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A fala holofrásica de uma adolescente: relato de caso

Resumos

Este relato de caso volta-se a questões teóricas e clínicas sobre a fala holofrásica de uma adolescente e tem, como objetivo, investigar a estrutura e o funcionamento dessa fala. Os dados de fala da adolescente mencionada foram extraídos do material clínico de sessões terapêuticas e sua análise foi subsidiada pelo modelo teórico de organização dos sintomas de linguagem. Em particular, observou-se o alçamento, pelo fonoaudiólogo, do metaprocedimento da sanção, em sua incidência sobre o reconhecimento ou negação do sujeito e do significante, aliado à escuta da fala da adolescente. Por essa via, a fala holofrásica teve sua especificidade enigmática interrogada a partir da singularidade do material clínico, seja na literalidade do dado, seja na escuta à massa amorfa e sonora que a constitui. Os resultados dão suporte à hipótese de que a fala holofrásica seria um sintoma de linguagem e se constituiria pela aglutinação de segmentos ininteligíveis apresentados como massa amorfa e sonora formada por uma miscigenação de significantes, escutados como distorcidos, soldados ou sem pausa entre si. Apesar de sua especificidade funcional e estrutural, a fala holofrásica tem seu funcionamento submetido à ordem própria da língua, em articulação ao acontecimento individual da fala do sujeito.

Estudo de Caso; Terapia da Linguagem; Fonoaudiologia


This case study is aimed at clinical and theoretical issues concerning the holophrastic speech of a teenager. Its objective is to investigate the structure and function of this holophrastic speech. The speech data of this teenager was extracted from therapy sessions, clinical material, and the theoretical model of multi-layering of the language symptoms has aided in its analysis. We observed, in particular, the raising, by the speech therapist, of the meta-procedure of sanction and its impact on the recognition or denial of the subject and the signifier, coupled to listening to the speech of the teenager. In this way the holophrastic speech had its enigmatic specificity questioned from the uniqueness of the clinical material, whether in the literalness of the data, or by listening to the amorphous and sonorous mass that constitutes it. The results support the hypothesis that the holophrastic speech would be a language symptom constituted by the agglutination of unintelligible segments that are presented as an amorphous and sonorous mass formed by a mixing of signifiers, heard as distorted, fused or without pause between them. Despite its functional and structural specificity, holophrastic speech has its functioning subjected to its own order of language articulated to the individual event of the subject's speech.

Case Study; Speech Therapy; Speech, Language, and Hearing Sciences


Introdução

O funcionamento de fala de uma adolescente com debilidade mental tornou-se tema deste estudo de caso quando a análise de sua fala mostrou o predomínio e a sobreposição do polo metonímico ao polo metafórico, embora os dois polos estivessem, à sua maneira, presentes na fala da mesma. Uma visita breve à literatura, permitiu-nos identificar e nomear tal peculiaridade, surgindo daí o termo holófrase. Outro aspecto observado nesse material diz respeito à fala da adolescente na lógica dialogal, uma vez que não era visível a concatenação entre os enunciados produzidos por ela e aqueles produzidos pela fonoaudióloga, o que denunciava a aparente ineficácia na organização do par dialógico. Uma terceira particularidade eram os fragmentos que apontavam repetições da fala do outro, como em: "cê tá rindo?"; "cê quer fazer xixi?"; "cê quer beber água?", "que música que é esse?". Fala do outro porque presentificados na terceira pessoa do singular, com entonação vocal marcada pelo caráter interrogativo, alternando uma velocidade de fala ora aumentada ora diminuída, mas sem distorção e acompanhada por risos, gritos, murmúrios e sussurros, em alternância aos balanceios de corpo e de mãos.

Vale ressaltar que as observações advindas da análise do material clínico da fala dessa criança contribuíram para a ida à literatura com a finalidade de aprofundar o entendimento do fenômeno conhecido como holófrase. Portanto, este artigo se ocupará do caso clínico de Melina, uma adolescente cuja estrutura e funcionamento de fala nos interroga.

Como ponto de partida, há que se recorrer a um modelo teórico que responda às seguintes questões:

  1. a fala holofrásica seria a repetição da fala de Melina, da fala do outro, ou ainda, da própria fala de Melina e do outro?

  2. como seria o funcionamento dos processos metafórico e metonímico na fala holofrásica de Melina?

  3. como a fala holofrásica faria emergir (ou não) sentidos na relação com o outro?

Para sua realização, o diálogo entre a clínica fonoaudiológica e a psicanálise lacaniana faz-se útil, porque esta última toma a holófrase como impedimento à função do significante em representar o sujeito para outro significante na cadeia de fala e de ser constituído na e pela linguagem11. Lacan J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. O seminário, Livro 11. Lição 18. Rio de Janeiro: Jorge Zahar;[1963-1964]: 218-30.. Nesse sentido, a holófrase, quando manifestada no campo clínico, seja por condensação, aglutinação ou não deslocamento do significante na cadeia de fala, nos abre a possibilidade de afirmar que caberia ao fonoaudiólogo, na clínica fonoaudiológica, o ato de sancionar a emergência de qualquer sintoma de linguagem com a finalidade de torná-lo algo característico e constitutivo à dimensão terapêutico-fonoaudiológica.

Para melhor apreensão do que seria sancionar, ou melhor, a sanção como ato terapêutico, leia-senoartigocitado 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25., no qual os autoresafirmam que a sanção ou o estabelecimento das leis entre os falantes, se marca quando valida ou reconhece "um ato de fala, uma produção discursiva ou uma formação de linguagem" 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25., p. 24. Essas leis vigoram nos eixos da fala, da língua, da escrita, da metáfora, da metonímia e do sujeito e são os pontos-chave para a consolidação da estrutura e do funcionamento do modelo teórico de multiestratificação dos sintomas de linguagem.

No que concerne aos eixos, um outro autor 33. Gouvêa Da Silva G. Por uma multiestratificação dos sintomas de linguagem. [Dissertação]. São Paulo (SP): PUC-SP; 2007. ressalta que o eixo da escrita é caracterizado pela primazia do traço e marcado pela alienação do falante aos fragmentos metonímicos do outro, no qual este tem seu corpo falado e olhado pelo outro. O eixo da língua se manifesta pela primazia do código linguístico num movimento que envolve o sujeito em alienar-se a fala do outro e separar-se dessa fala porque "opera na sobreposição entre a divisão do sujeito e o significante" 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25., p. 19/20). Já o eixo da fala seria determinado pela primazia do significante que envolve a dialogia entre quem fala e quem escuta e se caracterizaria pela ocorrência de ressignificações proporcionadas pela sanção de reconhecimento, seja nosujeito, seja no significante22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25.. A operação de sanção realizada pelo fonoaudiólogo sob tais eixos da linguagem "representaria uma perspectiva diferencial diante do sintoma de linguagem e de fala" 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25., p. 07, uma vez que a sanção colaboraria à reflexão ao que é prescrito e permitido pela língua e aquilo que se manifesta na linguagem.

Há três diferentes estratégias utilizadas para sancionar ou inscrever um sintoma de linguagem - tradução, transcrição e transliteração - as quais são responsáveis pela inclusão do sintoma na fala, pela função de autoria, pelo efeito de sujeito e pela posição enunciativa. A estratégia de tradução seria aquela em que o sintoma se dá pela passagem de um significante a outro com a permanência do mesmo significado, como, por exemplo, quando o falante diz "manana" para "banana". Esse tipo de estratégia procura estabilizar a relação entre conceito e referente.

O eixo que representaria a sanção tradutiva seria o da fala porque os deslocamentos na fala poderiam se presentificar quando o fonoaudiólogo a interrogasse e a estranhasse, visto que o sujeito com sintomas de linguagem poderia escutar a língua, mas não a fala do outro ou a sua própria fala e vice-versa, porque haveria uma relação peculiar entre língua e o funcionamento do acontecimento individual dessa fala 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25..

Na estratégia de transcrição faz-se referência à passagem de um sistema de linguagem a outro sistema de signo: verbal, acústico, visual e mnemônico. Para tanto, a sanção transcritiva apresenta uma diferença que opera no eixo da língua22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25.. O fonoaudiólogo, ao utilizar-se dessa estratégia, poderia operar de forma a não traduzir a fala do sujeito que diz "pato" por "prato". Assim, o fonoaudiólogo pode operar pela sanção de estranhamento do significante "pato", ao realizar interrogações que envolvam a colocação desse significante num outro texto diferenciado daquele que a criança manifesta por sua mensagem. Ou seja, caberia ao fonoaudiólogo sancionar ocupando o lugar da língua, para que o sujeito venha a se movimentar, combinando e substituindo os elementos linguísticos. E, a partir da relação do sujeito com a língua, o fonoaudiólogo poderia atuar num jogo dialético entre o que não faz sentido com o que poderia vir a fazer sentido, na cadeia da sintaxe do sujeito.

Por fim, a estratégia de transliteração se caracterizaria pela passagem de um sistema de escrita a outro sistema de escrita. Cabe ressaltar que a escrita mencionada aqui não seria aquela feita sobre o papel, mas a que se constituiria por identidade, rasura, apagamento e continuidade e que é anterior à emergência do significante porque se inscreveria no corpo 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25..

Outro autor 44. Freire RM . Se silêncio que silêncio: em cena a clínica fonoaudiológica. Rev Distúrbios da Comunicação. 2009;21(1):101-5. relata, em seu artigo, que a operação de transliteração se autoriza na prática fonoaudiológica quando esta transforma "gestos em significantes que permitirão a chegada (da) demanda (de presença ou ausência da fala) ao outro". Os efeitos desse tipo de sanção possibilitariam a transição entre dois sistemas; por exemplo, o sujeito insere-se no simbólico e passa a falar sobre determinado objeto sem que esse objeto se faça presente. Neste momento, há presentificação da função de autoria a partir dos efeitos dos eixos da linguagem.

O metaprocedimento de sanção, além das estratégias apresentadas acima, opera sobre os eixos da linguagem - língua, fala e escrita. O entendimento do funcionamento desses eixos auxiliaria a investigação do surgimento dos sintomas de linguagem porque indicaria onde estaria alojado o problema estrutural. Esse problema estrutural faria remissão tanto ao metaprocedimento da sanção entre um eixo e outro da linguagem, quanto ao reconhecimento entre o sujeito e a linguagem, à posição subjetiva desse sujeito na dialogia e a escuta para sua própria fala na língua 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25..

Nessa direção, o fonoaudiólogo poderia hipotetizar a presença do sintoma de linguagem em determinado eixo, seja ele o da escrita, o da língua ou, ainda, o da fala. Caso o problema estrutural se manifeste nos eixos da fala e da língua, o fonoaudiólogo atuaria clinicamente sobre o eixo da escrita, a fim de realizar deslocamentos nesses eixos 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25..

É fato que o surgimento do sintoma de linguagem é contado pela história clínica e simbólica trazida a partir do imaginário do sujeito sobre sua própria fala e, especialmente de como ele é falado pelos outros e de como se relaciona com a língua e com a linguagem.

Apresentação do caso

A presente pesquisa foi realizada dentro dos princípios éticos e seguiu a norma estabelecida para pesquisas que envolvem seres humanos, conforme postulado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da PUC/SP, o qual segue os princípios éticos determinados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa - CONEP.

Os pais de Melina assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido após terem sido informados sobre a procedência da pesquisa, bem como o resguardo do sigilo da identidade de sua filha.

A coleta de dados

As sessões fonoaudiológicasforam gravadas em áudio e em vídeo e transcritas de forma ortográfica regular, de acordo com as normas propostas pelo Banco de Dados Fala e Escrita.Nos episódios transcritos, Melina é identificada pela maiúscula inicial (M), a fonoaudióloga por (F) e, (F1) indica quem realizou as filmagens. Para esse relato serão utilizados alguns episódios de fala de Melina. A análise dos episódios de fala de Melina foi baseada no modelo teórico de organização dos sintomas de linguagem para observar deslocamentos ou cristalizações subjetivas em decorrência dos efeitos da fala da fonoaudióloga sobre a fala de Melina e vice-versa.

Os episódios de fala: análise e discussão

Durante a análise dos dados pretende-se dirigir o olhar aos episódios de fala da Melina para tecer considerações concernentes à estrutura e ao funcionamento, bem como ao acontecimento individual da fala de Melina.

Antes de expor os dados do material clínico, vale ressaltar que a literalidade dos episódios de fala de Melina permite observar e exemplificar ao leitor os movimentos nos eixos da linguagem dessa adolescente, concernentes aos estratos da língua, da fala e da escrita. Porém, tal literalidade, por si só, não seria suficiente para descrever as peculiaridades referentes à qualidade dessa fala, a qual traz consigo o aspecto de distorção, estranhamento, enigma, interrogação e inapreensão da fonoaudióloga durante a cena clínica. Seguindo esse raciocínio, ater-se cegamente à literalidade do dado clínico deixa o que há de amorfo na massa sonora desamparado, ora na ininterrogatividade, ora na inquestionabilidade e, restaria, então, a permanência numa posição de desconsideração se o dado amorfo fosse marcado apenas com a sigla (SI), como dado não analisável. Nesse sentido, o estatuto do segmento ininteligível não seria questionado e se afastaria qualquer possibilidade de língua, ao destituí-lo da interpretação do clínico no jogo da lógica dialogal.

Portanto, como transformar a opacidade que causa enigma no segmento ininteligível (SI) em algo que pudesse contribuir para uma possível leitura sobre a fala holofrásica na clínica fonoaudiológica?

A escuta à massa amorfa na cadeia de fala deu lugar para encadear, encandear, incandescer e encandeiara fala holofrásica "na luz de candeia pra nunca se apagar". Portanto, abaixo segue o primeiro episódio clínico que servirá como exemplificação da fala holofrásica de Melina nessa "luz (SI) de candeia pra nunca se apagar".

Resultados

Primeiro Episódio:

O fragmento foi retirado de uma sessão fonoaudiológica em que (F) e (M) realizam uma brincadeira que envolve o empilhamento de taças coloridas para a construção de um castelo, num movimento alternativo em que a fonoaudióloga empilha uma taça e Melina empilha outra. No decorrer dessa brincadeira, Melina inicia um diálogo:

(...)

(23) M:Aaavódenessi(velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido).

(24) F: A vó de quem?

(25) M:Avódenessi.(velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido).

(26) F: Não sei ... não tôentendendo ... O que você falou?

(27) M:Avódenessi?(velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido).

(28) F: Não entendi ... ó ... {vamos voltar pra cá. ((referindo-se à atividade lúdica)).

(...)

(342) M: Apãdenessi.(velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido).

(...)

(354) M:Abenessino banheiro(velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido).

As falas de Melina, destacadas em negrito, haviam sido transcritas, inicialmente, como segmentos ininteligíveis(SI). Algo soava incompatível quando a fonoaudióloga lia as transcrições da fala de Melina ou escutava a gravação de sua fala sem se pautar no que havia transcrito. Por esse motivo, as gravações da fala de Melina foram novamente escutadas. Dessa retomada observou-se que havia algo de Melina por trás do (SI), que passava a impressão de ser uma fala composta por ruído, mas que era passível de escuta, mesmo naqueles segmentos que poderiam transparecer o equívoco de não estarem submetidos à língua.

Num primeiro momento, os segmentos de fala que se compunham por ruído e que lhe davam caráter de dado não analisável estavam destinados ao apagamento na cadeia de fala. Já num segundo momento, a escuta voltada às gravações da fala de Melina possibilitou que esses segmentos fossem analisados e foi observado que eles soavam distorcidos e pareciam estar miscigenados, o que dava a impressão de que faltava pausa entre esses segmentos que constituíam a cadeia de fala. Portanto, tais segmentos ininteligíveis ressurgiram como lugar possível de problematização. Problematização que se enreda à pergunta de como o fonoaudiólogo deve se haver diante desses segmentos. Cabe ao não apreendido, no dito, manter-se sob o apagamento na lógica dialogal?

Vale esclarecer que o "não dito" na fala, por seu aspecto de ininteligibilidade e de distorção é um lugar em que o singular de um sujeito se manifesta na linguagem. Esse não dito, formado pela massa sonora amorfa que se manifesta no segmento ininteligível, poderia ser designado como fala holofrásica? E o sendo, poderia ser eleito como lugar para que o fonoaudiólogo sancione e reconheça a possibilidade da operação de transformação do traço em significante?

Assim, em meio a uma fala com aspecto de massa amorfa e/ou sonora há lugar para a incidência da sanção fonoaudiológica que move o sujeito na lógica dialogal - movimento dialético entre aquele que fala e aquele que escuta.

A fala holofrásica deveria ser tomada não como lugar de silenciamento e apagamento, mas como lugar no qual o fonoaudiólogo, na lógica dialogal, não passaria sua vez nem fecharia possibilidades em dar a vez ao sujeito falante. Para tanto, vale destacar que, em algumas cenas clínicas, quando os segmentos ininteligíveis não eram apreendidos pela fonoaudióloga, esta permanecia paralisada e deixava passar a sua vez na lógica dialogal porque ao negar os segmentos ininteligíveis da fala de Melina, negava tanto o sujeito quanto o significante.

Voltemos ao episódio 1:

(1) M: Avóetágritrando.((M. fala com baixa intensidade vocal)).

(2) F: Olha que legal que tá fican::do ((referindo-se as taças de brinquedo)).

(3) M: Quem gritou? Avóetagritrando? ((M. fala com baixa intensidade vocal)).

(4) F: Não entendi o que você falou.

(5) M: Avóetagritrantro ((fala com baixa intensidade vocal)).

(6) F:Ahn? Você gritou?

(7) M: ((ri)).

(8) F: O que Melina?

(9) M: Ela gostou?

(10) F: A vó?

(11) M: Ela gostou ... ela elagriTROU::

(12) F: Quem que gritou?

(13) M: A mãe.

(14) F: A mãe de quem?

(15) M: ((Ri)) pegou ((ri novamente)).

(16) F: Hein?

(17) M: Pegou de chinela ... pegou ... Cadê a vó? ((fala com velocidade aumentada e acelerada)).

(18) F: Não sei ... Cadê a vó?

(19) M: De sus no cachorro ((fala com velocidade aumentada e acelerada)).

(20) F: Oi?

(21) M: Por que deu um susto?

(22) F: Também não ... ó que bonito que tá ficando ... Você não vai me ajudar a montar?

(23) M:Aaavódenessi((velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido. Esse enunciado era designado por (S.I.) anteriormente)).

(24) F: A vó de quem?

(25) M:Avódenessi.((velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido.Esse enunciado era designado por (S.I.) anteriormente)).

(26) F: Não sei ... não tôentendendo ... O que você falou?

(27) M:Avódenessi?((velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido.Esse enunciado era designado por (S.I.) anteriormente. )).

(28) F: Não entendi ... ó ... {vamos voltar pra cá. ((referindo-se à atividade lúdica)).

No enunciado (4): F Não entendi o que você falou; e no enunciado (26) F Não sei ... não tô entendendo ... O que você falou?; a fonoaudióloga, ao negar os segmentos ininteligíveis da fala de Melina, fecha a possibilidade de que Melina devolva a mensagem de forma invertida, o que pode ser observado, respectivamente, em (5) M: Avóetagritrantro e (27) M: Avódenessi?. Esses dois enunciados sofrem o efeito refratário de: (1) M: Avóetagritrando e (3) M: Quem gritou?.Avóetae de(23) M: Aaavódenessi e (25) M: Avódenessi. A repetição que se dá a ver nesses enunciados, no decorrer da cadeia de fala, mostra o efeito refratário como impasse para possíveis deslocamentos na fala. Por essa razão, a hipótese clínica que aqui é retomada coloca em pauta o escutar e o reconhecer os segmentos ininteligíveis como um lugar possível para o manejo terapêutico fonoaudiológico, o qual deveria ser realizado através da dialética entre reconhecimento e negação do sujeito e do significante para dar suporte e sustentar deslocamentos na fala holofrásica.

Pode-se observar que em (1) M abre a lógica dialogal com um deslizamento metonímico, enquanto que F em (2) permanece centrada na brincadeira que ambas participam. Em (3) M retoma novamente o assunto anterior e F, em (4), entra com a sanção de negação, mas não há deslocamento de M em (5). Em (6) F entra com a sanção de interrogatividade e direciona a mensagem ao sujeito e M, em (7), devolve a mensagem pelo traço de riso. Em (8) F mantém a sanção de interrogatividade e M não define o sujeito que está por trás dessa mensagem. F em (10) traduz avóeta por avó e entra novamente com a sanção de interrogatividade sobre a fala de M, a qual se mantém sob o efeito de sua própria fala, sem embarcar na lógica dialogal. Para tanto, a fonoaudióloga tenta situar o sujeito novamente e M realiza a substituição de avó, que havia sido traduzida pela fonoaudióloga, pelo significante mãe. E, a partir disso, em (17), M abre a cadeia metonímica com o enunciado "cadê avó?" Em seguida, no enunciado (23), aparece uma fala holofrásica de M em que o avóeta e/ou avóe transforma-se em aaaavódenesse, com velocidade de fala aumentada e aspecto distorcido dificultando a inteligibilidade da cadeia. Em (23) e em (25) o avódenesse mantém-se sem deslocamento e em (27) esse avóedenesse se repete.

Retornando ao enunciado (33) do primeiro episódio:

(33) M: (S.I.) Asichissi.

(34) F: Ó ... Põe aqui nesse também, mas ao contrário.

(35) M:Ichi::::

(36) F:Ichi:: aí.

(37) M:Avóeavóe da Adria estourou a bexiga ((fala acelerada e com velocidade aumentada)).

(38) F: Quem que estourou a bexiga?

(39) M: Avóe do Adlan ((fala com velocidade aumentada)).

(40) F: A vó do Adrian estourou a bexiga ... É isso?

(41) M: O meu(S.I.) ((fala com intensidade vocal baixa e com aspecto distorcido.Esse enunciado era designado por (S.I.) anteriormente)) avóetaichego.((esse enunciado era designado por (S.I.) anteriormente)).

(42) F: Não não entendo Melina.

(...)

(342) M: Apãdenessi. ((velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido. Esse enunciado era designado por (S.I.) anteriormente)).

(...)

(354) M:Abenessino banheiro ((velocidade de fala aumentada acelerada e com aspecto distorcido. Esse enunciado era designado por (S.I.) anteriormente)).

Em (33), "Asichissi" manifesta-se quando F convoca M a retornar à brincadeira de montagem de taças. Ainda nesse enunciado (33), podem ser observados os movimentos de M nos eixos da língua, da fala e da escrita e o que antes trazia aspecto de distorção, estranhamento e enigma parece caminhar para a sua manifestação como significante, na cena clínica.

Desta forma, esse segmento em (33) desliza para "Ichiiii" na fala de M, no enunciado (35). Assim, em (37) M: "Avóe avó da Adria estourou a bexiga"; o "avóe" toma caráter de significante na cadeia e desliza metonimicamente, sem distorcer a fala ou economizar e/ou colar os significantes. Além disso, há ocorrência de reformulações em (39) e (40), a partir da sanção de interrogatividade que convoca a fala de M, para tanto, uma nova miscigenação entre os segmentos da fala de M no enunciado (41) avóetaaaaichego e, próximo ao final da sessão, nos enunciados (342) M: apãdenessie (354) M: Abenessino banheiromanifesta-se na fala de M. Observe-se que o deslocamento do segmento Avódenessi, no qual a fonoaudióloga interpreta parte dessa aglutinação e dá a ela a sanção de interrogatividade transformando-a no significante "avó" acaba por ser transformado por M. no significante mãe. Depois o segmento "avódenesse" aglutina-se novamente na fala de M e o "avóe" é substituído por "apãn", constituindo-se "apãndenessi" e, por fim, até manifestar "Tidenésso", como se fosse uma aglutinação entre sujeito e objeto que se assemelha ao significante tio Donelson. E por fim, M abre a cadeia metonímica e o "abenessi" se manifesta em concatenação com o significante "no banheiro", ou seja, "abenesssi no banheiro". Nesse sentido, observe-se que a fala holofrásica se repete nesses enunciados, mas há um deslocamento dentro da própria constituição estrutural que compõe essa fala de M a qual está sob o efeito do Outro. Desta forma, faz-se necessário buscar uma alavanca estrutural regida pela clínica que se explique pela via da própria linguagem, ou seja, utiliza-se da sanção de responsividade e interrogatividade à fala do outro, como também dar-se permissividade para essa fala, visto que os deslocamentos subjetivos se dão pelo exercício do ato de sancionar, ao invés do exercício motor, já que o sujeito só pode presentificar-se enquanto sujeito falante na relação com o Outro.

Sobre esse exercício de sancionar pela via da interrogatividade e da permissividade, o artigo55. Castellano GB, Freire RM . Diagnóstico fonoaudiológico na paralisia cerebral: o sujeito entre a fala e a escuta. Ágora (PPGTP/UFRJ). No prelo 2013. destaca a sanção sobre a fala do sujeito como ato necessário à prática fonoaudiológica. Prática que não deveria ser esquecida durante as entrevistas preliminares para, assim, escutar além das falas prontas que se sobressaem do discurso materno. Por exemplo, no caso clínico apresentado pelas autoras, o discurso materno ressalta a lesão cerebral e a necessidade de alimentar a filha, Sabrina, sujeito principal da pesquisa dessas autoras. As autoras destacam a demanda trazida pelo discurso materno, enfatizando que a fonoaudióloga vai além deste dito, ao endereçar aos pais uma demanda sobre a fala da Sabrina: desta forma, o pai parece silenciar e dá uma resposta que comparece como pergunta para si mesmo: "a falaa?" gerando efeito de estranhamento na fala do pai por se deparar diante da imprevisibilidade que a linguagem tem em si e do efeito de alienação à sanção da fala do Outro que transparece como sanção de tradução, ao dizer que a fala de sua filha se dá pela sucessão sonora "ééé", quando ela quer algo para se alimentar. Fala que parece identificada pelos pais no nível do traço e não do significante; nesse sentido, os pais parecem desconhecer a presença de um sujeito falante.

Tendo as primeiras observações em mãos, advindas das entrevistas preliminares, a fonoaudióloga age com a sanção de permissividade sobre a atividade dialógica de Sabrina para que ela venha a combinar e substituir os elementos na linguagem, independentemente dos impedimentos motores causados pela lesão cerebral.

Para esse tipo de atuação fonoaudiológica seria necessário o uso da dialética entre reconhecimento e negação do sujeito e do significante para dar suporte e sustentar os deslocamentos de fala, especialmente as falasholofrásicas.

Segundo Episódio:

O fragmento seguinte foi retirado de uma brincadeira que envolve a confecção de pulseiras e de colares. Próximo ao término da sessão, F avisa Me solicita que sedespeça, mas M permanece fazendo seu próprio texto dialógico e demora a responder ao pedido feito por F que seria despedir-se para ir embora. Segue o fragmento logo abaixo:

(1) F: Deixa eu ver que horas são.

(2) M:Quebou.

(3) F: Ih Melina ... Já passou da hora da gente ir embora.

(4) M:Queboua (S.I.) da tia

(5) F: Ó dá tchau ali pra tia Natália.

(6) M: ((Uma criança passa no corredor da clínica chorando)) Tá chorando ((ri)).

(7) F: É alguém tá chorando lá fora...Tchau tia Natália.

(8) M: Tchautia Rosi ... Tchau.

(9) F:Tchau linda ... Mas é para a tia Natália.

(10) F1: E pra mim Melina ... Você não vai falar tchau?

(11)M: Tá canta tá cantan tá cantando na tia.

(12) F1:Cê não vai falar tchau pra mim Melina?

(13) M: Tá cantando nos bus ... ((começa a cantar uma música com a mesma entonação prosódica da música "oi tuntun, bate coração, oi tun")) tãntãn.

(14) F: Fala tchau pra tia ali ó.

(15) M:Tãn.

(16) F1:Tô esperando você falar tchau pra mim Melina.

(17) F: Tchau Natália.

(18) M: Vai com Deuso ... Joga beso.

(19) F: Ó ((F joga beijos pra F1)).

(20) M: ((M manda beijo para F)) Tchau ... Vai com Deus Natália.

(21) F: ((ri)).

(22) F1: Fica com Deus também Melina ... Tchau.

(23) M:Quebouquebouquebou o copo.

Sobre os movimentos na fala de M e na da F, observa-se que em (1) há migração do "eu" e do "que", como restos metonímicos da fala de M para compor o significante "quebou" em (2), significante proveniente de outras cenas vivenciadas por M. Esse significante "quebou" desloca-se ao longo da lógica dialogal, ora se presentificando na própria fala de M, ora na fala de F. No entanto, quebou é um significante que permanece sob o efeito de repetição na fala de M ao fazer combinações com outros significantes, como por exemplo: "quebou o da igueja"; "quebou a pêssera"; "quebou o lósculo"; "ósculo quebou?"; entre outros, que se presentificam na fala de M conforme F se utiliza do ato de sancionar pela via da interrogatividade para convocar a fala de M. Destaca-se, ainda, que em (4) há deslizamento do significante na fala de M e, em (7), F retoma a cena dialógica na qual ocorre a despedida e o término da sessão. Assim, observa-se que a fala de F em (7) repercute em abertura metafórica na fala de M em (8). Em (9), F reconhece essa abertura metafórica e o sujeito, mas não a mensagem. Já em (10), há reconhecimento do sujeito e sanção de interrogatividade na linha da convocação para que M se despeça, a qual dá continuidade à cena dialógica anterior concernente ao canto musical. Nesse sentido, retoma o enunciado (11) "Tá canta tá cantan tá cantando na tia" erealiza uma sucessão sonora que abre a cadeia metonímica e a possibilidade de reformulação. Em (12), F insiste na cena anterior, ou seja, atém-se ao fato de que M se despeça de F e F1 e, desta forma, não escuta essa fala nem a entrada de uma nova cena dialógica, em que M começa a cantar uma música a partir do traço tãn. Em (14), F faz uso de dêitico e de designação ostensiva o que não gera efeito de deslocamento em (15). Já em (17), F reconhece a mensagem de F1. Tal reconhecimento abre a cadeia metonímica em (18) na qual se dá a rima entre Deuzo e bezo. Ainda no enunciado (18) há condensação de M ao significante do outro, o que denuncia sua alienação à fala do Outro e seu submetimento a essa fala quando a referência gira em torno da despedida. Em (19), F1 reconhece a fala do outro como equivalente à despedida e em (20) M joga beijo para F, e destina a mensagem para F1, ao dizer "vai", enquanto que F1 recebe a mensagem de forma invertida e anuncia o "fica", ou seja, demarca a posição de M que é de quem fica na clínica e a das fonoaudiólogas é de quem passa pela clínica e vão embora. Em (23) há deslizamento metonímico e retomada da cena dialógica que foi aberta por M em (2), ou seja, o "copo quebou".

Por um outro ângulo, no fragmento acima, vale destacar que M parecia resistir ao término da sessão e a hipótese seria de que essa resistência teria relação com o fato de suportar a separação do campo do outro. No início do atendimento fonoaudiológico, M costumava jogar os lápis de cores que estavam em cima da mesa no chão e direcionava-se para a porta como se quisesse ir embora, anunciando: "ir na mãe?", como forma de encerramento da sessão.

No decorrer das sessões, M foi constituindo laço com F, porém nem corte nem limite de finalização da sessão haviam se estabelecido, porque M se negava constantemente a ir embora ao final das sessões fonoaudiológicas. As mudanças em relação ao corte da sessão foram se estabelecendo quando F passou a operar com o ato de proibição da permanência de M após o término da sessão e com o ajuste do tempo de sessão de M.

Por essa razão, F a informava: "Melina, já deu a nossa hora por hoje, mas semana quem vem continuamos", assim, M começou a acatar a solicitação de F e a guardar os brinquedos utilizados na sessão. F demarcava o fim daquela, mas ressaltava sua continuidade na semana seguinte, desta forma, M levantava-se da cadeira, abria a porta da sala e ia embora. Informar M de que o término da sessão não seria definitivo, teve efeitos nos deslocamentos em relação à "escolha" de M diante do laço estabelecido com o outro. O contrato sobre o atendimento fonoaudiológico feito com M se fortificou com a transferência e sem uma regra de tempo cronológico para que esse laço viesse a ser estabelecido.

O estudo de outros autores66. Freire RM, Araujo MLB. Atendimento clínico em grupo na Fonoaudiologia: uma proposta alternativa. In: Nadia Pereira Gonçalves; Renata Fonseca Lima da Fonte (Org.). Aquisição de linguagem, seus distúrbios e especificidades: diferentes perspectivas. 1ed. Curitiba(PR): CRV; 2011, p97-112. nos incentiva a dar um tratamento especial à transferência durante o atendimento clínico, seja ele grupal ou individual, uma vez que seu acontecimento nesta clínica é impar dado queos efeitos da fala dofonoaudiólogo ocorremapenas a partir da transferência. Na clínica fonoaudiológica, essa transferência se dáentre o sujeito - ou sujeitos no caso do atendimento em grupo -e a fonoaudióloga, com uma diferença: no atendimento em grupo, esta transferência tende a contaminar a fala de todos os integrantes do grupo.No entanto, em ambos os atendimentos - individual ou em grupo - a transferência é tecida entre fonoaudiólogo e sujeito(s) e tocada pelos efeitos da fala e da escuta, na lógica dialogal, o que possibilita a circulação, a combinação e a substituição de significantes neste espaço e lugar clínico.

Outro aspecto importante foi o trabalho fonoaudiológico de contenção espacial e corporal de M que não eram favoráveis à relação dialogal, pois M chegava à sessão e andava de um lado ao outro da sala, subia em cima da mesa, levantava suas pernas para o alto, as cruzava no alto e começa a rir, gritar e tossir. Em outros momentos, queria permanecer deitada no colchonete, outras vezes, o seu "outro" era uma bexiga vazia que M jogava para o alto, sem abrir espaço para que F incidisse na fala ou na relação que M estabelecia com a tal bexiga vazia.

Para tanto, os cortes e as delimitações foram sendo demarcadas na sessão. Depois de três a quatro sessões, M entrou na sala de terapia e seguiu em direção ao colchonete que foi retirado e colocado no canto da parede por F que a alertou: "Não Melina, hoje você ficará sentada nesta cadeira e do meu lado". Solicitação esta que M acatou porque quando ambas entravam na sala, Mseguia diretamente para a cadeira, sentava-se nesta e dava-se início a sua sessão, ambas dialogavam e, com o tempo a bexiga vazia teve possibilidades de ser substituída por outros objetos e o corte na sessão pôde ser estabelecido.

Após um período em que a fonoaudióloga passou a avisá-la sobre o término da sessão, e que esse término já havia se estabelecido, ocorre uma situação na qual Joana, mãe de M, começa a conversar com a terapeuta, e tenta acompanhar esta e a filha até a sala de terapia, porém, é detida no corredor pela fala de M: "tchau, tchau Melina". A mãe, negando a fala de Melina, insiste em acompanhar as duas, mas M pega no braço da terapeuta e diz "tchau" novamente à mãe e, em seguida, caminha em direção à sala de terapia. Joana retorna à sala de espera e permanece lá até a volta de M ao final da sessão fonoaudiológica.

Quando ambas retornam à sala de espera, a mãe pergunta à fonoaudióloga se M ficou bem, porque "andava malcriada e arteira". Então a fonoaudióloga solicita à mãe que pergunte diretamente a filha e pontua que M, mesmo fazendo uso da fala do outro para falar de si, ao dizer "tchau tchau Melina" fazia uma escolha, e que seria interessante para M estabelecer outras relações além da mãe, visto que "um significante ganha sentido pela presença de uma ausência" 44. Freire RM . Se silêncio que silêncio: em cena a clínica fonoaudiológica. Rev Distúrbios da Comunicação. 2009;21(1):101-5.. A mãe solta um leve sorriso e diz ter entendido a fala da fonoaudióloga, pontuando novamente que M andava muito malcriada, querendo "criar asas".

Terceiro Episódio:

Durante uma brincadeira que envolve a confecção de pulseiras, outra inquietação sobre a fala de M incide sobre a fonoaudióloga: por que a flutuação em sua fala, produz o efeito de sem sentido para o outro, para aquele que recebe a mensagem?

Para tanto, vale salientar que M, no início de seu tratamento fonoaudiológico, mudava repentinamente de assunto e a cada sanção de interrogatividade costumava trazer uma nova cadeia para preencher a lógica dialogal, porém uma cadeia que denunciava a repetição da fala do outro, amalgamada na própria cadeia de fala, por enunciados tais como: "cêqué fazer xixi?, cêqué ir banheiro?". Por outro lado, ao longo do atendimento de M, observa-se que esta, à sua maneira, começa a sustentar a lógica dialogal, na qual a literalidade transcritiva destaca-se pela fluidez que comparece no diálogo quando tenta narrar um fato à fonoaudióloga. Ou seja, há uma concatenação na narrativa de Melina que dá alguma possibilidade à fonoaudióloga de observar que há protagonistas nessa história: primos - Felipe e Renan - que há uma cena nessa história: caíram do muro - teve consequências: foram chamados a atenção por um tio, provavelmente Donelson - e que alguém pode ter apanhado na bunda, talvez os meninos ou ela, ou o tio, entre outras possibilidades. O interessante seria destacar a forma como ela transita na linguagem para não ficar tão à mercê da lógica dialogal e de como, à sua maneira, tenta fazer texto nessa lógica. Lógica esta que denuncia um movimento na linguagem, no qual os enunciados não ficam totalmente à deriva.

(....)

(23) F: Não, eu tô te fazendo uma pergunta. Quem que foi que bateu na bunda do tio?

(24) M: Otiiiriiiriiibagunçanocalto?((velocidade de fala aumentada e rápida, qualidade da voz fica distorcida)).

(25) F: O que que aconteceu?

(26) M: Otiriiiribagunçanocalto. ((velocidade de fala diminuida e rápida, qualidade da voz distorcida)).

(27) F: Fala mais alto ... Não tô entendendo.

(28) M: O ti fez bagunça no cato. ((continua com voz baixa))

(29) F: Quem que fez bagunça no quarto?

(30) M:O tio.

(31) F: O tio ... Esse teu tio que fez bagunça no quarto ... E aí ele... E aí bateram na bunda ... ou não?

(32) M:Oi aí bagunça ivriviirii sai sai((ri e fala simultaneamente)). ((fala com entonação grave e com mudança prosódica)).

(33) F: Eu não sei ... Cê que vai ter que contar.

(34) M: Sai daí Felipe. ((fala com entonação grave e com mudança prosódica)).

(35) F: Ah tá ... Então o tio falou isso pro Felipe?

(36) M: Sai daí ((fala com entonação grave e com mudança prosódica)).

(37) F: Falou assim ... desse jeito que cê tá falando?

(38) M:o tidenésso bagunça no calto.

Nesta análise, pretende-se priorizar o fato de que os segmentos ininteligíveis e aglutinados a outros significantes vão sofrendo o efeito da lógica dialogal. E o que antes era uma miscigenação de traço e/ou economia de significante passa a se deslocar na fala. Desta forma, a fala holofrásica sofre deslocamentos que a colocam em familiaridade com a língua. M, em (24), traz um enunciado cristalizado, o qual se compõe pela sucessão sonora e distorcida numa mistura de traço e significante na forma interrogativa. Em (25), F sanciona na linha da interrogatividade e a fala de M em (26) retroage pela afirmação. Em (28), observa-se que os segmentos não inteligíveis que formam o enunciado de fala e que tem aspecto distorcido sofrem deslocamentos, a partir da convocação advinda da fala da F em (27). Ainda em (28) parece que M dá pausa entre os significantes miscigenados reformulando-os e abrindo-os metonimicamente na cadeia de fala, o que convoca a escuta da fonoaudióloga. E, em (29) F utiliza-se tanto da sanção de interrogatividade na fala de M, quanto da sanção de tradução de "calto", "cato" por "quarto", assim, o que pareciam ser segmentos miscigenados e distorcidos na composição da fala holofrásica, ganham lugar de significante na cadeia de fala de M em (30).

Quarto Episódio:

O fragmento foi retirado de uma sessão fonoaudiológica na qual a fonoaudióloga pergunta sobre a tesoura para cortar o cordão da pulseira:

(1) F: Cadê a tesoura Melina?

(2) M: Ela deixou a tesoura.

(3) F: Ela quem?

(4) M: Deixou lá (S.I.)

(5) F: Deixou aonde? ... Cadê a tesoura? ... Uhn?

(6) M: Perdi ... A Melina matou de ri.

(7) F: A Melina fez o quê? ... Se matou de ri.

(8) M:Maoudeiiinocalto. ((fala distorcida e ininteligível))

(9) F: No quê? ... De quê?

(10) M: Matou de ri no calto. ((fala distorcida e ininteligível, mas com pausa entre os significantes)).

Em (1), F abre a cadeia metonímica pela sanção de interrogatividade convocando o sujeito e em (2), M desliza metonimicamente a partir do efeito desse tipo de sanção, e introduz o pronome "ela", no lugar de um sujeito. Em (3) F realiza novamente a interrogatividade para que M venha situar o sujeito da mensagem. Em (4) M observa-se no lugar de sujeito e de objeto aglutinados. Em (5) F convoca o lugar de sujeito e, em seguida interroga o lugar de objeto. Em (6), M se inclui como sujeito, mas logo em seguida esse sujeito escapa e fica à deriva. Em (7), F permanece na sanção da interrogatividade, mas dá reconhecimento à mensagem, para aí convocar o lugar do sujeito falante. Para tanto, em (8),Maoudeiiinocalto - a fala de M manifesta-se com velocidade aumentada, sem pausa, com ruído, o que poderia ser sugestivo de manifestação do bloco de sucessão de sons. Já em (9), F utiliza-se da sanção da interrogatividade, como um pedido para que o sujeito reformule a sua mensagem. Em (10), M já diferencia o enunciado (8) e abre a cadeia metonímica, com intervalo entre os significantes. Seguindo esse raciocínio, a partir do enunciado (10), ocorre na fala de M, o movimento de mudança ou reformulação na própria fala, que podemos observar em:

(8) M:Maoudeiiinocalto.

(10) M: Matou de ri no calto.

(12) M: Car de ri no calto.

(14) M: Quem fez bagunça no cato?

(16) M: Alguém fez bagunça no quarto.

Observe-se que há mudanças no acontecimento individual da fala de Melina. Acontecimento este capturado pela língua num movimento dialético de divisão entre escuta e fala. M é capturada pela língua e não sabe que sabe a língua nem tem conhecimento prévio sobre essa língua, visto que, no movimento da cadeia de fala de M, pode ser observado seu submetimento ao funcionamento da própria língua.

Vale destacar a afirmação de que "a substituição e a diferença não deixa de revelar uma posição aberta, na qual o esperado e o inesperado podem colidir e nessa colisão deslocar o sujeito para uma posição de escuta" 77. De Lemos CTG. Sobre fragmentos e holófrases. Anais 3º Colóquio do LEPSI IP/FE-USP, 2002.. M debruça-se sobre sua própria fala, sobre a fala da fonoaudióloga e sobre a fala do outro para manifestar-se como sujeito, submetido a um efeito estrutural, seja pela mudança do traço ao significante, seja pelas flutuações, pelos erros, reformulações e autocorreções que acontecem em sua fala singular.

Vale ressaltar que o efeito estrutural destacado, logo acima, na cadeia de fala de M, pode ser tomado como paralelismo, que não se ateria somente ao processo de aquisição de linguagem, mas também ao sintoma de linguagem determinado pela própria estrutura que, ao invés de abrir para a deriva, promove um efeito retroativo do inesperado que é designado na cadeia de fala. Desta forma, M alinha um acontecimento em sua fala durante a narração de alguma história e se coloca diante do Outro em sua forma específica de funcionamento.

Quinto Episódio

O fragmento foi retirado de uma brincadeira que envolve a confecção de pulseiras. Pretende-se utilizar tal fragmento para destacar uma mudança de posição de M diante de F, no que diz respeito à nomeação, ou seja, o ato do sujeito chamar o outro pelo seu próprio nome. Pois, M costumava chamar as mulheres de tia e os homens de tio, inclusive a sua fonoaudióloga era chamada de tia. M não fazia a articulação da pessoa ao nome, pois repetia a fala de sua mãe e escapava da inversão do lugar de sujeito, mantendo-se como objeto. Segue fragmento:

(1)M: ((Ri)) você dá risada.

(2) F:Ó péra aí ... segura esse aqui ... não nãonão solta um pouquinho. ((ambas colocando contas num fio, para montarem uma pulseira).

(3) M:Ah não Rooosiii.

(4) F: Ai Melina eu não acredito que você tá desmanchando a pulseira.

(5) M: Quebrou.

(6) F: Quebrou? ((ri)) caiu tudo.

(7) M: Foi você.

Em (1), Mabre a cadeia metonímica fazendo uso da repetição "você dá risada", para falar de si. Fala esta que costumava se manifestar na sequência do riso, aqui marcado como traço. Em (2), F faz uso excessivo de dêiticos "ó", "aí" "esse" e "aqui", enãotoma a fala de M em (1) como fala endereçada a si, e, assim, apaga o sujeito e a significante. Em (3), Mtraz em sua fala dois mecanismos simultâneos: o da negação e o da nomeação. Já em (4), F reconhece M como sujeito ao nomeá-la e ao devolver a mensagem invertida (de R para Melina). Desta forma, nos momentos em que a fala de F se caracteriza, não mais pela interrogatividade, mas sim pelo movimento de concatenação e pelo ato de afirmação, simultaneamente, parece que há no enunciado 7 da fala de M o gesto de reconhecimento do outro - foi você.

Sexto Episódio:

O fragmento foi retirado de uma sessão que envolve a produção de pulseiras e de colares. Observa-se que M parece ter apreço por confeccioná-las. Quando as levava já feitas, imediatamente anunciava: "fazêpêsseeeraaa, fazêpêsseeeraaa" e se prontificava a encadear as contas no cordão que a fonoaudióloga segurava com a mão, deixando aquelas que já estavam prontas no lado da mesa.

Num primeiro tempo de sessão, M utilizava-se da mão da fonoaudióloga para que essas pulseiras pudessem ser confeccionadas, mesmo porque a fonoaudióloga as levava prontas à sessão; num segundo momento, pela aposta clínica que a fonoaudióloga fazia em M, esta começava a querer criar suas próprias pulseiras e colares. Essa particularidade de M em querer criar suas próprias pulseiras e seus próprios colares teve repercussões na lógica dialogal, porque o "eu", destacado em negrito, começou, de vez em quando, a circular em sua fala, visto que M designava-se ao outro somente por pronomes na terceira pessoa do singular ou pela repetição de seu nome próprio, em conjunções desconexas do lugar de sujeito.

(1) M: ((Puxa a caixa que está localizada em cima da mesa. Nesta caixa há materiais para confecção de pulseiras)).

(2) F: Você puxou a caixa porque quer ver o que tem dentro né?

(3) M: péra tia. ((coloca a mão dentro da caixa)).

(4) F: Ó ... Aqui Melina ... Tem um monte de coisa que eu sei que cê gosta.

(5) M:((Coloca a mão dentro da caixa)).Eu go das coisas.

(6) F: Você gosta das coisas é?

(7)M: Ah ... ai u liu ((Ri)).

(8) F: Isso mesmo Melina ... É assim que se fala ... Eu gosto das coisas ... É assim que se fala.

Segundo Benveniste 88. Benveniste E. Da subjetividade na linguagem. In: Problemas de Linguística Geral. 2 ed. Campinas(SP): Pontes; 1988, p 284-93., é na linguagem e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito. Benveniste considera que quem fala é o centro de referência porque é na relação entre o sujeito e o outro que esse sujeito poderia ser marcado linguisticamente e subjetivamente. Para esse autor, a oposição entre eu e o tu possibilita dizer de si próprio, ou seja, o eu só adquire valor ao opor-se ao tu e ao ele.

Para exemplificar o ponto de vista de Benveniste, trago o artigo99. Bortolotto H, Freire RM, Silva GG. Sintomas de linguagem e síndrome de X-frágil: estudo de caso. Rev Distúrbios da Comunicação. 2009;21(3):303-14. sobre o caso clínico de Luiz, uma criança com sintomas na fala - em que comparecem as repetições, as estereotipias e a sucessão do /a/ prolongado - , Síndrome de X-Frágil e traços autísticos. E, quando a fonoaudióloga se ancora na sanção de permissividade e na aposta de quehá em Luiz um falante, posição que é reconhecida pela clínica da linguagem e da subjetividade, observa-se a presença do "eu" na fala de Luiz. Para essas autoras, a presença do "eu" revela-se como questionamento a respeito das padronizações hegemônicas que admitem como fator diagnóstico o comparecimento da inversão pronominal, ou seja, o referir-se a si mesmo na terceira pessoa na fala de sujeitos com traços autísticos.

Seguindo a via da possibilidade de re-subjetivação, as autoras afirmam que a presença do "eu" durante o ato de sancionar a fala pelo discurso da permissividade gera um questionamento sobre a veracidade dessas padronizações, visto quea falade Luiz se diferencia de um critério diagnóstico do autismo e nos mostra que a presença de uma constituição subjetiva pode ser enlaçada ao que há de peculiar a partir dos efeitos da língua, da escrita e da fala.

Voltando a discussão ao caso de Melina, pode-se observar que o "eu" de sua fala decorre do enunciado (4), quando a fonoaudióloga faz uso da sanção de reconhecimento do sujeito sobre a mensagem, ao dizer que ali, naquela caixa, havia algo que ela poderia identificar. M em (5) coloca a mão dentro da caixa e afirma a mensagem da fonoaudióloga. Por um outro lado, em (7), M traz um segmento de sucessão sonora e a fonoaudióloga em (8), reconhece a fala de M em (5), porém, ao fazê-lo, apaga o traço de sonorização da fala, colocando-a no lugar do sem sentido, ou do que não faz texto. Desse modo, em (8) retorna à fala anterior pronunciada em (5) e, posteriormente flutua à outra fala, sem ser pega pela fala de F. Esse episódio, no que diz respeito às flutuações ou às conjunções desconexas, traz à memória, que M, durante a sessão, conversava e ria ou ria e chorava ao mesmo tempo, principalmente quando cruzava cenas distintas num mesmo enunciado. M pronunciava o enunciado: "cachorrinho vai voltar?" (começa a ficar com os olhos marejados de água) e, em seguida, se punha a rir alto e enunciava: "ela gostô vídeo cassetada?", referindo-se, respectivamente, ao fato de seu cachorro ter fugido de casa, e à algum assunto referente ao programa vídeo-cassetada do Faustão. Vale ressaltar que colocar várias cenas vivenciadas em situações distintas num mesmo enunciado não se presentificava somente na cadeia da sintaxe e dos sentidos, mas alcançava o corpo físico.

Em uma outra cena clínica M anuncia: "não bate na tia", "não pode bater na tia", fazendo uso dos elementos prosódicos de sua mãe, ao pronunciá-los. Em seguida, bate na perna da fonoaudióloga e/ou bate em sua própria perna. A fonoaudióloga a repreende, dizendo não aceitar que ela lhe bata e, então, ela pronuncia de forma encadeada: "não bate na tia" ... "a menina quer chorar" ... "a menina tá chorando"... "chora não meeeninaaaa". E, nesse instante fica com os olhos marejados de lágrimas. Essa cena de choro de M, parece estar relacionada com a história contada pela mãe sobre um aluno da APAE, colega de M nessa instituição pedagógica, o qual chorava e quanto M gostava de repetir a cena de choro.Em decorrência desse fato, a fonoaudióloga sanciona M ao dizer que esse assunto já havia passado e que ela poderia contá-lo sem ter que encenar o choro e vivenciar a cena para que os outros pudessem entendê-la.M começa a rir. A partir desse riso, parece que M utiliza-se de seu teatro corporal unido ao significante para, à sua maneira, transitar (ou não) pela linguagem.

Discussão

Os episódios de fala: fechamento

A análise dos episódios de fala de M aponta sua alienação aos fragmentos da fala do Outro sob a forma de enigmas que mostram seu modo peculiar de transitar na linguagem. Primeiramente, indaga-se o estatuto a fala holofrásica, com sua característica de distorção, de pausa, de esgarçamento, de condensação ou de aglutinação, a qual seria um lugar de impasse para que a lógica dialogal tenha suporte no interior de uma fala que se situe no tempo e no lugar1010. Lier-de Vitto MF. Falas sintomáticas: fora de tempo, fora de lugar. Cadernos de Estudos Linguísticos. 2005;47(1/2):143-50.. A seguir, observa-se um buraco na lógica dialogal pela falta de alternância entre os dizeres de M e os da fonoaudióloga. Nessa impermeabilidade à escuta da fala do outro, há momentos, na lógica dialogal, que M dá abertura para que o fonoaudiólogo incida e interprete sua fala, além de utilizar-se da fala alheia para falar de si mesma. Uma forma de preencher a lógica dialogal é a repetição dos enunciados produzidos pelo outro, especialmente quando é interrogada ou convocada a emergir enquanto sujeito falante. A repetição é marcada pela configuração dos elementos prosódicos concernentes à fala do outro, porém vale ressaltar que poderia dar vazão à emergência do sujeito falante nas hesitações, reformulações, erros ou na entonação distinta daquela produzida pelo outro, ainda que o enunciado seja o mesmo.

Constata-se que a repetição da fala do outro é um aspecto que se manifesta também como fala holofrásica, porém, essa repetição é peculiar, especialmente pela forma como se constitui, ou seja, há miscigenação entre os significantes de M e os do outro na cadeia da sintaxe e dos sentidos. Nessa cadeia, manifesta-se uma fala distorcida advinda de sua constituição por segmentos ininteligíveis, como:"Sitchoooazê", em resposta à sanção de interrogatividade: O que que cê quer fazer?, enunciada pela fonoaudióloga. Há repetição da fala do outro, mas esta não se confunde com aquelas em que os elementos prosódicos se manifestam em significantes inteligíveis e recortados do outro, e portanto, marca-se uma distinção da massa amorfa e sonora que identifica a fala holofrásica.

Essa massa amorfa que compõe o segmento ininteligível, por seu aspecto aglutinado na cadeia, poderia se manifestar, em presença, entre os segmentos inteligíveis dessa cadeia de fala, como em: "quem gritou? avóetagritrantro", ou ainda, "abedenessi no banheiro" que teriam relação com os restos de fala advindos de cenas anteriores e até da cena atual ocorrida na sessão fonoaudiológica e que, conforme observado, poderiam vir a se desdobrar, se organizar e se estruturar durante a lógica dialogal, a despeito da debilidade mental.Nesse sentido, a fala holofrásica é tomada aqui como o próprio segmento ininteligível, constituído por uma massa amorfa que estaria sob a ordem da língua, pois há um modo de funcionamento específico da língua que, de certa forma, abre possibilidades para o manejo terapêutico quando entra em jogo a dialética entre a sanção da fala e a escuta para essa fala. A escuta é uma forma de deslocamento do clínico para que este não fique enlaçado pelo que a literalidade do dado transcrito evidencia, a ponto de assumir uma posição de esquecimento de sua função enquanto intérprete, ou seja, daquele que pode dirigir-se ao enigma na fala e escutá-lo por meio do ato de sancionar e reconhecer o sujeito e o significante.

No que diz respeito aos eixos da linguagem - escrita, língua e fala - vale dizer que a alienação da fala de M à do Outro apontaria para o lugar de ser falado por esse Outro, o que indica que a manifestação do sintoma de linguagem ocorre no estrato da escrita. Isto pode ser vislumbrado na repetição "cê tá rindo?" que, como em tantas outras repetições, marca-se pelo traço, ou seja, pelo riso seguido de fala. Ou, quando ela chora e diz "ela chora"; "não chora, já passou" ou, ainda, quando bate em seu corpo ou no corpo do outro e, em seguida, fala: "não pode bater na tia" ou "não bate menina", seguido de "não bate na tia, não pode bater na tia". Evidencia-se o traço como marca de "inscrição da letra significante no corpo" 22. Gouvêa da Silva G, Freire RM, Dunker C. Sanção em Fonoaudiologia: um modelo para organização dos sintomas de linguagem. Caderno de Estudos Linguísticos. 2011;53(1):7-25..

O estrato da língua, outro lugar de inscrição do sintoma de M, tem seu funcionamento na cadeia significante marcado pelo não deslizamento de dizeres no eixo metonímico, como também pela sobreposição do eixo metafórico. Por essa razão, não há separação entre a fala do sujeito e a fala do outro, visto que, pelo apagamento do sujeito e do significante, apagam-se as marcas e particularidades da estrutura e do funcionamento de M na língua.

Por fim, o problema estrutural se manifesta no estrato da fala, no qual se dá a lógica dialogal - entre M e o outro. Esse estrato denuncia o lugar de inscrição dos sintomas de M, ou seja, os sintomas funcionam no estrato da escrita e da língua, mas se dão a ver no estrato da fala.

A escuta impermeável de M poderia ser indício da falta de operação da língua no jogo de reversibilidade entre processo metafórico e metonímico, e a repetição da fala do outro seguida de traço seria a manifestação do traço no lugar do significante, ou até mesmo antes deste. Investigar o sintoma de linguagem por meio da própria linguagem, a partir da leitura que a estrutura dos estratos da escrita, da fala e da língua permite, abre caminhos para a prática clínica no enfrentamento do enigma que a fala holofrásica produz. O primordial é dar a essa fala seu reconhecimento pela clínica, pois ela tem algo a dizer sobre a relação sujeito e linguagem.

De todo modo, é essencial reconhecer a anterioridade dos estratos da escrita, da língua e da fala ao sujeito para se manejar a reversibilidade dos sintomas da fala holofrásica que demanda escuta da clínica da subjetividade. As mudanças na fala holofrásica de M são uma constatação de que as repetições da fala do outro podem ser contornadas quando se inclui o sujeito no entrelaçamento dos estratos da língua, da fala e da escrita. Portanto, dirigir o olhar para tal entrelaçamento permite interrogar a posição da fonoaudióloga, como também a de M na lógica dialogal. Mudanças se dão a ver quando a fonoaudióloga dá permissividade à fala de M e a reconhece como falante pela operação de sanção sobre essa fala. A exposição do caso de Melina é singular, mas a partir dele pretende-se dar à fala holofrásica a singularidade merecida na atuação clínica fonoaudiológica.

Considerações Finais

A fala holofrásica pode ser considerada em sua estrutura e funcionamento peculiar a partir da escuta apurada que a abordagem teórica propõe. Foi-nos possível identificá-la como uma miscigenação de significantes, produzidos, em sua maioria, com ritmo acelerado ou voz sussurrada. Ainda, pode-se constatar que não interessa sua definição por outros campos, dado que seu papel, na clínica fonoaudiológica, é impar. Trata-se de interrogar a fala holofrásica do ponto de vista da própria clínica enquanto sintoma de linguagem. Sobre a fala holofrásica e a emergência de sentidos na relação com o outro, o fonoaudiólogo, ao atentar-se ao jogo dialético entre o que, na cadeia da sintaxe do sujeito, não faz sentido e o que pode fazer sentido, abre a possibilidade para deslocamentos subjetivos, a partir da incidência da ação terapêutica sobre a miscigenação de significantes.

E, finalmente, a partir da consideração dos eixos da escrita, da língua e da fala, trata-se de o fonoaudiólogo reconhecer a presença de um sujeito falante nas entrelinhas das massas amalgamadas, alçando o meta procedimento da sanção para desfazer a miscigenação da fala holofrásica, deslocar as repetições e afetar o entrelaçamento entre a fala holofrásica de Melina e a do outro. Este entrelaçamento diz respeito a constituição na e pela linguagem e se marcaria pelo que é dito ou não dito por e sobre esse sujeito. Tal constituição deveria ser alçada à sua própria história clínica e simbólica que diz respeito a peculiaridade da própria fala holofrásica, a qual poderia trazer entendimento ao fonoaudiólogo em sua prática clínica.

Por fim, este artigo defende uma clínica fonoaudiológica fundamentada no acontecimento individual da fala holofrásica, na qual o fonoaudiólogo escuta, olha, etrata essa fala, baseado nos princípios do modelo teórico da multiestratificação dos sintomas de linguagem, para lidar com o heterogêneo e sancionar o sintoma de linguagem que acomete a fala holofrásica no sujeito, pelo ato de transliterar, traduzir e transcrever essa fala para transformá-la. Isto se dá ao acolher uma terapêutica fonoaudiológica fundamentada na dialética entre reconhecimento do sujeito e do significante, para conduzir a emergência do sujeito falante, regido pelo funcionamento da língua e, para lidar com o heterogêneo e o sintomático do acontecimento individual da fala do sujeito com debilidade mental.

Alerta-se, concluindo, que um estudo de caso tem suas limitações e deve ser lido dentro das restrições que este tipo de análise acarreta mas pode ser um primeiro olhar para a holófrase que supera o descritivo e ai reconhece um espaço de abertura à entrada da fala do fonoaudiólogo, em um nítido movimento de transformação terapêutica.

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  • Fonte de Auxílio: CAPES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    nov-dec 2014

Histórico

  • Recebido
    17 Out 2013
  • Aceito
    31 Mar 2014
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