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A difícil relação médico-paciente The difficult doctor-patient relationship

A nossa relação com os pacientes é íntima, técnica eprofissional; íntima, pois abordamos problemas pessoais de suas vidas, tem de ser técnica para dar a correta dimensão às queixas e às suas consequências e precisa ser profissional para orientar qual a melhor escolha terapêutica. Estamos sempre numa situação de superioridade, pois somos procurados para solucionar problemas que só nós podemos solucionar. Não há nas outras relações de prestação de serviço nada parecido. Talvez por essa razão, é uma relação tão complexa.

Felizmente, na maioria das vezes o saldo é positivo e vivemos essa relação com um misto de amizade e admiração, que se prolonga pela vida. A melhor fonte de pacientes é o encaminhamento de outros pacientes.

Uma parcela pequena, mas altamente perigosa, dos pacientes por nós atendidos pode criar situações fantasiosas e gerar problemas sérios para a nossa atividade profissional. Essas situações podem ser criadas por problemas psiquiátricos, que nós, pela nossa formação objetiva, preferimos desconhecer.

A linha entre o distúrbio psiquiátrico e a falta de caráter é tênue e, às vezes, sobreposta.

Um trabalho publicado na RBO48(4), sobre lesão factícia na mão, relata de forma bastante interessante a pior manifestação dessa relação patológica entre médico e paciente, que é aquela na qual o paciente provoca lesões em seu corpo e as mantém, o que dificulta muito o diagnóstico e o tratamento.

Há várias descrições de pacientes que provocam sintomas como lesões ulcerativas, edemas por garrote, sangramentos por ferimentos por instrumentos cortantes, introdução de agulhas no subcutâneo etc. Há uma situação intermediária, e não tão grave, na qual temos uma gama enorme de pacientes que simulam sintomas, que negam ações terapêuticas e que responsabilizam o médico por piora em seus sintomas. Essas situações são descritas em psiquiatria como a síndrome de Shaft (sad, hostile, anxious, frustating e tenacius), na qual o paciente descreve sintomas inexistentes ou valoriza de forma absurda os sintomas que apresenta. Em alguns casos, baseado em sintomas de outra pessoa, pode descrever uma sintomatologia totalmente inexistente. Em geral procuram diversos médicos e submetem-se a diversos procedimentos.

Outra síndromeéade Münchausen, conhecida há muitos anos, que é atribuída a pacientes que mentem sobre seus sintomas e enganam os médicos. Foi descrita em 1950 por Asher, que deu esse nome em "homenagem" ao barão de Münchausen, nobre nascido em 1720 em Hanover, na Alemanha, conhecido pelos relatos fabulosos. Rodolfo Raspe publicou, em 1785, na Inglaterra, o livro "As aventuras do Barão de Münchausen" , no qual relata as histórias mentirosas e absurdas contadas pelo barão. Há descrições de "Münchausen por correspondência" , na qual um parente ou um cuidador do paciente simula sintomas, como, por exemplo, aquecer o termômetro para simular estado febril.

Sempre é interessante lembrarmo-nos desses distúrbios, que, ou por problemas psiquiátricos ou por falta de caráter, podem ocorrer em pacientes que nos procuram. Muito mais do que uma variação diagnóstica, esses pacientes podem significar grave risco para nossa atividade profissional, pois podem nos responsabilizar por queixas inexistentes dificilmente identificadas por leigos.

Um leigo, mesmo que juiz de direito, nunca contestará uma queixa de uma paciente que sofre de dores lombares que a impedem de ir ao banheiro há semanas (descrita recentemente em um desses jornais da TV), como tantos outros sintomas que estamos cansados de ouvir e não constatar.

-meu joelho incha como uma abóbora e agora não está inchado;

-minha mão adormece e não posso mexer o braço;

-passei a noite urrando de dor nas costas;

-tomei este medicamento e foi como água;

-sofri muito como uma infecção que agora se curou espontaneamente;

Aos olhos dos leigos o paciente queixoso está sempre certo e será sempre vítima de um médico pouco dedicado.

Só nós podemos e sabemos distinguir com clareza a intensidade de um sintoma, o efeito terapêutico de um medicamento e outras manifestações absurdas descritas. Só a nossa anuência torna essas situações reais e passíveis de prejudicar o colega que nos antecedeu. Quando um colega fala mal do outro para um paciente todos perdem, o doente, pois não sabe em quem acreditar, o médico, que é malfalado por razões óbvias, e o que fala mal, pois gera insegurança no paciente.

O paciente que não é esclarecido de que seu sintoma é absurdo persiste em peregrinações infindáveis, que podem terminar em procedimentos desastrosos. Publiquei na RBO 22(10) de 1987 uma série de pacientes jovens do sexo feminino com dores incaracterísticas e algumas vezes absurdas nos joelhos que se submeteram a inúmeras cirurgias - uma delas fez mais de dez cirurgias!

Sabemos que, infelizmente, a fórmula doente fantasioso e médico inescrupuloso traz sérios prejuízos para o próprio paciente, para colegas corretos e, por extensão, para a medicina.

Não sabemos se há uma solução para o doente perverso ou psiquicamente doente, mas sabemos o que é real e o que é mentiroso na relação médico-paciente. A única forma de nos proteger e proteger os nossos pacientes é manter a nossa relação com eles íntima, técnica e profissional, desmontar a queixa fantasiosa e não aceitar comentários mentirosos de colegas que nos antecederam no atendimento.

Aceitar a maledicência de um colega é se inscrever na lista como próximo a ser malfalado.

Gilberto Luis Camanho

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2013
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