentam o valor 1.

Discussão

Alguns autores contraindicam o uso do manguito pneumático em pacientes submetidos a artroplastia total de joelho com calcificação da artéria poplítea. Alegam que levaria ao risco aumentado de complicações vasculares.1212 Abu Dakka M, Badri H, Al-Khaffaf H. Total knee arthroplasty in patients with peripheral vascular disease. Surgeon. 2009;7(6):362-5.

13 DeLaurentis DA, Levitsky KA, Booth RE, Rothman RH, Calligaro KD, Raviola CA, et al. Arterial and ischemic aspects of total knee arthroplasty. Am J Surg. 1992;164(3):237-40.

14 Kobayashi S, Isobe K, Koike T, Saitoh S, Takaoka K. Acute arterial occlusion associated with total knee arthroplasty. Arch Orthop Trauma Surg. 1999;119(3-4):223-4.
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19 Calligaro KD, DeLaurentis DA, Booth RE, Rothman RH, Savarese RP, Dougherty MJ. Acute arterial thrombosis associated with total knee arthroplasty. J Vasc Surg. 1994;20(6):927-30.

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O uso do torniquete apresenta riscos como lesão neurológica, rabdomiólise e embolia pulmonar.99 Barr L, Iyer US, Sardesai A, Chitnavis J. Tourniquet failure during total knee replacement due to arterial calcification: case report and review of the literature. J Perioper Pract. 2010;20(2):55-8. O uso do manguito pneumático em artérias calcificadas pode gerar outras complicações, como oclusão arterial ineficaz (permanece o sangramento durante a cirurgia), ruptura da parede do vaso, oclusão arterial aguda, formação de aneurisma e deslocamento de uma placa ateromatosa que causa uma oclusão arterial distal.99 Barr L, Iyer US, Sardesai A, Chitnavis J. Tourniquet failure during total knee replacement due to arterial calcification: case report and review of the literature. J Perioper Pract. 2010;20(2):55-8. A permanência de sangramento venoso após insuflação do manguito pneumático pode estar relacionada ao inadequado posicionamento na raiz na coxa, não pode ser atribuída apenas à presença de calcificação arterial.

Na nossa opinião, o cirurgião não gosta de alterar sua rotina durante a cirurgia e a maioria dos cirurgiões ortopédicos não valoriza a calcificação da artéria poplítea. Em razão disso, nosso interesse foi despertado em observar esse assunto, é uma pesquisa inédita em nosso país.

Kobayashi et al.1414 Kobayashi S, Isobe K, Koike T, Saitoh S, Takaoka K. Acute arterial occlusion associated with total knee arthroplasty. Arch Orthop Trauma Surg. 1999;119(3-4):223-4. relataram que não deve ser usado o torniquete em pacientes submetidos a ATJ com calcificação da artéria poplítea, bem como a manipulação do joelho durante a cirurgia deve ser extremamente cuidadosa. Segundo esses autores, o vaso calcificado perde a elasticidade e pode ocorrer embolização da placa na camada íntima da artéria, principalmente durante a extensão do joelho. Concordamos que os movimentos do joelho devem ser cautelosos, independentemente da calcificação arterial ou não.

Julia et al.1111 Woelfle-Roos JV, Dautel L, Wernerus D, Woelfle KD, Reichel H. Vascular calcifications on the preoperative radiograph: predictor of ischemic complications in total knee arthroplasty? J Arthroplasty. 2016;31(5):1078-82. avaliaram retrospectivamente 268 pacientes com calcificação arterial submetidos a artroplastia total de joelho com uso de manguito pneumático, encontraram um risco de complicações associadas à ferida operatória três vezes maior em pacientes com calcificação da camada íntima. Em nosso estudo foi observada a incidência global de 9,7% de necrose de pele, sem variação significante entre os grupos estudados.

A necrose de pele foi considerada uma complicação local na nossa pesquisa. O uso do manguito pneumático pode estar relacionado a essa alteração devido a uma hipóxia perioperatória e a uma redução do tecido de perfusão no pós-operatório.1919 Calligaro KD, DeLaurentis DA, Booth RE, Rothman RH, Savarese RP, Dougherty MJ. Acute arterial thrombosis associated with total knee arthroplasty. J Vasc Surg. 1994;20(6):927-30. Entretanto, sabemos que o inadequado cuidado com as partes moles ou um fechamento de pele muito tenso pode gerar essa complicação. Em consequência disso, não temos como atribuir somente ao uso do manguito pneumático essa complicação local.

Hozack et al.2222 Hozack WJ, Cole PA, Gardner R, Corces A. Popliteal aneurysm after total knee arthroplasty. Case reports and review of the literature. J Arthroplasty. 1990;5(4):301-5. relataram que a radiografia com calcificação da artéria poplítea e a história familiar de doença vascular arteriosclerótica nos dão informações adicionais de possíveis complicações vasculares. Em função disto, recomendamos sempre no paciente candidato a uma artroplastia do joelho: uma anamnese minuciosa, uma rotina de exame físico vascular periférico e maior valorização da história familiar pregressa.

Jeyaseelan et al.1717 Jeyaseelan S, Stevenson TM, Pfitzner J. Tourniquet failure and arterial calcification. Case report and theoretical dangers. Anaesthesia. 1981;36(1):48-50. relataram um maior índice de calcificação da artéria ao nível do joelho em pacientes diabéticos. Nosso estudo não observou essa relação. Foi observado que dos 58 pacientes da nossa casuística apenas 19 eram diabéticos e tal comorbidade não foi associada a maiores complicações pós-operatórias quando comparado ao grupo controle sem calcificação arterial.

Em alguns casos o não uso do manguito pneumático com artéria calcificada pode gerar risco para o paciente. Alguns pacientes com calcificação arterial no nível do joelho podem ter uma doença cardíaca não detectada que pode se manifestar após uma maior perda sanguínea associada ao não uso do torniquete no ato cirúrgico.99 Barr L, Iyer US, Sardesai A, Chitnavis J. Tourniquet failure during total knee replacement due to arterial calcification: case report and review of the literature. J Perioper Pract. 2010;20(2):55-8. Então, devemos estar atentos nessas situações para minimizar tal risco com medidas como uma transfusão sanguínea ou uso de agentes antifibrinolíticos como o ácido tranexâmico.1717 Jeyaseelan S, Stevenson TM, Pfitzner J. Tourniquet failure and arterial calcification. Case report and theoretical dangers. Anaesthesia. 1981;36(1):48-50. Ao nosso modo de ver, uma avaliação pré-operatória criteriosa pela equipe clínica e anestésica é indispensável para definir a segurança quanto à conduta do cirurgião.

DeLaurentis et al.1313 DeLaurentis DA, Levitsky KA, Booth RE, Rothman RH, Calligaro KD, Raviola CA, et al. Arterial and ischemic aspects of total knee arthroplasty. Am J Surg. 1992;164(3):237-40. observaram baixo índice de complicações com o uso do manguito pneumático em ATJ em pacientes com calcificação da artéria. Nossos resultados validam essa conclusão. A nossa pesquisa observou que pacientes do grupo de casos são significativamente mais velhos do que os pacientes do grupo controle. Entretanto, tal fato não teve repercussão quanto ao desfecho clínico no período analisado. As diferenças nas distribuições dos grupos entre o tempo de isquemia, o tempo cirúrgico, o risco anestésico, as intercorrências cirúrgicas e a necrose de pele não tiveram significância estatística.

Koehler et al.2323 Koehler SM, Fields A, Noori N, Weiser M, Moucha CS, Bronson MJ. Safety of tourniquet use in total knee arthroplasty in patients with radiographic evidence of vascular calcifications. Am J Orthop (Belle Mead NJ). 2015;44(9):E308-16. recomendaram o uso do manguito pneumático em pacientes com calcificação arterial no joelho submetidos a artroplastia total do joelho. Esse estudo corrobora nossos baixos índices de complicações com uso do torniquete. Esses autores afirmam que a maioria das complicações ocorre nos primeiros três meses de pós-operatório. Achamos que seis meses de pós-operatório foi um tempo adequado para observarmos complicações relacionadas ao uso do manguito pneumático.

Nosso estudo teve limitações por ter sido feito de modo retrospectivo, está sujeito também ao viés de erro quanto ao preenchimento dos dados presentes no prontuário médico. Com vistas a diminuir essa possibilidade, excluímos os pacientes cujo acompanhamento ambulatorial estava mal documentado.

Este foi um estudo piloto no qual observamos um índice pequeno de complicações pós-operatórias. Essa pesquisa serve como base para um estudo futuro de nível um sem gerar riscos ao paciente.

Conclui-se, então, que o procedimento de artroplastia total de joelho na presença de calcificação arterial no nível da articulação não foi associado ao aumento de complicações no período pós-operatório agudo.

Conclusão

Nosso estudo observou baixos índices de complicações em pacientes submetidos a artroplastia total do joelho com ou sem calcificação da artéria poplítea e uso do torniquete, demonstrou que o procedimento de substituição articular pode ser feito com auxílio de torniquete sem riscos aos pacientes.

  • Trabalho desenvolvido no Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia, Centro de Cirurgia do Joelho, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2016
  • Aceito
    15 Dez 2016
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