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Princípios que devem orientar as políticas de saúde mental nos países de baixa e média rendas (LMICs): lições do experimento brasileiro

EDITORIAL

Princípios que devem orientar as políticas de saúde mental nos países de baixa e média rendas (LMICs): lições do experimento brasileiro

Uma política de saúde pública deve ser fundamentada, abrangente, hierarquizada, flexível, ágil e resolutiva. Além disso, ela deve ser auditável, viável, justa e humanitária. Deve, também, respeitar as prioridades, necessidades e direitos da população. Seu sucesso depende da eficácia dos seus programas e "da efetividade das estratégias de prevenção, detecção precoce e tratamento"1. Listas de serviços e gastos financeiros pouco informam sobre a assistência e podem esconder, mais do que revelar, algo sobre a eficiência de um modelo assistencial. O conteúdo, a qualidade e a relevância dos serviços prestados são mais importantes: "para se entender a relação entre as ações dos serviços e suas consequências, o conteúdo do atendimento pode ser mais crucial do que o estilo, o 'setting' ou a organização" do serviço2. Ou seja, é preciso saber o que é feito, para quem, por que, como, a que custo e com quais resultados. Metodologia para isso já existe, mas ainda não há estudo deste tipo publicado no Brasil.

O Ministério da Saúde, por meio da Coordenação Geral de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (CORSAM-MS), com apoio e orientação do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias da Organização Mundial de Saúde (OMS), promoveu uma desospitalização radical nos últimos 20 anos, redirecionando seus limitados recursos financeiros para a reabilitação psicossocial, programas para abuso de álcool e drogas, apoio a moradia para os desospitalizados e atividades sociais e de lazer. Iniciativas de suporte social são obviamente importantes, mas devem ser apoiadas conjuntamente pelos Ministérios de Habitação, Educação, Trabalho, Justiça, Cultura e Bem-Estar Social. Utilizar as verbas do Ministério da Saúde para essas ações e privar a população de assistência psiquiátrica adequada contraria o princípio da equidade social e é errôneo até do ponto de vista econômico 3 . Nosso Sistema Único de Saúde (SUS) e os programas de prevenção devem oferecer serviços a 190 milhões de habitantes, mas muito pouco tem sido investido, por exemplo, no diagnóstico precoce e tratamento efetivo dos transtornos de ansiedade e do humor.

Existem duas falácias principais no atual modelo: 1) que a prevenção secundária pode ser feita pela rede de cuidados primários; 2) que leitos psiquiátricos em hospitais gerais e em Centros de Atenção Psicossocial de 24 horas (CAPS-III) darão conta da falta de vagas para internação gerada pelo fechamento de 80% dos leitos em hospitais psiquiátricos. Conforme o World Mental Health Survey4, 76% a 85% dos pacientes com transtornos mentais graves (como transtornos de ansiedade, do humor, do controle dos impulsos e abuso de substâncias) não recebem tratamento psiquiátrico num período de 12 meses em países de baixa e média rendas (LAMICs). Como em muitos outros países, os médicos generalistas da rede de cuidados primários têm competência limitada em psiquiatria. Por falta de prevenção efetiva para transtorno bipolar, mais de 6.000 pessoas são internadas todos os anos devido a episódios de depressão bipolar ou mania, apenas no Estado de São Paulo (o mais desenvolvido economicamente do país, com uma população de 40 milhões de habitantes). O "Guia para Intervenções em Saúde Mental do 'Gap Action Programme' para transtornos mentais, neurológicos e de abuso de substâncias em serviços não-especializados de saúde", recentemente publicado pela OMS (www.who.int/mental_health/mhgap) poderá ajudar a integrar a saúde mental aos cuidados primários de países de baixa ou média rendas. Entretanto, uma mudança de atitude em relação aos pacientes psiquiátricos e o aumento da competência das equipes de cuidados primários em relação a eles requerem uma modificação significativa dos currículos de graduação das escolas médicas, para incluir a psiquiatria entre as suas "grandes áreas" e oferecer treinamento clínico intensivo em psiquiatria a todos os alunos. Da mesma forma, os enfermeiros, psicólogos e demais profissionais de saúde mental teriam que receber informações atualizadas e treinamento específico em técnicas de intervenção de eficácia comprovada cientificamente. Isso pode levar anos para ser implementado. Até então, os ambulatórios especializados em psiquiatria continuarão sendo os serviços mais competentes de prevenção e tratamento. Entretanto, a maioria das prefeituras não poderá abrir esses serviços ambulatoriais enquanto o SUS remunerar com R$10,00 uma consulta psiquiátrica ambulatorial (menos de seis dólares americanos).

Hoje é amplamente reconhecido que não se pode fechar leitos hospitalares antes que serviços alternativos e comensuráveis estejam funcionando. Um hospital - serviço de internação para intervenções médicas complexas - pode ser uma instituição aberta e ter um custo operacional menor do que igual número de leitos em unidades psiquiátricas em hospital geral (UP-HG). Uma UP-HG é um equipamento importante e muitas delas são necessárias no país. Entretanto, ela não deve ser confundida com leitos psiquiátricos em HG. Mais de 400 leitos psiquiátricos estão listados em HG com quatro ou menos leitos cada e esses hospitais dificilmente terão um psiquiatra e uma equipe de saúde mental. Para muitos pacientes e regiões, um hospital psiquiátrico moderno pode ser o equipamento mais viável e adequado para atendimento agudo em psiquiatria. Na verdade, modernos hospitais psiquiátricos estão sendo construídos no terreno de alguns antigos asilos nos Estados Unidos (p. ex., o Saint Elizabeths, em Washington, D.C.) e França (p. ex., o Sainte Anne, em Paris). Infelizmente, desde os anos de 1980, o Governo brasileiro implementou uma política de desospitalização radical, fechando quase 85 mil leitos psiquiátricos, enquanto abriu menos de 850 leitos em HG e 230 leitos em CAPS-III

Caso a prevenção psiquiátrica efetiva passe a receber maior prioridade neste país, será necessário fazer uma reforma substancial no atual modelo assistencial. As "Diretrizes para uma Rede de Atenção Integral à Saúde Mental" propostas pela Associação Brasileira de Psiquiatria, em 2006, e referendadas pelo Conselho Federal de Medicina, em 2010, oferecem alternativas para uma rede abrangente e racional. O novo Ambulatório Médico de Especialidades - Psiquiatria (AME-Psiquiatria), criado na Vila Maria, um bairro de classe média-baixa da cidade de São Paulo, em parceria entre a Secretaria da Saúde do Estado e a Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM - UNIFESP), com apoio técnico dos departamentos de psiquiatria das quatro faculdades de medicina da capital, testa a aplicação de um modelo de atendimento bem sucedido em centros universitários: programas dirigidos para os transtornos mentais mais comuns na infância e adolescência, álcool e drogas, humor e ansiedade, psicoses agudas e gerontopsiquiatria5. Está sendo testada a hipótese de que a prevenção secundária baseada em evidências pode dar atendimento de alto nível e custo-efetivo em uma rede de serviços públicos de saúde. Afinal, o Artigo 2º. da Lei 10.216 reza que "São direitos da pessoa portadora de transtorno mental... ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde consentâneo às suas necessidades'. Para a maioria das pessoas, isso significa atendimento psiquiátrico efetivo.

Valentim Gentil

Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo (USP), São

Paulo, SP, Brasil

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Referências

  • 1. Shah A, Jenkins R. Mental health economic studies from developing countries reviewed in the context of those from developed countries. Acta Psychiatric Scand 2000;101(2):87-103.
  • 2. Lloyd-Evans B, Johnson S, Slade M. Assessing the content of mental health services: a review of measures. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2007;42(8):673-82.
  • 3. Andrews G, Issakidis C, Sanderson K, Corry J, Lapsley H. Utilizing survey data to inform public policy: comparison of the cost-effectiveness of tragtment of ten mental disorders. Br J Psychiatry 2004;184(6):526-33.
  • 4. Demyttenaere K, Bruffaerts R, Posada-Villa J, Gasquet I, Kovess V, Lepine JP, Angermeyer MC, Bernert S, de Girolamo G, Morosini P, Polidori G, Kikkawa T, Kawakami N, Ono Y, Takeshima T, Uda H, Karam EG, Fayyad JA, Karam AN, Mneimneh ZN, Medina-Mora ME, Borges G, Lara C, de Graaf R, Ormel J, Gureje O, Shen Y, Huang Y, Zhang M, Alonso J, Haro JM, Vilagut G, Bromet EJ, Gluzman S, Webb C, Kessler RC, Merikangas KR, Anthony JC, Von Korff MR, Wang PS, Brugha TS, Aguilar-Gaxiola S, Lee S, Heeringa S, Pennell BE, Zaslavsky AM, Ustun TB, Chatterji S; WHO World Mental Health Survey Consortium. WHO World Mental Health Survey Consortium. Prevalence, severity, and unmet need for treatment of mental disorders in the World Health Organization World Mental Health Surveys. JAMA 2004;291(21):2581-90.
  • 5. Araújo-Filho GM. Novo modelo pode fortalecer rede de atenção integral à saúde mental. Psiquiatria Hoje - Debates 2010;4:9-11.
  • *
    . Em 2010, a CORSAM-MS listou 35.426 leitos em hospitais psiquiátricos, dos quais 50% deverão ser fechados quando seus ocupantes-moradores tiverem alta, forem transferidos ou morrerem. Essa lista inclui 3.062 vagas para ex-pacientes de longas internações em "Serviços Residenciais Terapêuticos"; 2.568 leitos psiquiátricos em HG; e menos de 250 leitos em 46 CAPS-III. (
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Mar 2011
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