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Rumo à contabilidade econômica ou à nobre origem?

PENSATA

Rumo à contabilidade econômica ou à nobre origem?

Sérgio de Iudícibus

Professor Emérito da Universidade de São Paulo e Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Como se sabe (Martins, 2012), a contabilidade é composta por três conjuntos: o patrimonial puro, o econômico e o social. Quase todas as principais conceituações foram apresentadas sob o aspecto puramente patrimonial, inicialmente. Assim, foram definidos Objeto e Objetivo da contabilidade, tomando como base, na verdade, a empresa de antanho, onde o dono do capital era o gerente da entidade (Martins, 1972). Mas, o mundo dos negócios e o entorno empresarial foram se ampliando e complicando-se cada vez mais à medida que a gerência foi, aos poucos, se dissociando dos donos do capital. Isto, no início, provocou uma série de problemas, visto que algumas metas que os gerentes gostariam de maximizar não eram, propriamente, do interesse dos donos do capital. Felizmente, entrou a turma do "deixa disso" (economistas) e se criou a Teoria da Agência a qual, em parte, harmonizou objetivos de gerentes e donos. Mais recentemente, o excesso de ganância de uns e outros, bem como de outros participantes do mercado, levou aos grandes escândalos contábeis, mas esta é uma história que já foi contada em prosa e verso.

Hoje, a interface entre os três conjuntos citados acima é bastante grande, principalmente entre o patrimonial e o econômico e, nos países europeus continentais e latinos, o social. Décadas atrás, a contabilidade vivia num idílio platônico com ela mesma, glorificando o custo histórico, até que os economistas (segundo Nelson Carvalho) bateram à nossa porta, mostrando que estávamos dormindo em berço esplêndido e que as empresas, entre outros problemas causados pela inflação, estavam pagando imposto sobre uma parte do lucro que era fictícia. Aí, se começou a correr atrás, edificando modelos engenhosos de correção monetária, extrapolando até para Custo de Reposição (versão benigna do Valor Justo?), Custo de Reposição Corrigido etc.

Realizaram-se esses aperfeiçoamentos de forma escorreita e nunca deixando de lado a fluidez dos relatórios contábeis, de período a outro, e sem destruir o custo histórico, de forma que os usuários da informação podiam avaliar tendências de maneira continuada e sem sobressaltos.

Estruturas conceituais foram construídas pelos teóricos (Sprouse & Moonitz, 1962; Moonitz, 1961; Mattessich, 1964; Hendriksen, 1970; Iudícibus, 2010; e outros) seguindo aquela linha evolutiva e sempre de acordo com os pilares fundamentais da contabilidade, que são o Stewardship e a Accountability. Contabilidade não é, historicamente, uma forma de avaliação a valor de mercado das ações ou econômica subjetiva do patrimônio da entidade, mas sim de alocação aos períodos dos recursos colocados à disposição dos gestores e que, entre outras funções, avalia o progresso da entidade e o desempenho dos próprios gestores.

Desde 1973, todavia, dois novos atores globais entram no cenário contábil: Financial Accounting Standards Board -FASB e International Accounting Standards Board - IASB, mais inclinados a privilegiar os investidores, sob o ponto de vista informacional, embora não ignaros dos credores e outros stakeholders. Ao mesmo tempo em que a globalização avança de forma avassaladora, aumentam a importância e intervenção de FASB e IASB, esse sob o argumento (correto) da comparabilidade contábil entre países, de forma que um investidor, em qualquer região do globo, possa avaliar a melhor oportunidade de investimento, visto que os relatórios contábeis de cada país estariam harmonizados ao nível do mesmo conjunto de operações. Conhece-se bem essa epopeia que aportou no Brasil, finalmente, em 2007, via IASB, Leis, CPC etc. A contabilidade nunca mais seria mesma, pois, em lugar de seguir uma lógica e estrutura próprias e antigas, seria levada a colocar a economia como parâmetro essencial Murphy e outros (2013). Accounting follows Economics, diz o eminente Nelson Carvalho. A versão final do Capítulo 1 do IASB/FASB Conceptual Framework for Financial Reporting (2010) explicitamente reconhece como únicos usuários os chamados Providers of Capital (investidores e credores). Parece que esse Capítulo 1, pelo menos, não será alterado. Mas, será que, ao adotar esta premissa, a Contabilidade, como ciência, não acabaria se transformando, quando muito, num sub-ramo da economia e perdendo um pouco naquilo que eram seus antigos atributos, ou seja, o Stewardship e a Accountability? Essas questões são muito sutis e pouco se fazem notar aos neófitos em teoria contábil. Surge, como consequência da aceitação dos conceitos do IASB/FASB, é claro, o tão impactante Fair Value (Valor Justo). Todos ficaram extasiados com isso! Finalmente, o balanço terá valor preditivo, não mais será um mero retrato do passado, como se o passado fosse totalmente desprovido de potencialidade preditiva e uma dimensão relegável ao esquecimento! Contadores sempre serão os melhores previsores a partir do passado! É do DNA da disciplina contábil.

A eventual "Anglo-saxonização" da contabilidade, a vassala da economia, fica ainda mais clara quando se pensa que o Fair Value (Valor Justo) é um valor de saída, quando não um complexo resultado de fórmulas matemáticas! O caráter econômico neoliberal pronunciado dos conceitos do IASB/ FASB, Murphy e outros (2013) de certa forma, poderia fazer retroceder a contabilidade, no limite (caso se chegue a aplicar Valor Justo a todos os ativos e passivos) -o que parece, no momento, não ser a tendência do IASB - à era dos inventários levantados de quando em quando, avaliando-se seus ativos e passivos, no caso, a valor justo, como regra geral (Iudícibus, 2010). Seria mais uma espécie de Valuation e não a ciência contábil como a conhecíamos (Iudícibus, 2010). É claro que sempre se defendeu que a informação contábil tem que seguir muito mais a essência econômica do que a forma jurídica. Mas, isto não é o mesmo que transformar a contabilidade, em certos aspectos, em episódicas avaliações, não deixando pistas dos valores originais, pelo menos para o usuário externo. O IASB/FASB no fundo, filosoficamente, não estão tão interessados na contabilidade como sistema, fluido em sua Stewardship e Accountability, ou estão interessados subsidiariamente. Estão mais focados na avaliação a valores de mercado, como se a análise de tendências e de progresso devesse ser feita através de comparação entre um valor justo e outro, escondendo a origem de tudo, que foi o custo original. De resto, grandes autores, como Ohlson (1995), abominaram valores de mercado (e as normas do IASB) e erigiram a base de suas teorias (bem sucedidas, ao que parece) sobre o custo histórico. Têm-se muitas dúvidas, também, sobre esta proposição, mas o fato é que tem funcionado em pesquisas, chamando a atenção para a importância maior de indicadores puramente contábeis como valor patrimonial da ação, lucro por ação, mais decisivos do que a caterva de indicadores em moda, como EBITDA, EVA etc.

A avaliação de Progresso da Entidade e a Accountability, na verdade, são os parâmetros históricos essenciais da Contabilidade, a Living Law, Murphy e outros (2013) da Contabilidade em sua função de controle e que a caracterizam como ciência única e distinta das demais. Eles definem Living Law, de forma mais simples, como "a tradição moral ou consuetudinária de determinada comunidade". Assim, esses conceitos que datam da antiguidade da contabilidade desembocam na visão da stewardship/accountability e se materializam através de sucessivas contabilizações e relatórios obedecendo à sistemática das partidas dobradas, evitandose avaliações peremptórias e de sobressalto. Valores atualizados podem e devem ser incorporados, mas sempre a partir dos valores originais corrigidos por algum tipo de coeficiente extraído de índices de preços, gerais ou específicos (Iudícibus, 2010). Interessante notar como as normas da regulação têm sido avançadas e até quase temerárias em certos casos, como a própria adoção do Valor Justo, se generalizada, e, principalmente, a avaliação de ativos biológicos a valor justo e, ao mesmo tempo, extremamente tímidas ou ausentes de todo no que se refere a intangíveis criados internamente, por exemplo, ou aos aspectos sociais. Se Accounting follows Economics, então se deveria segui-la em todos os aspectos. Se é da opinião, na verdade, embora reconhecendo que a interface patrimonial com a econômica ainda seja a mais importante, que Accounting follows Society ou Accounting follows Accounting! Valores atualizados (como Custo de Reposição) podem muito bem ser introduzidos de forma sistemática como já fora feito com a correção monetária integral, no Brasil. Não se trata, portanto, de uma volta ao passado, mas de uma reconciliação com os estudos e achados de tantos pesquisadores que, muito antes do FASB/IASB, já professavam uma contabilidade moderna (Edwards & Bell, 1961). As conceituações e normatizações do IASB/FASB representam um grande passo regulatório e um progresso inegável, principalmente na transparência da contabilidade brasileira. Mas, como pesquisadores, é dever uma atitude atenta e crítica/construtiva, quando necessário, dispostos, até, a enriquecer e ampliar a perspectiva conceitual dos reguladores, de um espectro puramente econômico para outro mais amplo, social. O IASB e FASB foram, inicialmente, muito influenciados por pensadores contábeis. Atualmente, parece que são esses últimos que se sentem desafiados pelas conceituações regulatórias.

Esses pensamentos são o resultado de pesquisas, leituras e achados ainda embrionários e que buscam suscitar maiores aprofundamentos. Não devem ser considerados como definitivos, nem mesmo os subscritos, entre parênteses, pelo autor. Os conceitos do artigo de Murphy e outros (2013), embora impactantes para esta Pensata, de forma alguma podem ser considerados coincidentes com certas conclusões, que são de minha responsabilidade.

  • Edwards, E. O., & Bell, P. W. (1961). The Theory and Measurement Of Business Income Berkeley: University Of California Press.
  • Hendriksen, E. S. (1970). Accounting theory Homewood, R. Irwin.
  • International Accounting Standards Board - IASB/ Financial Accounting Standards Board - FASB. (2010). Conceptual Framework for Financial Reporting
  • Iudícibus, S. (2010). Teoria da Contabilidade São Paulo: Atlas.
  • Martins, E. (1972). Contribuição à Avaliação do Ativo Intangível Tese de Doutorado, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • Martins, E. A. (2012). Pesquisa Contábil Brasileira: uma análise filosófica Tese de Doutorado, Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil.
  • Mattessich, R. (1964). Accounting and analytical methods Homewood, R. Irwin, Inc.
  • Mattessich, R. (1972, July). Methodological preconditions and problems of a general theory of accounting. The Accounting Review, 47(3),469-487.
  • Moonitz, M. (1961). The basic postulates of accounting New York: AICPA.
  • Murphy, T., O'Connell, V., & Ó Hógartaigh, C. (2013). Discourses surrounding the evolution of the IASB/FASB Conceptual Framework: what they reveal about the "living law" of accounting. Accounting, Organizations and Society, 38(1),72-91.
  • Ohlson, J. A. (1995). Earnings, book values, and dividends in equity valuation. Contemporary Accounting Research, 11(2),661-687.
  • Sprouse, R. T., & Moonitz, M. (1962). A tentative set of broad accounting principles for business enterprises New York: AICPA.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Abr 2013
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