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Luxação bilateral dos joelhos com lesão bilateral da artéria poplítea Trabalho desenvolvido no Coimbra Hospital and University Center, Orthopedics Department, Coimbra, Portugal.

RESUMO

As luxações unilaterais tibiofemurais do joelho são incomuns, o que torna as luxações bilaterais ainda mais raras. A luxação do joelho é considerada um dos ferimentos mais graves nessa articulação. As complicações associadas, tais como a lesão da artéria poplítea, são responsáveis pela importante morbidade observada nesses pacientes. Os autores relatam o caso de um homem de 52 anos com luxação traumática bilateral do joelho associada a lesão bilateral da artéria políptea. O estudo descreve a apresentação clínica e os achados radiográficos e angiográficos. Os tratamentos cirúrgico e não cirúrgico e os resultados funcionais também são relatados.

Palavras-chave:
Lesões do joelho; Fratura do fêmur; Luxações; Artéria poplítea

ABSTRACT

Tibiofemoral unilateral knee dislocations are uncommon, making bilateral dislocations even rarer injuries. Knee dislocation is considered one of the most serious injuries that can affect this joint. Associated complications such as popliteal artery injury are responsible for the important morbidity in these patients. The authors report the case of a 52-year-old man with a traumatic bilateral knee dislocation with associated bilateral popliteal arterial injury. His clinical presentation along with radiographic and angiographic findings are described. Surgical and non-surgical treatment and functional outcomes are also reported.

Keywords:
Knee injuries; Femoral fractures; Dislocations; Popliteal arterial

Introdução

A luxação tibiofemoral traumática do joelho é uma lesão relativamente incomum, com uma incidência de menos de 0,02% dentre todas as lesões ortopédicas. As luxações bilaterais do joelho são ainda mais raras e foram relatadas apenas em alguns estudos.11 Rihn JA, Cha PS, Groff YJ, Harner CD. The acutely dislocated knee: evaluation and management. J Am Acad Orthop Surg. 2004;12(5):334-46.

2 Sisto DJ, Warren RF. Complete knee dislocation. A follow-up study of operative treatment. Clin Orthop Relat Res. 1985;(198):94-101.
-33 Natsuhara KM, Yeranosian MG, Cohen JR, Wang JC, McAllister DR, Petrigliano FA. What is the frequency of vascular injury after knee dislocation? Clin Orthop Rel Res. 2014;472(9):2615-20. Tanto quanto é do conhecimento dos autores, este é o primeiro caso publicado de uma lesão bilateral da artéria poplítea após luxação bilateral do joelho. A luxação é uma das lesões mais graves e complexas do joelho. Elas são frequentemente associadas a várias complicações, tais como instabilidade ligamentar, lesão da artéria poplítea, lesão do nervo fibular comum, síndrome compartimental aguda, trombose venosa profunda, perda de amplitude de movimento, necessidade de amputação e patologia intra-articular.11 Rihn JA, Cha PS, Groff YJ, Harner CD. The acutely dislocated knee: evaluation and management. J Am Acad Orthop Surg. 2004;12(5):334-46.,44 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res. 2014;472(9):2621-9.,55 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train. 2004;39(4):365-9.

Caso clínico

Um homem de 52 anos, portador de diabetes tipo II, teve seus membros inferiores presos sob um trator de fazenda. O trator atropelou as duas pernas, até finalmente parar. O paciente foi levado para o hospital mais próximo, onde foi diagnosticada luxação bilateral do joelho: uma luxação anterior exposta à esquerda e uma luxação posterior fechada no joelho direito (fig. 1). Ele também apresentou lacerações profundas com perda significativa de substância na região poplítea esquerda, bem como nas partes laterais da coxa e da perna. Ambas as luxações foram reduzidas e imobilizadas aproximadamente duas horas após o trauma. A terapia antibiótica intravenosa foi iniciada imediatamente. Devido à ausência de pulso distal e diminuição da temperatura no membro inferior esquerdo, foi levantada a possibilidade de lesão vascular, o que provocou transferência imediata para um centro terciário. À admissão, o ecodoppler revelou ausência bilateral de fluxo sanguíneo distalmente ao triângulo poplíteo. Uma angiografia revelou oclusão bilateral de artérias poplíteas, com recanalização distal observada apenas no membro inferior direito (fig. 2).

Fig. 1
Radiografias iniciais dos joelhos direito e esquerdo evidenciam luxações tibiofemorais bilaterais: luxação anterior no joelho esquerdo e luxação posterior no joelho direito.
Fig. 2
Angiografia mostra oclusão bilateral da artéria poplítea (joelhos direito e esquerdo, respectivamente).

O paciente foi levado para a sala de cirurgia, onde as luxações do joelho foram estabilizadas com fixadores externos uniplanares anteriores para permitir a intervenção vascular (fig. 3). O enxerto femoropoplíteo com veia safena ipsilateral permitiu revascularização de ambas as artérias poplíteas; o procedimento foi feito aproximadamente seis horas após o trauma inicial. O desbridamento cirúrgico e o fechamento das lacerações cutâneas foram feitos posteriormente. Um enxerto de pele colhido da coxa foi aplicado na lesão da pele da perna esquerda. Apesar do sucesso da revascularização bilateral, a laceração da pele da perna esquerda evoluiu para necrose e infecção. A terapia antibiótica e vários procedimentos de desbridamento cirúrgico foram infrutíferos, foi necessário amputar acima do joelho do membro inferior esquerdo.

Fig. 3
Sistemas de fixadores externos na posição anterior.

No pós-operatório, fixadores externos foram usados no joelho direito externo por quatro semanas, seguidos de duas semanas com uso intermitente de órtese de joelho e fisioterapia adequada. Um ano após a lesão, o paciente deambula com uma prótese do joelho da perna esquerda. Ele se queixa de dor mecânica moderada no joelho direito, sem sinais de instabilidade. A amplitude de movimento do joelho direito é 0-130° e a ressonância magnética revelou ruptura completa do ligamento cruzado anterior, sem outras lesões relevantes (ligamento cruzado posterior [LCP] intacto).

Discussão

As luxações tibiofemorais do joelho são classificadas com base na direção do deslocamento tibial em relação ao fêmur: anterior, posterior, medial, lateral e rotacional.11 Rihn JA, Cha PS, Groff YJ, Harner CD. The acutely dislocated knee: evaluation and management. J Am Acad Orthop Surg. 2004;12(5):334-46.,22 Sisto DJ, Warren RF. Complete knee dislocation. A follow-up study of operative treatment. Clin Orthop Relat Res. 1985;(198):94-101.,55 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train. 2004;39(4):365-9. O mecanismo de lesão mais comum em luxações anteriores é hiperextensão forçada; em luxações posteriores, força direta na tíbia enquanto o joelho é flexionado força a tíbia posteriormente sobre o fêmur.55 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train. 2004;39(4):365-9.

A avaliação inicial no atendimento de emergência deve excluir lesões associadas que possam comprometer a integridade e a função dos membros. Após traumas de alta energia, é importante identificar fraturas e luxações; as últimas devem ser reduzidas o mais rapidamente possível. Sempre que possível, deve-se optar por reduções fechadas. A incidência relatada de lesões da artéria poplítea nas luxações do joelho varia entre 20% e 40%.33 Natsuhara KM, Yeranosian MG, Cohen JR, Wang JC, McAllister DR, Petrigliano FA. What is the frequency of vascular injury after knee dislocation? Clin Orthop Rel Res. 2014;472(9):2615-20.,44 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res. 2014;472(9):2621-9.,66 Wascher DC, Dvirnak PC, DeCoster TA. Knee dislocation: initial assessment and implications for treatment. J Orthop Trauma. 1997;11(7):525-9.,77 Patterson BM, Agel J, Swiontkowski MF, Mackenzie EJ, Bosse MJ. Knee dislocations with vascular injury: outcomes in the Lower Extremity Assessment Project (LEAP) Study. J Trauma. 2007;63(4):855-8. É o vaso mais frequentemente acometido em tais lesões, provavelmente devido à sua ancoragem firme e mobilidade reduzida acima e abaixo do joelho (no intervalo entre o adutor grande e o sóleo, respectivamente).77 Patterson BM, Agel J, Swiontkowski MF, Mackenzie EJ, Bosse MJ. Knee dislocations with vascular injury: outcomes in the Lower Extremity Assessment Project (LEAP) Study. J Trauma. 2007;63(4):855-8.

As luxações posteriores são o subtipo mais comum associado às lesões da artéria poplítea. As forças de cisalhamento associadas a tais lesões geralmente levam a ruptura da íntima e transecção arterial. Por outro lado, em luxações anteriores, o estiramento é o mecanismo de lesão mais comum para a artéria poplítea.44 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res. 2014;472(9):2621-9.

O exame neurovascular deve ser feito antes e após a redução. A lesão da artéria poplítea é uma lesão grave que compromete a sobrevivência dos membros. Patterson et al. relataram que um em cada cinco casos de luxação do joelho e lesão arterial associada culminam em amputação de membros.77 Patterson BM, Agel J, Swiontkowski MF, Mackenzie EJ, Bosse MJ. Knee dislocations with vascular injury: outcomes in the Lower Extremity Assessment Project (LEAP) Study. J Trauma. 2007;63(4):855-8. A baixa circulação colateral em torno do joelho é responsável pela taxa de amputação de até 86% oito horas após a isquemia.88 Green NE, Allen BL. Vascular injuries associated with dislocation of the knee. J Bone Joint Surg Am. 1977;59(2):236-9.,99 Halvorson JJ, Anz A, Langfitt M, Deonanan JK, Scott A, Teasdall RD, et al. Vascular injury associated with extremity trauma: initial diagnosis and management. J Am Acad Orthop Surg. 2011;19(8):495-504. Portanto, o diagnóstico e o tratamento precoces são uma prioridade absoluta.11 Rihn JA, Cha PS, Groff YJ, Harner CD. The acutely dislocated knee: evaluation and management. J Am Acad Orthop Surg. 2004;12(5):334-46. Como as luxações do joelho podem ocorrer e se reduzir espontaneamente, podem ocorrer lesões neurovasculares com o joelho parcialmente deslocado ou até mesmo reduzido. As luxações do joelho também são muitas vezes complicadas pela síndrome compartimental aguda, que requer fasciotomia de urgência. Isquemia e síndrome compartimental podem não estar presentes no início; portanto, o clínico deve manter um alto índice de suspeita e fazer exames neurovasculares seriais nos dias que seguem a lesão.55 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train. 2004;39(4):365-9.

Considerando a associação frequente entre luxações do joelho e lesões da artéria poplítea e a falta de sensibilidade do exame físico (presença de pé quente e pulsos distal palpáveis, apesar da lesão da artéria poplítea; ausência de inchaço e derrame significativo nas luxações do joelho devido ao dano capsular e ao extravasamento de fluido), alguns autores aconselham angiografia em todas as luxações do joelho. Outros só recomendam esse exame em casos que apresentem fraqueza do pulso ou anormalidades no índice tornozelo-braquial ou no Doppler.11 Rihn JA, Cha PS, Groff YJ, Harner CD. The acutely dislocated knee: evaluation and management. J Am Acad Orthop Surg. 2004;12(5):334-46.,33 Natsuhara KM, Yeranosian MG, Cohen JR, Wang JC, McAllister DR, Petrigliano FA. What is the frequency of vascular injury after knee dislocation? Clin Orthop Rel Res. 2014;472(9):2615-20.,44 Medina O, Arom GA, Yeranosian MG, Petrigliano FA, McAllister DR. Vascular and nerve injury after knee dislocation: a systematic review. Clin Orthop Relat Res. 2014;472(9):2621-9.

As lesões do ligamento cruzado e colateral são muito comuns nas luxações tibiofemorais do joelho. No entanto, em algumas subluxações e mesmo em algumas luxações completas o LCP pode estar intacto. A ressonância magnética é a modalidade de imagem de escolha para avaliação de lesões intra-articulares no joelho. Estudos biomecânicos recomendam a reconstrução do ligamento no contexto de instabilidade após a luxação do joelho, para tentar restaurar a cinemática do joelho.11 Rihn JA, Cha PS, Groff YJ, Harner CD. The acutely dislocated knee: evaluation and management. J Am Acad Orthop Surg. 2004;12(5):334-46.,22 Sisto DJ, Warren RF. Complete knee dislocation. A follow-up study of operative treatment. Clin Orthop Relat Res. 1985;(198):94-101.,55 Henrichs A. A review of knee dislocations. J Athl Train. 2004;39(4):365-9.

6 Wascher DC, Dvirnak PC, DeCoster TA. Knee dislocation: initial assessment and implications for treatment. J Orthop Trauma. 1997;11(7):525-9.
-77 Patterson BM, Agel J, Swiontkowski MF, Mackenzie EJ, Bosse MJ. Knee dislocations with vascular injury: outcomes in the Lower Extremity Assessment Project (LEAP) Study. J Trauma. 2007;63(4):855-8. Em pacientes sem instabilidade no joelho, uma abordagem conservadora composta por um período de imobilização seguido de reabilitação pode ser aconselhada após redução. Para evitar a rigidez, o tempo de imobilização não deve ultrapassar seis semanas.1010 Holmes CA, Bach BR. Knee dislocations: immediate and definitive care. Phys Sportsmed. 1995;23(11):69-83. No presente caso, a estabilidade intrínseca do joelho proporcionada pelo LCP intacto e a ausência de sintomas relevantes justificou a opção pela não reconstrução do ligamento do joelho. O PCL intacto e a forte aderência ao tratamento fisioterápico podem explicar o excelente resultado funcional observado no joelho direito. A amputação e as subsequentes mudanças na biomecânica da marcha (mesmo com o uso de prótese) provavelmente favorecerão o desenvolvimento precoce de osteoartrite no joelho direito.

As luxações tibiofemorais do joelho são lesões ortopédicas devastadoras que podem comprometer a perfusão dos membros e afetar todas as principais restrições estáticas do joelho. A integridade da artéria poplítea deve ser avaliada antes e após a redução e, caso a lesão arterial seja confirmada, a revascularização é obrigatória e deve ser feita o mais rápido possível, após a redução e a estabilização do joelho. No presente artigo, os autores apresentaram um caso extremamente raro de luxação bilateral traumática do joelho associada à lesão bilateral da artéria poplítea, sua apresentação clínica, métodos de diagnóstico, tratamentos feitos e resultados obtidos, para compartilhar a experiência. Os autores esperam que os clínicos possam aprender com o presente caso no manejo de lesões semelhantes.

  • Trabalho desenvolvido no Coimbra Hospital and University Center, Orthopedics Department, Coimbra, Portugal.

References

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    18 Nov 2016
  • Aceito
    17 Jan 2017
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