Acessibilidade / Reportar erro

Evolução do conceito e controvérsias atuais sobre o transtorno bipolar do humor

Resumos

O autor revê o conceito de transtorno bipolar como um processo em evolução. Suas raízes podem ser encontradas no trabalho de Araeteus da Capadócia, que assumia serem a melancolia e a mania duas formas da mesma doença. A compreensão atual da doença bipolar começou na França, através dos trabalhos de Falret (1851) e Baillarguer (1854). Os conceitos fundamentais de Kraepelin mudaram as bases da nosologia psiquiátrica, e o conceito unitário de Kraepelin sobre a insanidade maníaco-depressiva passou a ser amplamente aceito. Depois de Kraepelin, no entanto, as idéias de Kleist e Leonhard, na Alemanha, e o trabalho subseqüente de Angst, Perris e Winokur enfatizaram a distinção entre as formas monopolares e bipolares da depressão. Mais recentemente a ênfase mudou novamente para o espectro bipolar, que em suas formas leves expande-se às bordas dos temperamentos normais. Finalizando, o autor sumariza os aspectos polêmicos da nosologia da doença bipolar e seus limites com as esquizofrenias, a doença esquizoafetiva e as psicoses ciclóides.

Transtorno bipolar; Transtornos do humor; História


The author reviews the evolution of the concept of bipolar disorder as an ongoing process. Its roots can be found in the work of Araeteus of Capadocia, who assumed that melancholia and mania were two forms of the same disease. The modern understanding of bipolar disorder began in France, through the work of Falret (1851) and Baillarger (1854). The pivotal concepts of Emil Kraepelin changed the basis of psychiatric nosology, and Kraepelin's unitary concept of manic-depressive insanity was largely accepted. Kraepelin and Weigandt's ideas on mixed states were the cornerstone of this unitary concept. After Kraepelin, however, the ideas of Kleist and Leonhard, in Germany, as well as the work of Angst, Perris and Winokur, emphasized the distinction between unipolar and bipolar forms of depression. More recently, the emphasis has shifted again to the bipolar spectrum, which, in its mild forms, expanded to the limits of normal temperament. In concluding, the author summarizes the polemic aspects concerning the nosology of bipolar disorder and its boundaries in comparison with those of with schizophrenia, schizoaffective disorders and cycloid psychosis

Bipolar disorder; Mood disorders; History


Evolução do conceito e controvérsias atuais sobre o transtorno bipolar do humor

José Alberto Del Porto

Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

Endereço para correspondência Endereço para correspondência José Alberto Del Porto Rua Dr. Diogo de Faria, 1087 - conj. 409 04037-003 São Paulo, SP E-mail: delporto@uol.com.br

RESUMO

O autor revê o conceito de transtorno bipolar como um processo em evolução. Suas raízes podem ser encontradas no trabalho de Araeteus da Capadócia, que assumia serem a melancolia e a mania duas formas da mesma doença. A compreensão atual da doença bipolar começou na França, através dos trabalhos de Falret (1851) e Baillarguer (1854). Os conceitos fundamentais de Kraepelin mudaram as bases da nosologia psiquiátrica, e o conceito unitário de Kraepelin sobre a insanidade maníaco-depressiva passou a ser amplamente aceito. Depois de Kraepelin, no entanto, as idéias de Kleist e Leonhard, na Alemanha, e o trabalho subseqüente de Angst, Perris e Winokur enfatizaram a distinção entre as formas monopolares e bipolares da depressão. Mais recentemente a ênfase mudou novamente para o espectro bipolar, que em suas formas leves expande-se às bordas dos temperamentos normais. Finalizando, o autor sumariza os aspectos polêmicos da nosologia da doença bipolar e seus limites com as esquizofrenias, a doença esquizoafetiva e as psicoses ciclóides.

Descritores: Transtorno bipolar/história; Transtornos do humor/história; História

Os termos "mania" e "melancolia" remontam a vários séculos antes de Cristo.1 Dentre os antigos, foi Araeteus da Capadócia (que viveu em Alexandria no século I d.C.) quem escreveu os principais textos que chegaram aos dias atuais, referentes à unidade da doença maníaco-depressiva.2

Araeteus foi, segundo Angst3 e Marneros,4 o mais proeminente representante dos "Ecléticos", celebrizando-se pela acurácia de suas descrições clínicas. Foi o primeiro a explicitamente estabelecer um vínculo entre a mania e a melancolia, concebendo-as como aspectos diferentes da mesma doença. No capítulo V de seu livro "Sobre a Etiologia e Sintomatologia das Doenças Crônicas",3-4 escreveu: "...Penso que a melancolia é o início, e como tal, parte da mania...O desenvolvimento da mania é o resultado da piora da melancolia, em vez de se constituir na mudança para uma doença diferente". Mais explicitamente, escreveu: "...Na maioria dos melancólicos a tristeza se converte em alegria; e os pacientes então desenvolvem o que se chama de mania".

Cumpre notar que 1 1 Araeteus apud 3-4 Araeteus3-4 diferenciou entre a melancolia (doença de causas biológicas) e os estados depressivos conseqüentes a influências ambientais (a atual depressão reativa).

Na metade do século XIX, na França, Falret e 2 2 Baillarger (1851) apud5 Baillarger (independentemente) descreveram formas alternantes de mania e depressão, chamadas pelo primeiro de folie circulaire e pelo segundo de folie à double forme.5 Depois de um breve texto, publicado em 1851 ("De la folie circulaire"), Falret escreveu, em 3 3 Falret (1854) apud 6 1854, o trabalho "Mémoire sur la folie circulaire, forme de maladie mentale caracterisée par la reproduction sucessive et régulière de l'état maniaque, de l'état mélancholique, et d'un intervale lucide plus ou moins prolongué".6

Este trabalho foi traduzido para o inglês, com comentários, feitos por Sedler,5 no American Journal of Psychiatry, tornando-se assim de fácil acesso para o leitor atual. Baillarger leu seu trabalho sobre a folie à double forme perante a Academie de Médicine, em 1854, três anos depois da comunicação inicial de Falret, mas antes que este publicasse, em 1854, seu trabalho mais extenso, citado acima. Para Berrios,7 a questão da prioridade não parece tão importante, uma vez que vários outros autores, na França, estavam trabalhando sobre o mesmo tema, como por exemplo, Billod (folie à double phase) e Legrand du Saulle (folie alterne).

Na verdade, o conceito de Falret5 difere do de Baillarger, pois leva em conta os "intervalos lúcidos" entre as fases. Assim, mesmo fases de mania e depressão separadas por longos períodos de tempo ainda integrariam o conceito de folie circulaire; ao contrário, Baillarger não leva em conta os intervalos, mas apenas as fases que se sucedem imediatamente.3-4

Kahlbaum4 4 Kahlbaum (1845) apud4 deu suporte a Falret, em contraposição a Baillarger, lembrando também que as idéias de Griesinger, publicadas em 1845, influenciaram Falret (Griesinger havia escrito que a mudança da melancolia para a mania era "usual").4

Ao fim do século XIX, no entanto, e apesar das contribuições de Falret, Baillarger e Kahlbaum (entre outros), a maioria dos clínicos continuava a considerar a mania e a melancolia como entidades distintas, crônicas e com curso deteriorante.8

Foi Kraepelin que, ao separar as psicoses em dois grandes grupos (a demência precoce e a insanidade maníaco-depressiva), consolidou a importância dos conceitos discutidos acima. É desnecessário dizer que as modernas classificações (DSMs, CID-10 e outras), em linhas gerais, baseiam-se ainda nos conceitos de Kraepelin, que enfatizou em sua nosologia a importância tanto do quadro clínico como do curso longitudinal das doenças.

Até o fim da década de 1890, Kraepelin tendia a dividir a enfermidade maníaco-depressiva em numerosos e complexos subtipos; na sexta edição de seu tratado,9 Kraepelin adotou o ponto de vista unitário, considerando que a enfermidade maníaco-depressiva abrangia os estados depressivos, a mania simples e os quadros circulares.

Por volta de 1913, na oitava edição de seu tratado (ver tradução para o inglês, de 1919), Kraepelin incluiu praticamente todas as formas de melancolia (com a exceção de umas poucas formas da melancolia involutiva) e de mania, em seu conceito de "insanidade maníaco-depressiva".

Kraepelin9 colocou especial ênfase nas características da doença que mais claramente a diferenciavam da demência precoce: o curso periódico ou episódico, o prognóstico mais benigno e a história familiar de quadros homólogos (maníaco-depressivos).

Em um período relativamente curto de tempo, os pontos de vista de Kraepelin alcançaram grande aceitação, contribuindo para uma relativa unificação conceitual da psiquiatria européia.8As idéias de Kraepelin, trazendo para a psiquiatria um modelo médico firmemente enraizado em observações clínicas (quanto à sintomatologia e evolução ao longo do tempo), foram de extremo valor e continuam férteis até hoje. Atendo-se ao modelo médico de doença, Kraepelin não excluiu de suas concepções os fatores psíquicos e sociais; antes, os valorizou como poucos o haviam feito. Incluindo no conceito de enfermidade maníaco-depressiva "as formas leves da doença, que chegam aos limites dos temperamentos", Kraepelin lançou a semente do que, nos últimos anos, vem sendo chamado de "espectro bipolar".8

Uma das importantes contribuições de Kraepelin9 e de seu discípulo Weigandt (1899) foi o conceito de "estados mistos maníaco-depressivos". De fato, a pedra angular para a formulação do conceito unitário, de Kraepelin, a respeito da enfermidade maníaco-depressiva, foi o reconhecimento da existência dos estados mistos.9

Os estados mistos, na verdade, já haviam sido mencionados por outros autores, porém sem a importância que lhes foi dada por Kraepelin e Weigandt. Wilhelm Griesinger escreveu que, durante a transição de um estado para outro, "um conglomerado de sintomas maníacos e depressivos pode ocorrer".4 Wernicke, no seu "Tratado de Psiquiatria"11 (tradução para o espanhol de Outes e Tabasso, de 1996), dedicou o 36º capítulo às "psicoses compostas". Neste capítulo, incluiu a descrição clínica da "melancolia agitada", na qual haveria intensa ansiedade, pressão para falar e fuga de idéias. A "melancolia agitada", nesta concepção, combinaria elementos da série depressiva e da série maníaca.

Em que pesem as contribuições anteriores, foi sem dúvida Kraepelin, e seu discípulo Weigandt, que melhor sistematizaram o estudo dos estados mistos.

De acordo com Salvatore et al,10 o trabalho de Weigandt teria influenciado Kraepelin na formulação do seu conceito unitário da enfermidade maníaco-depressiva. O assunto é controverso, pois Weigandt era discípulo de Kraepelin, e é provável que ambos tenham trabalhado juntos na elaboração desses conceitos. De qualquer forma, Kraepelin faz menção a Weigandt em seu capítulo sobre os estados mistos.9

A monografia de Weigandt foi traduzida para o italiano por Salvatore (manuscrito não publicado, 2002) e logo para o inglês.10

Weigandt remonta à tradição Platônico-Aristotélica ao dividir a atividade psíquica nos domínios do afeto, do pensamento e da atividade (motora). A mesma divisão iremos encontrar no manual de Kraepelin: emoção, volição e intelecto.

Nos estados "puros", maníacos ou depressivos, os três domínios encontram-se alterados na mesma direção. Na mania típica, por exemplo, há fuga de idéias, exaltação do humor e aumento da atividade motora. Na depressão "pura" há inibição do pensamento, lentificação psicomotora e humor triste. Nos estados mistos, ao contrário, há alterações em diferentes direções, considerando as áreas do afeto, da atividade e do pensamento.

Segundo Koukopoulos e Koukopoulos,12 Weigandt foi o primeiro a empregar o termo "depressão agitada" para designar um dos estados mistos, dando-lhe precisa descrição clínica.

Na oitava edição de seu tratado (ver a tradução inglesa de 1919), Kraepelin assim classificou os estados mistos, de forma muito semelhante à adotada por Weigandt:

Embora o conceito de estados mistos tivesse sido bem acolhido por muitos de seus contemporâneos, entre os quais Bleuler ("Tratado de Psiquiatria", 1924), nem todos o aceitaram, a partir mesmo das premissas de sua formulação. Pareceu a Jaspers inaceitável a tentativa de "quebrar" a enfermidade maníaco-depressiva nas esferas afetiva, intelectual e conativa. Afirmou Jaspers: "O procedimento é ambíguo, uma vez que conexões dotadas de significado são abordadas como componentes objetivos da vida psíquica (capazes de serem separados e mecanicamente combinados)".13Schneider14 foi ainda mais enfático: "Nós não mais acreditamos nos estados mistos. (...) O que pode dar a aparência de estados mistos consiste na mudança de um estado para outro, de tal forma que podemos chamá-los simplesmente de ciclotimia" (Obs: Ciclotimia era o termo empregado por Schneider para a doença maníaco-depressiva como um todo).

Por outro lado, Leonhard,15 discípulo de Kleist, não só aceitava, mas enfatizava a importância das características "mistas" nas formas bipolares da doença. Estas exibiriam, quase sempre, mesclas de sintomas ("...O rápido curso de todas essas variações não pode ser avaliado como a expressão de fases distintas, mas mostra sim o potencial da doença em exibir características do pólo oposto").

Com a revitalização da importância do diagnóstico nos Estados Unidos, a partir da década de 1970, ressurgiu o interesse pelo estudo da obra de Kraepelin, incluindo também os estados mistos.

McElroy et al16 propuseram uma definição operacional para a "mania disfórica" ou "hipomania disfórica": episódio maníaco ou hipomaníaco completo associado à presença simultânea de três ou mais sintomas depressivos.

Perugi et al,17 de Pisa (Itália), fizeram importante contribuição ao estudo dos estados mistos, trabalhando em conjunto com o grupo de San Diego (Akiskal e outros), ao formular seus critérios diagnósticos. É interessante a inclusão do sintoma "perplexidade" em seus critérios, justamente porque quase nunca é citado pelos autores americanos. Lembra importante característica da "bouffée delirante" dos franceses.

Segundo Marneros,4 a contribuição mais importante para o estudo dos estados mistos, desde Kraepelin, foi feita por Hagop Akiskal.18-19 De acordo com a formulação de Akiskal, os estados mistos emergem quando um episódio afetivo se manifesta sobre um temperamento de polaridade oposta. Por exemplo: um episódio maníaco ocorrendo em uma pessoa com temperamento depressivo; ou um episódio maníaco ocorrendo em uma pessoa com temperamento hipertímico. Da mesma forma, a instabilidade do temperamento ciclotímico poderia transformar um episódio depressivo em estado misto.

Recentemente, Hantouche et al,20 em estudo realizado na França (EPIMAN), confirmaram estatisticamente algumas das formulações feitas por Akiskal ("Temperament in women seemed to contribute to the gênesis of mixed [dysphoric] mania in accordance with Akiskal's hypothesis of opposition of temperament and polarity of bipolar episodes in mixed states").

Todos esses estudos convergem em assinalar a importância e a atualidade da questão dos estados mistos, não só enquanto desafio para a terapêutica, mas também para a formulação de novos modelos teóricos concernentes ao diagnóstico (por exemplo, enfatizando a importância da interação do temperamento com os modos de adoecer).

Depois de Kraepelin, a evolução do conceito de doença maníaco-depressiva tomou rumos diferentes na Europa e nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos, a influência de Adolf Meyer e sua escola dita "psicobiológica" foi marcante, pavimentando o caminho para a ampla aceitação da psicanálise. Como reflexo de sua influência, basta lembrar que a DSM de 1952 menciona a doença maníaco-depressiva como uma "forma de reação". Para Adolf Meyer, os quadros clínicos seriam "formas de reação", moldadas pela vulnerabilidade individual a influências específicas, psicológicas e sociais.21

Até a década de 1970, a nosologia norte-americana (para as doenças afetivas) baseava-se em uma série de pressupostos etiológicos, muitas vezes dispostos em séries dicotômicas (antagônicas). Assim, classificavam-se os estados depressivos em: endógenos versus reativos; neuróticos versus psicóticos; e, mais recentemente, em primários versus secundários. Essas dicotomias não levavam em conta, segundo Goodwin e Jamison,8 que um único parâmetro não poderia diferenciar aspectos da doença que são parcialmente independentes uns dos outros: gravidade, características neuróticas, presença de delírios ou alucinações, fatores genéticos, eventos precipitantes, etc.

Na Europa, a evolução da psiquiatria no período pós-Kraepeliniano seguiu curso diferente daquele adotado nos Estados Unidos, onde a influência da psicanálise foi mais marcante.

Bleuler22 propôs que entre a esquizofrenia e a psicose maníaco-depressiva houvesse um continuum; assim, o paciente seria predominantemente esquizofrênico ou predominantemente maníaco-depressivo. Mais ainda, ao longo da doença, o paciente poderia oscilar entre esses dois pólos. Bleuler tinha, dessa forma, uma visão dimensional, e não categorial, a respeito das duas entidades nosológicas propostas por Kraepelin.

Por outro lado, seguindo a tradição de Wernicke, cresceu na Alemanha a escola de Kleist e seu discípulo, Leonhard. A escola de Kleist e Leonhard teve profunda influência na Europa, em particular em Portugal23 e na Espanha. Na América Latina, importantes grupos formaram-se na esteira da influência de Kleist: no Brasil, a escola de Aníbal Silveira; no Peru, a de Honório Delgado; na Argentina, o grupo de Diego Outes.23 Desafiando a dicotomia de Kraepelin, Leonhard escreveu, na introdução de seu livro, "Classificação das Psicoses Endógenas": "A classificação de Kraepelin, em apenas duas doenças, tem sido prejudicial. (...) Enquanto a neurologia reconhece centenas de doenças endógenas e continua a descrever outras, a psiquiatria reconhece apenas duas. (...) Enquanto a neurologia tenta descrever a hereditariedade de cada uma de suas doenças genéticas, os psiquiatras ainda debatem a respeito da hereditariedade da esquizofrenia (no singular!), como se tantos e tão diferentes quadros pudessem ter a mesma genética e o mesmo padrão de herdabilidade. (...) O desenvolvimento teria sido certamente outro se Wernicke não tivesse morrido tão cedo."15

Em 1957, 5 5 Leonhard (1957) apud 15 Leonhard propôs a distinção entre as formas monopolares da doença e as formas bipolares. Embora de certa forma isolado, por viver na Alemanha Oriental (após a Segunda Guerra Mundial), seus trabalhos foram replicados independentemente, em 1966, por Perris et al25 e Angst,3 na Europa, e posteriormente por Winokur,24 nos Estados Unidos. Seu tão citado livro "A Classificação das Psicoses Endógenas"15 permaneceu sem tradução para o inglês até o ano de 1979, quando foi enfim publicado nos Estados Unidos, mercê da influência de Eli Robins, da Washington University.

Karl Leonhard15 dividiu as psicoses fásicas em: 1) Monopolares (mania, melancolia, depressões, euforias) e 2) Bipolares (doença maníaco-depressiva e psicoses ciclóides).

Segundo Leonhard,15 as formas bipolares seriam polimorfas, enquanto as monopolares seriam formas "puras". As formas monopolares foram classificadas, por Leonhard, em: 1) Melancolia Pura e Mania Pura e 2) Depressões Puras e Euforias Puras. Verifica-se, desde logo, que Leonhard diferenciava entre Melancolia e Depressões e entre Mania e Euforias. Enquanto a Melancolia Pura mostraria alterações dos afetos, da psicomotricidade e do pensamento, nas Depressões Puras existiriam apenas alterações dos afetos, sem comprometimento da psicomotricidade e do pensamento.

O mesmo ocorre na distinção entre a Mania e as Euforias; na Mania, o afeto, o pensamento e a vontade encontram-se alterados, enquanto nas euforias constata-se alteração apenas da esfera emocional.

As formas polimorfas, de Leonhard, incluem não só a psicose maníaco-depressiva (bipolar), mas também as psicoses ciclóides. Estas são divididas em: psicose de angústia-felicidade; psicose confusional exaltada-inibida; e psicose da motilidade (hipercinética-acinética).

Alguns dos conceitos de Leonhard foram incorporados à DSM-III, DSM-III-R e DSM-IV,26 assim como à CID-10, que aceitam a distinção entre os quadros unipolares e bipolares. As psicoses ciclóides encontram-se, de certa forma, compreendidas, na CID-10, na categoria F23 - Transtornos Psicóticos Agudos e Transitórios.

A distinção entre a doença bipolar (maníaco-depressiva), as psicoses ciclóides e as chamadas psicoses esquizoafetivas ainda é extremamente controvertida. Para Leonhard, as psicoses esquizoafetivas compreenderiam, por um lado, as psicoses ciclóides, e por outro, formas "benignas" de esquizofrenias (chamadas, em sua classificação, de esquizofrenias não-sistemáticas).

Tópico dos mais controvertidos, a distinção entre a depressão unipolar versus bipolar permanece ainda acirrando os debates contemporâneos. Em seu tratado sobre a doença maníaco-depressiva, Goodwin e Jamison8 resumem as características que diferenciariam entre os quadros depressivos unipolares (UP) e bipolares (BP), citando entre elas: idade de início (UP>BP); número de episódios (BP>UP); duração dos ciclos (UP>BP); retardo psicomotor (BP>UP); tempo total de sono (BP>UP); episódios puerperais (BP>UP); ansiedade (UP>BP); e queixas físicas (UP>BP). Outra distinção diz respeito à distribuição entre os sexos; enquanto a depressão unipolar é mais prevalente para o sexo feminino, as taxas seriam iguais, entre os sexos, para os quadros bipolares (ver páginas 63 a 67 da obra citada).

Na medida em que se amplia o conceito de espectro bipolar, retomando-se o conceito unitário de Kraepelin, diminui a extensão das depressões unipolares. A discussão entre os partidários de um e de outro modelo tem sido reativada, na medida mesma em que o conceito do espectro bipolar vem se ampliando. Se de um lado encontram-se os defensores da ampliação do espectro bipolar,2,12,17 podem ser citados também aqueles que procuram restringir, de certa forma, os limites da doença bipolar.27As fronteiras entre a doença maníaco-depressiva e a esquizofrenia, a distinção entre as depressões uni e bipolares e a questão da existência de outras psicoses ciclóides constituem-se ainda em assuntos polêmicos, que têm importância não só teórica, mas também para a prática clínica e, em especial, para a investigação terapêutica. Espera-se que os novos aportes da genética, assim como da epidemiologia clínica, possam - no futuro - contribuir para o melhor equacionamento dessas questões.

Referências

1. Marneros A. Handbuch der unipolaren und bipolaren Erkrankungen. Thieme, Stuttgart; 1999.

2. Akiskal HS. The prevalent clinical spectrum of bipolar disorders: beyond DSM-IV. J Clin Psychopharmacol. 1996;16(2 suppl 1):4S-14.

3. Angst J. The course of affective disorders. Psychopathology. 1986;19(Suppl 2):47-52.

4. Marneros A. Origin and development of concepts of bipolar mixed states. J Affec Disord. 2001;67(1-3):229-40.

5. Sedler M. Falret's discovery: the origin of the concept of bipolar affective illness. Translated by M. J. Sedler and Eric C Dessain. Am J Psychiatry. 1983;140(9):1127-33.

6.Falret. Mémoire sur la folie circulaire, forme de maladie mentale caracterisée par la reproduction sucessive et régulière de l'état maniaque, de l'état mélancholique, et d'un intervale lucide plus ou moins prolongué. Bull l'Acad Méd. 1854;19:384-415.

7. Berrios GE. The history of mental symptoms: descriptive psychopathology since the nineteeth century. Cambridge, UK: Cambridge University Press; 1996.

8. Goodwin F, Jamison K. Manic depressive Illness. Oxford: Oxford University Press; 1990.

9. Kraepelin E. Dementia praecox and manic-depressive insanity. reed 1989, New York, NY: The classics of psychiatry and behavioural sciences library; 1919.

10. Salvatore P, Baldessarini RJ, Centorrino F, Egli S, Albert M, Gerhard A, et al. Weigandt's on the mixed states of manic-depressive insanity: a translation and commentary on its significance in the evolution of the concept of bipolar disorder. Harvard Rev Psychiatry. 2002;10(5):255-75.

11. Wernicke C. Tratado de psiquiatría. Trad. de Outes DL, Tabasso JV. Buenos Aires, Argentina: Polemus Editorial; 1996.

12. Koukopoulos A. Agitated depression as a mixed state and the problem of melancholia. Psychiatr Clin North Am. 1999;22(3):547-64.

13. Jaspers K. General psychopathology. Translated by Hoenig J, Hamilton MW. Baltimore (Md): Johns Hopkins University Press; 1997.

14. Schneider K. Clinical psychopathology. Translated by Hamilton MW, Anderson EW. New York, NY: The Classics of Psychiatry and Behavioural Sciences Library; 1993.

15. Leonhard K. The Classification of endogenous psychoses. Translated by Berman R. New York, NY: John Wiley and Sons; 1979.

16. McElroy SL, KeckPE, Pope, HG, Hudson JI, Faedda GL, Swann AC. . Clinical and research implications of the diagnosis of dysphoric or mixed mania or hypomania. Am J Psychiatry. 1992;149(12)1633-44. Comment in: Am J Psychiatry. 1993;150(12):1907-9.

17. Akiskal HS, Mallya G. Criteria for the "soft" bipolar spectrum: treatment implications. Psychopharmacol Bull. 1987;23(1):68-73.

18. Perugi G, Akiskal HS, Micheli C, Toni C, Madaro D. Clinical characterization of depressive mixed state in bipolar I patients: Pisa-San Diego collaboration. J Affec Disord. 2001;67(1-3):105-14.

19. Akiskal HS. Delineating irritable and hyperthymic variants of the cyclothymic temperament. J Personal Disord. 1992;6(3):326-42.

20. Hantouche EG, Allillaire JP, Bourgeois JM, Azorin JM, Sechter D, Chatenet-Duchêne L, et al. The feasibility of dysphoric mania in the French EPIMAN study. J Affec Disord. 2001;67(1-3):97-103.

21. Shorter E. A history of psychiatry. New York: John Wiley & Sons; 1997.

22. Bleuler E. Handbook of psychiatry. New York: The MacMillan; 1924

23. Barahona Fernandes J. O sentido actual da obra de K. Kleist e as repercussões nos países ibero-americanos. Actas Luso-Esp Neurol Psiquiatr Ciênc Afines. 1979;7(6):341-52.

24. Winokur G. Unipolar depression: Is it divisible into autonomous subtypes? Arch Gen Psychiatry. 1979;36(1):47-52.

25. Perris C. A study of bipolar (manic-depressive) and unipolar recurrent depressive psychoses. I. Genetic investigation. Acta Psychiatr Scand. 1966;Suppl 194:15-44.

26. American Psychiatric Association: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders- DSM-IV. 4th ed. Washington (DC): American Psychiatric Association; 1994.

27. Soares JC, Gershon S. The diagnostic boundaries of bipolar disorder. Bipolar Disord. 2000;2(1):1-2. Comment on:Bipolar Disord. 2000;2(1):3-7.

  • 1. Marneros A. Handbuch der unipolaren und bipolaren Erkrankungen. Thieme, Stuttgart; 1999.
  • 2. Akiskal HS. The prevalent clinical spectrum of bipolar disorders: beyond DSM-IV. J Clin Psychopharmacol. 1996;16(2 suppl 1):4S-14.
  • 3. Angst J. The course of affective disorders. Psychopathology. 1986;19(Suppl 2):47-52.
  • 4. Marneros A. Origin and development of concepts of bipolar mixed states. J Affec Disord. 2001;67(1-3):229-40.
  • 5. Sedler M. Falret's discovery: the origin of the concept of bipolar affective illness. Translated by M. J. Sedler and Eric C Dessain. Am J Psychiatry. 1983;140(9):1127-33.
  • 6.Falret. Mémoire sur la folie circulaire, forme de maladie mentale caracterisée par la reproduction sucessive et régulière de l'état maniaque, de l'état mélancholique, et d'un intervale lucide plus ou moins prolongué. Bull l'Acad Méd. 1854;19:384-415.
  • 7. Berrios GE. The history of mental symptoms: descriptive psychopathology since the nineteeth century. Cambridge, UK: Cambridge University Press; 1996.
  • 8. Goodwin F, Jamison K. Manic depressive Illness. Oxford: Oxford University Press; 1990.
  • 9. Kraepelin E. Dementia praecox and manic-depressive insanity. reed 1989, New York, NY: The classics of psychiatry and behavioural sciences library; 1919.
  • 10. Salvatore P, Baldessarini RJ, Centorrino F, Egli S, Albert M, Gerhard A, et al. Weigandt's on the mixed states of manic-depressive insanity: a translation and commentary on its significance in the evolution of the concept of bipolar disorder. Harvard Rev Psychiatry. 2002;10(5):255-75.
  • 11. Wernicke C. Tratado de psiquiatría. Trad. de Outes DL, Tabasso JV. Buenos Aires, Argentina: Polemus Editorial; 1996.
  • 12. Koukopoulos A. Agitated depression as a mixed state and the problem of melancholia. Psychiatr Clin North Am. 1999;22(3):547-64.
  • 13. Jaspers K. General psychopathology. Translated by Hoenig J, Hamilton MW. Baltimore (Md): Johns Hopkins University Press; 1997.
  • 14. Schneider K. Clinical psychopathology. Translated by Hamilton MW, Anderson EW. New York, NY: The Classics of Psychiatry and Behavioural Sciences Library; 1993.
  • 15. Leonhard K. The Classification of endogenous psychoses. Translated by Berman R. New York, NY: John Wiley and Sons; 1979.
  • 16. McElroy SL, KeckPE, Pope, HG, Hudson JI, Faedda GL, Swann AC. . Clinical and research implications of the diagnosis of dysphoric or mixed mania or hypomania. Am J Psychiatry. 1992;149(12)1633-44.
  • Comment in: Am J Psychiatry. 1993;150(12):1907-9.
  • 17. Akiskal HS, Mallya G. Criteria for the "soft" bipolar spectrum: treatment implications. Psychopharmacol Bull. 1987;23(1):68-73.
  • 18. Perugi G, Akiskal HS, Micheli C, Toni C, Madaro D. Clinical characterization of depressive mixed state in bipolar I patients: Pisa-San Diego collaboration. J Affec Disord. 2001;67(1-3):105-14.
  • 19. Akiskal HS. Delineating irritable and hyperthymic variants of the cyclothymic temperament. J Personal Disord. 1992;6(3):326-42.
  • 20. Hantouche EG, Allillaire JP, Bourgeois JM, Azorin JM, Sechter D, Chatenet-Duchêne L, et al. The feasibility of dysphoric mania in the French EPIMAN study. J Affec Disord. 2001;67(1-3):97-103.
  • 21. Shorter E. A history of psychiatry. New York: John Wiley & Sons; 1997.
  • 22. Bleuler E. Handbook of psychiatry. New York: The MacMillan; 1924
  • 23. Barahona Fernandes J. O sentido actual da obra de K. Kleist e as repercussões nos países ibero-americanos. Actas Luso-Esp Neurol Psiquiatr Ciênc Afines. 1979;7(6):341-52.
  • 24. Winokur G. Unipolar depression: Is it divisible into autonomous subtypes? Arch Gen Psychiatry. 1979;36(1):47-52.
  • 25. Perris C. A study of bipolar (manic-depressive) and unipolar recurrent depressive psychoses. I. Genetic investigation. Acta Psychiatr Scand. 1966;Suppl 194:15-44.
  • 26. American Psychiatric Association: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders- DSM-IV. 4th ed. Washington (DC): American Psychiatric Association; 1994.
  • 27. Soares JC, Gershon S. The diagnostic boundaries of bipolar disorder. Bipolar Disord. 2000;2(1):1-2.
  • Comment on:Bipolar Disord. 2000;2(1):3-7.
  • Endereço para correspondência
    José Alberto Del Porto
    Rua Dr. Diogo de Faria, 1087 - conj. 409
    04037-003 São Paulo, SP
    E-mail:
  • 1
    Araeteus apud
    3-4
  • 2
    Baillarger (1851) apud5
  • 3
    Falret (1854) apud
    6
  • 4
    Kahlbaum (1845) apud4
  • 5
    Leonhard (1957) apud
    15
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Out 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2004
    Associação Brasileira de Psiquiatria Rua Pedro de Toledo, 967 - casa 1, 04039-032 São Paulo SP Brazil, Tel.: +55 11 5081-6799, Fax: +55 11 3384-6799, Fax: +55 11 5579-6210 - São Paulo - SP - Brazil
    E-mail: editorial@abp.org.br