Acessibilidade / Reportar erro

Educar e ensinar: um estranho hábito

Educar e ensinar sua arte a alguém é uma das atitudes mais nobre das relações humanas, realçada por Hipócrates no nosso célebre juramento:

"Estimar, tanto quanto a meus pais, aquele que me ensinou esta arte; fazer vida comum e, se necessário for, com ele partilhar meus bens; ter seus filhos por meus próprios irmãos; ensinar-lhes esta arte, se eles tiverem necessidade de aprendê-la, sem remuneração e nem compromisso escrito."

O reconhecimento dessa demonstração de civismo e de amor ao próximo é, em geral, pequeno e pobre.

Os professores primários estão entre as classes de formação superior com a menor remuneração; no ensino secundário frequentemente os professores abandonam o ensinar por alguma outra atividade.

As universidades remuneram professores, que fazem concursos extenuantes para serem aprovados, em faixas salariais tão baixas que em geral nem são consideradas; é comum um professor universitário desconhecer qual o valor de seu salário, especialmente nas universidades públicas.

Considerando as políticas públicas, elas são tão ridículas que nos situamos entre os piores países do mundo em todas as avaliações de qualidade de educação, embora nos intitulemos "pátria educadora".

Essas considerações são sobre profissionais da educação, mas mesmo na nossa atividade diária continuamos a educar e ensinar e também somos pouco reconhecidos.

Os formadores de residentes, que são a base de nossa especialidade, são desconhecidos e em nenhum momento gozam de um destaque ou um respeito adicional. São horas de dedicação e paciência destinadas a ensinar a prática de nossa especialidade que são esquecidas pelos alunos e pelos chefes de serviço sem que haja qualquer reconhecimento. A figura do preceptor, o responsável pela pós-graduação latu sensu , é pouco conhecida e nunca prestigiada de forma especial. São em geral indivíduos abnegados que dedicam no início de suas vidas, parte importante de seu tempo, a ensinar e cobrar dos mais jovens o hábito de estudar e se preparar para a vida profissional, que irá lhes dar todo o subsídio de sua vida familiar futura.

Além dessa educação básica diária e contínua com pequeno reconhecimento, temos a atividade em educação médica continuada, a atuação em congressos e palestras.

Essa, além de não ser remunerada, é disputada, em algumas situações com lutas políticas de ferocidade variável. Algo faz dos palestrantes verdadeiros viciados em apresentar suas aulas, com material didático com grau variável de sofisticação e gosto duvidoso, em locais os mais estranhos e distantes, para plateias heterogêneas sem remuneração ou reconhecimento. Acreditam que essa exposição aos seus iguais trará algum benefício, embora sem ter qualquer forma de avaliar o real benefício que essas aulas trarão. A ausência de um convite para uma aula significa em geral uma grande ofensa.

Há palestrantes que viajam muito mais horas do que despendem no tempo de suas apresentações e esse é um hábito internacional, que talvez seja uma característica do médico palestrante. Não são raros os conferencistas estrangeiros que chegam de manhã, fazem suas palestras e retornam à noite aos seus países.

Não podemos esquecer aqueles que educam e ensinam escrevendo, despendendo enorme tempo no preparo de seus manuscritos sobre assuntos diversos, obedecendo a regras rígidas e submetidos ao crivo de editores exigentes, que não raramente criticam um trabalho de meses de redação e pesquisa, pois encontram erros na forma da redação ou mesmo não compreendem a interpretação daquele que criou o texto. Esses trabalhos, quando pretendem ser expostos em revistas internacionais, com fator de impacto alto, têm, além do tempo despendido, um custo financeiro de tradução e de publicação. Há revistas que, mesmo sem um impacto importante, cobram mais de 1.000 dólares para um trabalho, depois de aprovado, ser publicado.

Esses ainda terão o questionável benefício de ser lidos, mas e os editores que julgam textos, corrigem, adequam as regras e continuam completamente desconhecidos, pois não podem sequer ser identificados?

Os redatores e editores são duas classes de abnegados aos quais devemos a existência de 51 anos de RBO.

Esses estranhos hábitos atingem um número considerável de pessoas, sem que haja alguma explicação plausível, e são frequentes na classe médica em especial.

Educar e ensinar sem retorno evidente talvez sejam desvios de comportamento que têm uma positiva manifestação. Deixemos os psiquiatras nos analisarem, pois preciso terminar, preparar minhas aulas para o próximo congresso e rever os trabalhos da próxima RBO.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2016
Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia Al. Lorena, 427 14º andar, 01424-000 São Paulo - SP - Brasil, Tel.: 55 11 2137-5400 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbo@sbot.org.br