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Enteropatia perdedora de proteínas no lúpus eritematoso sistêmico: relato de caso

Resumos

A enteropatia perdedora de proteínas raramente pode ser observada em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico. Essa situação clínica deve ser suspeitada quando houver hipoalbuminemia persistente, na presença de uma função hepática preservada, ingesta proteica adequada e ausência de proteinúria significativa. Descrevemos o caso de uma paciente de 48 anos com perda ponderal, derrames cavitários (ascite e derrame pleural) e edema de membros inferiores. O diagnóstico de lúpus foi firmado a partir da presença de linfopenia, proteinúria, FAN e autoanticorpos positivos (anti-Sm, anti-DNA e anti-Ro). Houve persistência de hipoalbuminemia mesmo com corticoterapia na dose de 1 mg/kg de peso, sendo diagnosticada enteropatia perdedora de proteínas por meio da cintilografia com albumina 99mTc. A melhora clínica e laboratorial da paciente veio após a associação da azatioprina com corticosteroide.

lúpus eritematoso sistêmico; enteropatias perdedoras de proteínas; agregado de albumina 99mTc


Protein-losing enteropathy is rarely seen in patients with systemic lupus erythematosus. This clinical condition should be suspected in the presence of persistent hypoalbuminemia despite normal liver function, adequate protein intake, and no significant proteinuria. We report the case of a 48-year-old female with weight loss, cavity effusions (ascites and pleural effusion), and lower extremity edema. The diagnosis of lupus was established based on the presence of lymphopenia, proteinuria, ANA, and positive autoantibodies (anti-Sm, anti-DNA, and anti-Ro). Because hypoalbuminemia persisted even with corticosteroid therapy at the dose of 1 mg/kg, protein-losing enteropathy was diagnosed by use of Tc-99m albumin scintigraphy. After adding azathioprine to the treatment, the symptoms subsided and serum albumin levels improved.

systemic lupus erythematosus; protein-losing enteropathies; technetium Tc-99m albumin aggregates


RELATO DE CASO

Enteropatia perdedora de proteínas no lúpus eritematoso sistêmico: relato de caso

Fernando Moreira Batista AguiarI; Zilaís Linhares Carneiro MenescalI; Débora Maia da CostaII; José Walter CorreiaIII; José Gerardo Araújo PaivaIV; Júlio Marcus Sousa CorreiaV

IMédico Residente em Clínica Médica, Hospital Geral César Cals de Oliveira

IIAluna do Curso de Medicina, Universidade Federal do Ceará - UFC

IIIDoutor em Ciências Médicas, UFC; Chefe do Departamento de Clínica Médica, Hospital Geral César Cals de Oliveira

IVMestre em Reumatologia, Universidade Federal de São Paulo - Unifesp; Preceptor do Serviço de Reumatologia, Hospital Geral César Cals de Oliveira

VMédico Especialista em Medicina Nuclear; Professor-Associado, Universidade Estadual do Ceará - UECE

Correspondência para Correspondência para: Fernando Moreira Batista Aguiar Rua Dr. Joaquim Frota, 540 - José de Alencar CEP: 60830-132. Fortaleza, CE, Brasil E-mail: fernandombaguiar@hotmail.com

RESUMO

A enteropatia perdedora de proteínas raramente pode ser observada em pacientes com lúpus eritematoso sistêmico. Essa situação clínica deve ser suspeitada quando houver hipoalbuminemia persistente, na presença de uma função hepática preservada, ingesta proteica adequada e ausência de proteinúria significativa. Descrevemos o caso de uma paciente de 48 anos com perda ponderal, derrames cavitários (ascite e derrame pleural) e edema de membros inferiores. O diagnóstico de lúpus foi firmado a partir da presença de linfopenia, proteinúria, FAN e autoanticorpos positivos (anti-Sm, anti-DNA e anti-Ro). Houve persistência de hipoalbuminemia mesmo com corticoterapia na dose de 1 mg/kg de peso, sendo diagnosticada enteropatia perdedora de proteínas por meio da cintilografia com albumina 99mTc. A melhora clínica e laboratorial da paciente veio após a associação da azatioprina com corticosteroide.

Palavras-chave: lúpus eritematoso sistêmico, enteropatias perdedoras de proteínas, agregado de albumina 99mTc.

INTRODUÇÃO

O lúpus eritematoso sistêmico (LES) é uma doença autoimune com envolvimento de vários sistemas, incluindo o trato gastrintestinal.1,2 As manifestações gastrintestinais mais comumente relatadas são: refluxo gastroesofágico, disfagia, dor abdominal, constipação, diarreia, pseudo-obstrução intestinal, perfuração e hemorragia.1

A enteropatia perdedora de proteínas é uma manifestação gastrintestinal incomum, já relacionada ao LES, e deve ser investigada diante de hipoalbuminemia persistente e ausência de proteinúria significativa, doença hepática, síndrome de má absorção ou ingesta proteica deficiente.1-3 A enteropatia pode manifestar-se clinicamente com edema ou derrames cavitários, dependendo dos níveis séricos de albumina. Outros sintomas que podem estar presentes são: náuseas, vômitos, dor abdominal, diarreia e anorexia.2 Relatamos aqui o caso de uma paciente com LES associado a enteropatia perdedora de proteínas. Aproveitamos este caso para discutir a abordagem diagnóstica e o tratamento instituído.

RELATO DO CASO

Paciente do gênero feminino, 48 anos, parda, diarista. Iniciou quadro de edema em membros inferiores e queda do estado geral em dezembro de 2009. Procurou assistência médica em julho de 2010, quando foi evidenciado derrame pleural bilateral e foram realizadas toracocentese e biópsia pleural (discreta pleurite crônica e inespecífica). Em setembro de 2010, foi internada em hospital regional apresentando dor e aumento do volume abdominal, sendo, então, referenciada ao nosso serviço em outubro de 2010.

À admissão, apresentava dor abdominal difusa, aumento do volume abdominal, dispneia aos pequenos esforços e astenia. Relatava perda ponderal importante (aproximadamente 25 kg em 10 meses). O exame físico revelava paciente emagrecida, taquicárdica, taquipneica, com diminuição do murmúrio vesicular em bases pulmonares, dor abdominal difusa à palpação, presença de macicez móvel e piparote e edema de membros inferiores.

Iniciada investigação diagnóstica, a principal hipótese aventada foi neoplasia de sítio desconhecido. Os principais exames laboratoriais encontram-se na Tabela 1. A endoscopia digestiva alta e a colonoscopia descartaram neoplasia do tubo digestivo alto e baixo. Nas tomografias de tórax, abdômen e pelve foram evidenciados ascite volumosa, derrame pleural bilateral e derrame pericárdico.

O diagnóstico de LES foi firmado a partir de título anormal do fator antinuclear (FAN), presença de autoanticorpos específicos (anti-Sm e anti-DNA), serosite e linfopenia. Foi então iniciada prednisona 1 mg/kg. A paciente evoluiu inicialmente com piora do edema de membros inferiores e da ascite, necessitando de repetidas paracenteses de alívio. Devido à hipoalbuminemia importante e persistente, com ausência de significativa proteinúria, exames laboratoriais da função hepática normais e aporte proteico adequado pela dieta, realizou-se pesquisa de enteropatia perdedora de proteínas por meio de cintilografia com albumina 99mTc. A perda proteica foi confirmada no quadrante inferior direito do abdômen quatro horas após o início do estudo e nas imagens subsequentes (6, 8 e 24 horas) (Figura 1).


Uma vez acrescentada azatioprina 100 mg/dia, ao longo de quatro semanas, a paciente evoluiu com regressão dos derrames cavitários e do edema em membros inferiores, com recuperação dos níveis séricos de albumina.

DISCUSSÃO

A enteropatia perdedora de proteínas é uma condição caracterizada por perda excessiva de proteínas pelo trato gastrintestinal, resultando em hipoproteinemia, edema e, em alguns casos, derrames cavitários.4 Relaciona-se com doenças erosivas da mucosa gastrintestinal (doença inflamatória intestinal, colite pseudomembranosa, sarcoidose, linfoma intestinal, gastropatia erosiva), com doenças não erosivas (doença celíaca, colite microscópica, doenças reumáticas, espru tropical, doença de Whipple, gastropatia hipertrófica) e com condições que aumentam a pressão intersticial (linfangiectasia intestinal, insuficiência cardíaca congestiva, hipertensão portal, fístula entérico-linfática, fibrose retroperitoneal e tuberculose mesentérica).4,5

Essa condição deve ser lembrada diante de uma hipoalbuminemia quando causas mais usuais forem descartadas: proteinúria maciça, desnutrição e diminuição da síntese proteica por doença hepática. As manifestações clínicas são variáveis e são determinadas pela doença de base.5 Diarreia e outros sintomas gastrintestinais podem não estar presentes.4 Laboratorialmente, além da hipoalbuminemia, pode-se encontrar hipercolesterolemia pela resposta hepática à hipoalbuminemia, hipogamaglobulinemia (IgA, IgG e IgM) e diminuição da transferrina, ceruloplasmina e fibrinogênio, pois a perda intestinal independe da carga ou do peso molecular da proteína, como ocorre na síndrome nefrótica.2,4,5

Algumas revisões já descreveram a enteropatia perdedora de proteínas como condição secundária ao lúpus.1-3 Uma revisão realizada na Ásia mostrou predominância de casos em pacientes do gênero feminino com idade em torno dos 30 anos, e na maioria a condição foi a manifestação inicial do lúpus.2 Relato asiático de Mok et al.6 traz prevalência de 3,2% de enteropatia em pacientes com lúpus. Dados semelhantes são compartilhados por Zheng et al.7 e Kim et al.8

Em nosso caso, os critérios para o diagnóstico de lúpus eritematoso sistêmico9 foram: serosites (derrame pleural e pericárdico), alterações hematológicas (linfopenia), alterações imunológicas (anti-dsDNA e anti-Sm positivos) e título anormal de FAN. No entanto, não há autoanticorpos característicos quando há enteropatia perdedora de proteínas em pacientes com LES. Tais achados laboratoriais estão relacionados com a doença de um modo geral, e não obrigatoriamente com a enteropatia.6

Um mecanismo possível para justificar a enteropatia perdedora de proteínas nas doenças do tecido conjuntivo é o aumento da permeabilidade da microvasculatura intestinal.2 Algumas citocinas foram implicadas nesse processo, como INF-γ, IL-6 e TNF-α, mas faltam estudos controlados sobre a relação dessas citocinas com atividade de doença e resposta terapêutica.7,10 Outros mecanismos relatados são vasculite mediada por imunocomplexo, dilatação linfática e lesão da mucosa, que são difíceis de demonstrar histopatologicamente.2,6

Dois métodos são utilizados para o diagnóstico da enteropatia perdedora de proteínas: clearance fecal de 24 horas de α-1antitripsina e cintilografia com albumina 99mTc. O primeiro não é invasivo e pode monitorar a resposta ao tratamento da causa-base.4,5,11 Tem como valor normal 2,6 mg/g de fezes, que reflete um clearance intestinal < 13 mL/dia. Diarreia e sangramento gastrintestinal podem resultar em valores falsamente elevados.

A α-1-antitripsina é degradada em condições de pH gástrico < 3,5, interferindo no resultado. Não é possível definir o local da perda proteica, se gástrica ou intestinal.5

Utilizada em nosso caso, a cintilografia com albumina 99mTc possibilita a localização da fonte da perda, o que pode ocorrer em vários pontos.2 Tem menor custo que outros radiomarcadores (111In-cloreto ou 111In-transferrina), apresenta estabilidade in vivo, alta sensibilidade e raros efeitos colaterais (náuseas, vômitos, dispneia, taquicardia, confusão e dor abdominal). Falsos positivos ocorrem na vigência de sangramento pelo trato gastrintestinal. Imagens seriadas em até 24 horas devem ser obtidas, com aumento da taxa de detecção da perda proteica, possivelmente pela natureza intermitente do processo.12

Para associar a enteropatia perdedora de proteínas ao LES é preciso encontrar as características clínicas e laboratoriais da doença e descartar outras condições por meio de ecocardiograma, tomografia abdominal, endoscopia e biópsia colônica.13

Não há estudos controlados para o tratamento da enteropatia perdedora de proteínas no lúpus. Os relatos sugerem que seja iniciada terapia apenas com corticoide isoladamente. Caso não haja resposta, a associação com imunossupressores (ciclofosfamida, azatioprina ou ciclosporina) traz resultados rápidos e duradouros. Foram relatadas recidivas em maior frequência quando os corticosteroides foram empregados isoladamente, embora essas recidivas respondam bem com o aumento da dose.2,6,7,13

A enteropatia perdedora de proteínas deve ser lembrada sempre que haja hipoalbuminemia de causa não esclarecida em pacientes com lúpus. Esses respondem bem ao tratamento com corticoides e imunossupressores, e o prognóstico, na maioria dos casos, é bom.

Recebido em 14/04/2011.

Aprovado, após revisão, em 05/09/2012.

Os autores declaram a inexistência de conflito de interesse.

Hospital Geral César Cals de Oliveira.

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  • Correspondência para:

    Fernando Moreira Batista Aguiar
    Rua Dr. Joaquim Frota, 540 - José de Alencar
    CEP: 60830-132. Fortaleza, CE, Brasil
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      14 Abr 2011
    • Aceito
      05 Set 2012
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