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Auto-imunidade em Transtorno Obessivo-Compulsivo e transtornos de tiques

EDITORIAL

Auto-imunidade em Transtorno Obessivo-Compulsivo e transtornos de tiques

O conceito de PANDAS (Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders Associated with Streptococcus) deflagrou intensos debates entre pesquisadores, clínicos e acadêmicos. Baseado na associação entre infecções e o início agudo ou exacerbação de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC) e tiques na população pediátrica, esse conceito originou-se do ressurgimento da febre reumática (FR) e da coréia de Sydenham (CS), após a Segunda Guerra Mundial. Sendo um sintoma maior de FR, acredita-se que a CS ocorra secundariamente aos auto-anticorpos, que são direcionados contra os estreptococos do Grupo A (GAS), mas apresentam uma reação cruzada com epitopos nos neurônios dos gânglios da base, causando distúrbios motores e comportamentais. Estudos históricos e recentes têm sugerido que TOC e tiques são mais prevalentes em pacientes com CS do que na população geral. Essa prevalência mais alta de TOC em pacientes com CS pode ser paralela ao TOC pediátrico de início agudo, que poderia ser devido ao GAS também. Os critérios diagnósticos para PANDAS incluem início pediátrico, presença de TOC e/ou tiques, curso episódico, anormalidades neurológicas e uma associação com a infecção por GAS.1

A alta prevalência de sintomas de TOC em pacientes com CS estimulou a exploração de uma base auto-imune potencial para o TOC em um subconjunto de pacientes. Estudos têm demonstrado a alta prevalência de TOC em pacientes com outras doenças auto-imunes, tais como lupus eritematoso sistêmico, miastenia grave e esclerose múltipla. Em oposição a isso, um estudo de revisão de prontuários concluiu que pacientes adultos com TOC pareciam ter um aumento no índice maior de doenças ligadas à imunidade do que é observado em outros transtornos psiquiátricos.2

GAS é uma patógeno comum na população pediátrica com um amplo espectro de manifestações clínicas. PANDAS poderia ser considerada como uma extensão da CS, ou esse subtipo de TOC/ST poderia ter uma fisiopatologia singular diferente da CS. Uma associação entre a exacerbação de TOC ou sintomas de tiques e elevada titulação de GAS ou infecções por estreptococos documentadas tem sido demonstrada em vários estudos. Um grupo pediátrico pesquisou GAS em todas as crianças que apresentaram um início abrupto de problemas neuropsiquiátricos, tais como TOC, um transtorno de tiques, ou TDAH de início tardio, e encontrou que os sintomas neuropsiquiátricos tiveram rápida remissão com terapia antibiótica.3

Na última década, um maior grau de diversidade, tanto de alelos como clínica, tem sido observada em relação às infecções GAS. Até hoje, mais de 80 sorotipos de GAS foram descritos, sendo conhecidos 150 alelos da proteína M, 89 alelos de speB e 269 alelos da proteína Sic. De fato, descobriu-se que 16 das 44 proteínas GAS conhecidas são imunogênicas. Alguns desses fatores suspeitos de virulência não estiveram presentes nas cepas iniciais de GAS4 -possivelmente pelo fato de que o genoma de GAS redistribui-se aleatoriamente ao longo do tempo, aumentando a chance de desenvolvimento de novos fatores de virulência. A evidência clínica de que GAS pode estar se modificando reflete-se nas alterações nas manifestações clínicas das doenças causadas por GAS. Nos episódios de FR na metade dos anos 80, uma representação maior de certos tipos séricos e de cepas mucóides de GAS foi observada e uma grande proporção de indivíduos tinha somente histórico leve ou nenhum histórico de faringite prévia. Relatos recentes sugerem que a incidência de escarlatina e fasceíte necrotizante tem aumentado dramaticamente nas últimas décadas.

Estudos epidemiológicos indicam que uma mesma cepa de estreptococos causa infecção de variada gravidade em diferentes indivíduos, sugerindo que os fatores do hospedeiro exercem um papel importante na determinação da morbidade das infecções GAS. Observa-se que pacientes com propensão para produzir altos níveis de citocinas pró-inflamatórias em resposta aos produtos do GAS exibem manifestações clínicas graves. A juventude dos pacientes no momento de infecção por estreptococos pode alterar as respostas imunes futuras aos estreptococos do grupo A. Após infecções por estreptococos, as titulações podem permanecer elevadas durante seis meses a um ano. Murphy et al encontraram que aqueles que apresentavam curso de sintomas neuropsiquiátricos com flutuações abruptas tinham mais evidências de elevações persistentes em um ou mais títulos de estreptococos, em comparação aos que tinham um curso inconsistente com PANDAS.5 Esse achado pode ser devido à relativa proximidade da infecção por estreptococos e a repetidas exposições a estreptococos, levando a sintomas mais graves e turbulentos. A ativação imune persistente pelo GAS também pode ser uma conseqüência de fatores múltiplos, incluindo influências de desenvolvimento, genéticas e/ou ambientais.

Mecanismos potenciais pelos quais auto-anticorpos causam manifestações clínicas em transtornos do sistema Nervoso Central (SNC), tais como CS e PANDAS, incluem a estimulação direta ou bloqueio de receptores nos gânglios basais, ou complexos imunes que promovem inflamação nessas regiões cerebrais. Novas pesquisas confirmam a sinalização neuronal mediada por anticorpos na patogênese de CS. Observou-se que os anticorpos monoclonais em pacientes com CS que tinham como alvo a N-acetil-beta-D-glucosamina - o epitopo dominante de GAS - apresentavam especificidade para mammalian lysoganglioside GM1, um gangliosídeo do SNC que influencia a transdução de sinal neuronal.6 Além disso, amostras séricas dos pacientes de CS continham anticorpos com alvo nos neurônios humanos e que induziram especificamente a atividade da proteína quinase II dependente de cálcio/calmodulina (CaM), ao passo que o soro de pacientes convalescentes ou de pacientes com outras doenças relacionadas a estreptococos não tinha ativação dessa quinase. A ligação de auto-anticorpos a esses antígenos da superfície dos neurônios pode promover a transdução de sinal, levando à liberação de neurotransmissores excitatórios. O mecanismo potencial pelos quais os sintomas ocorrem na CS pode também explicar a patogênese de PANDAS.

Auto-anticorpos sistêmicos necessitariam atravessar a barreira hematoencefálica (BHE) e ter acesso ao SNC. O mecanismo preciso não é conhecido, no entanto, vários mecanismos têm sido propostos. As toxinas inflamatórias podem levar a uma ruptura da BHE. As citocinas podem atravessar a BHE por meio dos órgãos circunventriculares e sabe-se que, ao serem infundidas perifericamente, ativam células inflamatórias no lado do SNC da BHE. As células periféricas B apresentam reação cruzada a um epitopo do SNC e também mostraram induzir a produção intracatecal de anticorpos. Dessa forma, a indução de anticorpos intracatecais por células periféricas B, a ativação de células inflamatórias do SNC por meio de citocinas periféricas e a travessia da BHE pelas células periféricas B e anticorpos são todas explicações viáveis da forma pela qual os auto-anticorpos produzidos em resposta a um antígeno periférico são capazes de reagir com estruturas neurais.

Uma associação definitiva ainda tem que ser estabelecida, mas existe crescente suporte para a associação entre uma resposta auto-imune ao estreptococo e o início ou exacerbação dos sintomas de TOC/tiques. Investigações adicionais são necessárias para confirmar o papel das infecções GAS e outros ativadores imunológicos (conjuntamente com desencadeantes genéticos e ambientais) no início de doenças neuropsiquiátricas que podem levar a terapias imunes específicas.

Tanya K Murphy e David S Husted

Department of Psychiatry, University of Florida, Gainesville, FL

Referências

1. Swedo SE, Leonard HL, Garvey M, Mittleman B, Allen AJ, Perlmutter S, et al. Pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcal infections: clinical description of the first 50 cases. Am J Psychiatry. 1998;159(2):264-71. Commented in: Am J Psychiatry. 2002;159(2):320.

2. Dinn WM, Harris CL, McGonigal KM, Raynard RC. Obsessive-compulsive disorder and immunocompetence. Int J Psychiatry Med. 2001;31(3):311-20.

3. Murphy ML, Pichichero ME. Prospective identification and treatment of children with pediatric autoimmune neuropsychiatric disorder associated with group A streptococcal infection (PANDAS). Arch Pediatr Adolesc Med. 2002;156(4):356-61.

4. Goldmann O, Chhatwal GS, Medina E. Immune mechanisms underlying host susceptibility to infection with group A streptococci. J Infect Dis. 2003;187(5):854-61.

5. Murphy TK, Sajid M, Soto O, Shapira N, Edge P, Yang M, et al. Detecting pediatric autoimmune neuropsychiatric disorders associated with streptococcus in children with obsessive-compulsive disorder and tics. Biol Psychiatry. 2004;55(1):61-8.

6. Kirvan CA, Swedo SE, Heuser JS, Cunningham MW. Mimicry and autoantibody-mediated neuronal cell signaling in Sydenham chorea. Nat Med. 2003;9(7):914-20. Commented in: Nat Med. 2003,9(7):823-5,

Original version accepted in English

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Abr 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2004
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