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Versão brasileira da Functional Status Scale pediátrica: tradução e adaptação transcultural

RESUMO

Objetivo:

Realizar a tradução e a adaptação transcultural da Functional Status Scale em crianças hospitalizadas para o português do Brasil.

Métodos:

Estudo metodológico de tradução e adaptação transcultural da Functional Status Scale, seguindo as etapas tradução, síntese das traduções, retradução, síntese das retraduções, análise por comitê de juízes e pré-teste com amostra da população-alvo. Durante a avaliação do comitê de juízes, foi realizada a análise semântica, de conteúdo e dos itens.

Resultados:

Foram obtidas as equivalências semântica, idiomática, cultural e conceitual entre as versões traduzidas e a original, resultando na versão brasileira da Functional Status Scale. Após a análise do comitê de juízes, não se constataram problemas quanto às equivalências culturais e conceituais, pois os itens foram pertinentes à cultura brasileira, e poucos termos foram modificados. Na etapa de pré-teste, a escala foi aplicada por dois avaliadores em uma amostra de 25 crianças. Observaram-se clareza e facilidade em responder os itens da escala. Obteve-se boa confiabilidade entre os observadores, com coeficiente de correlação intraclasse de 0,85 (0,59 - 0,95).

Conclusões:

A Functional Status Scale para uso pediátrico foi traduzida e adaptada culturalmente para o português com uso no Brasil. Os itens traduzidos foram pertinentes à cultura brasileira e avaliaram a dimensão proposta pelo instrumento original. Sugerem-se estudos de validação deste instrumento, a fim de viabilizar sua utilização nas diversas regiões do Brasil.

Descritores:
Semântica; Terapia intensiva; Traduções; Estudos de validação; Inquéritos e questionários; Criança; Unidades de terapia intensiva

ABSTRACT

Objective:

To translate and cross-culturally adapt the Functional Status Scale for hospitalized children into Brazilian Portuguese.

Methods:

A methodological study of the translation and cross-cultural adaptation of the Functional Status Scale was conducted, according to the stages of translation, synthesis of translations, back-translation, synthesis of back-translations, expert committee analysis and pre-test with a sample of the target population. During the evaluation by the committee of experts, semantic, content and item analyses were performed.

Results:

The semantic, idiomatic, cultural and conceptual equivalences between the translated version and the original version were obtained, resulting in the Brazilian version of the Functional Status Scale. After the analysis by the expert committee, there were no problems regarding the cultural or conceptual equivalences because the items were pertinent to the Brazilian culture and few terms were modified. In the pre-test stage, the scale was applied by two evaluators to a sample of 25 children. Clarity and ease in answering the scale items were observed. Good inter-observer reliability was obtained, with an intraclass correlation coefficient of 0.85 (0.59 - 0.95).

Conclusions:

The Functional Status Scale for pediatric use was translated and culturally adapted into Portuguese spoken in Brazil. The translated items were pertinent to the Brazilian culture and evaluated the dimensions proposed by the original instrument. Validation studies of this instrument are suggested to make it feasible for use in different regions of Brazil.

Keywords:
Semantics; Intensive therapy; Translations; Validation studies; Surveys and questionnaires; Child; Intensive care units

INTRODUÇÃO

Devido aos avanços nos cuidados intensivos nas unidades de terapia intensiva (UTI) pediátrica, houve redução da mortalidade,(11 Butt W. Outcome after pediatric intensive care unit discharge. J Pediatr (Rio J). 2012;88(1):1-3.) mas, em consequência da imobilidade, do maior tempo de ventilação mecânica, da utilização de fármacos como corticosteroides, bloqueadores neuromusculares e sedativos, houve aumento do risco de sequelas físicas e/ou neurocognitivas.(22 Dominguez TE. Are we exchanging morbidity for mortality in pediatric intensive care? Pediatr Crit Care Med. 2014;15(9):898-9.,33 Pollack MM, Holubkov R, Funai T, Clark A, Berger JT, Meert K, Newth CJ, Shanley T, Moler F, Carcillo J, Berg RA, Dalton H, Wessel DL, Harrison RE, Doctor A, Dean JM, Jenkins TL; Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Collaborative Pediatric Critical Care Research Network. Pediatric intensive care outcomes: development of new morbidities during pediatric critical care. Pediatr Crit Care Med. 2014;15(9):821-7.) A curto prazo, estas crianças podem desenvolver fraqueza muscular(44 Banwell BL, Mildner RJ, Hassall AC, Becker LE, Vajsar J, Shemie SD. Muscle weakness in critically ill children. Neurology. 2003;61(2):1779-82.,55 Field-Ridley A, Dharmar M, Steinhorn D, McDonald C, Marcin JP. ICU-acquired weakness is associated with differences in clinical outcomes in critically ill children. Pediatr Crit Care Med. 2016;17(1):53-7.) e delirium;(66 Traube C, Silver G, Gerber LM, Kaurs S, Mauer EA, Kerson A, et al. Delirium and mortality in critically ill children: epidemiology and outcomes of pediatric delirium. Crit Care Med. 2017;45(5):891-8.) em longo prazo, diminuição da funcionalidade e dificuldades nas Atividades de Vida Diária, no rendimento escolar e na interação social.(77 Herrup EA, Wieczorek B, Kudchadkar SR. Characteristics of postintensive care syndrome in survivors of pediatric critical illness: A systematic review. World J Crit Care Med. 2017;6(2):124-34.)

Essas morbidades podem ser subsequentes à doença de base ou associadas aos cuidados administrados nas UTI pediátricas.(88 Bennett TD. Functional status after pediatric critical care: is it the disease, the cure, or both? Pediatr Crit Care Med. 2015;16(4):377-8.) Por este motivo, é crescente o interesse nos desfechos funcionais desta população.(99 Knoester H, Bronner MB, Bos AP. Surviving pediatric intensive care: physical outcome after 3 months. Intensive Care Med. 2008;34(6):1076-82.,1010 Knoester H, Bronner MB, Bos AP, Grootenhuis MA. Quality of life in children three and nine months after discharge from a paediatric intensive care unit: a prospective cohort study. Health Qual Life Outcomes. 2008;6:21.) Instrumentos que avaliam a funcionalidade de crianças após a alta da UTI pediátrica vêm sendo utilizados(1111 Ong C, Lee JH, Leow MK, Puthucheary ZA. Functional outcomes and physical impairments in pediatric critical care survivors: a scoping review. Pediatr Crit Care Med. 2016;17(5):e247-59.

12 Mestrovic J, Polic B, Mestrovic M, Kardum G, Marusic E, Sustic A. Functional outcome of children treated in intensive care unit. J Pediatr (Rio J). 2008;84(3):232-6.
-1313 Choong K, Al-Harbi S, Siu K, Wong K, Cheng J, Baird B, Pogorzelski D, Timmons B, Gorter JW, Thabane L, Khetani M; Canadian Critical Care Trials Group. Functional recovery following critical illness in children: the "wee-cover" pilot study. Pediatr Crit Care Med. 2015;16(4):310-8.) e podem identificar alterações precocemente, o que favorece estratégias de reabilitação em relação às disfunções adquiridas durante a internação hospitalar.(1414 Cui LR, LaPorte M, Civitello M, Stanger M, Orringer M, Casey F 3rd, et al. Physical and occupational therapy utilization in a pediatric intensive care unit. J Crit Care. 2017;40:15-20.,1515 Choong K, Foster G, Fraser DD, Hutchison JS, Joffe AR, Jouvet PA, Menon K, Pullenayegum E, Ward RE; Canadian Critical Care Trials Group. Acute rehabilitation practices in critically ill children: a multicenter study. Pediatr Crit Care Med. 2014;15(6):e270-9.)

Existem alguns instrumentos que são utilizados para avaliação dos desfechos funcionais durante a internação hospitalar, mas grande parte ainda não está disponível no Brasil, pois não se encontra validada para a língua portuguesa. São exemplos: Pediatric Overall Performance Category, Pediatric Cerebral Performance Category (1616 Fiser DH, Long N, Roberson PK, Hefley G, Zolten K, Brodie-Fowler M. Relationship of pediatric overall performance category and pediatric cerebral performance category scores at pediatric intensive care unit discharge with outcome measures collected at hospital discharge and 1- and 6-month follow-up assessments. Crit Care Med. 2000;28(7):2616-20.) e Functional Status Scale (FSS).(1717 Pollack MM, Holubkov R, Glass P, Dean JM, Meert KL, Zimmerman J, Anand KJ, Carcillo J, Newth CJ, Harrison R, Willson DF, Nicholson C; Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Collaborative Pediatric Critical Care Research Network. Functional Status Scale?: new pediatric outcome measure. Pediatrics. 2009;124(1):e18-28.) Uma escala de funcionalidade já traduzida e utilizada no Brasil é a Pediatric Evaluation of Disability Inventory (PEDI), mas, por ser muito extensa e complexa, é pouco utilizada no contexto hospitalar.(1818 Mancini MC, Haley SM. Inventário de avaliação pediátrica de incapacidade (PEDI) - manual da versão brasileira adaptada. Belo Horizonte: UFMG; 2005.)

Dentre os instrumentos não validados para a língua portuguesa, a FSS para uso em crianças é uma escala desenvolvida com base conceitual em escalas de Atividades de Vida Diária e de comportamento adaptativo.(1717 Pollack MM, Holubkov R, Glass P, Dean JM, Meert KL, Zimmerman J, Anand KJ, Carcillo J, Newth CJ, Harrison R, Willson DF, Nicholson C; Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Collaborative Pediatric Critical Care Research Network. Functional Status Scale?: new pediatric outcome measure. Pediatrics. 2009;124(1):e18-28.) Ela tem sido amplamente utilizada,(1919 Berger JT, Holubkov R, Reeder R, Wessel DL, Meert K, Berg RA, Bell MJ, Tamburro R, Dean JM, Pollack MM; Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Collaborative Pediatric Critical Care Research Network. Morbidity and mortality prediction in pediatric heart surgery?: Physiological profiles and surgical complexity. J Thorac Cardiovasc Surg. 2017;154(2):620-628.e6.,2020 Cashen K, Reeder R, Dalton HJ, Berg RA, Shanley TP, Newth CJ, Pollack MM, Wessel D, Carcillo J, Harrison R, Dean JM, Jenkins T, Meert KL; Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Collaborative Pediatric Critical Care Research Network (CPCCRN). Functional status of neonatal and pediatric patients after extracorporeal membrane oxygenation. Pediatr Crit Care Med. 2017;18(6):561-70.) e seu objetivo é avaliar os desfechos funcionais de pacientes pediátricos hospitalizados. É apropriada para uma ampla faixa etária, de fácil realização, multidisciplinar, objetiva e com possibilidade de avaliar vários desfechos clínicos.(2121 Pollack MM, Holubkov R, Funai T, Clark A, Moler F, Shanley T, et al. Relationship between the functional status scale and the pediatric overall performance category and pediatric cerebral performance category scales. JAMA Pediatr. 2014;168(7):671-6.)

Por suas características, a FSS é uma ferramenta promissora para a avaliação da funcionalidade de crianças. No entanto, para utilizarmos um instrumento na prática clínica, é fundamental que ele se encontre traduzido e validado para a população brasileira. Os processos de tradução e adaptação transcultural não se resumem à simples tradução do original, pois as características sociais, culturais e linguísticas podem não ser bem compreendidas quando traduzidas literalmente para o português falado no Brasil.(2222 Coster WJ, Mancini MC. Recomendações para a tradução e adaptação transcultural de instrumentos para a pesquisa e a prática clínica em Terapia Ocupacional. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2015;26(1):50-7.

23 Reichenheim ME, Moraes CL. Operacionalização de adaptação transcultural de instrumentos de aferição usados em epidemiologia. Rev Saúde Pública. 2007;41(4):665-73.
-2424 Høegh MC, Høegh SM. Trans-adapting outcome measures in rehabilitation: Cross-cultural issues. Neuropsychol Rehabil. 2009;19(6):955-70.)

Dada a importância da melhor compreensão do desempenho funcional de crianças após a alta da UTI pediátrica e a necessidade de utilização de instrumentos adaptados para a nossa língua, este estudo teve por objetivo realizar a tradução e a adaptação transcultural da FSS em crianças hospitalizadas para o português do Brasil.

MÉTODOS

Trata-se de estudo metodológico de tradução e adaptação transcultural da FSS para a língua portuguesa em uso no Brasil. Consentimento prévio foi solicitado e obtido do autor original da FSS para desenvolvimento deste processo. O presente estudo foi realizado no Instituto de Medicina Integral Prof. Fernando Figueira (IMIP), em Recife (PE), e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa desta instituição, sob o número 2.062.654.

Descrição da Functional Status Scale

A FSS é uma escala de livre acesso (disponível em https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3191069/), composta por seis domínios (estado mental, funcionamento sensorial, comunicação, funcionamento motor, alimentação e estado respiratório). Cada domínio é pontuado em uma escala de 1 ponto (normal) a 5 pontos (disfunção muito severa). A pontuação total varia de 6 - 30 pontos, e pontuações menores indicam melhor funcionalidade. A pontuação global da FSS é categorizada em: 6 - 7, adequada; 8 - 9, disfunção leve; 10 - 15, disfunção moderada; 16 - 21, disfunção grave; e mais de 21 pontos, disfunção muito grave.(1717 Pollack MM, Holubkov R, Glass P, Dean JM, Meert KL, Zimmerman J, Anand KJ, Carcillo J, Newth CJ, Harrison R, Willson DF, Nicholson C; Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Collaborative Pediatric Critical Care Research Network. Functional Status Scale?: new pediatric outcome measure. Pediatrics. 2009;124(1):e18-28.) Totalizam-se, assim, 30 itens. Foi necessário analisar, além dos 30 itens de pontuação da escala, todos os termos e categorização utilizados, totalizando, assim, 41 itens e termos para análise.

Tradução e adaptação transcultural

O processo de tradução e adaptação transcultural da escala para o português do Brasil foi baseado nas etapas propostas por Reichenheime e Moraes,(2323 Reichenheim ME, Moraes CL. Operacionalização de adaptação transcultural de instrumentos de aferição usados em epidemiologia. Rev Saúde Pública. 2007;41(4):665-73.) conforme demonstrado no fluxograma representado na figura 1.

Figura 1
Fluxograma do procedimento de tradução e adaptação transcultural da Functional Status Scale.

FSS - Functional Status Scale.


A tradução foi realizada por dois tradutores bilíngues independentes, cujo idioma nativo era o português brasileiro, gerando duas versões traduzidas do instrumento da língua inglesa para o português do Brasil (V1 e V2). Após a realização das traduções, os autores comparam as duas versões quanto a discrepâncias, e foi elaborada uma versão única, síntese das traduções em português (VST).

Para a tradução reversa, a VST foi enviada para dois tradutores, cuja língua nativa era o inglês, gerando as versões retraduzidas (V3 e V4), que, depois de confrontadas pelos autores, resultaram na versão síntese das retraduções (VSRT).

Após esta etapa, as seis versões (V1, V2, VST, V4, V5 e VSRT) foram comparadas com a escala original por um comitê de juízes composto por dez profissionais de saúde, especialistas na área da pediatria e terapia intensiva. Estes avaliaram cada item quanto às equivalências conceitual (referente à formulação conceitual da avaliação), idiomática (diferentes expressões linguísticas), semântica (diferenças relacionadas ao conteúdo do teste) e experiencial (relacionada a diferenças culturais),(2525 Dortas Júnior SD, Lupi O, Dias GA, Guimarães MB, Valle SO. Adaptação transcultural e validação de questionários na área da saúde. Braz J Allergy Immunol. 2016;4(1):26-30.) originando a versão pré-final da escala.

Para a análise semântica-idiomática, os juízes assinalavam o item como inalterado se estivesse totalmente semelhante ao item da escala original; como pouco alterado se algumas palavras do item fossem termos sinôminos; e, por fim, muito alterado, se existissem palavras que mudassem o contexto do item e se não existissem termos sinôminos.

O comitê de juízes analisou ainda se o conteúdo dos itens eram pertinetes a cada domínio e se estavam adequados a cultura brasileira, e assinalou se estavam de acordo ou não com o item. Os juízes poderiam apresentar sugestões de alterações de termos ou palavras mais adequadas. Realizou-se uma análise para verificar o índice de concordância entre os especialistas, de acordo com a fórmula (C/C+D) x 100 proposta por Pasquali,(2626 Pasquali L. Princípios de elaboração de escalas psicológicas. Rev Psiquiatr Clín.1998;25(5):206-13) sendo C o número total de concordância e D o número total de discordância.

A última etapa do estudo teve por objetivo avaliar os problemas encontrados durante o uso do instrumento e oferecer soluções para facilitar seu entendimento. Para tanto, a versão pré-final foi utilizada em um pré-teste em crianças que preenchessem os seguintes critérios de elegibilidade: idade entre 1 mês de vida e 13 anos, egressas da UTI pediátrica com permanência mínima de 24 horas e que estivessem internadas na enfermaria pediátrica do IMIP. Foram excluídas as crianças dependentes de tecnologia previamente, readmitidas na UTI pediátrica em um período ≥ 24 horas após a alta, com incapacidade física prévia, doenças ou síndromes genéticas ou neurológicas que limitassem a funcionalidade. Após o pré-teste, adequações foram realizadas, obtendo-se a versão brasileira da FSS em português em uso no Brasil.

Para testar a normalidade dos dados, utilizou-se Kolmogorov-Smirnov. Os dados foram relatados em números absolutos e porcentagens, mediana, mínimo e máximo, e média ± desvio padrão. Calcularam-se valores do coeficiente de correlação intraclasse (CCI) para avaliar a confiabilidade entre os dois avaliadores. Considerou-se que CCI acima de 0,75 indica confiabilidade boa a excelente.(2727 Shrout PE, Fleiss JL. Intraclass correlations: uses in assessing rater reliability. Psychol Bull. 1979;86(2):420-8.)

RESULTADOS

Ao preparar a versão síntese das traduções, os autores consideraram uma combinação das traduções realizadas pelos dois tradutores. Quando as traduções fossem diferentes, foram utilizados os termos mais usuais. Para alguns itens, foram feitas alterações nas frases sugeridas pelos tradutores para melhorar a equivalência semântica entre os itens da escala original e a versão brasileira da FSS.

No comitê de juízes, ocorreu a avaliação da equivalência semântica entre os itens da escala original e as versões: síntese das traduções e das retraduções (Tabela 1). Verificou-se que oito itens foram considerados pouco alterados na versão síntese das traduções e dez itens na versão síntese das retraduções, em comparação com a versão original.

Tabela 1
Avaliação da equivalência semântica entre o original e as sínteses das versões traduzidas para o português e a síntese das retraduções da Functional Status Scale

Na análise de conteúdo (conceitual e de itens), o índice de concordância esteve > 80% na maioria dos itens. Apenas três itens obtiveram índice de concordância < 50% e foram substituídos, a saber: "sucção", "tratamento contínuo com pressão positiva nas vias aéreas" e o símbolo e o número "≥ 2". As modificações são demonstradas na tabela 2.

Tabela 2
Descrição dos itens alterados após avaliação do comitê de juízes da tradução da Functional Status Scale

A versão brasileira da FSS é apresentada na tabela 3 e foi utilizada na fase de pré-teste. Esta foi aplicada de forma impressa, em um cenário de observação intra-hospitalar. Na administração da FSS, os itens avaliados foram observacionais, mas alguns deles foram questionados à própria criança ou aos cuidadores, pois, no momento da avaliação, não pôde ser observado. Por exemplo, no domínio estado mental, no primeiro item, questionava-se se a criança apresentava sono/vígilia adequados; no domínio alimentação, era questionada a forma como a criança estava se alimentando para que os avaliadores pudessem pontuar na escala. Para a aplicação da escala, foi necessário cerca de 5 a 10 minutos para cada avaliação. Nenhum item foi modificado após realização do pré-teste, e a versão pré-final constitui a versão final da escala.

Tabela 3
Versão brasileira pediátrica da Functional Status Scale

Os resultados da etapa de pré-teste referiram-se à avaliação de dois pesquisadores que aplicaram a escala em 25 crianças. Houve confiabilidade muito boa entre os observadores para o escore total da FSS, com CCI (intervalo de confiança de 95% - IC95%) de 0,85 (0,59 - 0,95). As características demográficas da população avaliada estão demonstradas na tabela 4. A pontuação mínima atingida da FSS foi de 6 pontos e a máxima, 13 pontos, resultando na pontuação média de 7,48 ± 2,08, que indicou nível de funcionalidade classificado entre adequada à disfunção leve.

Tabela 4
Características da população submetida ao pré-teste com a Functional Status Scale pediátrica, versão brasileira (n = 25)

DISCUSSÃO

Este estudo descreveu o processo de tradução e adaptação transcultural da FSS pediátrica para o português em uso no Brasil, que resultou na versão brasileira desse instrumento. Trata-se do primeiro estudo a realizar a tradução oficial e a adapatação da FSS. Embora não exista um modelo padrão-ouro a ser seguido, quatro passos são essenciais e relatados em diretrizes e recomendações: tradução, tradução reversa, revisão por um comitê de juízes e pré-teste.(2222 Coster WJ, Mancini MC. Recomendações para a tradução e adaptação transcultural de instrumentos para a pesquisa e a prática clínica em Terapia Ocupacional. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2015;26(1):50-7.,2828 Beaton DE, Bombardier C, Guilemin F, Ferraz MB. Guidelines for the process of cross-cultural adaption of self-report measures. Spine (Phila Pa 1976). 2000;25(24):3186-91.) Todos os passos foram seguidos rigorosamente neste estudo, visando preservar as características sociais, culturais e linguísticas, além da utilização de termos regionais.(2323 Reichenheim ME, Moraes CL. Operacionalização de adaptação transcultural de instrumentos de aferição usados em epidemiologia. Rev Saúde Pública. 2007;41(4):665-73.,2929 Sousa VD, Rojjanasrirat W. Translation, adaptation and validation of instruments or scales for use in cross-cultural health care research: a clear and user-friendly guideline. J Eval Clin Pract. 2011;17(2):268-74.)

Após as etapas de tradução, retradução, avaliação do comitê de juízes e pré-teste, verificou-se que os processos de tradução e adaptação transcultural foram bem-sucedidos. As equivalências semântico-idiomáticas, conceituais e culturais obtidas entre a escala original e a versão em português brasileiro foram satisfatórias, e poucas modificações foram realizadas para que os itens fossem adequados à cultura médico-hospitalar do Brasil. Destaca-se a importância de realizar este processo, para que os termos utilizados no instrumento sejam coerentes com a realidade vivenciada pela população-alvo e para buscar preservar as propriedades psicométricas do instrumento original.(2222 Coster WJ, Mancini MC. Recomendações para a tradução e adaptação transcultural de instrumentos para a pesquisa e a prática clínica em Terapia Ocupacional. Rev Ter Ocup Univ São Paulo. 2015;26(1):50-7.,2424 Høegh MC, Høegh SM. Trans-adapting outcome measures in rehabilitation: Cross-cultural issues. Neuropsychol Rehabil. 2009;19(6):955-70.,2525 Dortas Júnior SD, Lupi O, Dias GA, Guimarães MB, Valle SO. Adaptação transcultural e validação de questionários na área da saúde. Braz J Allergy Immunol. 2016;4(1):26-30.)

Silva et al.(3030 Silva VZ, Araújo Neto JA, Cipriano Jr. G, Pinedo M, Needham DM, Zanni JM, et al. Versão brasileira da Escala de Estado Funcional em UTI: tradução e adaptação transcultural. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(1):34-8.) realizaram a adaptação transcultural para o português da Functional Status Score for the ICU (FSS-ICU), uma ferramenta para adultos em terapia intensiva, e, semelhante ao presente estudo, apontam a relevância da participação de tradutores diferentes e bilíngues para diminuir a possibilidade de viés referente aos domínios dos itens estudados. Diferente do estudo de Silva et al., nosso estudo contou com a participação de um comitê de juízes que utilizou índices de concordância para a adaptação de itens que não combinassem com a cultura brasileira. Este índice foi utilizado para que houvesse evidência numérica da concordância dos juízes e não apenas a subjetividade da fala dos especialistas.

Análogo ao estudo de Silva et al.,(3030 Silva VZ, Araújo Neto JA, Cipriano Jr. G, Pinedo M, Needham DM, Zanni JM, et al. Versão brasileira da Escala de Estado Funcional em UTI: tradução e adaptação transcultural. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(1):34-8.) durante a realização do pré-teste, os avaliadores não relataram problemas com incertezas ou dificuldade de interpretação que afetassem seu desempenho e, devido a este fato, não foram feitos ajustes à versão brasileira após a fase de pré-teste.

Neste estudo a confiabilidade interobservadores foi testada para o escore total da FSS, sendo observados valores muito próximos aos da validação da escala original.(1717 Pollack MM, Holubkov R, Glass P, Dean JM, Meert KL, Zimmerman J, Anand KJ, Carcillo J, Newth CJ, Harrison R, Willson DF, Nicholson C; Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development Collaborative Pediatric Critical Care Research Network. Functional Status Scale?: new pediatric outcome measure. Pediatrics. 2009;124(1):e18-28.) A confiabilidade interobservadores é uma propriedade fundamental, uma vez que a FSS é um instrumento observacional, ou seja, quanto menor a variação produzida em repetidas mensurações, maior sua confiabilidade.(2727 Shrout PE, Fleiss JL. Intraclass correlations: uses in assessing rater reliability. Psychol Bull. 1979;86(2):420-8.)

As FSS para crianças é uma ferramenta que pode ser utilizada na avaliação física no ambiente da UTI pediátrica, bem como nas enfermarias. Não depende de avaliações subjetiva e, assim como a FSS-ICU,(3030 Silva VZ, Araújo Neto JA, Cipriano Jr. G, Pinedo M, Needham DM, Zanni JM, et al. Versão brasileira da Escala de Estado Funcional em UTI: tradução e adaptação transcultural. Rev Bras Ter Intensiva. 2017;29(1):34-8.) não exige qualquer equipamento adicional, podendo também ser facilmente integrada aos cuidados clínicos usuais do fisioterapeuta, além de ser um instrumento de fácil compreensão e aplicabilidade clínica.

CONCLUSÕES

A versão brasileira da Functional Status Scale foi traduzida e adaptada transculturalmente. Esta deve ser uma ferramenta promissora e útil para clínicos e pesquisadores na avaliação do desfecho funcional de crianças hospitalizadas principalmente após a alta da unidade de terapia intensiva pediátrica. Estudos adicionais devem ser realizados para avaliar a reprodutibilidade e a validade da Functional Status Scale para avaliação das propriedades psicométricas deste instrumento, a fim de viabilizar sua utilização nas diversas regiões do Brasil.

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Editado por

Editor responsável: Jefferson Pedro Piva

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2018
  • Data do Fascículo
    Jul-Sept 2018

Histórico

  • Recebido
    05 Nov 2017
  • Aceito
    11 Mar 2018
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