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Vasculopatia livedoide Trabalho feito no Hospital e Maternidade Celso Pierro, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil.

Introdução

A vasculopatia livedoide (VL) é uma doença cutânea recorrente crônica e dolorosa, caracterizada pela presença de lesões que se iniciam como máculas e/ou pápulas purpúreas, puntiformes ou lenticulares, nos membros inferiores (terço inferior das pernas e tornozelos), que, em seguida, geralmente, sofrem ulceração e, posteriormente, cicatrizam-se lentamente, ao longo de semanas ou meses, originam cicatrizes atróficas e nacaradas (atrofia branca), telangiectasias puntiformes, pigmentação acastanhada, acompanhadas de livedo racemoso.11 Hairston BR, Davis MDP, Pittelkow MR, Ahmed I. Livedoid vasculopathy: further evidence for procoagulant pathogenesis. Arch Dermatol. 2006;142:1413-8.

2 Criado PR, Rivitti EA, Sotto MN, Valente NYS, Aoki V, de Carvalho JF, et al. Vasculopatia livedoide: uma doença cutânea intrigante. An Bras Dermatol. 2011;86:961-77.
-33 Zanini M, Bertino D, Wulkan C, Ito L. Vasculite ou vasculopatia livedoide?. An Bras Dermatol. 2003;78:755-7.

A doença, habitualmente, instala-se bilateralmente nas pernas, provoca, frequentemente, edema no terço inferior dos membros. Acomete especialmente a faixa entre os 15 e 50 anos (média de 32) e o sexo feminino (cerca de três mulheres para cada homem).22 Criado PR, Rivitti EA, Sotto MN, Valente NYS, Aoki V, de Carvalho JF, et al. Vasculopatia livedoide: uma doença cutânea intrigante. An Bras Dermatol. 2011;86:961-77.,33 Zanini M, Bertino D, Wulkan C, Ito L. Vasculite ou vasculopatia livedoide?. An Bras Dermatol. 2003;78:755-7.

O presente estudo relata um caso de uma paciente com vasculopatia livedoide que obteve excelente cicatrização das úlceras de membros inferiores após uso de anti-TNF.

Relato de caso

Paciente feminino, 60 anos, casada, comerciante. Havia 12 anos iniciara quadro de ulcerações bilaterais em pernas e pés, acompanhado de alteração de coloração, com intensa piora ao frio. Inicialmente, as úlceras eram poucas e superficiais, progressivamente aumentaram em número e profundidade. Não apresentava outra queixa sistêmica e/ou articular. Não apresentava comorbidades e não tinha antecedente familiar para doenças reumatológicas.

Ao exame físico, não apresentava alterações nos sistemas cardíaco, pulmonar e articular. Os membros inferiores (pernas e pés) apresentava-se com um livedo racemoso intenso (fig. 1), com múltiplas úlceras, infectadas, profundas, com destruição da gordura subcutânea, podia-se visualizar a musculatura (fig. 1).

Figura 1
Livedo racemoso em pé esquerdo e úlceras em perna direita.

Em 2010, já havia sido tratada com corticosteroides em doses que variaram de 20 a 60 mg/dia, apenas com discreta melhora e sempre com recidiva nas lesões após redução da dose. Tinha também usado associação de AAS 200 mg/dia e pentoxifilina 800 mg/dia, sem melhora do quadro. Em 2011 usou Metotrexate 15 mg/semana, associado ao corticoide, porém sem resultado.

Na investigação laboratorial, não apresentava alterações no hemograma, na função renal, na função hepática e no sedimento urinário. As proteínas do complemento (C3 e C4) eram normais. Apresentava FAN reagente 1/320 padrão pontilhado fino. Os anticorpos anti-DNA, anti-RNP, anti-SM, anti-RO, anticardiolipina (IgM e IgG), anticoagulante lúpico, fator reumatoide e crioglobulinas eram negativos. Tinha um VHS: 25 mm e PCR: 2,4 mg/dL. Feita biopsia das úlceras com anatomopatológico que descreveu oclusão dos vasos da derme pela deposição de fibrina intravascular e trombose, associado com hialinização segmentar e proliferação endotelial, com presença de discreto infiltrado inflamatório perivascular, sugestivo de vasculopatia livedoide/atrofia branca de Milian.

Em 2012, após falha de inúmeros tratamentos, foi associado o anti-TNF Adalimumabe ao corticosteroide, com posterior redução do último. Após um ano dessa associação a paciente apresentou melhoria importante das ulcerações em membros inferiores (fig. 2).

Figura 2
Melhoria das úlceras e do livedo racemoso em perna e pé direito.

Discussão

A vasculopatia livedoide é uma doença cuja fisiopatologia não é bem compreendida. Tal fato reflete aos inúmeros sinônimos que essa doença tem, como atrofia branca de Milian, livedo vasculite, vasculite hialinizante segmentar, vasculite livedoide, livedo reticular com úlceras de verão e purple (Painful Purpuric Ulcers with Reticular Pattern of the Lower Extremities).11 Hairston BR, Davis MDP, Pittelkow MR, Ahmed I. Livedoid vasculopathy: further evidence for procoagulant pathogenesis. Arch Dermatol. 2006;142:1413-8.

Essa vasculopatia pode ser primária ou secundária. No primeiro tipo, não se encontra outra doença associada. Já a forma secundária comumente está relacionada às trombofilias (mutação do fator V de Leiden, deficiência da proteína C e/ou S, hiper-homocisteinemia, mutação do gene da protrombina), doenças do tecido conjuntivo (LES, crioglobulinemia, SAAF). Por isso, uma vez que se suspeita do diagnóstico, é importante iniciar uma investigação clínica pessoal e familiar do paciente, com particular interesse nos estados de hipercoagulabilidade e doenças inflamatórias.11 Hairston BR, Davis MDP, Pittelkow MR, Ahmed I. Livedoid vasculopathy: further evidence for procoagulant pathogenesis. Arch Dermatol. 2006;142:1413-8.,44 Khenifer S, Thomas L, Balme B, Dalle S. Livedoid vasculopathy: thrombotic or inflammatory disease. Clin Exp Dermatol. 2009;35:693-8. Sugere-se também excluir todas as afecções que possam determinar ulcerações reticuladas, em saca-bocado e difíceis de cicatrizar, as quais podem originar cicatrizes esbranquiçadas de aspecto estrelar (como vasculites sépticas e leucocitoclásticas).22 Criado PR, Rivitti EA, Sotto MN, Valente NYS, Aoki V, de Carvalho JF, et al. Vasculopatia livedoide: uma doença cutânea intrigante. An Bras Dermatol. 2011;86:961-77.

Além de um exame físico completo, torna-se necessária a solicitação de um hemograma completo, coagulograma, níveis de PCR, fibrinogênio, fator antinuclear, anticorpo anti-DNA, fator reumatoide, anticorpos antifosfolipídeos, crioglubulinas. Além disso, o ultrassom Doppler dos membros inferiores é importante para eliminar a estase venosa crônica.44 Khenifer S, Thomas L, Balme B, Dalle S. Livedoid vasculopathy: thrombotic or inflammatory disease. Clin Exp Dermatol. 2009;35:693-8. Com exceção da dosagem do fibrinogênio, a paciente deste estudo fez toda a investigação sugerida.

Originalmente, essa entidade era considerada uma vasculite verdadeira, na qual as alterações isquêmico-trombóticas eram decorrentes de um processo inflamatório primário. Entretanto, muitos autores não aceitam mais esse conceito. Acredita-se atualmente que o principal mecanismo fisiopatogênico é um processo vaso-oclusivo decorrente da trombose de vasos dérmicos de pequenos e médios calibres; as alterações inflamatórias são encontradas basicamente nas lesões tardias, consistem num evento secundário. A trombose desses vasos ocorreria por múltiplas alterações na cascata da coagulação, incluindo desde disfunção das plaquetas até defeito na produção do ativador do plasminogênio tecidual.11 Hairston BR, Davis MDP, Pittelkow MR, Ahmed I. Livedoid vasculopathy: further evidence for procoagulant pathogenesis. Arch Dermatol. 2006;142:1413-8.

2 Criado PR, Rivitti EA, Sotto MN, Valente NYS, Aoki V, de Carvalho JF, et al. Vasculopatia livedoide: uma doença cutânea intrigante. An Bras Dermatol. 2011;86:961-77.

3 Zanini M, Bertino D, Wulkan C, Ito L. Vasculite ou vasculopatia livedoide?. An Bras Dermatol. 2003;78:755-7.

4 Khenifer S, Thomas L, Balme B, Dalle S. Livedoid vasculopathy: thrombotic or inflammatory disease. Clin Exp Dermatol. 2009;35:693-8.
-55 Gonzalez-Santiago TM, Davis MDP. Update of management of connective tissue diseases: livedoid vasculopathy. Dermatol Ther. 2012;25:183-94.

Além disso, a ligação entre coagulação e inflamação tem sido investigada na VL, pois a trombina ativa os receptores ativados por protease tipo 1, que nas células inflamatórias produzem mediadores inflamatórios tais como IL-6, IL-8, substâncias quimiotáticas de monócitos e moléculas de adesão e recrutam leucócitos para o meio intravascular.11 Hairston BR, Davis MDP, Pittelkow MR, Ahmed I. Livedoid vasculopathy: further evidence for procoagulant pathogenesis. Arch Dermatol. 2006;142:1413-8.

Assim, como observado na biópsia desta paciente, na descrição histopatológica da vasculopatia livedoide é observada oclusão dos vasos da derme pela deposição de fibrina intravascular e trombo intraluminal, além de hialinização segmentar e proliferação endotelial. O infiltrado inflamatório misto perivascular (inicialmente neutrofílico e depois linfocitário) aparece em grau mínimo. A imunofluorescência direta geralmente demonstra deposição de imunoglobulinas, fibrina e componentes do complemento.11 Hairston BR, Davis MDP, Pittelkow MR, Ahmed I. Livedoid vasculopathy: further evidence for procoagulant pathogenesis. Arch Dermatol. 2006;142:1413-8.

2 Criado PR, Rivitti EA, Sotto MN, Valente NYS, Aoki V, de Carvalho JF, et al. Vasculopatia livedoide: uma doença cutânea intrigante. An Bras Dermatol. 2011;86:961-77.

3 Zanini M, Bertino D, Wulkan C, Ito L. Vasculite ou vasculopatia livedoide?. An Bras Dermatol. 2003;78:755-7.
-44 Khenifer S, Thomas L, Balme B, Dalle S. Livedoid vasculopathy: thrombotic or inflammatory disease. Clin Exp Dermatol. 2009;35:693-8.

Em grande parte devido à patogênese incerta, não existe um único tratamento eficaz para essa afecção cutânea, as opções terapêuticas correntes baseiam-se em relatos de casos isolados ou séries de casos. A maioria dos tratamentos é destinada para melhorar as manifestações físicas e para aliviar a dor.55 Gonzalez-Santiago TM, Davis MDP. Update of management of connective tissue diseases: livedoid vasculopathy. Dermatol Ther. 2012;25:183-94.

Dentre o arsenal de terapia descrito na literatura têm-se agentes antiplaquetários e anticoagulantes, fibrinolíticos, vasodilatadores, fototerapia com PUVA, câmara hiperbárica, imunossupressores (corticoides, ciclosporina, sulfassalazina, imunoglobulina). Todos esses agentes estão descritos na literatura na tentativa do tratamento das úlceras.55 Gonzalez-Santiago TM, Davis MDP. Update of management of connective tissue diseases: livedoid vasculopathy. Dermatol Ther. 2012;25:183-94.

Dentre as drogas antiplaquetárias e agentes hemorreológicos, o ácido acetilsalicílico e a pentoxifilina, respectivamente, já foram usadas com sucesso no tratamento da VL, a associação delas é um dos esquemas terapêuticas mais usados.55 Gonzalez-Santiago TM, Davis MDP. Update of management of connective tissue diseases: livedoid vasculopathy. Dermatol Ther. 2012;25:183-94. Yang et al. relataram que 13 de 27 pacientes com VL responderam com uma combinação de cuidados locais das feridas, repouso e aspirina em baixas doses mais dipiridamol.66 Yang LJ, Chan HL, Chen SY, Kuan YZ, Chen MJ, Wang CN, et al. Atrophie blanche. A clinicopathological study of 27 patients. Changgeng Yi Xue Za Zhi. 1991;14:237-45. Há um relato de caso que demonstra sucesso no tratamento da VL associado com traço falciforme com AAS.77 El Khoury J, Taher A, Kurban M, Kibbi AG, Abbas O. Livedoid vasculopathy associated with sickle cell trait: significant improvement on aspirin treatment. Int Wound J. 2012;9:344-7. Sams et al. reportaram o uso de pentoxifilina em oito pacientes, dos quais sete tiveram melhoria importante das úlceras.88 Sams WM. Livedo vasculitis. Therapy with pentoxifylline. Arch Dermatol. 1988;124:684-7. A paciente deste estudo não se beneficiou da associação dessas duas drogas.

Os agentes imunossupressores geralmente são usados para os casos recidivantes, como terapia de resgate.99 Poletti ED, Sandoval NRM, González JLM, Torres AS. Vasculopatía livedoide: significado actual. Comunicación de dos casos. Dermatología Rev Mex. 2008;52:175-81. Entretanto, o uso do metotrexate não foi efetivo para a paciente deste estudo.

Sheinberg et al. descreveram um caso de uma paciente de 38 anos com VL, refratária ao tratamento com anticoagulantes e imunossupressores, que obteve boa resposta após uso do Rituximabe. Esses autores relatam que apesar de etiologia desconhecida, a LV se correlaciona fortemente com doenças complexas imunes e sua histologia apresenta consistentemente infiltrados inflamatórios, os linfócitos B podem estar implicados na patogênese dessa doença, entretanto são necessários novos estudos.1010 Zeni P, Finger E, Scheinberg MA. Successful use of rituximab in a patient with recalcitrant livedoid vasculopathy. Ann Rheum Dis. 2008;67:1055-6. Neste relato, obtivemos sucesso na cicatrização das úlceras após uso do Adalimumabe. Para o nosso conhecimento, este é o primeiro relato que demonstra tratamento da VL com anti-TNF.

O fator de necrose tumoral (TNF) contribui para o desenvolvimento de trombose, visto que estimula a expressão do fator tecidual pelas células endoteliais (ativador da via extrínseca da coagulação) e da trombomodulina (potente inibidor da coagulação).1111 Abbas AK, Lichtman AH, Pillai S. Imunologia celular e molecular. 7ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2011. Assim, o Adalimumabe, que é um anticorpo monoclonal humano contra o fator de necrose tumoral, pode diminuir a formação de trombos de vasos dérmicos, participar ativamente na fisiopatologia da vasculopatia livedoide e propiciar uma nova perspectiva de tratamento.

  • Trabalho feito no Hospital e Maternidade Celso Pierro, Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Campinas, SP, Brasil.

REFERENCES

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    Hairston BR, Davis MDP, Pittelkow MR, Ahmed I. Livedoid vasculopathy: further evidence for procoagulant pathogenesis. Arch Dermatol. 2006;142:1413-8.
  • 2
    Criado PR, Rivitti EA, Sotto MN, Valente NYS, Aoki V, de Carvalho JF, et al. Vasculopatia livedoide: uma doença cutânea intrigante. An Bras Dermatol. 2011;86:961-77.
  • 3
    Zanini M, Bertino D, Wulkan C, Ito L. Vasculite ou vasculopatia livedoide?. An Bras Dermatol. 2003;78:755-7.
  • 4
    Khenifer S, Thomas L, Balme B, Dalle S. Livedoid vasculopathy: thrombotic or inflammatory disease. Clin Exp Dermatol. 2009;35:693-8.
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    Gonzalez-Santiago TM, Davis MDP. Update of management of connective tissue diseases: livedoid vasculopathy. Dermatol Ther. 2012;25:183-94.
  • 6
    Yang LJ, Chan HL, Chen SY, Kuan YZ, Chen MJ, Wang CN, et al. Atrophie blanche. A clinicopathological study of 27 patients. Changgeng Yi Xue Za Zhi. 1991;14:237-45.
  • 7
    El Khoury J, Taher A, Kurban M, Kibbi AG, Abbas O. Livedoid vasculopathy associated with sickle cell trait: significant improvement on aspirin treatment. Int Wound J. 2012;9:344-7.
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  • 9
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  • 10
    Zeni P, Finger E, Scheinberg MA. Successful use of rituximab in a patient with recalcitrant livedoid vasculopathy. Ann Rheum Dis. 2008;67:1055-6.
  • 11
    Abbas AK, Lichtman AH, Pillai S. Imunologia celular e molecular. 7ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    18 Set 2014
  • Aceito
    25 Set 2015
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