Acessibilidade / Reportar erro

Para onde foram os pacientes cirúrgicos durante a pandemia de COVID-19?

RESUMO

Um comentário sobre cirurgia de emergência em meio à pandemia de COVID 19.

Palavras chave:
Infecções por Coronavirus; Pandemias; Cirurgia Geral

ABSTRACT

A Commentary on Emergency Surgery at the Epicenter of the COVID-19 Pandemic.

Keywords:
Coronavirus Infections; Pandemics; General Surgery

TEXTO PRINCIPAL

O coronavírus 2019 (COVID 19) gerou carga significativa sobre os sistemas de saúde em todo o mundo. Nos Estados Unidos, a cidade de Nova York rapidamente se tornou o epicentro de novas infecções por COVID 19, onde o vírus afetou desproporcionalmente comunidades em bairros de alta pobreza11 Garg S, Kim L, Whitaker M, O'Halloran A, Cummings C, Holstein R, et al. Hospitalization Rates and Characteristics of Patients Hospitalized with Laboratory-Confirmed Coronavirus Disease 2019 - COVID-NET, 14 States, March 1-30, 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020;69(15):458-464. doi:10.15585/mmwr.mm6915e3
https://doi.org/10.15585/mmwr.mm6915e3...
. Em resposta, os hospitais de nossa cidade se prepararam para uma enxurrada de pacientes, muitos dos quais exigiriam cuidados em unidade de terapia intensiva (UTI). Nossa instituição, que está localizada em um dos locais mais atingidos do país, foi rapidamente forçada a se estruturar e expandir as unidades de internação, assim como a realocar as equipes médicas para prestar cuidados especializados a mais de 6.000 pacientes com a doença. Nosso primeiro caso de COVID 19 foi em 11 de março de 2020. Conforme nossa atenção se voltou ao tratamento dos pacientes afetados pela pandemia, cirurgiões e residentes em cirurgia foram chamados para a linha de frente22 Nassar AH, Zern NK, McIntyre LK, Lynge D, Smith CA, Petersen RP, et al. Emergency Restructuring of a General Surgery Residency Program During the Coronavirus Disease 2019 Pandemic: The University of Washington Experience. JAMA Surg. 2020;155(7):624-7. doi:10.1001/jamasurg.2020.1219
https://doi.org/10.1001/jamasurg.2020.12...
.

Como as cirurgias eletivas cessaram completamente em 18 de março e nossas equipes cirúrgicas se consolidaram, continuamos preparados para atender emergências cirúrgicas e consultas na mesma capacidade de antes da pandemia. Para nossa surpresa, entretanto, o volume de emergências cirúrgicas e consultas pareceu cair vertiginosamente em face da pandemia de COVID 19. Na verdade, ambas as métricas foram inversamente proporcionais ao número de novas infecções tratadas em nosso hospital em qualquer momento durante a pandemia (Figura 1).

Figura 1
Número médio combinado de consultas e casos de cirurgia geral de emergência durante a pandemia de COVID 19. A região sombreada marca o tempo entre o primeiro caso confirmado e o número máximo de casos de COVID 19 em nossa instituição.

Sendo um centro acadêmico de alto volume, nossa instituição está posicionada de forma única como o provedor de cuidados primários no Bronx, Nova Iorque. Nossa população de pacientes é marcada por grande número de doenças cirúrgicas complicadas, decorrente da falta de acesso a cuidados adequados e, tem alto índice de comorbidades. A cada mês, ocorrem cerca de 160 casos de emergência em cirurgia geral e cerca de 640 consultas cirúrgicas em enfermarias ou no departamento de emergência. Em nosso hospital, o pico do número de pacientes positivos para COVID 19 diagnosticados em um único dia ocorreu em 14 de abril de 2020. Desde o início da pandemia, nosso volume cirúrgico de emergência diminuiu 52% em comparação ao ano anterior. A semana que correspondeu ao menor número de casos de urgência foi a mesma semana com o maior número de novas infecções e com a maior quantidade de pacientes infectados com COVID 19 na UTI.

O número total de casos de emergência atendidos em nossos três hospitais de ensino durante a pandemia foi de 209, em comparação a 401 durante o mesmo período de 2019 (p = 0,003). Isto inclui 65 apendicectomias, 49 colecistectomias, duas traqueostomias na sala de cirurgia, 48 laparotomias, nove reparos de hérnia encarcerada, 13 laparoscopias que não para apendicectomia ou colecistectomia, duas gastrostomias endoscópicas percutâneas (PEG) na sala de cirurgia, cinco procedimentos de drenagem e 16 operações que classificamos como “outras”.

O número de consultas cirúrgicas realizadas nas enfermarias e na Emergência seguiu padrão quase idêntico. Durante a pandemia, foram realizadas 927 consultas no serviço de cirurgia geral, em comparação a 1.615 no mesmo período do ano anterior, o que corresponde à redução de 43% (p = 0,01). Curiosamente, embora o volume total tenha diminuído, a proporção de consultas no pronto-socorro permaneceu a mesma, em cerca de 7,8% do total de consultas cirúrgicas realizadas. Nossos colegas em outras subespecialidades cirúrgicas e clínicas também têm relatado reduções nas taxas de pacientes com diagnósticos de urgência e emergência, como infartos do miocárdio e acidentes vasculares cerebrais33 Siegler JE, Heslin ME, Thau L, Smith A, Jovin TG. Falling stroke rates during COVID-19 pandemic at a Comprehensive Stroke Center: Cover title: Falling stroke rates during COVID-19. J Stroke Cerebrovasc Dis. 2020;29(8):104953. doi:10.1016/j.jstrokecerebrovasdis.2020.104953
https://doi.org/10.1016/j.jstrokecerebro...
,44 Kansagra AP, Goyal MS, Hamilton S, Albers GW. Collateral Effect of Covid-19 on Stroke Evaluation in the United States. N Engl J Med. 2020;383(4):400-401. doi:10.1056/NEJMc2014816
https://doi.org/10.1056/NEJMc2014816...
. Patriti et al., grupo cirúrgico da Itália, descreveu redução drástica semelhante na necessidade de cuidados cirúrgicos de emergência55 Patriti A, Eugeni E, Guerra F. What happened to surgical emergencies in the era of COVID-19 outbreak? Considerations of surgeons working in an Italian COVID-19 red zone. Updat Surg. 2020;72(2):309-10. doi:10.1007/s13304-020-00779-6.
https://doi.org/10.1007/s13304-020-00779...
.

A diminuição do volume cirúrgico é certamente desconcertante e traz à tona a questão sobre o que constituem casos cirúrgicos urgentes ou de emergência em circunstâncias normais. Antes da pandemia, nossa prática institucional era encaminhar enfermos com doenças cirúrgicas não complicadas, como apendicite e colecistite, para a sala de cirurgia para tratamento definitivo. Esses tipos de casos, que classificamos como urgentes, geralmente eram encaminhados para intervenção cirúrgica nas primeiras 24 horas da admissão. Isso simplesmente não foi possível no pico da pandemia, quando nosso hospital abrigava cerca de 1.148 pacientes com COVID 19, representando cerca de 78% do volume total de pacientes internados. O aumento de casos positivos que precisam de hospitalização exigiu aumento de mais de 200% nas capacidades da unidade de terapia intensiva (UTI) de nosso sistema hospitalar. Nossos cirurgiões assistentes e residentes foram encarregados de cuidar de muitos desses pacientes gravemente enfermos.

É possível que a redução do volume cirúrgico tenha sido afetada pelo aumento no tratamento não operatório de doenças cirúrgicas comuns que antes eram consideradas urgências. Embora o medo da disseminação nosocomial de COVID 19 fosse justificado, sem monitoramento ambulatorial adequado e acompanhamento em meio à pandemia, seria essa realmente a opção mais segura? Além disso, seria de se esperar aumento de casos de emergência e complicados de pacientes com falha do tratamento não operatório ou aqueles que tiveram atrasos no acesso aos cuidados. Mas onde estão esses casos? Na verdade, o número de consultas para essas duas condições comuns foi 72% menor durante a pandemia em comparação com o mesmo período em 2019.

Certamente, parte da diminuição do volume de consultas pode ser atribuída a múltiplos fatores concorrentes. Por um lado, os pacientes podem temer vir aos hospitais que têm alta carga de pacientes infectados com COVID 19. Eles podem encontrar barreiras para chegar ao hospital devido às recomendações de distanciamento social e sistemas de emergência lotados. Para aqueles que procuraram atendimento, os provedores de emergência sobrecarregados podem ter instituído limiar mais alto para atender a serviços cirúrgicos a fim de alocar recursos para pacientes com COVID 19, mais gravemente enfermos. Os riscos desconhecidos de transmissão da infecção durante a laparoscopia ou cirurgia aberta significavam que os cirurgiões eram mais propensos a considerarem tratamentos mais conservadores para os pacientes que teriam sido operados em condições normais. Finalmente, a morbidade e mortalidade por COVID 19 em si provavelmente atuaram como risco competitivo, obscurecendo a observação de emergências cirúrgicas ou modificando a probabilidade de ocorrerem.

Não foi possível comparar as taxas de mortalidade dos casos de urgência neste período de 2020 com o mesmo período dos anos anteriores. Isso é relevante para demonstrar a importância do diagnóstico precoce. Pacientes que não vão ao hospital após os primeiros sintomas podem ter mais complicações.

A pandemia de COVID 19 desafiou nosso já frágil sistema de saúde. Em nossa instituição, observamos redução de 52% nas emergências de cirurgia geral como resultado direto da pandemia. Outras especialidades documentaram reduções semelhantes em urgências ou emergências. O impacto do tratamento cirúrgico tardio e do aumento do manejo não operatório de doenças cirúrgicas ainda não foi avaliado. Enquanto vários estados americanos observam novos surtos de infecções por COVID 19, é importante que os departamentos cirúrgicos se preparem para a mudança nas necessidades cirúrgicas agudas da população que atendem. Isto pode permitir melhor alocação de recursos limitados.

REFERENCES

  • 1
    Garg S, Kim L, Whitaker M, O'Halloran A, Cummings C, Holstein R, et al. Hospitalization Rates and Characteristics of Patients Hospitalized with Laboratory-Confirmed Coronavirus Disease 2019 - COVID-NET, 14 States, March 1-30, 2020. MMWR Morb Mortal Wkly Rep. 2020;69(15):458-464. doi:10.15585/mmwr.mm6915e3
    » https://doi.org/10.15585/mmwr.mm6915e3
  • 2
    Nassar AH, Zern NK, McIntyre LK, Lynge D, Smith CA, Petersen RP, et al. Emergency Restructuring of a General Surgery Residency Program During the Coronavirus Disease 2019 Pandemic: The University of Washington Experience. JAMA Surg. 2020;155(7):624-7. doi:10.1001/jamasurg.2020.1219
    » https://doi.org/10.1001/jamasurg.2020.1219
  • 3
    Siegler JE, Heslin ME, Thau L, Smith A, Jovin TG. Falling stroke rates during COVID-19 pandemic at a Comprehensive Stroke Center: Cover title: Falling stroke rates during COVID-19. J Stroke Cerebrovasc Dis. 2020;29(8):104953. doi:10.1016/j.jstrokecerebrovasdis.2020.104953
    » https://doi.org/10.1016/j.jstrokecerebrovasdis.2020.104953
  • 4
    Kansagra AP, Goyal MS, Hamilton S, Albers GW. Collateral Effect of Covid-19 on Stroke Evaluation in the United States. N Engl J Med. 2020;383(4):400-401. doi:10.1056/NEJMc2014816
    » https://doi.org/10.1056/NEJMc2014816
  • 5
    Patriti A, Eugeni E, Guerra F. What happened to surgical emergencies in the era of COVID-19 outbreak? Considerations of surgeons working in an Italian COVID-19 red zone. Updat Surg. 2020;72(2):309-10. doi:10.1007/s13304-020-00779-6.
    » https://doi.org/10.1007/s13304-020-00779-6
  • Fonte de financiamento:

    nenhuma.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    17 Jul 2020
  • Aceito
    18 Set 2020
Colégio Brasileiro de Cirurgiões Rua Visconde de Silva, 52 - 3º andar, 22271- 090 Rio de Janeiro - RJ, Tel.: +55 21 2138-0659, Fax: (55 21) 2286-2595 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revista@cbc.org.br