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Mito e direito no tempo do destino: aspectos da crítica benjaminiana à percepção moderna da experiência

Myth and law in destiny’s time: aspects of Walter Benjamin’s critique towards modern experience

Resumo

Este artigo buscará apresentar alguns aspectos da crítica benjaminiana à concepção da experiência na modernidade, voltando-se, mais especificamente, para o complexo conceitual que relaciona os conceitos de mito, destino e direito. Trata-se de dar a ver em que medida Benjamin coloca em crítica a naturalização de uma ordem mítica, vinculada ao desenvolvimento do capitalismo, na qual a experiência parece-lhe destituída de seu caráter afirmativo e criador do que é verdadeiramente novo.

Palavras-chave:
Walter Benjamin; Mito; Direito; Destino; Violência

Abstract

This article intends to indicate some aspects of Walter Benjamin’s critique towards modern experience, turning, more specifically, to the conceptual complex that involves the concepts of myth, destiny and law. The work seeks to show how Benjamin criticize the naturalization of a mythical order, related to capitalism’s development, in which experience seems to be destitute of its affirmative, historical and creative character.

Keywords:
Walter Benjamin; Myth; Law; Destiny; Violence

I. Introdução

Muitas são as entradas possíveis na obra de Walter Benjamin e cada forma de encontrá-la implica efeitos distintos, ainda que jamais desconectados, dada a lógica de ressonâncias que caracteriza a produtividade de seus conceitos. Se a filosofia benjaminiana recusa apresentar-se como sistema fechado1 1 Michael Löwy pontua com razão que: “Não há, em Benjamin, um sistema filosófico: toda a sua reflexão toma a forma do ensaio e do fragmento - quando não da citação pura e simples, em que as passagens tiradas de seu contexto são colocadas a serviço de seu próprio itinerário.” (LÖWY, 2005: 17) , impõe ao leitor a necessidade de alcançá-la não tanto por meio da cristalização do sentido de seus conceitos, mas pelo acompanhamento dos movimentos críticos que realiza na composição de constelações conceituais singulares. Benjamin parece levar a sério a tarefa de conjurar o encerramento de sentidos daquilo que se apresenta ao pensamento, mantendo seus instrumentos críticos abertos ao encontro com o mundo no qual são chamados a penetrar.

A fragmentação e a cesura características da obra são, assim, elementos de sua potência, e não denunciam a suposta ausência de uma ordem que faltaria à obra. Não se confunde com indeterminação ou arbitrariedade pouco afeitas à lógica conceitual; ao contrário, o aspecto fragmentário e os complexos conceituais evidenciam o esforço do autor por manter aberta a criação de composições sempre novas - o que exige, por sua vez, disposição para sempre recomeçar.

Este artigo busca ensaiar uma entrada na obra de Benjamin a fim de apresentar alguns apontamentos sobre a crítica formulada pelo autor à concepção moderna da experiência, destituída, a seus olhos, do caráter afirmador da sua singularidade em relação àquilo que é dado como realidade. Trata-se de buscar compreender de que modo a crítica que deságua na formulação de uma filosofia da história por Benjamin, na qual o tema da memória é central, é inseparável da crítica à desvalorização, na modernidade de capitalismo avançado, da experiência histórica capaz de criar o que é efetivamente novo.

Será necessário levar em conta o fato de que uma análise dos temas que ocuparam o autor na fase mais madura de seus escritos, como é o caso da filosofia da história e da memória, se relacionam com os textos ditos de juventude. A separação mais dura de sua obra a partir do critério cronológico inscreve a análise no risco de perder de vista nuances importantes da crítica, que podem ser apreendidas a partir da leitura dos seus textos que datam do fim da década de 1910 e do começo dos anos 1920.

Disso se desprende que a tarefa de pôr em crítica o presente, a partir do estudo da obra benjaminiana, pode ser potencializada quando se alcança a elaboração de seu pensamento considerando aquilo que o impulsiona desde cedo e que ressoa até suas últimas reflexões, como é o caso da crítica à experiência moderna e à ordem burguesa. Para Benjamin, na modernidade, a experiência efetivamente histórica parece ter se neutralizado, perdendo com isso a capacidade de produzir o novo. Perceber que a crítica à experiência “dos mais velhos” permeava os textos da juventude indica um caminho interessante para analisar o que foi por Benjamin desenvolvido ao longo do tempo, e que tomou a forma de uma crítica materialista nos termos de uma outra filosofia da história.

Para abordar a perspectiva benjaminiana, a chave de leitura deste trabalho reside em uma compreensão de que a desvalorização da experiência propriamente histórica, apontada por Benjamin, ganha sentido quando se percebe que, na modernidade, ela tende a destituir-se do seu caráter afirmativo, enquanto diferença singular sobre as estruturas já formadas da realidade. Nesse sentido, a experiência moderna aparece ao autor destituída de seu sentido autêntico, político e histórico, e é tão mais profundamente enredada na reprodução do estado de coisas quanto mais se perde de vista a existência da rede na qual se encontra emaranhada e que, por isso, tende a determiná-la.

A crítica à experiência moderna esvaziada de seu sentido de afirmação singular apresenta-se nos escritos benjaminianos, sobretudo, em termos de mito, direito e destino e se desenvolve a partir da relação engendrada, nesse contexto, entre vida e culpa. A caracterização benjaminiana da experiência presa à ordem do mito ressoa ao longo da obra, de maneira mais ou menos evidente, mas certamente não se encerra nas suas primeiras reflexões. Por esse motivo, o presente trabalho buscará alcançar alguns aspectos dessa constelação conceitual, a fim de caracterizar o tipo de experiência criticada por Benjamin - ainda que sem a pretensão de exaurir o tema ou seus efeitos, tarefa que dificilmente poderia ser concluída, em se tratando da obra aberta e ressoante de Walter Benjamin.

II. Mito, direito, violência

Com forte presença nos primeiros textos de Walter Benjamin, caracterizados por preocupações de tom mais metafísico, e nas obras voltadas à filosofia da linguagem, as reflexões que mobilizam o conceito de mito ganham com o tempo contornos mais materialistas (GAGNEBIN, 2013aGAGNEBIN, Jeanne Marie. Apresentação. In: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013a, pp. 7-11.: 9). A ordem do mito e sua vinculação com o direito e o capitalismo, isto é, com a manutenção da ordem burguesa, compõem uma parte importante da formulação da crítica benjaminiana a respeito das concepções modernas hegemônicas de experiência, tempo e história.

Se o tema do mito ocupa Benjamin desde a juventude, é no ensaio Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem dos homens, de 1916, que se inicia uma conexão mais estreita entre a representação temporal e a ordem do mito, que passa a designar, então, uma determinação do tempo e do ordenamento históricos (HARTUNG, 2014HARTUNG, Günter. Mito. In: OPTIZ, Michael; WIZISLA, Erdmunt (ed.). Conceptos de Walter Benjamin. Buenos Aires: Las cuarenta, 2014.: 774).2 2 Mais especificamente, no mencionado ensaio, Benjamin escreve a certa altura: “Essa imediatidade na comunicação do abstrato instalou-se como judicante quando o homem, pela queda, abandonou a imediatidade na comunicação do concreto, isto é, o nome, e caiu no abismo do caráter mediado de toda comunicação, da palavra como meio, da palavra vã, no abismo da tagarelice. Pois - é preciso repetir ainda uma vez - a pergunta sobre o bem e o mal no mundo depois da Criação foi tagarelice. A árvore do conhecimento não estava no jardim de Deus pelas informações que eventualmente pudesse fornecer sobre o bem e o mal, mas sim como insígnia do julgamento sobre aquele que pergunta. Essa monstruosa ironia é o sinal distintivo da origem mítica do Direito.” (BENJAMIN, 2013 [1916]: 67-68). Daí em diante, o mito passa a condensar a preocupação de Benjamin com a liberação da experiência em relação ao seu enredamento em uma ordem que tende a determiná-la, ao incidir sobre ela quase imperceptivelmente. Tal ordem efetua, em termos benjaminianos, a incidência de forças míticas sobre o vivente, atrelando-o ao destino. É importante destacar que, em Benjamin o mito e o mítico:

não designam uma época da humanidade supostamente superada pela racionalidade, mas sim um fundo de violência que sempre ameaça submergir as construções humanas, quando estas repousam sobre a obediência às convenções sociais e não sobre decisões tomadas por sujeitos que se arriscam a agir histórica e moralmente. (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
:1941)

Colocação que perde sentido se não lembrarmos que “para o jovem Benjamin a moral não tem a ver com a aceitação do direito, mas sim com a busca da justiça”. (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
: 1941).

A crítica à ordem do mito converge, em Benjamin, com seu olhar atento para os rumos da sociedade moderna, marcada pelo desenvolvimento do capitalismo e por sua naturalização cada vez mais profunda. No fragmento Capitalismo como religião, de 1921, o autor relaciona explicitamente a ordem do mito ao desenvolvimento do capitalismo. Ainda que o fragmento não tenha sido escrito para ser publicado, o que torna sua análise certamente mais complexa e pouco evidente, é interessante abordá-lo em seus aspectos principais, mesmo a título de apresentação, a fim de acompanhar o traço desenhado por Benjamin ao relacionar as transformações produzidas na concepção moderna da experiência e o desencadeamento das forças míticas, com o avanço do capitalismo.

O texto, que começa com a frase “É preciso ver no capitalismo uma religião” (BENJAMIN, 2018a______. O capitalismo como religião. In: ______. O Anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a, pp. 35-38. [1921]: 35), elenca algumas características do sistema capitalista que remetem a uma estrutura religiosa.3 3 Importa notar, ainda que sem a chance de aqui desenvolver o tema com maior profundidade, que acompanhamos a percepção de Jeanne Marie Gagnebin acerca de uma distinção na obra de Walter Benjamin entre religião e teologia. Se, como ela, tomarmos por religião “um conjunto de teorias e práticas que visa à integração do homem no mundo, sua ligação com ele e, principalmente, a aceitação do sofrimento e da morte por meio do reconhecimento de um sentido transcendente” (GAGNEBIN, 2014, p. 188), compreendemos que a presença da teologia nos escritos de Walter Benjamin disso se diferencia. O motivo desta distinção aparece nas teses sobre a história (onde o assunto parece expressar-se de forma mais explícita), mas também antes disso, por exemplo, no ensaio Sobre linguagem em geral e a linguagem do homem e em Frankz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte, de 1916 e 1934, respectivamente. Cf. GAGNEBIN, 2014. Benjamin afirma que é característica do sistema capitalista absorver os elementos míticos das religiões que o precederam para constituir seu próprio mito, e aponta três traços da estrutura religiosa do capitalismo (BENJAMIN, 2018a [1921]: 35-38).

O primeiro desses traços diz respeito ao fato de o capitalismo ser, segundo Benjamin, uma religião cultual sem qualquer dogma ou teologia, mas onde “as coisas ganham significado em sua relação direta com o culto” (BENJAMIN, 2018a______. O capitalismo como religião. In: ______. O Anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a, pp. 35-38. [1921]: 35). Esse aspecto remete, para Benjamin, a um utilitarismo em formato religioso. Segundo Michael Löwy, as práticas utilitárias típicas do modo de vida engendrado no e pelo capitalismo seriam equivalentes a um culto religioso dedicado à adoração do dinheiro (LÖWY, 2019: 14-15), ao que se segue que: “o dinheiro - ouro ou o papel -, a riqueza, a mercadoria seriam algumas das divindades ou ídolos da religião capitalista e sua manipulação ‘prática’ na vida capitalista corrente constitui um conjunto de manifestações cultuais, fora das quais ‘nada tem significação’” (LÖWY, 2019: 17).

Em segundo lugar, Benjamin aponta que o culto da religião do capitalismo tem uma duração permanente - “não há dia que não seja festivo no sentido terrível da ostentação de toda pompa sagrada, da mais extrema intensidade da veneração” (BENJAMIN, 2018a______. O capitalismo como religião. In: ______. O Anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a, pp. 35-38. [1921]: 35). As práticas do capitalismo “não conhecem pausa”; precisam penetrar e transformar não só os modos de produção, mas todas as dimensões da vida, sem trégua e sem descanso. Talvez seja possível afirmar que esse elemento se relacione justamente com a percepção do capitalismo como uma ordem que enreda a vida e produz transformações na percepção do tempo e da experiência, constituindo-se como uma rede na qual o indivíduo se encontra emaranhado, e cuja profunda naturalização contribui para que dela não se apresentem saídas - por isso, trata-se sempre de criá-las.

O terceiro aspecto elencado por Benjamin para caracterizar o capitalismo como religião é que opera a partir da reprodução de uma culpa fundamental e natural. Assim, ainda que o culto seja constante, não guarda um caráter expiatório; diz respeito, ao contrário, à produção permanente da culpa e da dívida (ambos sentidos condensados no termo alemão Schuld, usado por Benjamin, como também por Nietzsche, antes dele). Benjamin afirma que mesmo o Deus do capitalismo precisa ser sempre ocultado e só pode ser invocado em sua culpabilização (BENJAMIN, 2018a______. O capitalismo como religião. In: ______. O Anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a, pp. 35-38. [1921]: 35). Ainda com Löwy, isso indicaria que, no capitalismo, a culpa alcança o próprio Deus, envolvendo-o em uma culpa universal e generalizada: “se os pobres são culpados e excluídos da graça, e se, no capitalismo, eles estão condenados à exclusão social é porque ‘é a vontade de Deus’ ou, o que é seu equivalente na religião capitalista, a vontade dos mercados.” (LÖWY, 2019: 20).

Ainda, se a forma de produção capitalista e a forma social a ela correspondente e dela inseparável podem ser vistas por Benjamin como um sistema religioso, José Antonio Zamora chama a atenção para o fato de que é particular a essa “religião” não se estruturar a partir da bifurcação entre imanência e transcendência (ZAMORA, 2009ZAMORA, José Antonio. W. Benjamin: crítica del capitalismo y justicia mesiánica. In: RUIZ, Castor Bartolomé (org.). Justiça e memória: Para uma crítica da violência. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009.: 53). Ao contrário da maioria das demais religiões, o capitalismo não conta com uma “divindade solícita com suas estruturas” (ZAMORA, 2009: 53); é na imanência da vida que os conflitos dessa ordem se realizam e se podem solucionar, mas essa imanência é, ela própria, muito específica porque fechada em si mesma (ZAMORA, 2009: 53). Como resultado desse processo de culto através da culpabilização universal e permanente da vida no capitalismo, o que se tem como resultado é um desespero generalizado (ou uma desesperança generalizada, conforme a tradução de Michael Löwy). Escreve Benjamin, traduzido por João Barrento:

É este o lado historicamente inaudito do capitalismo, o fato de a religião já não ser uma forma do ser, mas a sua aniquilação. É a expansão do desespero até o ponto em que ele se transforma em estado religioso universal do qual se espera que venha a salvação. É o fim da transcendência de Deus. Mas Ele não está morto, foi absolvido pelo destino humano. (BENJAMIN, 2018a______. O capitalismo como religião. In: ______. O Anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a, pp. 35-38. [1921]: 36).4 4 Destaca-se a diferença dos termos escolhidos por Michael Löwy para traduzir o mesmo trecho, ainda que o sentido não se modifique drasticamente de uma à outra tradução: “Há na essência desse movimento religioso que é o capitalismo de perseverar até o fim, até a completa culpabilização final de Deus, até o estado do mundo atingido por uma desesperança que ainda esperamos completamente justa. O que o capitalismo tem de historicamente extraordinário é que a religião não é mais reforma, mas ruína do ser. A desesperança se estende ao estado religioso do mundo do qual dever-se-ia esperar a salvação.” (LÖWY, Michael. 2019: 21-22).

O fragmento termina com a indicação do que parece ser a bibliografia utilizada por Benjamin e alguns apontamentos que indicam direções para os próximos passos de sua reflexão. Entre eles, lê-se: “Capitalismo e direito. Caráter pagão do direito: Sorel, Réflexions sur la violence, p. 263.” A influência de Sorel aparece mais diretamente no texto Para a crítica da violência, de 1921, onde a crítica benjaminiana a respeito da ordem mítica em sua relação com o capitalismo se volta para a estreita relação entre as violências do direito e seu papel na preservação da ordem burguesa. Nesse texto intrigante, que deu azo a uma série de interpretações e comentários posteriores por parte de diversas filósofas e filósofos, Benjamin estabelece que a instauração e a manutenção, pela violência, da ordem do direito, como sucessora do mito, atrelam o vivente à realização de um destino pelo estabelecimento de um nexo de culpa.5 5 Importa lembrar que foi também nos primeiros anos de 1920 que Benjamin escreveu o ensaio sobre As afinidades eletivas de Goethe, onde a crítica produzida pelo complexo conceitual de mito, destino e direito é muito profundamente elaborada, e onde o mito é tomado por Benjamin como o teor coisal do romance. Para um estudo aprofundado da obra de Benjamin realizada a partir do ensaio sobre As afinidades eletivas, ver CASTRO, 2011.

No texto, Benjamin realiza uma crítica da violência não restrita aos limites daquilo que o pensamento jurídico positivista ou jusnaturalista pôde sobre isso produzir. De acordo com a argumentação benjaminiana, essas teorias estabelecem como base para a crítica a legitimidade do uso da violência a partir da suposição de uma certa conciliação entre fins e meios, de modo que ora a justificação dos meios se dá pelo julgamento dos fins como justos (no caso do direito natural), ora, inversamente, mas ainda na mesma direção, tem-se que a justificação dos fins deve-se à legitimidade dos meios (no direito positivo).

Benjamin parece se desviar do “dogma comum fundamental” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 124) a ambas as escolas, no qual a crítica da violência acaba encerrada no círculo dessa inquestionada relação de reciprocidade entre fins e meios que se justificariam. Essa perspectiva jurídica se desvia, para o autor, de uma reflexão crítica sobre a violência que seja capaz de considerá-la em si mesma. Busca, então, alcançar a crítica sem se deter aos limites das concepções produzidas pelo pensamento jurídico, de modo que ela passe também por uma análise da relação historicamente entretida entre o próprio direito, como instauração e manutenção de uma certa ordem (burguesa), e a violência.

Nesse sentido, Benjamin põe em crítica a reciprocidade inquestionada de fins e meios justos, colocando para o pensamento a necessidade de produzir uma crítica da violência que considere a hipótese de uma “antinomia insolúvel” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 124) entre esses elementos, para além da justificação recíproca de meios e fins que se mantêm como dois sentidos de uma mesma direção. Benjamin afirma que “nenhuma luz poderia ser vislumbrada, a esse respeito, enquanto não se sair desse círculo e não se estabelecer critérios mutuamente independentes tanto para fins justos como para meios justificados.” (BENJAMIN, 2013 [1921]: 124). Trata-se, então, de buscar compreender a crítica da violência para além da relação estabelecida pelos critérios das teorias que fundamentam o poder do direito.

Colocado o problema, Benjamin afasta de pronto sua investigação de uma reflexão acerca do domínio dos fins, ou seja, afasta-se, em seu ensaio, da pergunta por um critério de justiça: “ao invés disso, encontra-se em seu centro [da investigação] a pergunta pela justificação de certos meios que constituem a violência”, na medida em que os “princípios do direito natural não podem decidir esta pergunta, mas apenas levar a uma casuística sem fundo. Pois, se o direito positivo é cego para o caráter incondicional dos fins, então o direito natural o é para o caráter condicional dos meios” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 124). E explica:

a teoria positiva do direito é aceitável como fundamento hipotético no ponto de partida desta investigação, porque ela compreende uma diferenciação fundamental quanto aos tipos de violência, independentemente dos casos de sua aplicação. Essa diferenciação se dá entre a violência historicamente reconhecida, a violência, assim chamada, sancionada e não sancionada. Se as reflexões que se seguem procedem dessa diferenciação, isso não significa, é claro, que as formas dadas de violência podem ser classificadas em termos de serem ou não sancionadas. Pois, em uma crítica da violência, o critério para esta última, no direito positivo, não pode passar por sua aplicação, mas somente por sua avaliação. [...] se o critério que o direito positivo estabelece para a conformidade ao direito da violência só pode ser analisado segundo seu sentido, então a esfera de sua aplicação deve ser criticada segundo seu valor. Para esta crítica, deve-se então encontrar o ponto de vista externo à filosofia do direito positivo, mas também externo ao direito natural. [...] apenas a reflexão histórico-filosófica sobre o direito pode fornecer tal ponto de vista [...] (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 124-135).

Sem pretender exaurir os sentidos deste trecho, trata-se de alcançar a perspectiva benjaminiana que irá orientar sua formulação crítica sobre a violência a partir da diferenciação, no direito positivo, entre os tipos de violência. Se Benjamin desvia das teorias do direito natural e positivo, guardando, ainda assim, a perspectiva da distinção entre as violências sancionadas ou não pelo direito, isto é, legítimas ou não do ponto de vista da ordem do direito, se coloca ao crítico a necessidade de buscar compreender essa fundamentação a partir de uma reflexão histórico-filosófica do próprio direito:

Na medida em que o reconhecimento das forças do direito se manifesta de maneira mais tangível fundamentalmente na submissão sem resistência a seus fins, pode-se tomar por base como classificação hipotética quanto aos tipos de violência a existência ou a falta de um reconhecimento histórico geral de seus fins. Fins que prescindem desse reconhecimento devem ser chamados de fins naturais, os outros, fins de direito. (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 125-126)

Mais adiante, Benjamin afirma, a partir da observação das relações de direito na Europa de seu tempo, que se trata para esta ordem de retirar do indivíduo a possibilidade de alcançar fins naturais pelo uso da violência, erigindo entre esses fins e sua concretização fins de direito que apenas o poder jurídico pode produzir - “Pode-se formular como máxima geral da legislação europeia atual o seguinte: todos os fins naturais dos indivíduos devem colidir com fins de direito, quando perseguidos com maior ou menor violência.” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 126).

Para Benjamin, um sistema de direito se torna insustentável se permitir, em qualquer parte onde pretenda valer, a perseguição de fins naturais de maneira violenta, para além, portanto, da sua ordenação como fins de direito (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 127). O desenvolvimento da crítica dá a ver que, da perspectiva do direito, a violência nas mãos dos indivíduos se torna sempre e antes de tudo um perigo capaz de comprometer a ordenação do direito - mas igualmente, que é justamente a possibilidade de alcançar fins naturais por meios que ameacem o direito como ordem, que se pode dar à ação dos indivíduos a forma da violência, pelo direito. É nesse sentido que Benjamin afirma que se deve levar em conta a possibilidade surpreendente de que:

o interesse do direito em monopolizar a violência com relação aos indivíduos não se explicaria pela intenção de garantir os fins de direito mas, isso sim, pela intenção de garantir o próprio direito; de que a violência, quando não se encontra nas mãos do direito estabelecido, qualquer que seja este, o ameaça perigosamente, não em razão dos fins que ela quer alcançar, mas por sua mera existência fora do direito. (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 127).

Diante do direito, toda manifestação que o ameaça ou é capturada e transformada em fins de direito (o que determina, e pretensamente, limita o eventual caráter destrutivo que qualquer ação possa apresentar à ordem estabelecida), ou é transformada em proibição, como violência não-sancionada, também elevando, entre a ação e o fim natural que persegue, fins de direito que devem garantidos. Podemos compreender assim que, em Benjamin, a crítica da violência não se restringe a uma concepção desta última como manifestação de cólera, uso arbitrário da força física, tampouco como destruição ou aniquilamento do ponto da relação sobre o qual se dirige o poder, mas se refere à própria instauração de determinada ordem como poder e à sua manutenção, a partir de instrumentos de positivação e normatização jurídicas.

Benjamin identifica, nesse sentido, dois tipos de violência constitutivas do direito e das quais esta ordem não pode abrir mão: a violência instauradora e a mantenedora do direito. Para o autor, “a violência na instauração do direito tem uma função dupla, no sentido de que a instauração do direito almeja como seu fim, usando a violência como meio, aquilo que é instaurado como direito, mas, no momento da instauração não abdica da violência” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 148). De modo que:

a instauração constitui a violência em violência instauradora do direito - num sentido rigoroso, isto é, de maneira imediata - porque estabelece não um fim livre e independente da violência [Gewalt], mas um fim necessário e intimamente vinculado a ela, e instaura-o enquanto direito como poder [Macht]. A instauração do direito é instauração de poder e, enquanto tal, constitui um ato de manifestação imediata da violência. A justiça é o princípio de toda instauração divina de fins, o poder [Macht] é o princípio de toda instauração mítica do direito. (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 148).

O direito equivale, nessa perspectiva, a uma ordem à qual a violência é imprescindível, mesmo na forma de uma ameaça latente ou de vigilância (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 136-137), e os dois modos dessa violência são necessários à sua garantia. Enquanto o direito de guerra e a greve política (que não se confunde com a greve geral revolucionária)6 6 Ainda que não seja propriamente assunto deste artigo, cabe destacar que Benjamin aponta, no ensaio, para uma diferença fundamental entre o que chama de greve geral revolucionária, não-instauradora de um novo direito e, portanto, não-violenta, daquilo que denomina greve política, esta sim compreendida como violenta, na medida em que “provoca só uma modificação exterior das condições de trabalho”, instaurando um novo direito, sem romper efetivamente com a estrutura violenta desta dinâmica ordenadora. O desenvolvimento dessa reflexão por parte do autor se relaciona ainda com o tema da violência divina e pode ser encontrado no ensaio Para a crítica da violência. (BENJAMIN, 2013 [1921], pp. 128-145). , são associadas por Benjamin à violência instauradora do direito, o exemplo do serviço militar obrigatório, por outro lado, equivale à dimensão mantenedora da violência, na medida em que se aplica “como meio para fins do direito” (BENJAMIN, 2013 [1921]: 132). É mantenedora do direito porque está à serviço da garantia de fins do direito, “pois a subordinação dos cidadãos às leis - no caso, a lei do serviço militar obrigatório - é um fim de direito”, tratando-se, assim, de “um caso de aplicação da violência que mantém o direito.” (BENJAMIN, 2013 [1921]: 132). Ainda, as duas formas da violência encontram-se unificadas, segundo Benjamin, na figura da polícia:

O infame de uma tal instituição - que é sentido por poucos apenas porque as competências dessa instituição raramente autorizam as intervenções mais brutais, enquanto permitem agir de maneira ainda mais cega nos domínios os mais vulneráveis e sobre os indivíduos sensatos, contra os quais o Estado não é protegido por nenhuma lei - reside no fato de que nela está suspensa a separação entre a violência que instaura o direito e a violência que o mantém. (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 135).

Na medida em que os fins justificados pelos procedimentos jurídicos de um poder constituído não dizem respeito necessariamente à dimensão da justiça7 7 Claudia Castro bem coloca que, para Benjamin, “o direito sobrevive apenas porque se mascara de justiça.” (CASTRO, 2011: 112). (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 121-122), são aquilo que, mediados por meios do direito positivo, não representam perigo de morte ao próprio funcionamento da ordem. Justamente, a violência inerente ao direito é aquela que garante sua instauração e sua manutenção; é a violência de uma ordem que precisa afastar ou capturar tudo aquilo que é capaz de enfraquecê-la. Enquadra-se, com isso, a vida a partir do critério da reprodução da ordem que o direito efetua - uma ordem que sucede o mito, e que, naturalizada, acompanha e aprofunda o desenvolvimento do capitalismo.

Assim, o problema da violência em sua relação com o direito e com a manutenção da ordem burguesa é colocado por Benjamin nos termos da instauração de uma ordem que se mantém não por ser apropriada ao exercício da liberdade, mas o seu oposto: por instaurar e reproduzir uma ordem que, fundada na desigualdade (porque baseada na exploração) e naturalizadora de tais assimetrias, só pode ser instaurada e mantida por meio da lei como violência. Como bem coloca Rafael Vieira:

Benjamin demonstra nesse texto justamente o funcionamento efetivo da violência dentro dos mecanismos institucionais regulares, indeterminando o poder, a violência e a força numa análise fundada numa mesma expressão (Gewalt). Benjamin enfrenta a questão do exercício cotidiano do poder estatal e sua capacidade contínua de converter-se em violência para conservar uma realidade social marcadamente desigual (VIEIRA, 2016VIEIRA, Rafael. Walter Benjamin: O direito, a política e a ascensão e colapso da República de Weimar (1918/9). Tese (doutorado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro: Departamento de Direito. Rio de Janeiro, 2016.: 67).

Desenvolvendo tais questões, ainda em Para a crítica da violência, Benjamin argumenta que a afirmação de um estado de “paz” por dois Estados, ao fim de uma guerra, equivale justamente à instauração de um novo direito. Quando os vencedores do conflito anunciam o novo estado de “paz”, garantindo direitos “iguais” a vencidos e vencedores, estabelecem com isso imediatamente a instauração de um novo direito - uma nova ordem que não pode abrir mão da violência para ser instaurada e mantida. Esta reflexão se refere ao gesto que se segue em geral, nos Estados modernos, à instauração da “paz” ao fim de um conflito ou guerra, isto é, a definição de direitos equivalentes a ambas as partes combatentes. Para Benjamin, tal ato instaura um novo direito, e a garantia de que alcance tanto a parte vencedora quanto a vencida daria evidência de se mobiliza como artifício a efetuação de uma igualdade meramente aparente sobre uma relação que é, ao contrário, essencialmente desigual - “Para ambas as partes contratantes, é a mesma linha que não pode ser transgredida...” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 149).

Ao tratar dessa concepção de igualdade própria aos Estados modernos e ao direito (como violência) que os institui e garante, Benjamin resgata ironicamente a frase de Anatole France sobre as leis, quando diz que “proíbem igualmente aos pobres e aos ricos dormir embaixo das pontes.” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 149). A instauração do direito moderno fundamenta-se, então, aos olhos de Benjamin, na criação de uma aparência de simetria e igualdade onde há, na realidade, apenas assimetrias. No mesmo sentido, o autor parece mais uma vez atrelar, agora na Obra das Passagens, a ordem do mito ao capitalismo, relacionando a reativação de forças míticas pelo desenvolvimento do capitalismo, na breve frase: “enquanto houver um mendigo, haverá mito.” (BENJAMIN, 2018c [1927-1940]: 667).

A aparente imparcialidade ou neutralidade do direito não evidencia, para Benjamin, a realização da justiça, mas sim da violência que o acompanha. Nesses termos, a instauração do direito como esfera de poder sucede o mito e não instaura a justiça: perpetua a violência mítica que atrela o vivente a uma ordem alheia à vida, mascarando sua auto-fundamentação como resultado de um suposto pacto acordado entre indivíduos livres - dissimulando, finalmente, a gênese violenta do poder estabelecido (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
: 1943).

Benjamin relaciona especificamente a violência instauradora do direito à dimensão da manifestação de forças míticas e busca na lenda de Níobe a relação entre a ação dos deuses e a natureza da violência instauradora de um novo direito. Para o autor, a lenda dá a ver que a violência mítica recai sobre Níobe não pela transgressão de um direito existente, mas sim porque, “com seu orgulho”, desafia o destino “que deve vencer, engendrando, somente nessa vitória, um direito” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 147). É uma violência que menos diz respeito a um castigo (o que poderia ser equivalente à dimensão mantenedora do direito - também indissociável dele), e mais à manifestação da existência dos deuses enquanto dimensão de poder. Tal manifestação do poder divino sobre o vivente, não na forma do castigo, mas como instauração de um direito, implica, no mesmo movimento, uma vinculação do vivente ao destino que este novo direito impõe (BENJAMIN, 2013 [1921]: 147).

Benjamin esclarece que, embora traga a morte, a violência mítica que recai sobre Níobe, na lenda, não é propriamente destruidora; se ela causa “a morte sangrenta dos filhos de Níobe, ela se detém diante da vida da mãe, deixando esta vida para trás, mais culpada do que antes por causa da morte das crianças, como portadora eterna e muda da culpa e também como marco limite entre homens e deuses” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 148). Porque se trata de uma violência que vincula o vivente a uma ordem que lhe é alheia, e que se instaura como inexorável fonte de culpa, pode-se dizer dessa violência que ela instaura um direito e, com isso, enreda a vida no contexto do destino, no qual esta se desenrola, em sua forma culpada. Quando Benjamin acredita ser possível aproximar, ou quase identificar, a violência imediata das manifestações míticas de violência à violência instauradora do direito, afirma que essa relação poderia “lançar uma luz mais ampla sobre o destino, que subjaz em todos os casos a violência do direito.” (BENJAMIN, 2013 [1921]: 148).

Mito e direito guardam uma relação essencial com a culpa e com o castigo: criam primeiro uma culpa para em seguida castigar aquele ao qual ela se destina (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
: 1942). Mito e direito se afinam já que, para Benjamin, o direito, como o mito, não estabelece um castigo para a transgressão de uma lei, mas “cria a culpa para poder puni-la e manifestar assim sua própria força (Gewalt)” (GAGNEBIN, 2020: 1942). Para Benjamin, o direito como instauração e manutenção de poder coincide com a garantia da incidência da ordem do mito sobre a vida, a partir da transformação da vida humana em nexo de uma culpa natural inexpiável. Com isso, a ordem do direito, como no mito, toma a vida em seu aspecto natural, reduzindo-a à mera vida.

III. Culpa, mera vida e a vivência moderna como realização do destino

Na perspectiva do mito, o homem é tomado em sua mera vida e se torna culpado simplesmente por estar vivo. Como explica Claudia Castro:

Diante do direito ou do mito, a vida é culpa, um débito que não se pode pagar. O domínio do mito é aquele do débito que permanece impagável na medida em que a criatura acredita saudá-lo conservando a simples vida, que é sempre testemunha desta dívida. (CASTRO, 2011: 94).

Por isso, é à própria vida enquanto mera vida a quem corresponde a incidência da culpa natural. A simples ou mera vida, em Benjamin, diz respeito à vida humana tomada em seu aspecto criatural, reduzida à mera existência biológica, natural, aparente - um aspecto que não diz respeito à vida como realização da justiça e da felicidade (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1921]: 154), mas à contínua repetição do mesmo.

Ainda segundo Castro, Benjamin parece orientar-se nesse ponto pela teologia, considerando que, na ordem do mito, o ser humano é uma “criatura” expulsa do paraíso e que, ao se deixar apegar à inércia de sua aparência, não pode desviar das armadilhas da culpa (CASTRO, 2011: 95). A incidência de forças míticas sobre a vida ocorre, então, quando esta é tomada em seu aspecto meramente existencial, criatural. A culpa natural independe de qualquer realização propriamente dita - o que se vê com clareza quando Benjamin entende, acerca do romance As afinidades eletivas, de Goethe, que a morte do filho de Eduard e Charlotte pelas vacilantes mãos de Ottilie dá sinal de que essa culpa natural da qual os personagens do romance não conseguem se desprender alcança também a criança, que não poderia ter realizado qualquer falta.8 8 Benjamin escreve: “[...] corresponde absolutamente à ordem do destino que a criança, adentrando pelo nascimento essa ordem, não redima o velho dilaceramento, mas, herdando sua culpa, tenha necessariamente de perecer. Não se trata aqui de culpa moral - como poderia a criança adquiri-la? - mas sim de culpa natural, na qual os homens incorrem não por decisão e ação, mas por sim por suas omissões e celebrações.”. BENJAMIN, 2018d [1922]: 32).

Cabe destacar também que, se Benjamin invoca a incidência de uma culpa natural sobre mera vida do homem, essa indicação à natureza não remete a qualquer grau de uma suposta inocência primordial. A natureza neste caso remete, antes, à ordem onde operam as forças míticas, que se dirigem sempre e somente à vida natural do homem. É na dimensão da natureza, entendida nesses termos, que ocorre a transmissão da culpa sobre o vivente: a pessoa que vive se torna veículo de transmissão de uma culpa imemorial e inexpiável que, no entanto, captura a vida transformando-a em um infrutífero esforço de expiação. A mera vida é, então, o próprio nexo de culpa do vivente (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1919]: 94), e o direito, por sua vez, aparece justamente como sucessor do mito, garantindo o atrelamento do vivente à ordem que se reproduz. Analisando o texto de Benjamin sobre As afinidades eletivas, Claudia Castro escreve:

Enquanto o caráter ético do matrimônio está no amor capaz de desafiar até mesmo a morte, a sua dissolução gera o mero contrato, e o direito torna-se o veículo através do qual a potência mítica manifesta a sua força demoníaca. Segundo a reflexão benjaminiana, trata-se da emergência do arcaico, da dimensão mítica que nos recoloca não no domínio da inocência da natureza, mas naquele da simples vida que é o registro da culpa. São essas forças que a ética deve combater: exatamente aquela ética que funda o casamento na morte, liberando-nos da potência ilusória da mera vida. (CASTRO, 2011: 92).

Simplesmente por existir, a vida que não decide superar a aparência da mera vida é condenada e torna-se culpada (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1919]: 94). Diante disso, pode-se compreender por que a mera vida apenas parece rica em potência: é, na verdade, sobre ela que incidem as forças do mito, determinando-a. Parece ser nesse sentido que Benjamin critica o ponto de vista a partir do qual “o não-ser do homem é algo de mais terrível do que o ainda-não-ser (portanto, necessariamente, mero) do homem justo” (BENJAMIN, 2013 [1921]: 154). Atribui essa perspectiva, inclusive, a posturas “pacifistas” reverberadas por teóricos envolvidos nas primeiras discussões sobre os direitos humanos no pós-primeira guerra, dos quais se distancia (BENJAMIN, 2013 [1921]: 153). Mas esse distanciamento, parece-me, não significa qualquer tranquilidade quanto à retirada arbitrária da vida humana; antes, diz respeito à percepção de que a vida não se reduz ao seu aspecto de mera vida.

Benjamin com isso parece insistir que os aspectos naturais e aparentes da “mera” existência não bastam; a redução da vida à mera vida é, mais precisamente, necessária e conveniente à garantia da incidência das forças míticas sobre o vivente. Assim, a vida enfraquecida em sua potência serve justamente para que as forças míticas, reativadas pelo capitalismo e cuja incidência encontra garantia na instauração e na manutenção do direito, continuem se exercendo sobre o homem, condicionando profundamente sua experiência. Quanto menos se percebe o entrelaçamento da experiência às forças que garantem a diminuição da potência de afirmação da vida, em sua singularidade, sobre as estruturas já postas, mais a experiência propriamente histórica sucumbe, dando lugar à percepção da vida como o desenrolar natural de uma vivência individual esvaziada de sentido, sustentada apenas pela aparência de sua adequação às convenções sociais e jurídicas que a enredam e a determinam.9 9 Nesta altura, cabe ressaltar, pontualmente, que Benjamin distingue em seus escritos duas concepções do que podemos chamar genericamente de experiência, empregando termos distintos para marcar essa distância de sentido. Assim, chama “vivência” (Erlebnis) a percepção da experiência própria do indivíduo moderno, isto é, aquela voltada para si mesma, profundamente individual, subjetiva e esvaziada de sentidos compartilháveis; uma noção “que reenvia à vida do indivíduo particular, na sua inefável preciosidade, mas também na sua solidão.” (GAGNEBIN, 2013b: 59). A ela Benjamin opõe o que entende pelo sentido autêntico da palavra experiência (Erfahrung), “a experiência verdadeira do novo.” (MURICY, 2009: 47). Como lembra ainda Jeanne Marie Gagnebin, “a palavra Erfahrung vem do radical fahr - usado ainda no antigo alemão no seu sentido literal de percorrer, atravessar uma região durante uma viagem.” (GAGNEBIN, 2013b: 58). Importa, portanto, não perder de vista a diferença enfatizada por Benjamin entre uma concepção da experiência em seu sentido pleno (histórica, a partir da qual se pode abrir caminho para a criação do que é verdadeiramente novo); daquela que o autor vê se alastrar sobre a percepção do indivíduo moderno (mera vivência subjetiva, repetitiva e fechada em si mesma). Vale ainda ressaltar que Benjamin aprofunda mais diretamente a crítica da experiência moderna nos ensaios O narrador e Experiência e pobreza, ambos traduzidos para o português.

Nesse contexto, Benjamin indica que perde lugar a ação criadora do que é efetivamente novo, isto é, daquilo que foge à lógica de reprodução dessa ordem que se naturaliza. À manutenção do estado de coisas contribui, portanto, o encerramento da experiência histórica na vivência individual adequada às convenções sociais e jurídicas. É, então, na vida reduzida à mera vida, de potência e liberdade meramente aparentes, que o homem participa da culpa natural.

Como consequência da vida tomada como mera vida, inerte e apegada à dimensão da sua mera aparência, tem-se que a morte ganha aspecto sacrificial: passa a ser o que representa a mais grave ameaça ao vivente. Isso porque, quando a vida se torna tentativa (sempre frustrada) de expiar a culpa natural que caracteriza a mera vida no homem, a morte passa a ser o coroamento final do processo de culpabilização permanente; e, se a culpa que incide sobre a mera vida tem caráter inexpiável e permanente, a morte do indivíduo passa a ser percebida como máxima punição sobre a vida (CASTRO, 2011: 95) e a vida como sobrevivência a si mesma, adiamento da morte (CASTRO, 2011: 96). Reduzida ao aspecto de mera aparência, a vida torna-se então incapaz de vencer o mito (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
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: 1942). Decorre daí o aprofundamento da conformação da experiência à ordem mítica à qual está atrelada, e que se afirma sobre o vivente tanto mais quanto mais for confundida com a simples decorrência de “leis naturais”, ou como o desenrolar natural da vida, realização do destino.

Para Benjamin, é justamente a balança do direito quem “erige as leis do destino, da infelicidade e da culpa à medida da pessoa” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1919]: 93). No direito, a culpa natural incide sobre mera vida tornando-a uma condenação permanente, pois “o direito não condena à punição, mas à culpa” (BENJAMIN, 2013 [1919]: 94). O decreto do juiz que instaura uma pena qualquer decreta, na realidade, um destino para aquele que diz punir (CASTRO, 2011: 94). Esse destino, em forma de pena decretada, recai não sobre a vida, mas sobre a dimensão natural dessa vida, sua mera existência.

Por isso, o tempo do destino equivale, para Benjamin, a um tempo constante e disponível, no qual “cada momento, pode tornar-se simultâneo a outro (não atual)” (BENJAMIN, 2018a______. O capitalismo como religião. In: ______. O Anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2018a, pp. 35-38. [1918-1919]: 27). Nos escritos benjaminianos o destino “é o conjunto de relações que inscreve o vivente no horizonte da culpa” (BENJAMIN, 2018d [1922]: 31); “é o nexo de culpa do vivente” (BENJAMIN, 2013 [1919]: 94). Isso porque, quando a experiência se encontra reduzida à realização do destino, tempo de realização das forças míticas, ela tende a se resignar à realidade tal como se apresenta, contentando-se com a aparente adequação às convenções sociais. Disso resulta que é no tempo do destino que a experiência se transforma em mera vivência. A repetição ou a não interrupção da ordem mítica se dá, portanto, justamente quando a vida é reduzida ao seu aspecto mais natural e aparente, neutralizando a potência afirmadora de sua diferença singular sobre as formas da realidade dada e, consequentemente, desviando-se da capacidade de interromper a continuidade repetitiva do mito - capacidade esta que é também a de criar saídas, novos possíveis.

No contexto dessas reflexões, em Destino e caráter, de 1919, Benjamin se põe a explorar a concepção do destino opondo-se à tendência corrente de associar os dois termos que dão nome ao texto. Refuta a crença de que haveria entre ambos uma única ordem de causalidade necessária - como se fosse possível predizer destino de alguém se o caráter dessa pessoa, “isto é também, a sua maneira de reagir” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1919]: 90), fosse detalhadamente conhecido. Segundo Benjamin, se a leitura de certos sinais individuais bastasse para se conhecer o caráter de alguém, esse caráter remeteria à existência de um “caráter geral”, que poderia então ser reconhecido pela presença de certos sinais. De maneira semelhante, relacionar o caráter, tomado a partir dos signos mais próximos e disponíveis a um observador, à possibilidade de se predizer o futuro de uma pessoa, equivaleria a afirmar que também o que ainda está por vir já se encontraria disponível, apenas à espera de realização.

Por isso, a essa concepção do futuro como destino a ser realizado por um caráter em geral, é inerente a pressuposição de que o que ainda está por vir se encontraria disponível antes de se realizar. Como esclarece Claudia Castro, para Benjamin o destino não se refere ao futuro, mas ao “já posto”, a algo que estaria “a postos” (CASTRO, 2011: 113). Nesses termos, predizer o destino equivale a aprisionar o sujeito em uma repetição a-histórica, no repetir-se de uma vida culpada, que condiz com a manutenção da ordem do mito (CASTRO, 2011: 113). Quando se trata apenas de realizar aquilo que se dispõe de antemão como possibilidade a partir das estruturas formadas, a ação capaz de criar algo que disso se distinga perde lugar; a experiência da vida se vê reduzida à reprodução do estado de coisas e a vida não se desprende de seu aspecto de mera vida. Cabe lembrar, neste ponto, as palavras de Benjamin no fragmento Madame Ariadne, em Rua de mão única:

Quem consulta videntes sobre o futuro renuncia, sem o saber, a um saber íntimo do futuro que é mil vezes mais exato do que tudo o que aí lhe poderiam dizer. É levado mais pela indolência do que pela curiosidade, e nada se assemelha menos à dócil imbecilidade com que assiste à revelação do seu destino do que o gesto perigoso e fulminante com que aquele que é corajoso encosta o futuro à parede. É que a sua essência é a presença de espírito, a percepção exata daquilo que acontece neste segundo, mais decisiva do que saber de antemão o que ainda vem longe. (BENJAMIN, 2017______. Rua de mão única; Infância berlinense: 1900. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017. [1928]: 59).

Acreditar que é possível conhecer o próprio destino é ver-se atrelado a ele. A “presença de espírito” mencionada por Benjamin neste trecho, e que também volta a aparecer na Obra das Passagens, parece remeter a uma experiência ativa que coincide com a afirmação da vida, em sua diferença singular, no encontro com o mundo, ou seja, quando o futuro pode realmente ser conhecido, porque criado na medida em que se age. Quando, portanto, o desejo de futuro diz respeito ao próprio presente da experiência como abertura à construção da história.

No contexto do destino, o presente, longe de ser um tempo qualificado, como Benjamin pretende fazê-lo ser em sua filosofia da história, é simplesmente aquilo que passa, e que, à medida que passa, se acumula em um conjunto fechado de momentos amontoados em forma de coisas,10 10 Essa expressão aparece na Obra das Passagens, quando Benjamin expressa que, a seus olhos, o que se convencionou chamar de História da Civilização corresponde a “um ponto de vista que considera o curso do mundo como uma série ilimitada de fatos congelados em forma de coisas.” (BENJAMIN, 2018c [1927-1940]: 71). ao qual se dá o nome de passado. Se a experiência reduzida à realização do destino é aquela destituída de sua capacidade de afirmar a diferença e criar o novo, Benjamin entende que, no tempo do destino, não cabe nenhum presente, “pois apenas em romances ruins existem momentos fatídicos.” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1919]: 95).

A inércia da mera vida, ou da vida enfraquecida em sua potência afirmadora, condiz com a reprodução de uma ordem que retira da experiência seu caráter de criação, já que, tomada apenas em sua mera vida, a pessoa se encontra entregue a um jogo de forças diante das quais não pode escolher livremente - sua vida se reduz à realização do destino (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
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: 1938-1939). Por isso, em Benjamin, à realização do destino fogem a felicidade e a bem-aventurança, bem como a inocência11 11 Nesta altura também podemos lembrar os personagens kafkianos dos “ajudantes”, dos tolos, que, destituídos de todo poder na ordem do mito, são os únicos que guardam alguma felicidade e para os quais talvez haja ainda “alguma esperança”. (BENJAMIN, 2012 [1934], p. 153). Cf. GAGNEBIN, 2020: 1943. - “na medida em que uma coisa é destino, ela é infelicidade e culpa.” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1919]: 93).

Nesse cenário, ao dissociar destino e caráter no já mencionado ensaio de 1919, Benjamin demonstra que a ideia de um destino disponível antes de efetuar-se se situa necessariamente dentro de uma ordem na qual a criação do que ainda está por vir não depende do encontro entre o ser humano e o mundo. Desconsidera-se, nessa perspectiva, que o homem que age o faz irremediavelmente no encontro com a exterioridade que o rodeia e que também estrutura sua experiência, de modo que seu caráter se apresenta não de maneira geral, mas na imanência de cada ação, na afirmação de si mesmo sobre a ordem na qual se encontra enredado. Por isso se torna necessário perceber o mito como parte estruturante da experiência moderna, a fim de que se torne possível desemaranhar-se dele, ainda que sem garantias de salvação. Como esclarece Jeanne Marie Gagnebin, para Benjamin:

Trata-se muito mais de distinguir rigorosamente a ordem da vida natural, onde reinam as forças da Natureza e do mito, e a ordem da vida histórica, onde prevalecem as decisões tomadas e assumidas pelos homens para agir moral e historicamente, ainda que estas decisões custem sua vida. (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
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: 1939-1940).

Daí decorre que destino e caráter coincidem apenas no sentido de que, ao encontrar-se com a exterioridade, esta pode ser reconduzida ao interior daquele que age e, da mesma forma, seu interior pode ser reconduzido ao exterior: “entre o conceito do homem que age e o de mundo exterior, tudo é interação, seus círculos de ação se interpenetram; suas representações podem até ser muito diferentes, mas seus conceitos são inseparáveis.” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1919]: 91). É, então, apenas no homem sem destino que destino e caráter coincidem.12 12 “Devido a essa determinação, os dois conceitos tornar-se-ão completamente divergentes; onde há caráter, não deverá existir, certamente, destino e, no contexto do destino, o caráter não será encontrado.” (BENJAMIN, 2013 [1919]: 95). O destino não se determina pelo caráter; ao contrário, realiza-se na ausência dele. Inversamente, é na ausência de um destino dado de antemão que a ação pode ser livre e propriamente histórica. Por isso, onde há caráter não há destino; onde se realiza o destino, o caráter se apaga e, assim, apaga-se também a vida do homem “naquilo que tem de melhor.” (BENJAMIN, 2013 [1919]: 94).

Se Benjamin mantém os termos do mito e do destino para pôr em crítica o estado de coisas, isto é, se esse complexo conceitual acompanha a crítica ao capitalismo formulada de forma mais materialista alguns anos depois, sobretudo a partir de meados dos anos 1920, é interessante não perder de vista a correlação produzida entre a ordem do direito que garante, pela violência, a continuação do mito sobre a mera vida do homem, e o desenvolvimento do capitalismo.

Em Benjamin, à medida em que o capitalismo reativa as forças míticas13 13 Na Obra das Passagens, Benjamin afirma que “O capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação das forças míticas.” (BENJAMIN, 2018c [1927-1940]: 664). (sendo ele mesmo uma religião pagã baseada na produção incessante da culpa natural), a sua reprodução é imanente à garantia de incidência das forças míticas sobre o vivente, e ao seu aprisionamento no tempo fatídico do destino. Ainda que o capitalismo se alimente da imagem do desenvolvimento permanente em direção ao aperfeiçoamento da vida humana, apresentando-se sempre a par do que há de mais “novo” na forma da mercadoria, este furor consumista é saciado simplesmente por aquilo que guarda aparência de novidade.

Se essa novidade tem lugar no capitalismo, ela não faz estremeceram as estruturas dessa ordem, já enraizadas na experiência moderna; ao se enfraquecer o caráter afirmador da experiência autêntica14 14 Vale pontuar que a concepção benjaminiana da experiência no sentido pleno da palavra remete à experiência histórica e não prevê, por isso mesmo, qualquer conteúdo ideal, fixo e passível de ser pré-determinado. O autor não busca a restituição de uma certa forma ideal de agir, mas, ao contrário, a liberação do sujeito da ordem mítica para uma experiência verdadeiramente histórica e criadora. Trata-se da afirmação de uma disposição, uma presença de espírito, capaz de romper a inércia diante do desenrolar aparentemente natural da História. que pode produzir a irrupção do que é efetivamente novo (do que, portanto, pode liberar a vida das forças do mito), esta tende a desvanecer, desapercebida. Nesse cenário em que a história é transformada em realização do destino e a experiência em mera vivência subjetiva, todo acontecimento passa a comportar um tom fatídico, ainda que acompanhado pela aparência de novidade. Como efeito, as formas do concretas do mundo material (e os possíveis que delas se desprendem) parecem dizer respeito à realização de uma ordem da qual não se pode escapar.

O que parece constituir a preocupação benjaminiana expressa através dessa constelação conceitual é justamente a percepção de que a experiência moderna se transforma cada vez mais na vivência subjetiva de um sujeito enclausurado no indivíduo, que tem a vida reduzida à mera vida, funcionando como “joguete” do mito ou do destino (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
: 1940). Na concepção de Benjamin, essa transformação da percepção moderna leva a um estado de imobilidade inercial, de resignação passiva e acrítica que, porque serve bem à reprodução da ordem capitalista, é também nela engendrada e naturalizada. Enquanto a vida não se afirma sobre as forças que contam com sua fraca resistência para se reproduzirem, o destino é o que se pode se realizar. A experiência da vida no tempo do destino se refere, então, à reprodução de um certo estado de coisas; de uma ordem em que a experiência se confunde com o fatídico, onde, então, a experiência histórica perde lugar, em nome de uma vivência subjetiva.

No entanto, isso não significa que a relação entre a vida e a ordem mítica seja a de uma de dominação irrefreável, de onde não seria possível criar saídas. Ao contrário: a vida pede para ser liberada do mito, mas, como lembra Claudia Castro, essa liberação não poderá ocorrer enquanto o homem continuar abdicando da sua vida em nome da mera vida (CASTRO, 2011: 103).

IV. Considerações finais: agir contra o destino, interromper o mito

Das forças míticas livra-se apenas aquele que decide viver contra o destino. A decisão de viver contra o destino (longe de remeter a uma espécie de voluntarismo, de mera intencionalidade) é cara a Benjamin porque o autor relaciona o tema da decisão à liberação da pessoa da ordem do mito. Essa decisão envolve, por sua vez, uma presença de espírito, uma atenção distendida para o desenrolar da história no próprio presente, isto é, para a percepção das forças míticas que tendem a determinar a experiência. Com isso se pode afirmar novamente que, em Benjamin, uma postura moral nada tem a ver com a observância pacífica e dócil às convenções sociais - ao contrário;15 15 Como se pode ver no caso do romance goethiano As afinidades eletivas lido por Benjamin: quanto mais os personagens “bem-educados” creem ser livres as suas ações, sempre acordadas com as convenções legais e sociais, mais parecem ser determinados pela força das estruturas do direito e da sociedade, de modo que assim se encontre cada vez mais neutralizado seu poder de agir na criação de sua própria história, contra o destino. ela é fruto de uma decisão e, nesse sentido, invoca um risco, ao mesmo tempo que “leva à ruína as edificações da civilização” (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
:1941).

É justamente a postura de alguém que decide contra o destino que marca, para Benjamin, os personagens da pequena novela presente no interior do romance As afinidades eletivas, de Goethe. Enquanto os personagens do romance são guiados pela sua vinculação ao destino, levados pela culpa inerente à mera vida à qual não são capazes de abdicar para viver plenamente o amor, os personagens da pequena novela são justamente aqueles que decidem arriscar-se, liberar-se do mito, desprender-se do destino. Benjamin nota, inclusive, que, se o casal da novela se arrisca a morrer jogando-se ao mar, sua atitude se distingue drasticamente daquela dos personagens do romance, que encontram na morte um sentido de sacrifício. Na novela, Benjamin identifica os sinais que afastam os personagens de uma morte sacrificial, caracterizando seu gesto, ao contrário, à afirmação de uma outra vida, que só pode ser vivida mediante a aceitação do risco, sem qualquer garantia vazia.16 16 Nas palavras de Benjamin: “Os amantes na novela não conquistam a paz por meio do sacrifício. Que o salto fatal da jovem não tenha esse significado, isso vem indicado pelo autor da maneira mais delicada e precisa. Pois quando ela atira para o jovem a guirlanda, sua intenção secreta é uma só: expressar que ela não quer ‘morrer na beleza’, nem ser coroada na morte como uma sacrificada. O rapaz, que só tem olhos para o timão, testemunha por seu turno que, conscientemente ou não, ele não toma parte na execução do ato como uma vítima. Uma vez que esses seres não arriscam tudo partindo de uma liberdade concebida de modo falso, não ocorre um sacrifício entre eles, mas sim uma decisão dentro deles.”. (BENJAMIN, 2018d [1922]: 75).

Sobre esse ponto, Jeanne Marie Gagnebin lembra-nos que essa atitude reflete a oposição entre decisão e afinidade (termo retirado da química) e que é lida por Benjamin como a chave da oposição entre o agir histórico, sempre arriscado, “e a passividade sacrificial, por mais sublime que pareça, e que faz emergirem as forças míticas do destino e da catástrofe” (GAGNEBIN, 2014______. Teologia e messianismo no pensamento de Walter Benjamin. In: Limiar, aura e rememoração - ensaios sobre Walter Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014, pp. 179-196.: 57).17 17 A autora afirma com razão que, para Benjamin, o romance de Goethe tem como tema, ou como “teor material” a irrupção do “mítico” na história. (GAGNEBIN, 2020: 1940). É, assim, na superação da ordem do mito que reside a possibilidade de liberação da vida de seu aspecto de mera vida e, consequentemente, do destino - tarefa que se recoloca a cada momento. Como esclarece mais uma vez Gagnebin:

Enquanto a vida humana em sua mera naturalidade for a categoria mestra de sua existência, isto é, enquanto o homem não ultrapassar, por uma decisão moral livre, esse dado primeiro e arriscar colocá-lo em questão; enquanto ele não arriscar a morrer, abandonando o domínio de sua mera sobrevivência natural, o homem continua entregue às forças do mito e do destino. Pelo simples fato de que vive - e não porque deixou um estado primitivo de inocência (por ter cometido um crime ou desobediência que acarretariam culpa e punição) - é que ele será condenado ao destino. (GAGNEBIN, 2020______. Mito, Direito e Justiça em Walter Benjamin. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, set. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/52669>. Acesso em: 17 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.12957/dep.2020.52669.
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: 1938-1939).

No mesmo sentido, Claudia Castro afirma, acompanhando a leitura benjaminiana das Afinidades eletivas, que “a civilização precisa remover seu passado mítico, uma necessidade que se apresenta como desejo de felicidade” (CASTRO, 2011: 85). Trata-se da desnaturalização da ordem que se apresenta como natural, que tende a ser carregada do aspecto fatídico, marca do destino para Benjamin.

Se, em Benjamin, a felicidade “é muito mais o que liberta aquele que é feliz da cadeia do destino e da rede de seu próprio destino” (BENJAMIN, 2013______. Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem do homem. In: ______. Escritos sobre mito e linguagem. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2013, pp. 49-73. [1919]: 92), é necessário ter em conta que a vida “pede para ser arrancada do mito e do destino” (CASTRO, 2011: 103), e que é na experiência histórica que reside a possibilidade de liberação. Isso porque se trata, para o homem de experienciar a vida não no tempo do mito, mas no da história. Liberado de viver sobrevivendo a si mesmo, sob o peso da culpa natural que recai sobre a mera vida, pode então superá-la e dar lugar à vida liberadora do desejo de salvar-se dessa ordem (CASTRO, 2011: 103).

É neste ponto que a filosofia da história benjaminiana se dá a ver de relance em sua necessidade. Isso porque, se para Benjamin, crítico moderno da modernidade (LÖWY, 2005: 15)18 18 Seguindo o entendimento de Rober Syre e Michael Löwy, por mais forte que possa ser a rebeldia com que autores românticos, como o próprio Benjamin, pensam a modernidade, eles não deixam de ser profundamente informados por seu tempo. Assim, se “reagem emocionalmente, refletindo, escrevendo contra a modernidade, estão reagindo, refletindo e escrevendo em termos modernos.” (SYRE, Robert; LÖWY, Michael, 2001: 21). , a experiência autêntica parece tender a perder-se, ao ser transformada em mera vivência individual, essa transformação perceptiva encontra amparo nas concepções dominantes da História, sobretudo em suas expressões historicistas e presas à concepção de progresso como norma histórica.19 19 Benjamin percebe, tanto no historicismo burguês como na historiografia positivista da social-democracia alemã, a suposição de que seria possível representar o passado e conhecê-lo de forma objetiva, como se o olhar do presente não pesasse sobre aquilo que é observado. Para Benjamin, no entanto, a obsessão pelo conhecimento objetivo do “fato histórico” faz perdem-se de vista as camadas de sentido pelas quais todo “fato” é envolvido ao ser transmitido no decorrer do tempo. (GAGNEBIN, 2018: 65). Com isso, tanto o historicismo burguês como as tradições positivistas da história, apesar de suas diferenças, acabavam, aos olhos de Benjamin, por narrar o passado como o desenrolar de uma História contínua, feita dos momentos triunfantes da “humanidade” - dos quais, nesse mesmo movimento, o presente (qualquer que fosse) poderia tirar sua própria justificação, naturalizando-se. A conjunção dos temas de mito e do destino, na qual o direito ocupa também papel central, torna-se então, como que o outro lado da filosofia da história benjaminiana. Se, na ordem do mito, a vida aparece atrelada ao destino, as concepções modernas hegemônicas da História contribuem para e impulsionam, segundo Benjamin, a transformação da experiência em mera vivência subjetiva, que se deixa carregar pela tempestade do progresso.

Em poucas palavras, isso ganha sentido quando alcançamos que, para Benjamin, as versões vencedoras da História não transmitem um conhecimento sobre a experiência humana no tempo capaz de “orientar uma história que está se desenrolando” (BENJAMIN, 2012______. O narrador. In: ______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012, pp. 213-240. [1936]: 216). Remetem, ao contrário, a um tipo de conhecimento representacional e imobilizador do passado, que opera pela lógica aditiva e que se sustenta sobre uma estrutura temporal vazia e homogênea, onde os acontecimentos são eleitos à posteriori para compor uma aparente, mas forjada, continuidade que alcançaria o presente.

Nesse procedimento, todo presente encontraria sua justificação, na medida em que passaria a representar-se como etapa necessária e incontornável de um processo maior e mais geral, que equivaleria ao desenrolar natural da História. A experiência histórica autêntica, assim, perde valor e, em seu lugar, se fixa a concepção da experiência como mera vivência subjetiva inserida, adequada e conformada às estruturas existentes e já naturalizadas do estado de coisas - que, assim, se reproduz.

Por isso, em Benjamin, a crítica à experiência moderna encontra um importante ponto de apoio na crítica às concepções modernas da História e ganha forma com a elaboração de uma outra filosofia da história, na qual o tempo é experienciado não de modo vazio e linear, mas intensivo; onde o tempo do presente se encontra aberto, preenchido pelo encontro entre a experiência do passado e o presente. Ainda que não seja o caso de adentrar, aqui, na profundidade do pensamento benjaminiano sobre a filosofia da história e a memória, seu papel na criação de saídas da ordem do mito, cabe sempre lembrar que, enquanto a experiência autêntica parece a Benjamin perder espaço e valor na modernidade, tendendo a desaparecer, trata-se sempre de atribuir nova beleza ao que está desaparecendo (BENJAMIN, 2012______. O narrador. In: ______. Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2012, pp. 213-240. [1936]: 219) e, com isso, manter a atenção ativa para as menores aberturas, as pequenas frestas de resistência, quando o mito se interrompe, e a partir de onde se pode criar, pela experiência histórica, o novo.

Referências bibliográficas

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  • ZAMORA, José Antonio. W. Benjamin: crítica del capitalismo y justicia mesiánica. In: RUIZ, Castor Bartolomé (org.). Justiça e memória: Para uma crítica da violência. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2009.
  • 1
    Michael Löwy pontua com razão que: “Não há, em Benjamin, um sistema filosófico: toda a sua reflexão toma a forma do ensaio e do fragmento - quando não da citação pura e simples, em que as passagens tiradas de seu contexto são colocadas a serviço de seu próprio itinerário.” (LÖWY, 2005: 17)
  • 2
    Mais especificamente, no mencionado ensaio, Benjamin escreve a certa altura: “Essa imediatidade na comunicação do abstrato instalou-se como judicante quando o homem, pela queda, abandonou a imediatidade na comunicação do concreto, isto é, o nome, e caiu no abismo do caráter mediado de toda comunicação, da palavra como meio, da palavra vã, no abismo da tagarelice. Pois - é preciso repetir ainda uma vez - a pergunta sobre o bem e o mal no mundo depois da Criação foi tagarelice. A árvore do conhecimento não estava no jardim de Deus pelas informações que eventualmente pudesse fornecer sobre o bem e o mal, mas sim como insígnia do julgamento sobre aquele que pergunta. Essa monstruosa ironia é o sinal distintivo da origem mítica do Direito.” (BENJAMIN, 2013 [1916]: 67-68).
  • 3
    Importa notar, ainda que sem a chance de aqui desenvolver o tema com maior profundidade, que acompanhamos a percepção de Jeanne Marie Gagnebin acerca de uma distinção na obra de Walter Benjamin entre religião e teologia. Se, como ela, tomarmos por religião “um conjunto de teorias e práticas que visa à integração do homem no mundo, sua ligação com ele e, principalmente, a aceitação do sofrimento e da morte por meio do reconhecimento de um sentido transcendente” (GAGNEBIN, 2014, p. 188), compreendemos que a presença da teologia nos escritos de Walter Benjamin disso se diferencia. O motivo desta distinção aparece nas teses sobre a história (onde o assunto parece expressar-se de forma mais explícita), mas também antes disso, por exemplo, no ensaio Sobre linguagem em geral e a linguagem do homem e em Frankz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte, de 1916 e 1934, respectivamente. Cf. GAGNEBIN, 2014.
  • 4
    Destaca-se a diferença dos termos escolhidos por Michael Löwy para traduzir o mesmo trecho, ainda que o sentido não se modifique drasticamente de uma à outra tradução: “Há na essência desse movimento religioso que é o capitalismo de perseverar até o fim, até a completa culpabilização final de Deus, até o estado do mundo atingido por uma desesperança que ainda esperamos completamente justa. O que o capitalismo tem de historicamente extraordinário é que a religião não é mais reforma, mas ruína do ser. A desesperança se estende ao estado religioso do mundo do qual dever-se-ia esperar a salvação.” (LÖWY, Michael. 2019: 21-22).
  • 5
    Importa lembrar que foi também nos primeiros anos de 1920 que Benjamin escreveu o ensaio sobre As afinidades eletivas de Goethe, onde a crítica produzida pelo complexo conceitual de mito, destino e direito é muito profundamente elaborada, e onde o mito é tomado por Benjamin como o teor coisal do romance. Para um estudo aprofundado da obra de Benjamin realizada a partir do ensaio sobre As afinidades eletivas, ver CASTRO, 2011.
  • 6
    Ainda que não seja propriamente assunto deste artigo, cabe destacar que Benjamin aponta, no ensaio, para uma diferença fundamental entre o que chama de greve geral revolucionária, não-instauradora de um novo direito e, portanto, não-violenta, daquilo que denomina greve política, esta sim compreendida como violenta, na medida em que “provoca só uma modificação exterior das condições de trabalho”, instaurando um novo direito, sem romper efetivamente com a estrutura violenta desta dinâmica ordenadora. O desenvolvimento dessa reflexão por parte do autor se relaciona ainda com o tema da violência divina e pode ser encontrado no ensaio Para a crítica da violência. (BENJAMIN, 2013 [1921], pp. 128-145).
  • 7
    Claudia Castro bem coloca que, para Benjamin, “o direito sobrevive apenas porque se mascara de justiça.” (CASTRO, 2011: 112).
  • 8
    Benjamin escreve: “[...] corresponde absolutamente à ordem do destino que a criança, adentrando pelo nascimento essa ordem, não redima o velho dilaceramento, mas, herdando sua culpa, tenha necessariamente de perecer. Não se trata aqui de culpa moral - como poderia a criança adquiri-la? - mas sim de culpa natural, na qual os homens incorrem não por decisão e ação, mas por sim por suas omissões e celebrações.”. BENJAMIN, 2018d [1922]: 32).
  • 9
    Nesta altura, cabe ressaltar, pontualmente, que Benjamin distingue em seus escritos duas concepções do que podemos chamar genericamente de experiência, empregando termos distintos para marcar essa distância de sentido. Assim, chama “vivência” (Erlebnis) a percepção da experiência própria do indivíduo moderno, isto é, aquela voltada para si mesma, profundamente individual, subjetiva e esvaziada de sentidos compartilháveis; uma noção “que reenvia à vida do indivíduo particular, na sua inefável preciosidade, mas também na sua solidão.” (GAGNEBIN, 2013b: 59). A ela Benjamin opõe o que entende pelo sentido autêntico da palavra experiência (Erfahrung), “a experiência verdadeira do novo.” (MURICY, 2009: 47). Como lembra ainda Jeanne Marie Gagnebin, “a palavra Erfahrung vem do radical fahr - usado ainda no antigo alemão no seu sentido literal de percorrer, atravessar uma região durante uma viagem.” (GAGNEBIN, 2013b: 58). Importa, portanto, não perder de vista a diferença enfatizada por Benjamin entre uma concepção da experiência em seu sentido pleno (histórica, a partir da qual se pode abrir caminho para a criação do que é verdadeiramente novo); daquela que o autor vê se alastrar sobre a percepção do indivíduo moderno (mera vivência subjetiva, repetitiva e fechada em si mesma). Vale ainda ressaltar que Benjamin aprofunda mais diretamente a crítica da experiência moderna nos ensaios O narrador e Experiência e pobreza, ambos traduzidos para o português.
  • 10
    Essa expressão aparece na Obra das Passagens, quando Benjamin expressa que, a seus olhos, o que se convencionou chamar de História da Civilização corresponde a “um ponto de vista que considera o curso do mundo como uma série ilimitada de fatos congelados em forma de coisas.” (BENJAMIN, 2018c [1927-1940]: 71).
  • 11
    Nesta altura também podemos lembrar os personagens kafkianos dos “ajudantes”, dos tolos, que, destituídos de todo poder na ordem do mito, são os únicos que guardam alguma felicidade e para os quais talvez haja ainda “alguma esperança”. (BENJAMIN, 2012 [1934], p. 153). Cf. GAGNEBIN, 2020: 1943.
  • 12
    “Devido a essa determinação, os dois conceitos tornar-se-ão completamente divergentes; onde há caráter, não deverá existir, certamente, destino e, no contexto do destino, o caráter não será encontrado.” (BENJAMIN, 2013 [1919]: 95).
  • 13
    Na Obra das Passagens, Benjamin afirma que “O capitalismo foi um fenômeno natural com o qual um novo sono, repleto de sonhos, recaiu sobre a Europa e, com ele, uma reativação das forças míticas.” (BENJAMIN, 2018c [1927-1940]: 664).
  • 14
    Vale pontuar que a concepção benjaminiana da experiência no sentido pleno da palavra remete à experiência histórica e não prevê, por isso mesmo, qualquer conteúdo ideal, fixo e passível de ser pré-determinado. O autor não busca a restituição de uma certa forma ideal de agir, mas, ao contrário, a liberação do sujeito da ordem mítica para uma experiência verdadeiramente histórica e criadora. Trata-se da afirmação de uma disposição, uma presença de espírito, capaz de romper a inércia diante do desenrolar aparentemente natural da História.
  • 15
    Como se pode ver no caso do romance goethiano As afinidades eletivas lido por Benjamin: quanto mais os personagens “bem-educados” creem ser livres as suas ações, sempre acordadas com as convenções legais e sociais, mais parecem ser determinados pela força das estruturas do direito e da sociedade, de modo que assim se encontre cada vez mais neutralizado seu poder de agir na criação de sua própria história, contra o destino.
  • 16
    Nas palavras de Benjamin: “Os amantes na novela não conquistam a paz por meio do sacrifício. Que o salto fatal da jovem não tenha esse significado, isso vem indicado pelo autor da maneira mais delicada e precisa. Pois quando ela atira para o jovem a guirlanda, sua intenção secreta é uma só: expressar que ela não quer ‘morrer na beleza’, nem ser coroada na morte como uma sacrificada. O rapaz, que só tem olhos para o timão, testemunha por seu turno que, conscientemente ou não, ele não toma parte na execução do ato como uma vítima. Uma vez que esses seres não arriscam tudo partindo de uma liberdade concebida de modo falso, não ocorre um sacrifício entre eles, mas sim uma decisão dentro deles.”. (BENJAMIN, 2018d [1922]: 75).
  • 17
    A autora afirma com razão que, para Benjamin, o romance de Goethe tem como tema, ou como “teor material” a irrupção do “mítico” na história. (GAGNEBIN, 2020: 1940).
  • 18
    Seguindo o entendimento de Rober Syre e Michael Löwy, por mais forte que possa ser a rebeldia com que autores românticos, como o próprio Benjamin, pensam a modernidade, eles não deixam de ser profundamente informados por seu tempo. Assim, se “reagem emocionalmente, refletindo, escrevendo contra a modernidade, estão reagindo, refletindo e escrevendo em termos modernos.” (SYRE, Robert; LÖWY, Michael, 2001: 21).
  • 19
    Benjamin percebe, tanto no historicismo burguês como na historiografia positivista da social-democracia alemã, a suposição de que seria possível representar o passado e conhecê-lo de forma objetiva, como se o olhar do presente não pesasse sobre aquilo que é observado. Para Benjamin, no entanto, a obsessão pelo conhecimento objetivo do “fato histórico” faz perdem-se de vista as camadas de sentido pelas quais todo “fato” é envolvido ao ser transmitido no decorrer do tempo. (GAGNEBIN, 2018: 65). Com isso, tanto o historicismo burguês como as tradições positivistas da história, apesar de suas diferenças, acabavam, aos olhos de Benjamin, por narrar o passado como o desenrolar de uma História contínua, feita dos momentos triunfantes da “humanidade” - dos quais, nesse mesmo movimento, o presente (qualquer que fosse) poderia tirar sua própria justificação, naturalizando-se.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Set 2020
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2020
  • Aceito
    21 Jul 2020
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