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A Fonoaudiologia na Universidade Federal da Bahia: um enfoque histórico

RESUMO

Objetivo:

investigar, desde uma perspectiva histórica, o percurso que levou à constituição do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Métodos:

trata-se de estudo qualitativo e transversal. Adota metodologia da história oral, utilizando análise documental e entrevistas.

Resultados:

foi elaborada uma narrativa que revela a história do referido curso e aponta para especificidades que envolvem a formação em Fonoaudiologia oferecida pela UFBA. Destaca-se, ainda, a colaborativa presença do movimento estudantil nos avanços conquistados. Conclusão:os resultados dessa pesquisa compõem uma memória que pode contribuir para uma reflexão aprofundada a respeito da formação em Fonoaudiologia no Brasil, colocando em evidência a indissociabilidade entre demandas educacionais e de saúde nesse processo.

Descritores:
Fonoaudiologia; História; Educação; Currículo

ABSTRACT

Purpose:

to investigate, from a historical perspective, the path that led to the creation of the Speech-Language Pathology and Audiology Undergraduate Program of the Federal University of Bahia.

Methods:

this qualitative, cross-sectional study adopts an oral history methodology, using document analysis and interviews.

Results:

a narrative was developed, bringing to light the history of this program and pointing to specificities that involve the training in Speech-Language Pathology and Audiology offered by UFBA. It also highlights the collaboration given by the student activist movement to these accomplishments.

Conclusion:

the results of this research comprise a memory that can contribute to an in-depth reflection of the training in Speech-Language Pathology and Audiology in Brazil, making evident, in the process, the inseparability between educational and health demands.

Keywords:
Speech, Language and Hearing Sciences; History; Education; Curriculum

Introdução

No Brasil, a prática fonoaudiológica teve início muito antes de sua institucionalização acadêmica e reconhecimento oficial. Pode-se afirmar com segurança que a Fonoaudiologia brasileira tem suas origens enraizadas em um contexto socio-histórico e político particular, em que se destaca o papel social de seus precursores em um cenário de crítica e aversão à diversidade sociocultural e econômica deflagrada pelo processo de industrialização do país.

No final da década de 1920 e início dos anos de 1930, correntes migratórias de trabalhadores de diferentes regiões do Brasil e de diferentes nacionalidades seguiram em direção aos centros urbanos, sobretudo São Paulo, em busca de trabalho. Esses trabalhadores, naturalmente, passaram a se agrupar conforme seus costumes, língua, interesses e necessidades. A heterogeneidade cultural deixava sua marca, inclusive, na língua falada no país. Essa nova organização societária se impunha no espaço urbano e foi interpretada pelo discurso oficial como um risco para a identidade e, consequentemente, unidade nacional11. Berberian AP. Fonoaudiologia e educação: um encontro histórico. São Paulo: Ed. Plexus; 1995.,22. Oliveira F. Por uma terapêutica fonoaudiológica: os efeitos do discurso médico e do discurso pedagógico na constituição do discurso fonoaudiológico [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio de Grande do Sul; 2002.. Na verdade, as “diferenças morais, de valores, de comportamento, representavam uma espécie de patologia social”22. Oliveira F. Por uma terapêutica fonoaudiológica: os efeitos do discurso médico e do discurso pedagógico na constituição do discurso fonoaudiológico [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio de Grande do Sul; 2002..

Pode-se dizer que a presença desses trabalhadores migrantes acabou por modificar a organização social da época, deixando descontentes e temerosos alguns segmentos da sociedade, dentre eles, o poder público11. Berberian AP. Fonoaudiologia e educação: um encontro histórico. São Paulo: Ed. Plexus; 1995.. Surgiu, assim, o movimento nacionalista, cujo programa tinha como principal objetivo o controle e a reorganização social em prol da referendada unidade nacional. Especialistas e intelectuais de diferentes campos do conhecimento (educação, artes, saúde etc.) se envolveram no programa proposto pelo movimento nacionalista e ações foram planejadas e executadas com apoio e sustentação do Estado. A padronização da língua pátria foi um dos recursos utilizados nessa tentativa de apagamento da heterogeneidade das manifestações sociais e diversos acontecimentos históricos arregimentaram tal propósito, sendo o I Congresso de Língua Nacional Cantada (I CLNC) - realizado em 1937, na cidade de São Paulo -, um evento marcante para a constituição da Fonoaudiologia nesse cenário.

Organizado por Mário de Andrade (então diretor do Departamento de Cultura, e apoiado pela Secretaria da Educação e Saúde Pública da Prefeitura de São Paulo), o I CLNC teve como tema central “combater as impurezas da língua nas manifestações artísticas”22. Oliveira F. Por uma terapêutica fonoaudiológica: os efeitos do discurso médico e do discurso pedagógico na constituição do discurso fonoaudiológico [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio de Grande do Sul; 2002.. Nele, foi apresentado o trabalho “Vícios e defeitos na fala das crianças dos Parques Infantis”, no qual consta o primeiro registro de “desvio” de fala em crianças e o levantamento da necessidade de intervenção por um profissional especializado a partir de abordagem reeducativa. Vale destacar que “Parque Infantil” era o nome dado aos espaços criados pela Prefeitura de São Paulo para assistir crianças carentes, onde eram oferecidos atendimentos médico e dentário, e no qual eram realizadas atividades pedagógicas voltadas para a conscientização sanitária, criação de hábitos de higiene, valores morais, entre outros. No supramencionado trabalho, advogava-se, inclusive, a favor da existência de centros de ortofonia, cujo propósito seria corrigir os vícios de pronúncia e problemas de fala, como já existia nos EUA e Europa22. Oliveira F. Por uma terapêutica fonoaudiológica: os efeitos do discurso médico e do discurso pedagógico na constituição do discurso fonoaudiológico [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio de Grande do Sul; 2002.,33. Figueredo Neto LH. O Início da prática fonoaudiológica na cidade de São Paulo - seus determinantes históricos e sociais [Dissertação]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 1988..

Note-se que as demandas levantadas no I CLNC culminaram em ações que, ao longo do tempo, levaram à medicalização (ou pode-se falar em “terapeutização”)22. Oliveira F. Por uma terapêutica fonoaudiológica: os efeitos do discurso médico e do discurso pedagógico na constituição do discurso fonoaudiológico [dissertação]. Porto Alegre (RS): Universidade Federal do Rio de Grande do Sul; 2002. de diferentes demandas sociais. Uma dessas ações foi a criação, dez anos mais tarde, do Laboratório de Fonética e Acústica (LFA), vinculado à Secretaria de Educação e Cultura da cidade de São Paulo. O LFA foi o espaço no qual professoras que receberam “formação básica” passaram a exercer atividades de correção da fala como ortofonistas junto aos estudantes das escolas municipais, tornando-se as precursoras no delineamento do perfil clínico do profissional fonoaudiólogo. É importante contextualizar que, na época, a especialização dessas professoras para a reeducação da fala envolvia a confluência de uma visão médica sobre a relação entre normalidade e patologia, e o ponto de vista pedagógico nos moldes escolanovistas.

Somente na década de 1960, as práticas fonoaudiológicas já existentes foram legitimadas por cursos de formação universitária, inicialmente de caráter tecnológico44. Aarão PCL, Pereira FCB, Seixas KL, Silva HG, Campos FR, Tavares APN et al. Histórico da Fonoaudiologia: relato de alguns estados. Rev Med Minas Gerais. 2011;21(2):238-44.. O primeiro curso da região Norte/Nordeste nasceu na mesma época em que o Conselho Federal de Educação transformou os cursos de formação, até então de cunho tecnológico, em "Cursos de Graduação Plena em Fonoaudiologia”, com ampliação do currículo mínimo de 1800h para 2700h. Vale destacar que o reconhecimento do primeiro curso da região (1983, Universidade Católica de Pernambuco), aconteceu no mesmo período em que as atividades do Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFFa) foram iniciadas, as quais culminaram com a aprovação do primeiro Código de Ética da categoria em 1984.

É preciso dizer que, hoje, as diretrizes curriculares nacionais que orientam a formação em Fonoaudiologia estão em processo de mudança. Recentemente, nota-se que a área tem se movimentado no sentido de posicionar-se criticamente diante das desigualdades sociais e tem caminhado na direção de discutir processos formativos voltados para o desenvolvimento de competências que tragam, além de conhecimento técnico, consciência política, ética e social. Nessa direção, acredita-se que um olhar crítico para o passado pode colaborar substancialmente nesse processo de construção de novos princípios e procedimentos para a formação de fonoaudiólogos.

O objetivo desse estudo é apresentar, desde uma perspectiva histórica, o percurso que levou à constituição de um Curso de Fonoaudiologia em uma universidade pública brasileira. Dispõe-se a identificar os principais acontecimentos e atores envolvidos no processo de elaboração do referido curso, apresentando o contexto histórico de construção do mesmo.

Métodos

O trabalho prezou os aspectos éticos em pesquisa e aconteceu mediante apresentação e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O trabalho foi submetido ao Comitê de Ética do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia, conforme Resolução CNS nº 466 de 12 de dezembro de 2012, sendo aprovado sob o número 000389/2018.

Para esse estudo, partiu-se do recorte espacial de circunscrever a investigação à história da Fonoaudiologia na Bahia e na Universidade Federal da Bahia, permeada pelo contexto nacional. Toma-se como referência o estado da Bahia, tendo em vista que, apesar da história da Fonoaudiologia nessa região ter acompanhado o movimento nacional de ações e intervenções em saúde pública da década de 1950 e 1960, os primeiros cursos de graduação só foram abertos em 1999. Essa longa distância entre o início das práticas e a formalização da formação, bem como a diferença de mais de 10 (dez) anos entre o primeiro curso da região nordeste (1983) e a abertura dos cursos de graduação na Bahia (1999), levam à indagação sobre as razões e o contexto histórico que envolveram a constituição da Fonoaudiologia no estado e seus efeitos sobre o modo como a profissão se apresenta e se sustenta no momento atual.

Como recorte temporal, pensou-se a priori em selecionar o período pós-academia, que principia com o início da Fonoaudiologia no Brasil, na década de 60. Porém, no decorrer da construção do trabalho, optou-se pela ampliação do período em questão para abarcar os primeiros conhecimentos oriundos da relação entre Fonoaudiologia, Otorrinolaringologia e Educação, que podem ser identificados desde a década de 30. Os dados construídos permitiram um avanço até o ano 2017, de modo que, mesmo sucintamente, foi possível apontar os marcos históricos para o avanço da área na Bahia nesse espaço temporal. No que concerne especificamente ao curso de graduação em Fonoaudiologia da Universidade Federal da Bahia, o recorte de tempo estudado compreende o período entre 1993 e 2017.

Quanto às fontes, foram utilizadas fontes de dados orais e escritas. Para as fontes orais foi aplicada a metodologia da história oral, a partir da qual foi priorizado entrevistar pessoas que pudessem dar depoimentos sobre a sua participação na constituição da história da Fonoaudiologia na Bahia e na Universidade Federal da Bahia. Para a seleção dos depoentes, inicialmente foi utilizada a metodologia por “amostragem bola de neve”55. Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas. 2014;22(44):203-20.. Em seguida, a seleção seguiu os seguintes critérios de escolha dos testemunhos: a) ter pioneirismo ou protagonismo na área; b) depoimentos que abarcassem, na medida do possível, um período específico dessa história, ou de acontecimentos marcantes, de modo a mapear o tempo estudado em questão. Por fim, para a análise, foram selecionados 5 depoimentos de participantes que a) contribuíram para a criação do curso, b) foram docentes e/ou c) participaram de órgãos/instituições da área. Cada depoimento foi gravado, transcrito e transcriado66. Meihy JCSB. Manual de história oral. São Paulo: Loyola; 2000..

Além dos depoimentos orais, serviram como fontes de dados documentos escritos, visitas aos arquivos do colegiado, diretório acadêmico e congregação da instituição que aloca o curso de Fonoaudiologia na Universidade Federal da Bahia e, especialmente, obras com temas que se relacionavam à História da Fonoaudiologia no Brasil, na Bahia e na Universidade Federal da Bahia, cuja escolha se deu por serem representativas do período histórico estudado. A busca por essas referências também priorizou conhecer os fatos históricos e movimentos políticos por meio de portarias e normas regulamentadoras.

Feitos os recortes espacial, temporal e de fontes, foi possível a construção de um corpus documental que foi interpretado de forma descritivo-analítica. Como foram utilizados diferentes tipos de fontes, análises e formas de apresentação dos resultados, entende-se que se poderia denominar a metodologia principal como sendo abordagem plural, a qual coaduna diferentes possibilidades de configuração no campo da historiografia.

De modo geral, o processo de análise dos resultados foi organizado da seguinte maneira: cada depoimento e fonte escrita selecionados foi analisado em separado e em conjunto, inter-relacionando ao corpus documental. As análises e a discussão dos resultados compreenderam duas etapas: (a) análise documental (fontes não orais) e (b) análise dos registros orais66. Meihy JCSB. Manual de história oral. São Paulo: Loyola; 2000.,77. Pimentel A. O método de análise documental: seu uso numa pesquisa historiográfica. Cadernos de Pesquisa. 2001;114(1):179-95.. Após as etapas (a) e (b) de interpretação dos elementos construídos a partir do corpus documental, procurou-se reunir esses fragmentos em uma narrativa descritivo-analítica de forma a articular os depoimentos e as fontes escritas (triangulação).

Vale destacar que os sujeitos entrevistados autorizaram a exposição de seus nomes no decorrer da apresentação dos resultados e da discussão.

Resultados

Tendo em vista que o presente estudo se aproxima dos caminhos metodológicos da historiografia88. Kirschner TC. A reflexão conceitual na prática historiográfica. Textos de história. 2007;15(1/2):49-61.,99. Nobre SLP, Rojas LR, Gomes NS. Os princípios metodológicos para o fazer historiográfico segundo Koerner. Revista Philologus. 2017;23(69):1209-15., os resultados dessa investigação são apresentados no formato de uma narrativa descritivo-analítica, na qual se articulam as dimensões teórica, temporal e social da história de constituição do curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal da Bahia.

O curso de fonoaudiologia da Universidade Federal da Bahia

A UFBA tem como marco histórico inicial o ano de 1808, com a criação da Escola de Cirurgia da Bahia. A partir de 1946, sob a liderança do Prof. Dr. Edgar Santos, ocorreu a federalização e integração das escolas isoladas de ensino superior e iniciou-se o processo de abertura de outros cursos na Universidade. A Fonoaudiologia nesse contexto foi uma conquista bastante recente dessa Universidade, uma vez que as primeiras 30 vagas do curso foram abertas apenas em 1999.

O curso de Fonoaudiologia da UFBA teve sua proposta vinculada ao interesse do Instituto de Ciências da Saúde (ICS) em sediar um curso de graduação. Antes da implantação do curso, o ICS apenas oferecia disciplinas para cursos de graduação sediados em outras unidades. Conforme registrado em documento oficial que apresenta o primeiro projeto pedagógico do curso de graduação em Fonoaudiologia da UFBA,

no dia 15 de outubro de 1993, em reunião, o Conselho Departamental do Instituto de Ciências da Saúde aprovou a criação de uma comissão constituída pelos professores: MARIA AUGUSTA MORAES NASCIMENTO, do Departamento de Ciências da Biorregulação, WALDECI LOPES BRAGANÇA, do Departamento de Ciências da Biomorfologia, GILDO RAMOS PIMENTEL, do Departamento de Ciências de Biofunção, JEFFERSON IVAN CORRÊA, do Departamento de Ciências da Bioagressão; pelas funcionárias Técnicas de Nível Superior: GRACE MARIA SAMPAIO (Bióloga), MARIALDA SANTOS ROTONDANO (Técnica em Assuntos Educacionais); e pelas Fonoaudiólogas: LEONORA BASTOS DA SILVA, SILVIA FERRITE GUIMARÃES, CLÁUDIA C. LOPES e MARIA CECÍLIA CASTELO S. PEREIRA, representantes do Núcleo Pró-Associação de Fonoaudiólogos da Bahia, para proceder estudos visando a elaboração de um anteprojeto para criação do Curso de Fonoaudiologia, em nível de graduação, na Universidade Federal da Bahia.

Segundo Silvia Ferrite (em comunicação oral), em vista da carência de oportunidades de formação em pós-graduação em Fonoaudiologia na época, e com o “objetivo [...] de preparar fonoaudiólogos locais para o exercício da docência”1010. Nunes RTD, Maia SM. Narrativas sobre o início das práticas fonoaudiológicas na cidade Salvador, Bahia, Brasil. Saúde Soc. 2013;22(3):962-71., uma das primeiras ações dessa comissão foi a elaboração e realização dos primeiros cursos de especialização da área no estado (em Audiologia e Linguagem). Esta oportunidade foi um marco na Fonoaudiologia da Bahia (1995-1997), com participação de grande parte dos fonoaudiólogos em atividade em Salvador e no interior. Participaram desses cursos de especialização Ana Paula Corona, Célia Regina Thomé e Silvia Ferrite - professoras do curso de Fonoaudiologia da UFBA até os dias de hoje.

Vale ressaltar que Claudia Lopes e Maria Cecília Castelo Pereira, membros da referida comissão, atualmente são professoras do curso de Fonoaudiologia da Universidade do Estado da Bahia, e Leonora Bastos foi uma das primeiras fonoaudiólogas a atuar em Salvador. Silvia Ferrite, por sua vez, foi a primeira fonoaudióloga do Hospital Universitário Edgar Santos (HUPES), sendo contratada em 1995 e alocada junto ao Ambulatório de Otorrinolaringologia. Durante os primeiros sete anos de trabalho na UFBA, Ferrite implantou e organizou o Serviço de Audiologia Clínica deste ambulatório. Além disso, implementou um programa de estágio de aprimoramento na área para fonoaudiólogos (o primeiro a ser oferecido em Salvador) e participou da formação dos residentes em Otorrinolaringologia como preceptora.

Como mencionado anteriormente, o anteprojeto do curso de graduação em Fonoaudiologia da UFBA foi aprovado no ano de 1995 e possibilitou o fortalecimento do ICS enquanto um instituto de formação, além de abrir um espaço de formação que fez frente à grande carência de fonoaudiólogos e a consequente dificuldade da população em ter acesso ao cuidado oferecido por esse profissional na cidade de Salvador e no estado da Bahia. Inicialmente, o corpo docente do curso de Fonoaudiologia era composto por professores contratados temporariamente. Esse foi o caso de Silvia Ferrite, Ana Paula Corona, Célia Regina Thomé e Desirée De Vit Begrow. Apenas no ano de 2002, as primeiras contratações de professores efetivos com dedicação exclusiva (DE) foram realizadas e, no ano de 2003, a primeira turma se graduou, mesmo ano do reconhecimento do curso pelo Ministério da Educação (reconhecimento renovado nos anos de 2007, 2011 e 2015). Sobre o período inicial do curso, Sílvia Ferrite em comunicação oral destaca que:

“(...) com um número reduzido de docentes (pelas dificuldades para obter vagas para concurso público), o Departamento de Fonoaudiologia permaneceu por alguns anos entre os primeiros na avaliação da sobrecarga de trabalho docente, em uma avaliação sistemática conduzida pela UFBA na época, denominada ‘perfil’. Os primeiros professores DE chegavam a assumir 20 horas semanais de ensino para que fosse possível manter o curso conforme o currículo obrigatório, e a maioria dos professores no Departamento de Fonoaudiologia tinha contrato de trabalho precário (temporário)”.

Nas palavras de Desirée De Vit Begrow (informação concedida em entrevista): “no começo, o curso foi sustentado pelo trabalho de poucas pessoas, que investiram e doaram muito de sua vida para o crescimento do mesmo”.

O Departamento de Fonoaudiologia foi criado no segundo semestre de 2002, mesmo ano de abertura do Centro Docente Assistencial de Fonoaudiologia - CEDAF - a clínica-escola vinculada ao Departamento. Como não haviam professores com a titulação exigida para assumir os cargos de chefia de Departamento e coordenação de Colegiado, os professores Roberto Paulo Correia de Araújo e Maria Penha D’Oliveira Belém dos departamentos de Biofunção (hoje, Bioquímica e Biofísica) e Biomorfologia do ICS assumiram essas funções, com atuação bastante próxima das professoras Silvia Ferrite, Ana Paula Corona e Ana Caline Nóbrega da Costa. Silvia Ferrite foi a primeira docente fonoaudióloga a ser chefe do Departamento de Fonoaudiologia (Fev/2003 - Mar/2005).

O primeiro desenho curricular do curso apresentou uma carga horária total de 3780h, divididas entre componentes curriculares eletivos, optativos, complementares obrigatórios e currículo mínimo, os quais deveriam ser cursados no tempo mínimo de quatro anos. Entre os anos de 1999 e 2008, o Colegiado de Fonoaudiologia realizou diversos ajustes que visavam otimizar a utilização da carga horária disponível para adequação da grade curricular aos objetivos propostos no Projeto Pedagógico.

A partir do ano de 2002, com a aprovação pelo Conselho Nacional de Educação/Câmara de Educação Superior das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos Cursos de Graduação em Fonoaudiologia1111. Nascimento R. Fonoaudiologia completa 30. Revista Comunicar. 2011;12(51):4-5.,1212. BRASIL. Resolução CNE/CES 5, de 19 de Fevereiro de 2002. [cited 2019 March 26]. Available from: http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/CES052002.pdf
http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pd...
, mudanças no perfil de formação do fonoaudiólogo foram colocadas. A partir da instituição dessas diretrizes, a graduação em Fonoaudiologia passou a ser orientada pela formação de profissionais capazes de atuar com qualidade, eficiência e resolutividade no SUS. As DCNs também indicaram a busca de vários cenários para a formação teórico-prática desde o início do curso.

Outro ponto importante nesse sentido foi a associação entre as áreas da educação e da saúde, que se mobilizaram para a criação de políticas indutoras de formação profissional em saúde1313. Garcia VL, Di Ninno C. Diretrizes Curriculares Nacionais. In: Marchesan I, Silva J, Tomé M (eds). Tratado das especialidades em Fonoaudiologia. São Paulo: Roca, 2014. p. 1055-9.. O Pró-Saúde (Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde) e o PET-Saúde (Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde) foram as apostas do poder público para a inovação da formação em saúde a partir de concepções teóricas, metodologias de ensino-aprendizagem e integração ensino-saúde com vistas a uma “abordagem integral do processo saúde-doença com ênfase na atenção básica”1313. Garcia VL, Di Ninno C. Diretrizes Curriculares Nacionais. In: Marchesan I, Silva J, Tomé M (eds). Tratado das especialidades em Fonoaudiologia. São Paulo: Roca, 2014. p. 1055-9.. O curso de Fonoaudiologia da UFBA participou dos editais relacionados a esses programas. O Pró-Saúde aconteceu entre os anos 2007 e 2008, e diferentes editais contaram com a participação de professores e discentes de Fonoaudiologia da UFBA no PET-Saúde e PET-Redes, entre os anos de 2012 e 2015.

Mobilizados pelas mudanças nas políticas de saúde e de formação dos profissionais de saúde, em 2009, um novo projeto pedagógico foi apresentado, sendo a reforma curricular justificada a partir dos seguintes pontos:

  • Delimitação e incorporação de novas áreas do conhecimento à Fonoaudiologia;

  • Constantes modificações das demandas sociais emergentes;

  • Ausência de componente curricular prático no campo da Saúde Coletiva, mais especificamente nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) (ponto levantado em reuniões de Colegiado e Departamento de Fonoaudiologia e ratificado pelos avaliadores do MEC no ano de 2013);

  • Fragilidade do currículo na discussão e aprofundamento dos pressupostos teórico-metodológicos para a formação de um profissional de saúde comprometido com a realidade social;

  • Necessidade de redistribuição da carga horária do curso de forma equânime entre as sete grandes áreas de atuação profissional do fonoaudiólogo, reconhecidas pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia.

A proposta foi aprovada em novembro de 2009 pelo CAE/UFBA (Conselho Acadêmico de Ensino), com o aumento substancial da carga horária total do curso de 3735h para 4.588h e do tempo mínimo de conclusão para 5 anos.

A reforma curricular empreendida em 2009 foi eficiente no sentido de garantir a inclusão na matriz curricular do curso de componentes curriculares de formação na área de Saúde Coletiva, indicação já presente nas diretrizes curriculares para os cursos de Fonoaudiologia desde 2002 e uma imposição trazida pela necessidade de formação direcionada ao SUS com o aumento das contratações de profissionais e a inserção da Fonoaudiologia em diferentes dispositivos de cuidado em sua rede. Não é outra coisa o que se sinalizava nos espaços de formação promovidos pela parceira MEC/Ministério da Saúde entre 2003 e 2008.

A reforma foi bem-sucedida também no que concerne a maior distribuição da carga horária entre as diferentes áreas do conhecimento implicadas na atuação fonoaudiológica e na diversificação das atividades em estágios supervisionados e práticas heterogêneas. No entanto, a estrutura curricular manteve-se sob a lógica da divisão teoria/prática, núcleo básico/núcleo profissionalizante, o que culminou na perpetuação de espaços de prática distanciados da teoria e de componentes curriculares bastante especializados e pouco articulados entre si.

Dos caminhos que trazem a mudança, desde o Pró-saúde, além das questões acima mencionados, é preciso destacar a transformação do perfil universitário atendido hoje. A entrada da UFBA no Sistema de Seleção Unificada (SISU), ou melhor, no sistema informatizado do MEC pelo qual a universidade oferta vagas para os participantes do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), e a vigência da política de cotas foram responsáveis pelo surgimento de novas demandas de formação. Há grande preocupação com relação ao contexto político e da universidade, uma vez que a formação para o trabalho envolve agora o pedido por um currículo que contemple a capacidade de leitura das demandas sociais para o encontro com o trabalho. Dito de outro modo, o corpo discente atual pede uma formação que o permita escapar de “tendências mercadológicas flutuantes” e pouco sustentáveis.

Discussão

A narrativa apresentada acima nos traz um panorama histórico da constituição do curso de Fonoaudiologia da UFBA. Para uma análise mais aprofundada, é preciso, no entanto, destacar o contexto histórico em que o curso surgiu. Nele se revela uma conexão íntima do curso com a história da Fonoaudiologia no nordeste brasileiro.

Assim como aconteceu no país como um todo, no nordeste, a prática fonoaudiológica chegou antes de sua institucionalização e da criação dos cursos de graduação. Na região Nordeste, o disparador da demanda fonoaudiológica foi o campo da educação, especialmente com relação à população local mais desfavorecida política e economicamente. Era comum a ideia de que a incapacidade para a aprendizagem decorria de condições deficitárias de vida das parcelas pobres da população e o interesse pelo estudo da população mais pobre levou ao reconhecimento de que boa parte dela apresentava problemas de linguagem1414. De Nardi V. Cursos de graduação em Fonoaudiologia no estado da Bahia: formação acadêmico-profissional [Dissertação]. Salvador (BA): Universidade Federal da Bahia; 2010.. Assim, alfabetizadores (das escolas públicas) e profissionais da área médica, preocupados com a questão colocada, procuraram conhecer as causas dos problemas de linguagem, que, na maioria das vezes, foram relacionadas com aspectos orgânicos ou explicadas a partir do preconceito quanto à capacidade para aprender a ler e escrever de crianças de famílias pobres.

Nesse contexto sócio histórico e político, o estado de Pernambuco foi o primeiro a garantir a formalização das práticas fonoaudiológicas com a criação do primeiro curso de graduação em Fonoaudiologia das regiões norte e nordeste na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP). Esse curso recebeu reconhecimento oficial em 1983 e surgiu como um desdobramento das atividades do serviço de Fonoaudiologia da Clínica de Psicologia daquela instituição, recebendo forte apoio institucional da PUCSP1515. Didier MSL. Fonoaudiologia: sua história em Pernambuco [Dissertação]. São Paulo (SP): Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; 2001..

Como já mencionado na introdução, o primeiro curso da região Norte/Nordeste nasceu na mesma época em que o Conselho Federal de Educação transformou os cursos de formação, até então de cunho tecnológico, em "Cursos de Graduação Plena em Fonoaudiologia” e no mesmo ano em que as atividades do Conselho Federal de Fonoaudiologia (CFFa) foram iniciadas.

Na Bahia, as narrativas colhidas em entrevistas com as profissionais pioneiras da área no estado apontam que a busca por profissionais e formação em Fonoaudiologia foi inicialmente mobilizada pela chegada da “ajuda externa voluntária” aos programas sociais internos1616. Cardoso C, Titonel T. A fonoaudiologia na Bahia: uma história recente. Rev. baiana saúde pública. 2004;28(1):96-9.. É o que se destaca do relato de Eliete Leal de Araújo, conhecida como Lia Mara, uma das pioneiras da Fonoaudiologia na Bahia1717. Junior M. Pernambuco: porta de entrada da Fonoaudiologia no Norte/Nordeste. Comunicar. 2011;12(51):22-5.:

“Este trabalho fez com que ‘Irmão Dubois’, o diretor do Instituto de Psicologia da Universidade Católica do Salvador me procurasse para trabalhar com problemas de linguagem e também para participar de um curso específico que seria oferecido por uma fonoaudióloga norte-americana, integrante dos Voluntários da Paz (Peace Corps/ Corpos da Paz) chamada Carol Perry.”

Por outro lado, assim como é relatado nacionalmente, as primeiras práticas fonoaudiológicas na Bahia também surgiram a partir de demandas criadas em programas de saúde/educação públicos, em que professoras no âmbito da Secretaria Estadual de Educação da Bahia recebiam formação especializada para cuidar de alunos com dificuldades de fala, como revela o relato de Sônia Veloso, outra precursora da Fonoaudiologia no estado1717. Junior M. Pernambuco: porta de entrada da Fonoaudiologia no Norte/Nordeste. Comunicar. 2011;12(51):22-5.:

“Na Secretaria da Educação havia Aldina e Vandiva, que trabalhavam como logopedistas. [...] Eram professoras antigas da Secretaria da Educação que fizeram o curso do INES [Instituto Nacional de Educação de Surdos] e atendiam crianças especiais e também aquelas que vinham pela queixa da escola.”

Uma marca singular do início da Fonoaudiologia baiana está relacionada à atuação da Legião Brasileira de Assistência Social (LBA) - Instituição Federal de Assistência Social, criada em 1969 e integrada ao Ministério da Previdência e Assistência Social (MPSA), em 1974. No início dos anos 1980, a LBA financiou diferentes instituições e programas sociais na Bahia. Contudo exigia, para o estabelecimento do convênio, a presença do fonoaudiólogo como membro integrante da equipe técnica. Por essa razão, profissionais de outros estados foram trazidos para trabalhar em clínicas de reabilitação que mantinham convênio com a LBA em Salvador1616. Cardoso C, Titonel T. A fonoaudiologia na Bahia: uma história recente. Rev. baiana saúde pública. 2004;28(1):96-9..

Pode-se afirmar, assim, que a atuação fonoaudiológica na capital baiana tem sua origem fortemente enraizada na “importação” de profissionais para o trabalho com pessoas com deficiência, em iniciativas como a da Sociedade Pestalozzi da Bahia, Instituto Baiano de Reabilitação (IBR), Clínica de Paralisia Cerebral Dr. Pinto Duarte, Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE), entre outras instituições credenciadas pela LBA1010. Nunes RTD, Maia SM. Narrativas sobre o início das práticas fonoaudiológicas na cidade Salvador, Bahia, Brasil. Saúde Soc. 2013;22(3):962-71.,1616. Cardoso C, Titonel T. A fonoaudiologia na Bahia: uma história recente. Rev. baiana saúde pública. 2004;28(1):96-9.. Com o tempo, esse mesmo movimento ocorreu em cidades no interior do Estado, como Feira de Santana.

Entre as décadas de 1970 e 1980, foi criado o Núcleo de Pró-Associação dos Fonoaudiólogos do Estado da Bahia composto por 18 fonoaudiólogas1010. Nunes RTD, Maia SM. Narrativas sobre o início das práticas fonoaudiológicas na cidade Salvador, Bahia, Brasil. Saúde Soc. 2013;22(3):962-71.. Essa associação teve sua participação registrada na história do movimento de luta nacional pela regulamentação da profissão, participando ativamente junto ao Movimento Interestadual das Entidades Fonoaudiológicas (MIEF) e ao Congresso Nacional nesse período. Além disso, o núcleo atuou fortemente na organização da classe fonoaudiológica na Bahia, promovendo eventos científicos como a I Jornada Baiana de Fonoaudiologia, em 1983; e recebendo o II Congresso Brasileiro de Fonoaudiologia, sediado em Salvador/Bahia, em 1986. Além disso, promoveu cursos em áreas de interesse da Fonoaudiologia, buscando aprimoramento profissional e embasamento teórico para a prática, como os cursos que foram ministrados por Elisabeth Teixeira do Departamento de Letras Vernáculas, Instituto de Letras, Universidade Federal da Bahia.

Como se vê, as iniciativas governamentais seguiam de maneira inconsistente e sem planejamento a longo prazo. Assim, a história da Fonoaudiologia na Bahia foi marcada por iniciativas privadas de atuação e formação1010. Nunes RTD, Maia SM. Narrativas sobre o início das práticas fonoaudiológicas na cidade Salvador, Bahia, Brasil. Saúde Soc. 2013;22(3):962-71.. Nessa direção, o Núcleo acima referido auxiliou na criação de uma identidade profissional para o fonoaudiólogo no estado e atuou na divulgação desse ofício em diferentes espaços, buscando seu reconhecimento no âmbito político e social. É o que testemunha Leonora Bastos da Silva, fonoaudióloga que iniciou suas atividades em Salvador em 19761010. Nunes RTD, Maia SM. Narrativas sobre o início das práticas fonoaudiológicas na cidade Salvador, Bahia, Brasil. Saúde Soc. 2013;22(3):962-71.:

“Na administração da prefeita Lídice da Mata tivemos uma reunião com seu Secretário da Saúde. [...] Ele nos pediu um levantamento da necessidade de atuação do fonoaudiólogo em todos os postos de saúde da cidade de Salvador. Foi feito um mutirão com os colegas fonoaudiólogos. [...] Recebemos a visita da professora Maria Augusta Dantas do Nascimento, do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Bahia, falando da possibilidade de criação do Curso de Fonoaudiologia.”

Note-se que o Núcleo de Pró-Associação dos Fonoaudiólogos do Estado da Bahia participou da elaboração do anteprojeto do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal da Bahia, aprovado em 05/06/1995. Nesse ano, foi criada a entidade jurídica Associação Profissional dos Fonoaudiólogos do Estado da Bahia (APROFEB)1717. Junior M. Pernambuco: porta de entrada da Fonoaudiologia no Norte/Nordeste. Comunicar. 2011;12(51):22-5.. Somente em 1999, as primeiras vagas para cursos de graduação em Fonoaudiologia na Bahia foram abertas na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade do Estado da Bahia (UNEB).

Outro ponto a ser destacado na análise da história do curso de Fonoaudiologia da UFBA é a forte presença do movimento estudantil nas mudanças sofridas pelo curso ao longo desses 20 anos de existência.

Entende-se por Movimento Estudantil a constante inquietação e mobilização de estudantes, seja pela mudança de algo posto, seja pela busca do novo no que diz respeito às diferentes esferas da vida estudantil e da sociedade. Na UFBA, o Movimento Estudantil em Fonoaudiologia (MEFa) cumpriu, e ainda cumpre, papel relevante na contínua construção e desenvolvimento do curso de graduação em Fonoaudiologia. Vale destacar que uma das características marcantes do MEFa nesse espaço acadêmico é a autonomia do corpo discente que, em diferentes momentos, agiu de maneira independente com relação ao Diretório Central de Estudantes (DEC) e ao próprio Diretório Acadêmico de Fonoaudiologia (DAFono), até mesmo incitando este último a mobilizar-se diante de pautas consideradas importantes pelos estudantes.

O DAFono /UFBA surgiu no ano de 2000, ou seja, no ano seguinte a abertura da primeira turma do curso de Fonoaudiologia. Surgiu enquanto um instrumento criado por estudantes, cujo objetivo era viabilizar tanto a discussão quanto a conquista de pautas estudantis. Atualmente, o DAFono se traduz como uma síntese do processo de organização e luta estudantil na Fonoaudiologia da UFBA, orientando-se pelo princípio da autonomia e pela construção de uma relação orgânica entre os estudantes e destes com os demais atores do cenário educacional e social mais amplo.

Como dito anteriormente, o curso de Fonoaudiologia da UFBA viveu várias modificações ao longo de sua história e, em boa parte delas, os estudantes organizados fizeram-se presentes. Pode-se mesmo afirmar que no âmbito da graduação em Fonoaudiologia, a participação estudantil torna mais concreta a articulação entre docentes, discentes e técnicos administrativos na busca por melhorias para todas/os. De fato, a atuação do DAFono/UFBA se fez ver na história de luta política/social dentro do curso e na Universidade como um todo, bem como marcou presença no panorama nacional do Movimento Estudantil em Fonoaudiologia.

Ao longo dos anos, o DAFono/UFBA atuou na organização autônoma de eventos científicos e na mobilização de estudantes para a luta, com conquistas concretas na esfera municipal, estadual e nacional. Marcas desse histórico se dão a ver em registros orais e escritos arquivados no próprio DA a partir do ano de 2003. Nesse ano, durante o Encontro Nacional de Estudantes de Fonoaudiologia (ENEFON), que ocorreu na Paraíba, o DAFono trabalhou junto a outros Diretórios Acadêmicos (DAs) da Bahia e de outros Estados da Federação para elaboração do Projeto VER-SUS, promovido pelo Ministério da Saúde em parceria com a Rede Unida e cujo foco é a formação de trabalhadores para o SUS. Ainda em 2003, o DAFono colaborou com a campanha contra o Ato Médico, projeto de lei que tinha como objetivo regulamentar o trabalho do médico e que à época apresentava um texto considerado ambíguo no que dizia respeito à autonomia dos demais profissionais de saúde.

Tais acontecimentos causaram grande alvoroço nos DAs de todo o Brasil, repercutindo na criação de novos diretórios/centros acadêmicos, em mudanças no que se referia às perspectivas tidas como mais “academicistas” no movimento estudantil, na construção de Centros Acadêmicos Unificados e em uma série de modificações no cenário político e universitário locais.

Em 2004, o DAFono/UFBA participou diretamente da construção do ENEFON, reunindo-se com os DAs da UNEB, UNIFESP, PUC-SP, USP e UNCISAL no Conselho Nacional de Entidades Estudantis de Fonoaudiologia (CONEFON) que aconteceu na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O ENEFON, nesse período, foi sediado na UFBA e teve um caráter político tão mobilizador que fortaleceu o estabelecimento de uma greve estudantil na Universidade, com a grande participação de estudantes de Fonoaudiologia.

No ano de 2005, o DAFono/UFBA, inserido na gestão da Diretoria Executiva Nacional dos Estudantes de Fonoaudiologia (DENEFONO), participou do Fórum Social Mundial e da Oficina Nacional de Avaliação do VER-SUS, rompendo em seguida com tal proposta por entender que a imposição das regras apresentadas reduzia a autonomia estudantil no âmbito do projeto. Nessa cena, o DAFono/UFBA foi protagonista no movimento nacional contra a reforma universitária proposta pelo Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI), instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007.

Em 2006, por sua vez, o DAFono /UFBA sediou um CONEFON e participou da construção do ENEFON a ser realizado Vitória-ES e financiado pelo Ministério da Saúde. Este ENEFON foi o primeiro a discutir os eixos do Movimento Estudantil, Movimentos Sociais, Saúde, Educação e Ciência. Segundo Marcos Vinícius de Araújo e Vladimir Arce, ambos docentes do Departamento de Fonoaudiologia da UFBA e membros do MEFa nacional nos anos 2000, e as fonoaudiólogas Ana Carolina Gonçalves e Amanda Jarissa da Silva, formadas pela UFBA, este Encontro foi capaz de “reacender a chama” do MEFa organizado e de todos os estudantes de Fonoaudiologia do país. Nesse período, houve também um maior fortalecimento da luta contra o REUNI.

Os anos que se seguiram foram marcados por muitas lutas, conquistas e perdas por parte do MEFa nacional. A intensidade dos acontecimentos também se fez ver na UFBA, onde se observou a inserção do DAFono no Colegiado e Departamento de Fonoaudiologia enquanto garantia de direito de representação nesses espaços institucionais. Houve, ainda, a conquista de espaço físico próprio e a participação no processo de ajustes curriculares com a apresentação de um novo modo pensar sobre a formação em Fonoaudiologia - um modo que pudesse refletir sobre aspectos sociais, étnico-culturais, políticos e científicos.

Em 2008, com a implementação do REUNI, intensificou-se a onda de manifestações estudantis com a ocupação de reitorias, greves e divergências entre docentes e discentes. O DAFono participou dessas manifestações e lançou o Livro Cinza do REUNI1818. DAFONO/UFBA: Diretório Acadêmico de Fonoaudiologia/Universidade Federal da Bahia. Livro Cinza do REUNI. Dossiê-denúncia das consequências do REUNI. 2008. [cited 2018 March 07]; Available from https://livrocinza.files.wordpress.com/2008/08/livro_cinza_do_reuni.pdf
https://livrocinza.files.wordpress.com/2...
, um dossiê-denúncia das consequências do projeto para a universidade. Esse livro foi dividido em dois volumes, e contava com depoimentos de pessoas ligadas à diferentes cursos de graduação em todo o país. O livro foi endereçado ao Presidente da República Luís Inácio Lula da Silva, ao Ministro da Educação Fernando Haddad, ao Congresso Nacional e ao povo brasileiro. Deve-se destacar que apesar de ter sido uma iniciativa do DAFono /UFBA, a DENEFONO teve papel fundamental na coleta de depoimentos e na propagação da proposta contrária ao REUNI, ao visitar diferentes universidades e organizar a base estudantil nesses espaços.

Com a adesão do curso de Fonoaudiologia da UFBA ao REUNI, os estudantes não deixaram de se movimentar e reivindicar melhores condições de ensino. De fato, essa adesão causou grande impacto, uma vez que o curso dobrou de tamanho, passando a ofertar 60 vagas com entrada de 30 estudantes por semestre, mas manteve estrutura física e de pessoal insuficientes para atender à própria demanda e, embora mudanças tenham ocorrido no quadro de recursos humanos, com a contratação de docentes e técnicos-fonoaudiólogos dedicados ao curso, não se conseguiu atender à carga horária total estipulada pelo currículo vigente.

Do ponto de vista do MEFa, a chegada do REUNI trouxe como efeito a cisão do movimento em esfera nacional. Nesse cenário, mobilizações conjuntas com outros cursos da UFBA foram encaminhadas pelo DAFono, tendo como pauta a reivindicação por mais professores, espaço físico, mobilidade, acessibilidade, garantia de bolsas para permanência na universidade e afins. Além disso, o DAFono promoveu espaços de debate internos e externos com a participação de toda a comunidade acadêmica, inserindo-se em pautas sociais que tratavam de questões étnico-raciais, gênero e orientação sexual, deficiências, educação, saúde e movimentos sociais.

Atualmente, o MEFa nacional passa por um momento de reconstrução. O Movimento busca mobilizar a construção de Encontros Nacionais que permitam a reflexão sobre a posição do estudante de Fonoaudiologia nos espaços institucionais, colocando-se de forma contrária a quaisquer tipos de opressão dentro da Universidade e, especificamente, na relação docente-discente. Internamente, no ano de 2016, o DAFono /UFBA participou no Fórum Acadêmico de Saúde da UFBA e das iniciativas de organização de Encontros Regionais de Estudantes de Fonoaudiologia (EREFON). De grande importância é a participação do DAFono na comissão de avaliação docente do Departamento de Fonoaudiologia e nas atividades do Núcleo Docente Estruturante (NDE) do curso de graduação em Fonoaudiologia, auxiliando de maneira ativa nas reflexões que sustentam os passos de elaboração de um novo projeto pedagógico para o curso.

Conclusão

A história da Fonoaudiologia no Brasil retrata a história da luta de profissionais e estudantes pela conquista de espaço, autonomia e amadurecimento de uma profissão que atua em diferentes frentes e de diferentes modos sobre a existência humana, buscando colaborar com a manutenção da saúde e bem-estar da população. Na Bahia, as particularidades do processo de construção profissional do fonoaudiólogo não escondem a força da luta coletiva em defesa da Fonoaudiologia. Essa força vê-se refletida na história que sustenta a criação do curso de Fonoaudiologia da UFBA e na presença marcante do movimento estudantil na consolidação do curso ao longo dos anos, colocando em evidência a indissociabilidade entre demandas educacionais e de saúde nesse processo.

Hoje a Fonoaudiologia enfrenta o desafio de avaliar o fato que o cenário atual no campo da saúde e da educação obriga a dar um passo a mais na direção de melhor compreender e atender às demandas sociais de formação e assistência que insistem a pressionar por mudanças. É esse o movimento que mobiliza profissionais e entidades da área a repensar as diretrizes curriculares nacionais para a graduação. Nesse sentido, o presente trabalho pode ser referido como um esforço de historicização que aponta para algo além do que um simples registro histórico. O resultado dessa pesquisa compõe uma memória que pode contribuir para o aprimoramento do curso de graduação em Fonoaudiologia da UFBA, mas também se coloca como um solo para uma reflexão mais aprofundada sobre a formação profissional e cidadã do fonoaudiólogo na graduação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    26 Mar 2019
  • Aceito
    01 Jul 2019
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