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A violência rompendo interações: as interações superando a violência

Violence rupturing interaction: interaction overcomimg violence

Resumos

Trata-se de pesquisa qualitativa associada ao Projeto de Extensão e de Ensino "Frutos do Morro Programa Meninos do Rio", do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais - que se desenvolve em Escolas Públicas do Aglomerado Urbano Morro das Pedras, Belo Horizonte, Minas Gerais, e aborda a percepção de adolescentes acerca da violência, os significados que dão a ela e as formas de enfrentamento geradas. Utilizamos como referencial teórico a tese da colonização do Mundo da Vida, de Jürgen Habermas, em que os imperativos sistêmicos, mediados pelo poder e pelo dinheiro, substituem os laços de sociabilidade e solidariedade próprios das interações coordenadas pela comunicação lingüística. MÉTODOS: foram selecionados, em 2005, 14 grupos focais de adolescentes das Escolas Públicas do Aglomerado, recrutados segundo idade, escola, turno. RESULTADOS: a violência assume papel de mediador das relações intersubjetivas, seja pela falta de opção, pela sedução ou pela presença cotidiana. Embora haja uma naturalização da violência há também um desejo explícito pela sua superação. A relação com o tráfico e o uso de drogas é constantemente mencionada. A violência simbólica - discriminação - é intensamente sentida e vista como causa da violência física. A violência policial é considerada a mais bruta e a mais irracional. Também presente é a violência familiar. CONCLUSÕES: os adolescentes do Morro convivem intimamente com a violência, não vêem muitas alternativas a ela, mas a capacidade de crítica e o desejo de mudança, ainda preservados, representam importantes elementos para a construção de intervenções apropriadas, corroborando a atuação do Projeto Frutos do Morro, fundada na criação de espaços de participação e restabelecimento de laços de solidariedade.

Ação comunicativa; Violência; Adolescência


This is a qualitative survey associated to the Extension and Education Project - "Frutos do Morro" "Programa Meninos do Rio" of Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais - implemented in the Public Schools of the Urban Area of "Morro das Pedras", Belo Horizonte, MG focusing on the perception of violence by adolescents, the implication of violence and how the means of confronting violence are generated. We used Jürgen Habermans thesis- Colonization of the Life World - as a theoretical framework in which systemic imperatives, mediated by power and money replace sociability and solidarity bonds inherent to the interaction coordinated by linguistic communication. METHODOS: in 2005, 14 adolescents' focal groups were organized recruited from the Public Schools of the Urban Area, according to age, school, and class hours. RESULTS: violence takes on the role of mediator of intersubjective relations, either caused by the lack of options, luring or daily presence. Although violence has become natural there's an explicit desire to overcome it. Association to drug trafficking and use is constantly mentioned. Symbolic violence - discrimination - is intensely felt and seen as the cause of physical violence. Police violence is considered the most brutal and irrational. Family violence is present as well. CONCLUSIONS: adolescents from the Morro (the slum areas located on the hills) are strongly exposed to violence, don't see much alternatives to it, but preserved critical capacity and desire to change, are important elements to build adequate actions, supporting the work of the "Frutos do Morro" Projet, which is based on the creation of participation spaces and re-establishment of solidarity bonds.

Communicative action; Violence; Adolescence


ARTIGOS ESPECIAIS ESPECIAL ARTICLES

A violência rompendo interações. As interações superando a violência

Violence rupturing interaction. Interaction overcomimg violence

Elza Machado de Melo; Maria Aparecida Machado de Melo; Sônia Maria de Oliveira Pimenta; Stela Maris Aguiar Lemos; Adriana Braga Chaves; Lauriza Maria Nunes Pinto

Núcleo de Estudos sobre Saúde e Violência. Departamento de Medicina Preventiva Social. Faculdade de Medicina. Universidade Federal de Minas Gerais. Avenida Alfredo Balena, 190. 10º. andar, sala 10018. Belo Horizonte, MG, Brasil. CEP: 30.100-130. Tel: 31 3249-9945. E-mail: elzamelo@medicina. ufmg.br

RESUMO

Trata-se de pesquisa qualitativa associada ao Projeto de Extensão e de Ensino "Frutos do Morro Programa Meninos do Rio", do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais - que se desenvolve em Escolas Públicas do Aglomerado Urbano Morro das Pedras, Belo Horizonte, Minas Gerais, e aborda a percepção de adolescentes acerca da violência, os significados que dão a ela e as formas de enfrentamento geradas. Utilizamos como referencial teórico a tese da colonização do Mundo da Vida, de Jürgen Habermas, em que os imperativos sistêmicos, mediados pelo poder e pelo dinheiro, substituem os laços de sociabilidade e solidariedade próprios das interações coordenadas pela comunicação lingüística.

MÉTODOS: foram selecionados, em 2005, 14 grupos focais de adolescentes das Escolas Públicas do Aglomerado, recrutados segundo idade, escola, turno.

RESULTADOS: a violência assume papel de mediador das relações intersubjetivas, seja pela falta de opção, pela sedução ou pela presença cotidiana. Embora haja uma naturalização da violência há também um desejo explícito pela sua superação. A relação com o tráfico e o uso de drogas é constantemente mencionada. A violência simbólica - discriminação - é intensamente sentida e vista como causa da violência física. A violência policial é considerada a mais bruta e a mais irracional. Também presente é a violência familiar.

CONCLUSÕES: os adolescentes do Morro convivem intimamente com a violência, não vêem muitas alternativas a ela, mas a capacidade de crítica e o desejo de mudança, ainda preservados, representam importantes elementos para a construção de intervenções apropriadas, corroborando a atuação do Projeto Frutos do Morro, fundada na criação de espaços de participação e restabelecimento de laços de solidariedade.

Palavras-chave: Ação comunicativa, Violência, Adolescência

ABSTRACT

This is a qualitative survey associated to the Extension and Education Project - "Frutos do Morro" "Programa Meninos do Rio" of Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais - implemented in the Public Schools of the Urban Area of "Morro das Pedras", Belo Horizonte, MG focusing on the perception of violence by adolescents, the implication of violence and how the means of confronting violence are generated. We used Jürgen Habermans thesis- Colonization of the Life World - as a theoretical framework in which systemic imperatives, mediated by power and money replace sociability and solidarity bonds inherent to the interaction coordinated by linguistic communication.

METHODOS: in 2005, 14 adolescents' focal groups were organized recruited from the Public Schools of the Urban Area, according to age, school, and class hours.

RESULTS: violence takes on the role of mediator of intersubjective relations, either caused by the lack of options, luring or daily presence. Although violence has become natural there's an explicit desire to overcome it. Association to drug trafficking and use is constantly mentioned. Symbolic violence - discrimination - is intensely felt and seen as the cause of physical violence. Police violence is considered the most brutal and irrational. Family violence is present as well.

CONCLUSIONS: adolescents from the Morro (the slum areas located on the hills) are strongly exposed to violence, don't see much alternatives to it, but preserved critical capacity and desire to change, are important elements to build adequate actions, supporting the work of the "Frutos do Morro" Projet, which is based on the creation of participation spaces and re-establishment of solidarity bonds.

Key words: Communicative action, Violence, Adolescence

Introdução

A violência é um dos principais problemas de saúde pública da atualidade. Segundo dados da Organização Mundial de Saúde (OMS)1, morrem, todo ano, mais de um milhão de pessoas por causa violenta. No Brasil, os homicídios passaram de 13.601 no ano de 1980 para 45.343 no ano de 2000, o que representa um crescimento de mais de 200%; neste último ano, os homicídios representaram 38,3% das mortes por causas externas e os serviços de públicos de saúde receberam 693.961 pessoas com lesões e traumas causados por acidentes e violências.2

O custo da violência é muito alto - além de trazer importantes conseqüências de ordem emocional, econômica e social, eleva demais os gastos com a atenção à saúde, tanto em virtude da magnitude do problema, como porque o tratamento das vítimas de violência, de um modo geral, é mais oneroso do que os demais procedimentos. Estima-se que 3,3% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro são gastos nessa abordagem.2

Outra relação direta do problema da violência com a saúde, verificada pela experiência dos autores, é a sua disseminação para dentro dos serviços de saúde, principalmente aqueles localizados em áreas de alta vulnerabilidade social, como as Unidades Básicas de Saúde e o Programa de Saúde da Família. Causam muitas dificuldades, por exemplo, a rotatividade dos profissionais e o impedimento de programas e práticas previstos.

A situação entre adolescentes e jovens é especialmente grave, pois, contraditoriamente ao fato de estarem numa fase da vida que demanda sobremaneira relações saudáveis com o mundo, são eles mesmos os mais ameaçados pelos riscos e é entre eles que mais se concentra a violência: são os adolescentes e jovens os que mais matam e os que mais morrem.3 Como ninguém, sofrem os efeitos das formas estruturais de violência, que comprometem o seu futuro e impedem a realização do seu potencial criativo; são os mais diretamente acometidos pela falta de qualidade do ensino e pelo despreparo da escola em lidar com práticas violentas como o bullying (definido como agressões, humilhações e ridicularização feitas repetidamente), a exclusão, o preconceito.3,4 A violência também se apresenta na relação com o trabalho, nos seus dois pólos, ou a inserção precoce que se associa à exposição a vários riscos,5 ou a inexistência de oportunidades de trabalho.6 São vítimas de exploração sexual, do turismo sexual, da violência doméstica nas suas várias formas, inclusive o abuso sexual, e vítimas preferenciais da violência na comunidade e da violência policial.5

O presente trabalho é fruto da pesquisa qualitativa realizada junto aos adolescentes e jovens do Aglomerado Urbano Morro das Pedras, onde vivem aproximadamente 22.000 habitantes, sujeitos às mais duras condições de vida: a pobreza, a exclusão social, o tráfico de drogas, as gangues; essa perversa combinação que faz desse um dos espaços mais violentos de Belo Horizonte, com um dos maiores índices de homicídios da nossa capital, motivo pelo qual, além de outras catástrofes, como desabamentos, está sempre presente, e de forma estigmatizante, na mídia. Tem por objetivo compreender a percepção desses adolescentes acerca da violência, os significados que dão a ela e as formas de enfrentamento geradas. Nós nos beneficiamos, para a realização desse trabalho, das práticas da extensão universitária, especificamente do projeto Frutos do Morro, Meninos do Rio, do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Violência, Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), como modo de estabelecimento de relações intersubjetivas entre os pesquisadores e os sujeitos da pesquisa, gerando assim o compartilhamento do seu mundo da vida, que segundo o referencial teórico adotado, a saber, a Teoria da Ação Comunicativa, de Jürgen Habermas, é necessário para se alcançar o conhecimento do mundo social.

Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa .

Métodos

Trata-se de pesquisa qualitativa realizada junto aos adolescentes e jovens de 12 a 24 anos do Aglomerado Morro das Pedras, em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, nas cinco Escolas Públicas que o servem. Os procedimentos realizados foram os grupos focais, ao todo 14, organizados segundo a idade - 12 a 15 anos e 16 a 24 anos, segundo o turno - manhã e noite, e segundo a Escola - uma Escola só funciona em um turno, duas em dois turnos e duas em três turnos. Os alunos do turno da tarde estão abaixo da idade prevista para a pesquisa e por isso não foram incluídos.

Os alunos que compõem os grupos focais foram escolhidos aleatoriamente nas salas de aula, nas diferentes turmas. Posteriormente, foram divididos em grupos que participariam e grupos que não participariam das oficinas do Projeto Frutos do Morro, havendo, ao final de um ano, uma segunda fase onde o procedimento foi repetido; assim tivemos uma pesquisa avaliativa sobre o efeito do Projeto. O presente trabalho aborda apenas a primeira fase.

Os grupos focais foram acompanhados por dois pesquisadores, um no papel de moderador e outro de observador. A discussão seguiu um roteiro com questões abertas sobre violência e toda a discussão foi gravada e posteriormente transcrita.

A análise, à diferença da fenomenologia, que procura desvelar os significados dados pelos sujeitos entrevistados ao tema,7 foi feita segundo o método que Minayo2 denomina hermenêutico-dialético, pela síntese entre as proposições teóricas; especificamente, a tese da colonização do um mundo da vida, e os achados empíricos. Nesse processo de construção, definimos como categorias a elevação da violência ao status de mediadora das relações entre os sujeitos, rompendo as interações a partir das suas múltiplas expressões e, reciprocamente, o resgate das interações como possibilidade de superação da violência.

Resultados e Discussão

Inicialmente transcrevemos, apesar de longo, o trecho de uma discussão de um grupo focal, cujos conteúdos e significados perpassam todos os demais grupos, que sintetiza a essência deste trabalho, tanto em relação à normalidade da violência como dos indícios a partir dos quais se poderiam organizar os processos de enfrentamentos.

Cara, pra mim [a violência] não incomoda não.

Depende de cada pessoa... igual, eu conhecia gente na lojinha e eu ia na lojinha, não é só porque tinha guerra com os cara da Dez que eu deixava de ir lá, eu passava lá e ia na Dez também ... não adianta você evitar a morte não uai!

Se você puder evitar...

Mas como que cê vai evitar?

Uai, tem como evitar.

Não tem como evitar.

Não me incomoda.

Ah, porque parece que o cara nem tem gosto da vida, sei lá. Porque tipo assim, por exemplo, você perde alguém da sua família ali, uma pessoa amada aquilo não vai te incomodar você?! Que é isso! Jamais! Nunca.

Depende do jeito que você pensa... e qual pessoa da família... A única certeza que você tem na vida é a morte.

Eu sei, mas olha aqui, pensa o seguinte...aí você pensa alguém que você gosta e aquilo não vai te incomodar você, tiro não vai te incomodar?

Aquilo vai te incomodar por um momento, depois cê vai ter que conformar, ficar chorando não vai adiantar.

Nó, nada a ver o que ele tá falando...

A gente acostuma, né?Eu tenho medo mais não. Se eu tiver que morrer eu vou morrer mesmo. Eu nem ligo mais. Não vou deixar de sair de casa não.

Eu já perdi avó, meu avô, perdi minha tia agora recentemente... cara um dia vai ser eu, eu.

Agora você tem que pensar o seguinte, cê tem que pensar... se eu não tô fazendo que você mesmo gere violência para as outras pessoas, entendeu, você não tem com que se incomodar, você tá fazendo seu papel...

Tiro, imagina pra você ver, você mora num lugar aí tá aquele tanto de tiro e você não sabe que... por exemplo se mãe ou pai e seu filho tá na rua, é claro, como que não vai incomodar? Sua mãe tá lá fora, ou o pai, uma pessoa que todo mundo ama tá lá...

Você vai se preocupar!

Claro! Você vai se preocupar e que quê você vai pensar? Você nunca vai pensar positivo! Você vai pensar: nó, vou perder meu pai, vou perder minha mãe, vou perder meu filho! Claro, isso incomoda muito...

Resumindo tudo aqui como ele disse, em certos pontos incomodam e em certos não.

Olha, pra mim, quase a mesma coisa, em certos pontos incomoda e em outro não. Igual esse negócio aí, tem vez que a gente precisa tanto... vamos supor se tem alguém passando mal, a farmácia fica lá bem perto da lojinha... O quê que a gente pode fazer? A gente fica até assim... eles avisam: não vai lá pra frente não porque a qualquer momento pode acertar e tal. A gente fica amedrontada, vai assim... a gente tem que ir buscar o remédio... Então isso aí, nesse ponto me incomoda.

Onde não incomoda? Por exemplo, igual ele disse... Questão de você viver num lugar onde a maioria da sua vida é... tipo assim, você viveu a maioria da sua vida onde só rola tiros, uma hora você acaba se acostumando, sô. Igual lá na rua, antigamente vivia cheio de gente assim, dava um tiro e rapidinho espalhava todo mundo, agora tá dando tiro ali na frente tem gente andando com toda calma pra cá, não vai pra lá, mas vem pra cá, não tem aquele desespero mais. Com o tempo você acaba se acostumando.

Você se acostuma mas incomoda!

Mas porque tipo assim, é acostumar, beleza! Acostumar é uma coisa, mas a gente, mas não quer aceitar o que tá acontecendo.

Isso é o certo!

Certo, a gente pode acostumar, mas a gente não aceita, sei lá porque a gente quer mas não quer aceitar o que tá acontecendo...

A violência rompendo interações

A violência será definida como qualquer situação em que um ator social perde a sua condição de sujeito frente a outro, sendo então rebaixado à condição de objeto. Trata-se, portanto, como escreve Zaluar,8 da perda de reconhecimento pelo outro, mediante o uso do poder, da força física ou de qualquer forma de coerção - incluímos, pois, aqui, tanto a violência física como a violência simbólica.

Tem vários tipos de violência, né? Tem a violência com palavras, gestos, uma pessoa bater na outra, xingar a outra...

Agressão, morte também, assalto

Abuso sexual

Com palavras também

Da arma...

Violência contra o pobre

As relações intersubjetivas e sua ruptura, abrindo espaço para a violência, serão analisadas segundo a Teoria da Ação Comunicativa de Habermas e a tese da colonização do Mundo da Vida, como se observa a seguir.

O entendimento lingüístico é um processo estabelecido segundo uma relação sujeito-sujeito, mediada pela linguagem no seu uso comunicativo cotidiano - a fala. É, pois, um acordo racionalmente alcançado ou o processo pelo qual se alcança esse acordo sem que qualquer tipo de coerção seja utilizado - esse acordo é produzido exclusivamente pelas energias vinculantes da linguagem.6 Quando uma interação ou ação coletiva envolvendo mais de um sujeito tem como mecanismo coordenador da ação o entendimento lingüístico, então "neste caso e apenas nele, tem-se a ação comunicativa". Neste tipo de interação, os planos dos participantes dirigidos a um fim - portanto, teleologicamente estruturados - são harmonizados e integrados pelo entendimento lingüístico; portanto, a ação comunicativa envolve dois aspectos, um deles, o entendimento, pelo qual os participantes interpretam consensualmente a situação da ação e realizam seus planos cooperativamente; o outro, o aspecto teleológico relativo aos planos de cada um desses participantes: "As atividades orientadas para um fim, dos participantes da interação, estão jungidas umas às outras através do meio que é a linguagem".9

A interação entre sujeitos, mediada pela linguagem, ocorre sempre dentro de um mundo da vida, que é o conjunto de saberes pré-teóricos, implícitos, e que, compartilhados pelos participantes da interação e colocados às suas "costas", formam o horizonte da situação que vivenciam e garantem os recursos utilizados por eles para que se entendam uns com os outros numa dada situação e assim, ao estabelecer relações intersubjetivas mediadas pela linguagem, coordenem as suas ações coletiva e cooperativamente. Este saber implícito é um know how que capacita aos participantes da interação a usar a linguagem orientada ao entendimento e a preencher os pressupostos pragmáticos da ação comunicativa; como tal, não está à disposição da vontade e da consciência dos participantes e não pode ser tematizado em sua totalidade; apenas os pequenos fragmentos do mundo da vida que se desembocam no agir comunicativo, podem ser tematizados e problematizados.10,11 A explicitação de um plano de ação por meio de atos de fala - portanto, um plano de ação a ser cooperativamente executado - e a decorrente abordagem de um tema realçam um fragmento do mundo da vida, delimitando uma situação: neste caso, o que até então era sabido apenas como uma auto-evidência passa a ser ingrediente de uma situação, torna-se passível de tematização, entra em contato com pretensões de validade e transforma-se em saber falível.

Olhado na perspectiva dos participantes, o mundo da vida tem a função de formar contexto e de prover recursos para a ação comunicativa que por sua vez, serve à reprodução do mundo da vida. Os participantes da ação comunicativa, ao se entenderem entre si, reproduzem e renovam a cultura; ao coordenarem lingüisticamente a ação, reproduzem lealdades; e a criança, ao participar das interações, incorpora valores sociais e desenvolve habilidades; portanto, a ação comunicativa tem as funções de, no que diz respeito à cultura, realizar a reprodução cultural, isto é, a "...reprodução e renovação do saber válido; no que diz respeito à sociedade, garantir integração social e produzir solidariedade", logo, estabilidade das ordens sociais, e, no que diz respeito à personalidade, promover os processos de socialização, que formam sujeitos capazes de fala e ação. Dessa forma, ação comunicativa e mundo na vida se relacionam de forma circular: os sujeitos que interagem "uns com os outros" utilizando a linguagem são ao mesmo tempo produto e produtores do contexto onde estão inseridos.9,10,12,13 A Figura 1a ilustra essa relação circular - trata-se de um esquema que tem por objetivo apenas mostrar as relações entre mundo da vida e ação comunicativa e que também será útil para ilustrar a tese da colonização do Mundo da Vida. Mas, é preciso cuidado na interpretação dessa figura - na verdade, a ação comunicativa se desenrola dentro do mundo da vida e não há nenhuma exterioridade dela em relação a ele. Só utilizamos a separação como um artifício para destacar didaticamente as relações.14


Até aqui estivemos falando do mundo da vida e de seu conceito complementar, a ação comunicativa, que, juntos, garantem a coesão social utilizando como recurso básico o elemento de solidariedade, entendida como reconhecimento recíproco entre sujeitos que participam da interação lingüisticamente mediada. Com Habermas, no entanto, aprendemos que o mundo da vida não esgota todos os aspectos da sociedade, que também precisa da reprodução material, desempenhada por outro âmbito da sociedade, a saber, o sistema, onde não temos mais ação dirigida ao entendimento, como é o caso da ação comunicativa e sim a ação dirigida ao êxito - ação instrumental e ação estratégica; por conseqüência, o mecanismo de regulação não é mais a integração social mediada pela solidariedade, em que os atores sociais harmonizam entre si as orientações das suas ações, e sim a auto-regulação acima e independente de todos, dada pelo agregado das conseqüências das ações de cada ator social isolado.10,15,16

A evolução social se faz, então, como racionalização do mundo da vida e como aumento de complexidade sistêmica e, na sociedade moderna, ela acaba por levar ao que Habermas denomina colonização do mundo da vida pelo sistema: a substituição dos processos comunicativos que coordenam a ação dos atores e garantem a reprodução do mundo da vida por mecanismos sistêmicos de controle, os media poder e dinheiro. Com essa substituição, as estruturas do Mundo da Vida não se reproduzem - não se têm, portanto, a reprodução cultural, a integração cultural e a socialização e, consequentemente, têm-se a perda de sentido, a anomia e o aparecimento das psicopatologias, respectivamente,10,15-17 abrindo o caminho para a violência, que por sua vez, reedita o ciclo de colonização.16,18 Essa tese tem-nos ajudado a entender o crescimento da violência nas sociedades modernas, com seu individualismo e perda das relações humanas, como também nos tem ajudado a encontrar, como se verá adiante, maneiras de abordagens e enfrentamentos. A Figura 1b ilustra esse processo.18 Traduzindo essa mesma análise para a vida dos adolescentes do Morro das Pedras, isto é, para um contexto mais delimitado, é possível ver que além dessa perda mais geral do tecido social, o processo reentrante da colonização do seu mundo da vida pela violência se faz direta e intensamente, passando a própria violência a assumir o papel de mediação das relações interpessoais - "a violência tem leis que a gente tem que cumprir, regras que a gente tem de fazer". Reinicia-se assim o ciclo vicioso, de aparência tão indevassável, que é difícil antever qualquer outra possibilidade - "Ninguém tem mais o que fazer.Todo mundo morre no morro... essas coisas, ninguém opina mais não, não tem nada para opinar". E se até há bem pouco tempo as comunidades carentes tinham a forte marca da solidariedade a lhes dar coesão, o que ademais era essencial à sua sobrevivência, até mesmo isso agora encontra-se ameaçado e a proteção conferida por esses mecanismos agora também se vai. "No ponto que chegou agora é muito difícil. Os meninos pequenininhos já crescem pensando em matar". E como se não bastasse, esse brutal processo de reificação dispõe de legitimidade, porque assume, ante os olhos dos adolescentes, a feição de natureza: "...é uma coisa muito difícil de acabar porque a violência está dentro de nós. Pode acabar um certo tipo de violência, vai aparecer outro tipo de violência. É instinto humano... E o outro completa: O cara foi lá e matou ele. E aí o que que aconteceu? A família dele foi e vingou. Vai matando...Passa de filho para pai, de pai para filho. Não adianta’’.

A violência como mediadora das relações também se legitima porque há determinados apelos e mecanismos atrativos: o camarada achar ser malandro bonito.

Alguns adolescentes expressaram isso de forma inequívoca: Vida de malandro é só farra mesmo.

Ou ainda:

Malandro é aquele que mata, rouba, cheira, vende, não trabalha, fica na esquina e tem dinheiro fácil. Não trabalha mas tem dinheiro.

Ou porque parece não haver nenhuma saída. O diálogo estabelecido em um grupo focal dos adolescentes bem ilustra esse fato:

Eu penso o contrário... Eu acho que sair desse mundo vai da pessoa, meu irmão entrou pra igreja e saiu desse mundo.

Isso aí foi sorte dele porque talvez ele era só um...

Não, ele era traficante mesmo.

Então foi sorte mesmo. É muito difícil...

A conclusão deles é que a "violência não acaba não, gente... Pode vir o Papa aqui. Não acaba".

O que parece, porém, como argumento mais forte para conferir legitimidade às normas violentas é a sua presença permanente, marcando a vida das pessoas, construindo as suas personalidades, definindo os seus caminhos, produzindo uma nova cultura, uma nova concepção, um novo jeito de se relacionar com o outro - é a violência assumindo o papel de norma e rompendo as interações, colonizando o mundo da vida. Essa é uma unanimidade nos grupos focais. São comuns os relatos sobre eventos violentos presenciados - praticamente todos os participantes dos grupos focais já tiveram alguma experiência desse tipo e a forma com se expressam ilustra a dureza daquela realidade: "...sempre quando voltava da escola encontrava um estirado". Muitas vezes, eles próprios ou pessoas a eles relacionados foram as vítimas e, em outras tantas vezes, foram eles os agressores, incluindo aí as meninas "... eu quebrava os meninos no futebol, já bati na professora". Essas análises estão em consonância com a literatura: são os adolescentes os que mais presenciam agressões, os que mais agridem e os que mais são agredidos.2,3,5

Um outro ponto exaustivamente apontado por Zaluar,8 que vem reforçar essa situação, é a entrada em cena de uma nova agência socializadora, a saber, o crime organizado, que por meio de violência física e simbólica, se impõe sobre os moradores de bairros e favelas - a força que esse novo ator demonstra para definir e orientar comportamentos representa talvez o exemplo mais rude sobre como a violência ocupa o lugar de mediadora das relações intersubjetivas. E está presente de forma intensa no cotidiano dos adolescentes e jovens que participaram desta pesquisa, mostrando seus efeitos avassaladores. "Os próprios malandros avisam quando o bicho vai pegar. Avisam pra ficar em casa". É a mais simples liberdade do ir e vir que se compromete. E diante de tamanha ameaça, até relevam os demais sofrimentos. "A violência que mais incomoda a gente é tiroteio, se tirasse tava bom". Nesse contraditório processo de encontro com o outro, perde-se, no final, toda a possibilidade de escolher - só resta a violência.

Aí eu separei desse grupo. Aí eles viram que eu comecei a andar sozinho, eles já estavam armando assim: vamos pegar ele que ele tá sozinho. Aí eu fui obrigado a voltar pro grupo pra não ter mais confusão.

Num mundo assim organizado, os conflitos mais simples são resolvidos pela via violenta, como dizem os participantes da pesquisa, mata-se por nada, porque se falou demais, porque falou o que não devia, porque se discutiu, porque se discordou, porque há dívidas, porque há territórios, por briga de namorados, por brigas de família. "Ontem mesmo, mataram um aqui na Escola", diz um adolescente se referindo a um caso que nós também acompanhamos e que de certa maneira nos obrigou a uma pausa no desenvolvimento do presente trabalho.

Olhando de um outro ângulo, se considerarmos que não é possível estudar a violência sem levar em conta os valores, as crenças que "estruturam e presidem a vida social"19, ou, dito em outras palavras, sem levar em conta que o próprio conceito de violência é histórico e muda de sociedade para sociedade, então, mais uma vez aqui joga um peso decisivo a tese da colonização do mundo da vida e suas decorrências - a perda de sentido, a anomia, as psicopatologias - que tornam cego ou sem referencial o olhar para a violência e, nessas circunstâncias, só dificilmente consegue-se resistir ao poder do crime organizado, ao medo, à ameaça ou às recompensas que ele produz. "...Os malandros têm mais respeito no morro do que os policiais... Tudo que tem de errado no morro eles correm atrás e resolvem."

Cada vez mais, a violência escapa à crítica e ganha o consentimento de todos.

Um outro tipo de violência aparece muito fortemente nas falas dos adolescentes, intensificando, de certa forma, a percepção da sua inevitabilidade, pois o ator social que a exerce é exatamente aquele que deveria combatê-la - a violência exercida pela polícia, intensamente denunciada pelos adolescentes e consideradas por eles como a mais brutal, a mais sem razão, no seu dizer, "polícia chega dando tiro do nada".

A gente estava numa festa, na porta. Eu e dois primos meus, na porta da festa. Os policiais militares chegaram, deram geral querendo colocar eles na parede. Meu tio veio e falou assim: - Não, o pessoal da minha família não acontece nada. Mostrou os documentos de polícia civil pra ele. Jogaram os documentos dele no chão. Jogaram ele no chão e chutaram a cabeça dele até morrer. Morreu de traumatismo craniano. Isso foi pelos policiais militares, que chutaram a cabeça dele até ele morrer. O julgamento desses policiais militares ocorreu depois de dois anos, foi ano passado, e eles não foram pra cadeia nem nada.

São claros os números da violência policial - "no ano de 1992 a polícia abateu 1470 pessoas"20 e ao que tudo indica, esse número tem crescido de 1998 para cá, com as constantes "...incursões policiais nos morros, favelas e áreas de concentração de habitações populares" para prender traficantes, sim, mas, frequentemente resultando em morte de delinqüentes e até mesmo de cidadãos que por ali passavam.20 Não se enganam, portanto, os adolescentes, quando denunciam esse comportamento da polícia: "...a maior parte é por culpa dos policiais, que já chegam dando tapa na cara e apontando a arma". Tampouco se enganam quando associam a violência da polícia com a violência estrutural - embora essa associação apenas ocorra quando também falham os instrumentos institucionais de controle da polícia.21

Tinham assaltado um banco. Nesse dia eu tinha recebido, estava de uniforme. Aí eu estava voltando, aí comecei a passar num lugar um pouco escuro, aí cê já viu, né? Pretinho... Com dinheiro no bolso ainda... Me parou, me revistaram. Aí a boletinha do recibo do serviço lá estava junto com o dinheiro e falaram assim que eu tinha roubado... e eu não tinha roubado. Fiquei triste pra caramba, né? Aí eu fui e falei 'A boletinha está aí'. Aí ele foi e olhou e tudo. Aí depois foi e me deixou lá com o dinheiro e foi embora. Aí eu acho errado.

Entra em cena agora a exclusão socioeconômica, bastante conhecida nossa, a gerar mais violência, pois no lugar dos processos de educação e aprendizado próprios do desenvolvimento da cidadania e da civilização, o que se tem na sua vigência "...é uma persistência de valores que cultuam a força como meio de agressão ou defesa."21 Entenda-se, não se trata de aceitar a postura preconceituosa de que violência e pobreza sejam sinônimos20 mas sim de pensar a maior vulnerabilidade dos que são excluídos, seja por necessidade, por falta de alternativa ou por serem, em dado momento da sua história, seres humanos reduzidos à sobrevivência. E não termina por aí, ainda resta falar das duas instituições socializadoras por excelência e que também não escapam ilesas, a família e a escola.

É justa a preocupação de Zaluar8, as pressões próprias ao processo de aprendizado não podem ser confundidas com o "... esmagamento e o silenciamento daqueles que deveriam estar sendo formados para se tornarem sujeitos" Os adolescentes do Morro da Pedras bem sabem o que isso quer dizer, não que sejam santos, ao contrário, como ninguém, estão imersos nessa realidade:

  • Os professores com a gente.

  • Nó, é mesmo.O ...

  • Professor de ...

  • Ele é mó tirado.

  • Ah mas às vezes teve aluno que deu cadeirada.

  • É mesmo?

  • Ele é muito sem educação.

  • Só dá tirada.

  • A gente pergunta uma coisa ele não responde.

  • A pedra pegou foi no côco do....

E a associação com a violência estrutural aparece de novo, se os meninos são do Morro então o tratamento é diferente. A narrativa de uma adolescente sobre um professor que dá aula numa escola do Morro das Pedras e também numa Escola particular não deixa dúvidas.

Ele dá aula de.....

  • Eu dava ponto pra aqueles meninos lá na ... porque senão eles me matavam... Chamava a gente de favelado. E aí minha prima falou:

  • Eu estudava lá.

  • Você estudava? Como é que você foi conhecer aquela porcaria?

Por fim, a família, e com ela também não é diferente. As condições de vida inadequadas, o desemprego, o alcoolismo, a perda da autoridade dos pais, as brigas conjugais, o exíguo espaço onde todos vivem amontoados, tudo isso é uma mistura explosiva a engendrar, ela também, a violência e a comprometer o processo de socialização das crianças e adolescentes ou o que ainda pode ter restado dele.21

Geralmente a lei que impera é a da correia, num tem muito diálogo na família, desde pequeno, a pessoa já cresce fez uma coisa ela é punida, não tem conversa, não se diz pra ela porque que ela não pode fazer.

Quais as consequências destes atos?

Eu apanhei do meu irmão, sabe? Ele bateu em mim até que eu chegasse a desmaiar. Aí ele falava com o meu pai, meu pai falava que ele estava certo, sabe? Aí meu pai dava permissão pra ele, né? Bater na gente que era de menor e às vezes pra gente fazer alguma coisa dentro de casa, até lavar roupa, passar roupa pra eles. Até minha mãe mesmo muitas vezes foi espancada pelo meu pai. Todo mundo lá de casa é assim... um pouco nervoso, sabe? Arruma confusão à toa. Só por causa disso. Da violência que o meu pai fez com a minha mãe.

A leitura do livro a Morte de Ivan Illich de Tolstoi me comove sempre. Ao narrar a história da dor e da doença, lá pelas tantas, ele se pergunta, "Meu Deus, será que todo homem tem de sofrer tanto?" Pois é... Os Meninos do Morro me comovem. Como foi que chegamos a essa "barbárie?" Como foi que chegamos a esse nosso "deserto real" onde a "brutalidade tem código e é socializada?"22

As interações superando a violência

Toda nossa análise começou com a perda das relações intersubjetivas lingüisticamente mediadas, corroendo os elementos de sociabilidade e de solidariedade que perpassam a relação entre os sujeitos, ao que chamamos de colonização do mundo da vida. Nada mais lógico do que pensar na reconstrução dessas relações para superar a violência. Assim é que, para nós, combater a violência é "...recuperar em cada espaço, no cotidiano, essa competência de falar e agir que nos dá a todos a condição de sujeitos - é explorar ao máximo as potencialidades interativas e criadoras da fala".5

É o que fazemos, por nossa parte, no Projeto Frutos do Morro/Programa Meninos do Rio, sendo o centro da nossa atuação a criação de espaços de participação que coloquem os adolescentes uns em contatos com os outros e assim se recomece o longo aprendizado da solidariedade e da recriação de laços de sociabilidade. Nossas estratégias básicas, no momento, são: a) realização de várias oficinas semanais nas escolas, b) formar adolescentes multiplicadores nessas oficinas c) os adolescentes devem sempre gerar um produto, especificamente, o jornal mural e a organização de eventos maiores dentro das escolas.

Inúmeras são as oficinas e todas elas são coordenadas por no mínimo dois membros da equipe do projeto e se iniciam com um contrato de convivência, onde as regras são democraticamente definidas; o esporte, os jogos, a leitura e a arte são amplamente utilizados nos processos de discussão e reflexão; os adolescentes são sempre voluntários, mas há o esforço de integrar os que estão em risco imediato ou que apresentam comportamento violento. No momento, 265 adolescentes multiplicadores, distribuídos em 12 oficinas, participam permanentemente do projeto. São esses os meninos com os quais fizemos os grupos focais e que agora experimentam um contato contínuo e duradouro entre si e com alunos de medicina, de psicologia, de fonoaudiologia, direito, engenharia, letras, fisioterapia, terapia ocupacional... Na verdade, essas oficinas são encontros, planejados é verdade, mas onde todos participam, desenvolvem projetos, constroem novas práticas. Encontro pedagógico que transforma os adolescentes do Morro e os alunos da Universidade, cada qual tendo papel na formação do outro, cada qual sendo autor de tudo que se produz num encontro que gera um novo jeito de viver e conviver, que gera liderança e por isso, possibilidade de transformação.

Para além da pesquisa conhecemos um pouco do que ocorre no Morro: vimos de perto o estrago que a violência pode fazer. Sabemos que ela é uma questão quase indevassável; nossas experiências cotidianas e, agora, a observação mais organizada de uma realidade como a do Morro das Pedras não deixam dúvida sobre isso. Por outro lado, sabemos que mais do que nunca é imprescindível abordá-la ou nossa própria condição humana estará irremediavelmente perdida: até quando será possível sobreviver a ela? Há quase três séculos sabemos ser possível recusar a lei do mais forte: "...o mais forte nunca é suficientemente forte para ser sempre senhor, senão transformando sua força em direito e a obediência em dever...A força é um poder físico; não imagino que moralidade possa resultar dos seus efeitos...Convenhamos, pois, que a força não faz o direito...".23 Muito do que aprendemos e fizemos desse tempo para cá é prova mais que suficiente de que o direito pode predominar sobre a força. Como se forja esse direito? Nossa hipótese é a de que ele só pode ser fruto da vontade coletiva dos cidadãos,24 isto é, do exercício da sua autonomia política, cujos pressupostos, estão dados sempre que sujeitos se encontram e se dispõem a agir cooperativamente.11 Quando vemos alunos, professores, adolescentes, cidadãos, profissionais de várias áreas, enfim, os mais diferentes atores sociais, sujeitos, se sentarem em círculo, conversarem e refletirem, dispostos a agir, então nós sabemos que começou o caminho das interações superando a violência.

No nosso entendimento, essa proposta se harmoniza perfeitamente com as características da adolescência, fase da vida intermediária entre a infância e a vida adulta (12 a 18 anos - Estatuto da Criança e do Adolescente e 10 a 19 anos - Organização Mundial da Saúde). Esse é um momento de crescimento marcado por transformações biológicas, psicológicas e sociológicas que lhe confere características próprias. Do ponto de vista psicológico, as transformações dessa fase relacionam-se às mudanças da puberdade e levam o adolescente a estabelecer novas relações consigo mesmo, com seus pais e com o mundo. Através de um processo gradativo ele sai da infância e prepara-se para a vida adulta e para sua inserção na sociedade.

Inicialmente, as mudanças corporais, o reaparecimento dos conflitos sexuais da infância e da súbita eclosão da libido e as novas imposições sociais são vividos com perplexidade pelo adolescente, que se vê despojado de seu lugar de criança e lançado num espaço desconhecido, para o qual não se encontra preparado, mas que precisa conquistar. A ambivalência faz com que oscile entre o desejo de dependência e o de independência, entre as atitudes do seu repertório infantil e outras nas quais busca afirmar-se como adulto. As expressões da agressividade e da sexualidade são mais intensas que suas possibilidades momentâneas de lidar com essas forças e com a realidade. Assim, apresenta comportamentos contraditórios, instáveis e defensivos. É uma fase de profundas reformulações. As perdas referentes à infância - o corpo e a identidade infantil, a bissexualidade e os pais da infância - deverão ser elaboradas nesta trajetória para a maturidade, processo esse que envolve sempre um certo grau de confusão, sofrimento e depressão. Simultaneamente, há um movimento de progressão e de construção de novas referências: um novo esquema corporal e uma nova auto-imagem, a busca de uma nova identidade pessoal e sexual, a busca da autonomia e do seu lugar no mundo. A emergência das operações formais, ou seja, do pensamento hipotético-dedutivo, na esfera da inteligência significa uma ampliação das possibilidades e capacidades cognitivas, permitindo ao adolescente desenvolver reflexões e formular teorias próprias, construindo sistemas que buscam verdades mais gerais. A adolescência reedita as etapas anteriores do desenvolvimento, reedita a sexualidade infantil e realiza a síntese das experiências vividas. O indivíduo se vê pela primeira vez sob uma perspectiva histórica.25

Passando a olhar-se nessa perspectiva, o adolescente adquire a capacidade de construir e avaliar o passado, reescrever sua história, compreender o presente e ir concebendo o futuro - na adolescência ele constrói os projetos com os quais pretende inserir-se na sociedade e é nesse momento que ele pode tornar-se mais solidário com as relações sociais, havendo um reconhecimento mútuo entre o sujeito e a sociedade. A conquista da possibilidade de socialização leva o adolescente a deixar o âmbito da família e ganhar a amplitude dos limites da humanidade. Como se vê, a adolescência é ganho de poder: corporal, sexual, intelectual - significa possibilidade. Essa possibilidade se efetiva, no entanto, única e exclusivamente, com processos de socialização adequados e de qualidade.

Para Piaget, existem duas morais na criança: uma da coação, em que a criança se comporta obedecendo a regras estipuladas e seguindo certas ordens às quais deve submeter-se; é a moral da heteronomia. A outra, é a da cooperação, fundada no princípio da solidariedade, em que a criança ganha a autonomia e responsabilidade.26 A autonomia se opõe à heteronomia, mas dela é originária, ao modo de um processo de evolução em que formas mais primitivas geram formas mais evoluídas - é no processo de cooperação entre iguais que se engendra o respeito mútuo. Ora, os adolescentes entrevistados não souberam encontrar essa saída, mas em nenhum momento deixaram dúvida quanto ao seu desejo e disposição de atuar caso ela existisse.

Recebido em 15 de dezembro de 2006

Versão final apresentada em 27 de dezembro de 2006

Aprovado em 15 de fevereiro de 2007

  • 1 OMS (Organização Mundial da Saúde). Relatório mundial sobre saúde e violência. Brasília, DF; 2002.
  • 2 Minayo MCS. Violência. Um problema para a saúde dos brasileiros. In: Ministério da Saúde. Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília, DF; 2005. p. 9-33.
  • 3 Assis SG, Deslandes SF, Santos NC. Violência na adolescência. Sementes e frutos de uma Sociedade desigual. In: Ministério da Saúde: Impacto da violência na saúde dos brasileiros. Brasília, DF; 2005. p. 79-105.
  • 4 Camacho LMY. As sutilezas das faces da violência. Educ Pesq 2001; 27: 123-40.
  • 5 Melo EM, Faria HP, Melo MAM, Chaves AB, Paronetto GM. Projeto Meninos do Rio. Mundo da vida, adolescência e riscos de saúde. Cad Saúde Pública. 2005; 21: 39-48.
  • 6 Melo EM. Ação comunicativa, democracia e saúde. Cienc Saúde Coletiva. 2005; (Supl 10): 167-78.
  • 7 Turato E. Tratado de metodologia clínico-qualitativa. Petrópolis: 2003.
  • 8 Zaluar A. Violência extra e intramuros. Rev Bras Ciênc Soc. 2001; 16: 145-64.
  • 9 Habermas J. Pensamento pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; 1990.
  • 10 Habermas J. Teoria de la ación comunicativa. Madrid: Taurus; 1987.
  • 11 Habermas J. Between facts and norms. Contributions to a discourse theory of law and democracy. Cambridge; 1996 .
  • 12 Habermas J. Teoria de la acción comunicativa. Complementos e estúdios pvrévios. Madrid: Cátedra; 1989.
  • 13 Habermas J. A inclusão do outro. Estudos de teoria política. 2. ed. São Paulo: Loyola; 2004.
  • 14 Melo EM. Apresentação no 11ş Congresso Mundial de Saúde Pública e VII Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva. Rio de Janeiro; 2006
  • 15 Habermas J. Legitimation crisis. Boston: Beacon Press; 1975.
  • 16 Habermas J. A nova intransparência. A crise do estado de bem-estar social e esgotamento das energias utópicas. Novos Estud CEBRAP. 1987; 18: 103-14.
  • 17 Habermas J. Técnica e ciência como ideologia. São Paulo; Abril Cultural; 1975.
  • 18 Melo EM, Chaves AB, Horta MAB, Mendes M, Braga GM. Prevenção da violência em adolescentes: a experiência do Projeto Frutos do Morro: II Congresso Brasileiro de Extensão. Belo Horizonte: 2003. Disponível em http://www.ufmg.br/extensão/anais[2004 jan 2]
  • 19 Porto MSG. Crenças, valores e representações sociais da violência. Sociologias. 2006; 8: 250-73.
  • 20 Adorno S. Exclusão socioeconômica e violência urbana. Sociologias. 2002; 8: 84-135.
  • 21 Machado EP, Noronha CV. A polícia dos pobres: violência policial em classes populares urbanas. Sociologias. 2002; 7: 188-221.
  • 22 Ribeiro PJ. A era da frustração: melancolia, contra-utopia e violência em Clube da Luta. Rev Antropol. 2002; 45: 221-41.
  • 23 Rousseau JJ. O contrato social. In: Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1999.
  • 24 Melo EM. Fundamentos para uma proposta democrática de saúde: A teoria da Ação comunicativa de Habermas [tese doutorado]. São Paulo: Faculdade de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; 1999.
  • 25 Fernández A. Os idiomas do aprendente. Porto Alegre: Artes Médicas; 2001.
  • 26 Piaget J. O juízo moral na criança. 8. ed. São Paulo: Summus Editorial; 1992.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Mar 2007

Histórico

  • Aceito
    15 Fev 2007
  • Revisado
    27 Dez 2006
  • Recebido
    15 Dez 2006
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