Acessibilidade / Reportar erro

Impacto do uso de drogas nefrotóxicas em pacientes pediátricos graves

RESUMO

Objetivo:

Avaliar a associação entre uso de drogas nefrotóxicas e lesão renal aguda em pacientes pediátricos graves.

Métodos:

Estudo de coorte retrospectivo envolvendo todas as crianças internadas na unidade de terapia intensiva de um hospital pediátrico durante o período de 1 ano. A lesão renal aguda foi definida pela classificação KDIGO. Foram incluídos pacientes com tempo de internação maior que 48 horas e idade entre 1 mês e 14 anos. Foram excluídos aqueles com nefropatia aguda ou crônica, uropatia, cardiopatia congênita ou adquirida, uso crônico de drogas nefrotóxicas, rabdomiólise e síndrome de lise tumoral. Os pacientes foram classificados quanto ao uso de drogas nefrotóxicas durante internação na unidade de terapia intensiva pediátrica.

Resultados:

A amostra foi composta por 226 crianças, sendo que 37,1% fizeram uso de drogas nefrotóxicas, 42,4% desenvolveram lesão renal aguda e 7,5% morreram. As medicações que, isoladamente, apresentaram associação com lesão renal aguda foram aciclovir (p < 0,001), vancomicina (p < 0,001), furosemida (p < 0,001) e ganciclovir (p = 0,008). O uso concomitante de duas ou mais drogas nefrotóxicas foi caracterizado como marcador independente de disfunção renal (p < 0,001). Após alta da unidade de terapia intensiva pediátrica, o acompanhamento da função renal na enfermaria foi inadequado em 19,8% dos casos.

Conclusão:

É necessário que o médico intensivista tenha conhecimento das principais drogas nefrotóxicas, de modo a prever, reduzir ou evitar danos a seus pacientes.

Descritores:
Lesão renal aguda; Toxicidade; Efeitos colaterais e reações adversas relacionados a medicamentos; Criança; Unidades de terapia intensiva pediátrica

Abstract

Objective:

To evaluate the association between the use of nephrotoxic drugs and acute kidney injury in critically ill pediatric patients.

Methods:

This was a retrospective cohort study involving all children admitted to the intensive care unit of a pediatric hospital during a 1-year period. Acute kidney injury was defined according to the KDIGO classification. Patients with a length of hospital stay longer than 48 hours and an age between 1 month and 14 years were included. Patients with acute or chronic nephropathy, uropathy, congenital or acquired heart disease, chronic use of nephrotoxic drugs, rhabdomyolysis and tumor lysis syndrome were excluded. Patients were classified according to the use of nephrotoxic drugs during their stay at the pediatric intensive care unit.

Results:

The sample consisted of 226 children, of whom 37.1% used nephrotoxic drugs, 42.4% developed acute kidney injury, and 7.5% died. The following drugs, when used alone, were associated with acute kidney injury: acyclovir (p < 0.001), vancomycin (p < 0.001), furosemide (p < 0.001) and ganciclovir (p = 0.008). The concomitant use of two or more nephrotoxic drugs was characterized as an independent marker of renal dysfunction (p < 0.001). After discharge from the pediatric intensive care unit, renal function monitoring in the ward was inadequate in 19.8% of cases.

Conclusion:

It is necessary for intensivist physicians to have knowledge of the main nephrotoxic drugs to predict, reduce or avoid damage to their patients.

Keywords:
Acute kidney injury; Toxicity; Drug-related side effects and adverse reactions; Child; Intensive care units, pediatric

INTRODUÇÃO

A lesão renal aguda (LRA) é uma complicação frequentemente encontrada em pacientes admitidos em unidade de terapia intensiva (UTI) pediátrica, caracterizada pela redução da taxa de filtração glomerular e/ou do débito urinário.(11 Kellum JA, Lameire N, Aspelin P, Barsoum RS, Burdmann EA, Goldstein SL, et al. Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Acute Kidney Injury Work Group. KDIGO Clinical Practice Guideline for Acute Kidney Injury. Kidney Int Suppl. 2012;2(1):1-138.,22 Cleto-Yamane TL, Gomes CL, Suassuna JH, Nogueira PK. Acute kidney injury epidemiology in pediatrics. J Bras Nefrol. 2019;41(2):275-83.) As principais complicações relacionadas à essa desordem são aumento da sobrecarga de fluídos corporais, redução da excreção de compostos nitrogenados e distúrbios hidroeletrolíticos e acidobásicos. Além disso, os pacientes apresentam maior tempo de hospitalização e maior risco de óbito.(33 Levi TM, Souza SP, Magalhães JG, Carvalho MS, Cunha AL, Dantas JG, et al. Comparação dos critérios RIFLE, AKIN e KDIGO quanto à capacidade de predição de mortalidade em pacientes graves. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(4):290-6.,44 Ponce D, Zorzenon CP, Santos NY, Teixeira UA, Balbi AL. Injúria renal aguda em unidade de terapia intensiva: estudo prospectivo sobre a incidência, fatores de risco e mortalidade. Rev Bras Ter Intensiva. 2011;23(3):321-6.)

A nefrotoxicidade medicamentosa está entre as principais causas de LRA em crianças graves.(55 Patzer L. Nephrotoxicity as a cause of acute kidney injury in children. Pediatr Nephrol. 2008;23(12):2159-73.,66 Slater MB, Gruneir A, Rochon PA, Howard AW, Koren G, Parshuram CS. Identifying high-risk medications associated with acute kidney injury in critically ill patients: a pharmacoepidemiologic evaluation. Paediatr Drugs. 2017;19(1):59-67.) Os mecanismos de lesão renal são múltiplos, e os mais prevalentes são os que provocam redução da taxa de filtração glomerular, necrose tubular aguda, nefrite intersticial aguda e obstrução tubular renal.(77 Pannu N, Nadim MK. An overview of drug-induced acute kidney injury. Crit Care Med. 2008;36(4 Suppl):S216-23.)

Estudos em UTI pediátricas mostram associação entre uso de drogas nefrotóxicas (DNT) e LRA. Gupta et al., em seu trabalho envolvendo 536 pacientes, identificaram que 76% das crianças que apresentaram LRA fizeram uso de DNT, sendo essa associação estatisticamente significante (p = 0,007).(88 Gupta S, Sengar GS, Meti PK, Lahoti A, Beniwal M, Kumawat M. Acute kidney injury in pediatric intensive care unit: incidence, risk factors, and outcome. Indian J Crit Care Med. 2016;20(9):526-9.) Resultados semelhantes foram encontrados nos estudos de Freire et al. e Bresolin et al., nos quais 62% e 39% dos pacientes que desenvolveram LRA fizeram uso de DNT, respectivamente, com resultados significantes.(99 Freire KM, Bresolin NL, Farah AC, Carvalho FL, Góes JE. Lesão renal aguda em crianças: incidência e fatores prognósticos em pacientes gravemente enfermos. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;22(2):166-74.,1010 Bresolin N, Bianchini AP, Haas CA. Pediatric acute kidney injury assessed by pRIFLE as a prognostic factor in the intensive care unit. Pediatr Nephrol. 2013;28(3):485-92.) Entre as principais medicações citadas sobre o tema, destacam-se vancomicina, furosemida, aminoglicosídeos, anti-inflamatórios não esteroides, anfotericina e antivirais.(55 Patzer L. Nephrotoxicity as a cause of acute kidney injury in children. Pediatr Nephrol. 2008;23(12):2159-73.,66 Slater MB, Gruneir A, Rochon PA, Howard AW, Koren G, Parshuram CS. Identifying high-risk medications associated with acute kidney injury in critically ill patients: a pharmacoepidemiologic evaluation. Paediatr Drugs. 2017;19(1):59-67.,1111 Soler YA, Nieves-Plaza M, Prieto M, García-de-Jesús R, Suárez-Rivera M. Pediatric Risk, Injury, Failure, Loss, End-Stage renal disease score identifies acute kidney injury and predicts mortality in critically ill children: a prospective study. Pediatr Crit Care Med. 2013;14(4):e189-95.,1212 Misurac JM, Knoderer CA, Leiser JD, Nailescu C, Wilson AC, Andreoli SP. Nonsteroidal anti-inflammatory drugs are an important cause of acute kidney injury in children. J Pediatr. 2013;162(6):1153-9.)

Apesar da importância do tema no âmbito da terapia intensiva, poucos estudos avaliaram a incidência e o impacto do uso concomitante de duas ou mais DNT em pacientes pediátricos graves. McKamy et al. observaram que pacientes que fizeram uso associado de vancomicina com furosemida apresentaram maior risco de LRA quando comparados àqueles que usaram a vancomicina de forma isolada (p < 0,001).(1313 McKamy S, Hernandez E, Jahng M, Moriwaki T, Deveikis A, Le J. Incidence and risk factors influencing the development of vancomycin nephrotoxicity in children. J Pediatr. 2011;158(3):422-6.) Outros estudos reforçam essa tese.(1414 Almeida JP, Valente IF, Lordelo MD. Association between pediatric Risk, Injury, Failure, Loss and End Stage Renal Disease score and mortality in a pediatric intensive care unit: a retrospective study. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(4):429-35.)

O objetivo deste trabalho é avaliar a associação entre uso de DNT e LRA em pacientes pediátricos graves.

METODOS

Trata-se de estudo de coorte retrospectivo realizado com todos os pacientes admitidos na UTI pediátrica, clínica e cirúrgica, de um hospital referência em pediatria no ano de 2017, com capacidade para 22 leitos. Os dados foram extraídos dos prontuários médicos eletrônicos da unidade. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Infantil Pequeno Príncipe (CAAE: 98429818.5.0000.0097), respeitando a resolução 466/12. O termo de consentimento livre e esclarecido foi dispensado no estudo.

Os critérios de inclusão foram tempo de internação na UTI pediátrica maior que 48 horas e apresentar idade entre 1 mês e 14 anos. Os critérios de exclusão foram histórico de doença renal crônica, doença urogenital ou transplante renal; presença de LRA na admissão da UTI pediátrica; ser portador de cardiopatia congênita ou adquirida; fazer uso crônico de medicações nefrotóxicas; creatinofosfoquinase ≥ 1.000U/L; pacientes com leucócitos ≥ 50.000/mm³ e/ou admitidos para quimioterapia de indução de neoplasia; nova admissão na UTI pediátrica durante mesma internação hospitalar; pacientes com ausência de creatinina sérica basal; e pacientes sem nível sérico de creatinina durante internação na UTI pediátrica.

Entende-se por DNT a medicação que apresenta potencial de provocar LRA como evento adverso(1515 Goldstein SL, Kirkendall E, Nguyen H, Schaffzin JK, Bucuvalas J, Bracke T, et al. Electronic health record identification of nephrotoxin exposure and associated acute kidney injury. Pediatrics. 2013;132(3):e757-67. (Tabela 1). A amostra foi rastreada quanto à utilização de DNT imediatamente antes e durante a internação na UTI pediátrica, por período máximo de 15 dias após a admissão. Uma vez identificada a utilização de DNT, a monitorização da função renal foi avaliada até alta hospitalar ou o óbito. O tempo de uso de DNT foi definido como o número de dias que a criança recebeu esse tipo de droga, sendo cumulativo para cada droga utilizada.

Tabela 1
Drogas nefrotóxicas

A LRA foi definida pela classificação da iniciativa Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO).(11 Kellum JA, Lameire N, Aspelin P, Barsoum RS, Burdmann EA, Goldstein SL, et al. Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Acute Kidney Injury Work Group. KDIGO Clinical Practice Guideline for Acute Kidney Injury. Kidney Int Suppl. 2012;2(1):1-138.) Pacientes com aumento da creatinina (Cr) < 0,3mg/dL ou < 1,5 vez em relação ao nível sérico basal foram classificados como sem LRA; aqueles com aumento da Cr ≥ 0,3mg/dL ou entre 1,5 - 1,9 vez em relação à Cr basal foram classificados como estágio 1; aqueles com aumento da Cr entre 2 - 2,9 vezes foram classificados como estágio 2; e aqueles com aumento da Cr ≥ 3 vezes foram classificados como estágio 3. Não foi utilizada, neste estudo, a contabilização do débito urinário para classificar o paciente como portador de LRA pelo fato da nefrotoxicidade medicamentosa ser caracterizada como não oligúrica.(1515 Goldstein SL, Kirkendall E, Nguyen H, Schaffzin JK, Bucuvalas J, Bracke T, et al. Electronic health record identification of nephrotoxin exposure and associated acute kidney injury. Pediatrics. 2013;132(3):e757-67.) A Cr basal foi o valor de Cr dentro da normalidade que o paciente teve antes da admissão na UTI pediátrica, compreendendo o intervalo dos últimos 3 meses, identificada no banco eletrônico de dados da unidade.

As variáveis de interesse incluíram idade, sexo, motivo da internação, tempo de internação, escore Pediatric Risk of Mortality 2 (PRISM 2), uso de droga vasoativa (DVA), presença de LRA, estágios de LRA, momento da internação em que desenvolveu LRA, uso de DNT de forma isolada ou em associação, tempo de uso de DNT, tempo entre uso de DNT e LRA, tempo entre LRA e normalização da função renal e óbito.

Para análise estatística, foram utilizados os programas Epi InfoTM Windows 7.2 e Microsoft® Office Excel 2017. Com relação às variáveis qualitativas, foram calculadas as frequências e proporções. No que concerne às variáveis quantitativas, avaliamos a média, o desvio-padrão, a mediana, os quartis e os valores máximo e mínimo. Foram realizadas análises bivariadas por meio do teste do qui-quadrado, do teste exato de Fisher e do coeficiente de correlação de Pearson (r), com cálculo da razão de chance (RC), do nível de significância de 5% (p ≤ 0,05) e do intervalo de confiança de 95% (IC95%). Regressão logística foi utilizada para afastar possíveis confundidores na associação entre uso de DNT e LRA.

RESULTADOS

A população de admitidos na UTI pediátrica durante o período do estudo foi de 710 pacientes, sendo excluídas 484 crianças e resultando em uma amostra de 226 pacientes. Entre os excluídos, 219 pacientes apresentaram tempo de internação menor que 48 horas; 77 tiveram LRA na admissão; 69 apresentavam idade maior que 14 anos; 46 = eram portadores de cardiopatia congênita ou adquirida; 21 pacientes apresentavam uropatia; 19 eram portadores de doença renal crônica; 19 não apresentavam todos os dados necessários para os cálculos das variáveis de interesse; nove faziam uso crônico de DNT; três eram transplantados renais; um paciente tinha rabdomiólise e um apresentava risco de síndrome de lise tumoral.

A amostra teve predominância do sexo masculino (54,4%), média de idade de 3,5 anos e Cr basal média de 0,24mg/dL. Choque hemodinâmico foi o motivo da internação de 10,2% (23) dos pacientes, e DVA foi utilizada em 17,6% (40) da amostra. O tempo médio de internação na UTI pediátrica foi de 10 dias, com expectativa média de óbito na admissão de 3% pelo PRISM 2, sendo que 7,5% (17) realmente evoluíram para esse desfecho (Tabelas 2 e 3).

Tabela 2
Perfil clínico da amostra estudada
Tabela 3
Comparação dos pacientes quanto ao uso de drogas nefrotóxicas

Dentre os indivíduos, 42% (96) desenvolveram LRA. Destes, 57,2% (55) apresentaram estágio 1; 28,2% (27), estágio 2 e 14,5% (14), estágio 3. As variáveis que apresentaram associação com disfunção renal foram admissão na UTI por choque hemodinâmico (p < 0,001), PRISM 2 ≥ 10% (p = 0,037), uso de DVA (p < 0,001) e uso de DNT de forma isolada ou associada (p < 0,001) (Tabela 4).

Tabela 4
Associação de variáveis clínico-demográficas com lesão renal aguda em pacientes pediátricos graves

Foi identificado que 37,1% (84) da amostra fez uso de uma ou mais DNT. Destes, 73,8% (62) fizeram uso de apenas uma DNT; 21,5% (18) fizeram uso associado de duas medicações e 4,7% (4) de três medicações nefrotóxicas , de modo que esses medicamentos foram prescritos 110 vezes entre os pacientes da amostra. Em ordem decrescente de frequência, 18,5% (42) dos pacientes fizeram uso de furosemida; 14,1% (32) de vancomicina; 7% (16) de aciclovir; 2,6% (6) de anti-inflamatório não esteroide; 2,2% (5) de ganciclovir; 2,2% (5) de gentamicina; e 1,7% (4) de amicacina (Tabela 5). A média de dias entre o uso de DNT e a LRA foi 3,6 dias. As medicações que apresentaram associação com LRA, de forma isolada, foram aciclovir (p < 0,001), vancomicina (p < 0,001), ganciclovir (p = 0,008) e furosemida (p < 0,001). Quando analisamos essas medicações com LRA, por meio de regressão logística ajustada para admissão por choque hemodinâmico, PRISM 2 ≥ 10% e uso de DVA, a única identificada como marcador independente de LRA foi o aciclovir (RC = 15,3; IC95% 4,1 - 57; p < 0,001).

Tabela 5
Análise do tempo de uso de medicações nefrotóxicas na amostra estudada

A associação mais utilizada foi furosemida + vancomicina (13), seguida por furosemida + aciclovir (4). Quando analisamos o uso de duas ou mais DNT com LRA por meio de regressão logística ajustada para admissão por choque hemodinâmico, PRISM 2 ≥ 10% e uso de DVA, percebemos que usar ≥ 2 DNT de forma concomitante foi caracterizado como marcador independente de LRA (p < 0,001) (Tabela 6) Além disso, choque hemodinâmico (RC = 3,6; IC95% 1,03 - 13; p = 0,04) e uso de DVA (RC = 12,8; IC95% 5,1 - 31,8; p < 0,001) também foram classificados como marcadores independentes de LRA.

Tabela 6
Regressão logística multivariada para ajuste de possíveis confundidores na associação entre uso concomitante de drogas nefrotóxicas e lesão renal aguda

A média do tempo de uso de DNT, em pacientes sem LRA, foi de 8 dias (± 4,9). Pacientes com LRA estágio 1 apresentaram média de 12 dias (± 12,2) e aqueles com LRA estágios 2 ou 3, 13,1 dias (± 8,8). A análise de correlação entre tempo de uso de DNT e estágio de LRA apresentou r = 0,21 (p = 0,83).

Em relação ao tempo de recuperação da função renal, pacientes que desenvolveram LRA estágio 1 apresentaram média de 3,1 dias (± 3,6) para normalizar a Cr; pacientes com estágio 2 recuperaram a função renal em 5,4 dias (± 4,5) e as crianças com estágio 3, 13,5 dias (± 6,6). Todos os pacientes que receberam alta da UTI apresentaram recuperação completa do quadro, mas 19,8% dos casos não realizaram acompanhamento da função renal de forma adequada na enfermaria.

Entre os pacientes que evoluíram a óbito, 5,9% (1) eram do grupo sem LRA; 11,8% (2) apresentavam LRA estágio 1; 29,4% (5), estágio 2; e 52,9% (9) foram classificados como estágio 3, sendo esse resultado estatisticamente significante (p < 0,001).

DISCUSSÃO

A nefrotoxicidade medicamentosa é uma das principais causas de LRA em UTI pediátrica.(66 Slater MB, Gruneir A, Rochon PA, Howard AW, Koren G, Parshuram CS. Identifying high-risk medications associated with acute kidney injury in critically ill patients: a pharmacoepidemiologic evaluation. Paediatr Drugs. 2017;19(1):59-67.) Entretanto, há dificuldade em avaliar seu real impacto na gênese do problema pela característica multifatorial da disfunção renal em crianças graves, principalmente naquelas com instabilidade hemodinâmica.(1616 Moffett BS, Goldstein SL. Acute kidney injury and increasing nephrotoxic-medication exposure in noncritically-ill children. Clin J Am Soc Nephrol. 2011;6(4):856-63.,1717 Deep A, Sagar H, Goonasekera C, Karthikeyan P, Brierley J, Douiri A. Evolution of acute kidney injury and its association with systemic hemodynamics in children with fluid-refractory septic shock. Crit Care Med. 2018;46(7):e677-83.) Com o propósito de reduzir o risco de viés na associação entre DNT e LRA, optou-se pela utilização de critérios de inclusão e exclusão mais rígidos na seleção da amostra, em relação aos estudos prévios sobre o tema.(1818 Bailey D, Phan V, Litalien C, Ducruet T, Mérouani A, Lacroix J, et al. Risk factors of acute renal failure in critically ill children: a prospective descriptive epidemiological study. Pediatr Crit Care Med. 2007;8(1):29-35.

19 Naeem B, Moorani KN, Anjum M, Imam U. Tumor lysis syndrome in pediatric acute lymphoblastic leukemia at tertiary care center. Pak J Med Sci. 2019;35(4):899-904.
-2020 Lim YS, Cho H, Lee ST, Lee Y. Acute kidney injury in pediatric patients with rhabdomyolysis. Korean J Pediatr. 2018;61(3):95-100.)

Após ajuste por meio de regressão logística, a única DNT identificada como marcador independente de LRA foi o aciclovir, sendo seu uso atribuído principalmente ao tratamento empírico de meningoencefalite por herpes vírus tipo 1. Seu mecanismo de lesão é caracterizado por formação de cristais e obstrução dos túbulos renais, sendo o risco de disfunção renal dose-dependente.(2121 Rao S, Abzug MJ, Carosone-Link P, Peterson T, Child J, Siparksy G, et al. Intravenous acyclovir and renal dysfunction in children: a matched case control study. J Pediatr. 2015;166(6):1462-8.e1-4.,2222 Ryan L, Heed A, Foster J, Valappil M, Schmid ML, Duncan CJ. Acute kidney injury (AKI) associated with intravenous aciclovir in adults: incidence and risk factors in clinical practice. Int J Infect Dis. 2018;74:97-9.) Slater et al. encontraram, como principais medicações associadas à LRA em pacientes críticos, o ganciclovir, a furosemida e a gentamicina (p < 0,05).(66 Slater MB, Gruneir A, Rochon PA, Howard AW, Koren G, Parshuram CS. Identifying high-risk medications associated with acute kidney injury in critically ill patients: a pharmacoepidemiologic evaluation. Paediatr Drugs. 2017;19(1):59-67.) Os diferentes perfis metodológicos de seleção de amostra podem justificar a divergência entre os resultados, sendo necessários novos estudos, preferencialmente prospectivos, para identificar as principais DNT associadas com disfunção renal em crianças graves.

Quando analisamos a utilização concomitante dessas medicações, percebemos que o risco de LRA é progressivamente maior à medida que aumentamos o número de DNT.(88 Gupta S, Sengar GS, Meti PK, Lahoti A, Beniwal M, Kumawat M. Acute kidney injury in pediatric intensive care unit: incidence, risk factors, and outcome. Indian J Crit Care Med. 2016;20(9):526-9.,1414 Almeida JP, Valente IF, Lordelo MD. Association between pediatric Risk, Injury, Failure, Loss and End Stage Renal Disease score and mortality in a pediatric intensive care unit: a retrospective study. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(4):429-35.,1616 Moffett BS, Goldstein SL. Acute kidney injury and increasing nephrotoxic-medication exposure in noncritically-ill children. Clin J Am Soc Nephrol. 2011;6(4):856-63.,2323 Totapally BR, Machado J, Lee H, Paredes A, Raszynski A. Acute kidney injury during vancomycin therapy in critically ill children. Pharmacotherapy. 2013;33(6):598-602.,2424 Bonazza S, Bresee LC, Kraft T, Ross BC, Dersch-Mills D. Frequency of and risk factors for acute kidney injury associated with vancomycin use in the pediatric intensive care unit. J Pediatr Pharmacol Ther. 2016;21(6):486-93.) McKamy et al., em estudo retrospectivo realizado em UTI pediátrica, identificaram aumento do risco de LRA de três para nove vezes, quando a vancomicina foi usada de forma concomitante com furosemida (p < 0,05).(1313 McKamy S, Hernandez E, Jahng M, Moriwaki T, Deveikis A, Le J. Incidence and risk factors influencing the development of vancomycin nephrotoxicity in children. J Pediatr. 2011;158(3):422-6.) Nosso estudo apresentou resultados semelhantes, sendo essa variável caracterizada como marcador independente de LRA (p < 0,001). Este achado é relevante no contexto da criança grave, já que a disfunção renal induzida por droga é potencialmente reversível.(22 Cleto-Yamane TL, Gomes CL, Suassuna JH, Nogueira PK. Acute kidney injury epidemiology in pediatrics. J Bras Nefrol. 2019;41(2):275-83.)

Além disso, estudos mostram que, após recuperação da LRA, o paciente apresenta aumento do risco de doença renal crônica, com desenvolvimento de proteinúria, hipertensão e redução da taxa de filtração glomerular.(2525 Menon S, Kirkendall ES, Nguyen H, Goldstein SL. Acute kidney injury associated with high nephrotoxic medication exposure leads to chronic kidney disease after 6 months. J Pediatr. 2014;165(3):522-7.e2.,2626 Zappitelli M, Moffett BS, Hyder A, Goldstein SL. Acute kidney injury in non-critically ill children treated with aminoglycoside antibiotics in a tertiary healthcare centre: a retrospective cohort study. Nephrol Dial Transplant. 2011;26(1):144-50.) Logo, trabalhar com prevenção é fundamental, no intuito de evitar complicações a curto e longo prazo, devendo sempre ser optado por utilizar medicações com menos efeitos adversos, quando possível. Especial atenção deve ser prestada às crianças graves portadoras de cardiopatia, doença oncológica, síndrome nefrótica e aquelas no período neonatal, sendo geralmente expostas à grande quantidade de DNT.(2727 Joyce EL, Kane-Gill SL, Fuhrman DY, Kellum JA. Drug-associated acute kidney injury: who's at risk? Pediatr Nephrol. 2017;32(1):59-69.,2828 Rhone ET, Carmody JB, Swanson JR, Charlton JR. Nephrotoxic medication exposure in very low birth weight infants. J Matern Fetal Neonatal Med. 2014;27(14):1485-90.)

Percebemos que um quinto das crianças em uso de DNT tiveram acompanhamento incorreto da função renal após alta para enfermaria. Outros trabalhos mostram que até 33% dos pacientes com LRA são manejados de forma inadequada.(11 Kellum JA, Lameire N, Aspelin P, Barsoum RS, Burdmann EA, Goldstein SL, et al. Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Acute Kidney Injury Work Group. KDIGO Clinical Practice Guideline for Acute Kidney Injury. Kidney Int Suppl. 2012;2(1):1-138.) Assim, destacamos que avaliar de maneira seriada a função renal para identificação precoce do problema, evitar uso concomitante de DNT, ajustar a dose das medicações de acordo com a taxa de filtração glomerular estimada e manter o estado de normovolemia são medidas imperativas no manejo desses pacientes.(77 Pannu N, Nadim MK. An overview of drug-induced acute kidney injury. Crit Care Med. 2008;36(4 Suppl):S216-23.)

Nosso trabalho apresentou algumas limitações intrínsecas aos estudos retrospectivos. Cerca de 2,6% da população do estudo foi excluída devido à ausência de dados necessários para cálculo das variáveis de interesse, o que pode impactar no resultado. O tamanho da amostra é considerado pequeno, quando comparado a de outros trabalhos da literatura, de modo que existe maior risco de erro aleatório tipo 2 na análise das classes medicamentosas que foram pouco utilizadas pelos pacientes, como os anti-inflamatórios não esteroides e os aminoglicosídeos.(1212 Misurac JM, Knoderer CA, Leiser JD, Nailescu C, Wilson AC, Andreoli SP. Nonsteroidal anti-inflammatory drugs are an important cause of acute kidney injury in children. J Pediatr. 2013;162(6):1153-9.,2626 Zappitelli M, Moffett BS, Hyder A, Goldstein SL. Acute kidney injury in non-critically ill children treated with aminoglycoside antibiotics in a tertiary healthcare centre: a retrospective cohort study. Nephrol Dial Transplant. 2011;26(1):144-50.) Embora o radiocontraste para exame de imagem seja considerado nefrotóxico, não foi possível identificar seus diferentes tipos e suas respectivas osmolaridades neste estudo, não sendo incluído no rol de DNT. O primeiro autor foi o responsável pela coleta dos dados, e a utilização de questionário estruturado com metodologia sistemática de armazenamento de dados minimizou o risco de viés. Por fim, optamos por analisar um pequeno grupo de medicações, que incluem as mais utilizadas na unidade onde foi realizada a pesquisa.

CONCLUSÃO

O aciclovir, isoladamente, foi a medicação mais associada com disfunção renal neste estudo. Além disso, uso concomitante de drogas nefrotóxicas foi caracterizado como marcador independente de lesão renal aguda.

Para melhor caracterização do impacto do uso de drogas nefrotóxicas em crianças graves, são necessários mais estudos sobre o tema, devendo ser levada em consideração a gênese multifatorial da lesão renal aguda.

É necessário que o intensivista pediátrico tenha conhecimento das principais drogas nefrotóxicas, de modo a prever, reduzir ou evitar danos aos seus pacientes.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Kellum JA, Lameire N, Aspelin P, Barsoum RS, Burdmann EA, Goldstein SL, et al. Kidney Disease: Improving Global Outcomes (KDIGO) Acute Kidney Injury Work Group. KDIGO Clinical Practice Guideline for Acute Kidney Injury. Kidney Int Suppl. 2012;2(1):1-138.
  • 2
    Cleto-Yamane TL, Gomes CL, Suassuna JH, Nogueira PK. Acute kidney injury epidemiology in pediatrics. J Bras Nefrol. 2019;41(2):275-83.
  • 3
    Levi TM, Souza SP, Magalhães JG, Carvalho MS, Cunha AL, Dantas JG, et al. Comparação dos critérios RIFLE, AKIN e KDIGO quanto à capacidade de predição de mortalidade em pacientes graves. Rev Bras Ter Intensiva. 2013;25(4):290-6.
  • 4
    Ponce D, Zorzenon CP, Santos NY, Teixeira UA, Balbi AL. Injúria renal aguda em unidade de terapia intensiva: estudo prospectivo sobre a incidência, fatores de risco e mortalidade. Rev Bras Ter Intensiva. 2011;23(3):321-6.
  • 5
    Patzer L. Nephrotoxicity as a cause of acute kidney injury in children. Pediatr Nephrol. 2008;23(12):2159-73.
  • 6
    Slater MB, Gruneir A, Rochon PA, Howard AW, Koren G, Parshuram CS. Identifying high-risk medications associated with acute kidney injury in critically ill patients: a pharmacoepidemiologic evaluation. Paediatr Drugs. 2017;19(1):59-67.
  • 7
    Pannu N, Nadim MK. An overview of drug-induced acute kidney injury. Crit Care Med. 2008;36(4 Suppl):S216-23.
  • 8
    Gupta S, Sengar GS, Meti PK, Lahoti A, Beniwal M, Kumawat M. Acute kidney injury in pediatric intensive care unit: incidence, risk factors, and outcome. Indian J Crit Care Med. 2016;20(9):526-9.
  • 9
    Freire KM, Bresolin NL, Farah AC, Carvalho FL, Góes JE. Lesão renal aguda em crianças: incidência e fatores prognósticos em pacientes gravemente enfermos. Rev Bras Ter Intensiva. 2010;22(2):166-74.
  • 10
    Bresolin N, Bianchini AP, Haas CA. Pediatric acute kidney injury assessed by pRIFLE as a prognostic factor in the intensive care unit. Pediatr Nephrol. 2013;28(3):485-92.
  • 11
    Soler YA, Nieves-Plaza M, Prieto M, García-de-Jesús R, Suárez-Rivera M. Pediatric Risk, Injury, Failure, Loss, End-Stage renal disease score identifies acute kidney injury and predicts mortality in critically ill children: a prospective study. Pediatr Crit Care Med. 2013;14(4):e189-95.
  • 12
    Misurac JM, Knoderer CA, Leiser JD, Nailescu C, Wilson AC, Andreoli SP. Nonsteroidal anti-inflammatory drugs are an important cause of acute kidney injury in children. J Pediatr. 2013;162(6):1153-9.
  • 13
    McKamy S, Hernandez E, Jahng M, Moriwaki T, Deveikis A, Le J. Incidence and risk factors influencing the development of vancomycin nephrotoxicity in children. J Pediatr. 2011;158(3):422-6.
  • 14
    Almeida JP, Valente IF, Lordelo MD. Association between pediatric Risk, Injury, Failure, Loss and End Stage Renal Disease score and mortality in a pediatric intensive care unit: a retrospective study. Rev Bras Ter Intensiva. 2018;30(4):429-35.
  • 15
    Goldstein SL, Kirkendall E, Nguyen H, Schaffzin JK, Bucuvalas J, Bracke T, et al. Electronic health record identification of nephrotoxin exposure and associated acute kidney injury. Pediatrics. 2013;132(3):e757-67.
  • 16
    Moffett BS, Goldstein SL. Acute kidney injury and increasing nephrotoxic-medication exposure in noncritically-ill children. Clin J Am Soc Nephrol. 2011;6(4):856-63.
  • 17
    Deep A, Sagar H, Goonasekera C, Karthikeyan P, Brierley J, Douiri A. Evolution of acute kidney injury and its association with systemic hemodynamics in children with fluid-refractory septic shock. Crit Care Med. 2018;46(7):e677-83.
  • 18
    Bailey D, Phan V, Litalien C, Ducruet T, Mérouani A, Lacroix J, et al. Risk factors of acute renal failure in critically ill children: a prospective descriptive epidemiological study. Pediatr Crit Care Med. 2007;8(1):29-35.
  • 19
    Naeem B, Moorani KN, Anjum M, Imam U. Tumor lysis syndrome in pediatric acute lymphoblastic leukemia at tertiary care center. Pak J Med Sci. 2019;35(4):899-904.
  • 20
    Lim YS, Cho H, Lee ST, Lee Y. Acute kidney injury in pediatric patients with rhabdomyolysis. Korean J Pediatr. 2018;61(3):95-100.
  • 21
    Rao S, Abzug MJ, Carosone-Link P, Peterson T, Child J, Siparksy G, et al. Intravenous acyclovir and renal dysfunction in children: a matched case control study. J Pediatr. 2015;166(6):1462-8.e1-4.
  • 22
    Ryan L, Heed A, Foster J, Valappil M, Schmid ML, Duncan CJ. Acute kidney injury (AKI) associated with intravenous aciclovir in adults: incidence and risk factors in clinical practice. Int J Infect Dis. 2018;74:97-9.
  • 23
    Totapally BR, Machado J, Lee H, Paredes A, Raszynski A. Acute kidney injury during vancomycin therapy in critically ill children. Pharmacotherapy. 2013;33(6):598-602.
  • 24
    Bonazza S, Bresee LC, Kraft T, Ross BC, Dersch-Mills D. Frequency of and risk factors for acute kidney injury associated with vancomycin use in the pediatric intensive care unit. J Pediatr Pharmacol Ther. 2016;21(6):486-93.
  • 25
    Menon S, Kirkendall ES, Nguyen H, Goldstein SL. Acute kidney injury associated with high nephrotoxic medication exposure leads to chronic kidney disease after 6 months. J Pediatr. 2014;165(3):522-7.e2.
  • 26
    Zappitelli M, Moffett BS, Hyder A, Goldstein SL. Acute kidney injury in non-critically ill children treated with aminoglycoside antibiotics in a tertiary healthcare centre: a retrospective cohort study. Nephrol Dial Transplant. 2011;26(1):144-50.
  • 27
    Joyce EL, Kane-Gill SL, Fuhrman DY, Kellum JA. Drug-associated acute kidney injury: who's at risk? Pediatr Nephrol. 2017;32(1):59-69.
  • 28
    Rhone ET, Carmody JB, Swanson JR, Charlton JR. Nephrotoxic medication exposure in very low birth weight infants. J Matern Fetal Neonatal Med. 2014;27(14):1485-90.

Editado por

Editor responsável: Arnaldo Prata Barbosa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2021
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    30 Jan 2020
  • Aceito
    13 Maio 2020
Associação de Medicina Intensiva Brasileira - AMIB Rua Arminda, 93 - Vila Olímpia, CEP 04545-100 - São Paulo - SP - Brasil, Tel.: (11) 5089-2642 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: rbti.artigos@amib.com.br