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Financiamento sindical, direito do trabalho e crise: aproximações empíricas ao tema da funcionalidade do direito do trabalho para o capitalismo

Union financing, labor law and crisis: empirical approaches to the theme of labor law functionality for capitalism

Resumo

O artigo discute o modo como a Lei n. 13.467/2017 impactou as negociações coletivas no Brasil. Por meio de subsídios empíricos e teóricos e amparando-se no método materialista histórico e dialético, a investigação demonstra que (i) a extinção da contribuição sindical acarretou a redução das negociações coletivas, bem como ensejou retração qualitativa desde a referência da classe trabalhadora; (ii) que as negociações coletivas concentraram-se em categoriais com maior tradição e articulação sindical; (iii) que a fragilização das entidades sindicais e a consequente redução da abrangência das proteções trabalhistas individuais não proporcionou esperado aquecimento da economia capitalista no país em período de crise, fato que demonstra o papel funcional à reprodução da relação social do capital cumprido pelo direito do trabalho.

Palavras-chave:
Crise capitalista; Negociação coletiva; Contribuição sindical

Abstract

The paper discusses how the Act n. 13.467/2017 impacted collective bargaining in Brazil. Through empirical and theoretical subsidies and based on the historical and dialectical materialist method, the investigation shows that (i) the extinction of the union contribution resulted in reduction and qualitative retraction - from the reference of the working class - of collective bargaining; (ii) that collective bargaining was concentrated in categories with greater tradition and union articulation; (iii) that the weakening of unions and the consequent reduction in the scope of individual labor protections did not provide the expected heating up of the capitalist economy in the country in times of crisis, a fact that demonstrates the functional role fulfilled by labor law for the reproduction of the social relationship of capital.

Keywords:
Capitalist crisis; Collective bargaining; Union contribution

Introdução

Já há alguns anos que as perspectivas de apreciação dos direitos sociais comprometidas com a posição da classe trabalhadora têm se movimentado em torno de uma aparente aporia.

De um lado, observamos a crítica marxista dos direitos sociais, que tem obtido relevantes sucessos em demonstrar que, ainda que sua organização se dê em torno de ideias aparentemente ligadas à defesa classista, como proteção ou solidariedade, tais direitos sociais, e particularmente o direito do trabalho, apresentam função decisiva no sucesso da reprodução do modo de produção capitalista. Nesse sentido, releva notar que a mais importante contribuição dada até hoje nesse campo, a obra de Bernard Edelman (2016EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016.), diz respeito ao tema já prenunciado no título deste texto, o direito coletivo do trabalho. A obra de Edelman vem repercutindo intensamente na produção científica nacional há quase dez anos, atraindo críticas e loas, inclusive inspirando uma área do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Por outro lado, observamos que a maior parte dos estudiosos dos direitos sociais que possuem inegável compromisso com a classe trabalhadora movimentam-se em torno do que se convencionou chamar de resistência1 1 Este é, inclusive, o título de uma série de obras coordenadas por Jorge Luiz Souto Maior e Valdete Souto Severo (2017, 2018 e 2019), dois dos maiores expoentes nacionais da corrente de pensamento comentada neste parágrafo. . Mais do que expressar uma interpretação de tempo histórico - em que a classe trabalhadora estaria na defensiva, lutando para conter o conjunto de contrarreformas impostas em escala internacional e nacional pela classes proprietárias -, essa corrente costumeiramente apresenta-se na linha de frente da luta político-jurídica contra a adoção de medidas regressivas, apontando todos os problemas que serão ocasionados com seu advento e resistindo, tanto quanto possível, a sua efetivação2 2 Nunca é demais ressaltar, em textos que apresentam o marco teórico aqui sufragado, que resistir à adoção de contrarreformas precarizantes de direitos sociais é tarefa incontornável de qualquer estudioso que se pretenda marxista e isso não está em questão aqui em absoluto. O problema claramente não é como atuar na prática cotidiana da luta de classes, em que os dois campos teóricos noticiados no texto sempre cerram fileiras, mas como inserir esta atuação cotidiana no horizonte mais amplo de luta contra o modo de produção capitalista. A esse respeito, ver, de um lado, a indispensável contribuição de John Holloway (2019), e, de outro, as perspectivas de um uso tático do direito do trabalho, reconhecidas suas limitações e qualidades estruturais (SEFERIAN, 2017), sempre atentos que devemos estar às distinções potenciais do “terreno do direito” e da politicidade, guardados os limites do primeiro e as potências da segunda (SARTORI, 2016). . Entretanto, ultrapassado este momento político de luta, em que, derrotados os movimentos de oposição, verificamos a efetiva implementação jurídica da precarização dos direitos sociais, esta corrente engaja-se no que é possível nomear aqui, imaginamos que pela primeira vez, numa atuação de microrresistência hermenêutica: uma atuação institucional e jurídica no sentido de identificar lacunas, problemas, inconstitucionalidades, enfim, qualquer tipo de pequena possibilidade interpretativa de amenizar a precarização promovida por meio dos mecanismos internos à ordem colocados à disposição dos operadores do direito.

Esta disputa teórica fundamental não pode, evidentemente, ser objeto do limitado formato de um artigo científico, razão pela qual já advertimos, de plano, que ela não será aqui esgotada ou, sequer, explorada. Entretanto, ela apresenta caráter essencial por constituir o pano de fundo da hipótese de trabalho aqui adotada: momentos de contrarreformas precarizantes dos direitos sociais, especialmente em contextos de crise econômica - exatamente o quadro internacional que irrompe em meados dos anos 1970, agudiza-se em 2008 e desde a particular realidade brasileira se arrasta de modo mais intenso ao menos desde 2014, experimentando novo e profundo solavanco motivado pela pandemia da COVID-19 - são pontos de observação privilegiados para as dinâmicas de interação entre o direito do trabalho e o modo de produção capitalista.

Nesse contexto, o objetivo do presente artigo é examinar alguns dados que relacionam a garantia de direitos aos trabalhadores com o desempenho do modo de produção capitalista no Brasil, tendo especial atenção para as modificações provocadas nas garantias desses direitos pela destruição do tradicional sistema de financiamento sindical vigente no Brasil desde a década de 1930. Não se trata de uma investida que pretende lançar juízos de qualquer natureza à referida alteração legislativa, quanto aos seus saldos positivos ou negativos à classe trabalhadora. Na realidade, o objetivo que propomos é dúplice e, de certa maneira, passa transversalmente pela controvérsia noticiada na abertura da introdução deste artigo. De um lado, pretendemos testar a hipótese de que a retração dos direitos dos trabalhadores não contribui para a superação da crise do capitalismo, atuando, ao contrário, no sentido de seu aprofundamento, dada a capacidade de tal repertório jurídico-político em contrarrestar a queda tendencial da taxa de lucros. Nesse sentido, o artigo atua no próprio campo de debate imposto pelo direito burguês ao demonstrar que a retórica de “mais empregos com menos direitos” não somente é falaciosa como prejudicial à própria economia capitalista. Por outro lado, mas no mesmo movimento, a bem-sucedida demonstração da hipótese constituirá acúmulo empírico em favor da demonstração da funcionalidade do direito do trabalho para a reprodução do modo de produção capitalista, conforme defendido pela crítica marxista dos direitos sociais.

Assim, o desenvolvimento deste texto constará de três seções relativamente autônomas, a serem relacionadas em seção conclusiva: primeiro, um debate sobre a nova conformação do financiamento sindical, aspecto central da drástica contrarreforma promovida no direito coletivo do trabalho, seguida de discussão acerca de seus efeitos sobre a atuação do movimento sindical e, consequentemente, sobre os direitos individuais da classe trabalhadora; depois, um exame das consequências da crise econômica e da reforma trabalhista sobre a quantidade e qualidade dos postos de emprego e sua respectiva renda, que se vê aprofundada pela fragilização das entidades sindicais e pela ampliação da autonomia da vontade coletiva, isso a partir de uma breve comparação de alguns indicadores econômicos a respeito da situação da crise antes e depois da adoção das contrarreformas, tudo a fim de expor como estes supostos remédios à crise que passam pela flexibilização de direitos trabalhistas ou a corrosão das salvaguardas das trabalhadoras e trabalhadores na verdade apenas a retroalimentam e catalisam.

1. Financiamento sindical e negociação coletiva

Como já é bem conhecido no campo do direito, o modelo de organização das relações sindicais no Brasil conheceu um período de mais de oitenta anos de estabilidade, que sobreviveu a três mudanças de ordem constitucional e a diversas formas de organização política. Com efeito, o texto do Decreto nº 1.402/1939, editado durante o Estado Novo de Getúlio Vargas, e que objetivava regular o novo texto constitucional de 1937, era a norma vigente em 1943, quando foi consolidada pelo Decreto nº 5.452/1943, a chamada Consolidação das Leis do Trabalho - CLT. A despeito da redemocratização formal em 1946, da posterior instituição de um regime ditatorial em 1964 - com novos textos constitucionais em 1967 e 1969 - e, por fim, do novo processo de redemocratização formal em 1988, o texto da CLT tratando das relações sindicais permaneceu praticamente inalterado. Claro que há muita produção teórica questionando diversos aspectos da organização sindical brasileira, especialmente em sua relação com o Estado3 3 Observe-se, por exemplo, no tocante à estrutura sindical brasileira e sua relação com o Estado, o longo recenseamento de literatura jurídica sobre a personalidade jurídica de direito público ou de direito privado do sindicato, promovido por BRITO FILHO (2009: 102-106) , e que a Constituição de 1988 promoveu uma alteração profunda no quadro da liberdade sindical ao extinguir institutos como a carta sindical e o enquadramento sindical, o que gerou, inclusive, um acelerado processo de fundação de entidades sindicais que é até mesmo identificado como um processo de pulverização do movimento sindical (FILGUEIRAS, 2008FILGUEIRAS, Vitor Araújo. Explicando a desunião: a pulverização sindical no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988. Dissertação de mestrado. IFCH-UNICAMP, Campinas, 2008.; DAL ROSSO, 2013DAL ROSSO, Sadi. “Fragmentação sindical”. In: Educar em Revista, Curitiba, n. 48, abr./jun. 2013, p. 39-52.; BARISON, 2016BARISON, Thiago. A estrutura sindical de Estado no Brasil e o controle judiciário após a Constituição de 1988. São Paulo: LTr, 2016.), mas a espinha dorsal do Decreto nº 1.402/1939 permaneceu intacta até a edição da Lei nº 13.467/2017.

Este núcleo do regramento sindical brasileiro está baseado em alguns institutos intimamente articulados entre si, respaldando-se e fundamentando-se mutuamente: a unicidade sindical - proibição de existência de mais de um sindicato por categoria profissional ou econômica em cada base territorial, nunca inferior a um município -, a sindicalização por categoria profissional e econômica - modelo vertical de organização sindical, que impede, por exemplo, a organização sindical por empresa -, a exclusividade de representação da categoria pelo sindicato único em cada base territorial, a autonomia privada coletiva - poder atribuído aos sindicatos profissionais e patronais de editar normas sobre condições de trabalho por meio contratual -, a estrutura estatal de natureza judiciária para solução dos conflitos coletivos de trabalho - o poder normativo da Justiça do Trabalho -, e, por fim, o que nos interessa aqui mais de perto, o financiamento sindical feito precipuamente por meio de uma contribuição obrigatória, cobrada de toda a categoria independentemente de sua filiação ao sindicato.

Sobre este último aspecto, o texto original da CLT já estabelecia, na abertura do terceiro capítulo, sobre contribuição sindical, de seu quinto título, que versa sobre organização sindical, que “as contribuições devidas aos Sindicatos pelos que participem das categorias econômicas ou profissionais ou das profissões liberais representadas pelas referidas entidades serão, sob a denominação do ‘imposto sindical’, pagas, recolhidas e aplicadas” tal qual o previsto no supracitado Capítulo. Este dispositivo passou por uma alteração meramente cosmética em 1967, quando o Decreto-lei nº 229/1967 substituiu a denominação “imposto sindical” pela atual formulação do instituto enquanto “contribuição sindical”4 4 Importante ressaltar que se diz cosmética tal modificação porque em nada influiu na natureza ou na forma de cobrança da verba. Veja-se, a esse respeito, que o Supremo Tribunal Federal persistiu sufragando a natureza jurídica tributária da cobrança da contribuição sindical, como se pode depreender do julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 496456, sob relatoria da Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha. No trato popular, a referência a contribuição sindical enquanto “imposto sindical” seguiu e segue costumeira. . Pelos cinquenta anos subsequentes, o dispositivo não apenas permaneceu inalterado como foi objeto de reforço normativo pelo dispositivo do artigo 8º, IV, da Constituição Federal de 1988, que, ao dispor sobre a recém instituída contribuição para o custeio do sistema confederativo, consignou expressamente que este tratamento era feito “independentemente da contribuição prevista em lei”. Destaque-se a peculiaridade da solução adotada pela Constituição de 1988, já que, em princípio, era garantida a liberdade sindical individual, ou seja, a liberdade de cada indivíduo de filiar-se, não se filiar ou desfiliar-se da entidade sindical responsável pela representação de sua respectiva categoria. Ao menos desde 1988, portanto, conviviam em aparente harmonia a ampla liberdade sindical individual com a obrigatoriedade de contribuição independentemente de filiação à entidade sindical, embora existam autores que veêm nisso uma limitação à liberdade individual de filiação (MARTINEZ, 2013MARTINEZ, Luciano. Condutas antissindicais. São Paulo: Saraiva, 2013.).

A Lei nº 13.467/2017 desestruturou este regramento ao inserir duas modificações no texto da CLT. Primeiro, alterou o texto do artigo 578 para estabelecer que as cobranças de contribuição sindical seriam feitas somente se “prévia e expressamente autorizadas”. Depois, a respeito da forma de cobrança, que para as categorias profissionais de empregados era tradicionalmente feita por meio de desconto na folha de pagamento, a nova redação estabelecida para o texto do artigo 579 passou a prever que “o desconto da contribuição sindical está condicionado à autorização prévia e expressa dos que participarem de uma determinada categoria”5 5 Destaque-se que a Medida Provisória nº 873/2019 tentou piorar ainda mais a situação dos sindicatos, eliminando o próprio sistema de desconto em folha de pagamento, ainda que prévia e expressamente autorizado, com a imposição do sistema de pagamento por boleto bancário ou cobrança eletrônica, que exigiria não apenas autorização, mas postura ativa do trabalhador representado pelo sindicato. A norma, entretanto, não foi apreciada pelo Congresso Nacional dentro do prazo constitucional, o que equivale à sua rejeição tácita, com o que sua vigência foi encerrada e permaneceram válidas as redações estabelecidas pela Lei nº 13.467/2017. .

Muito embora tenham sido os dispositivos objeto de questionamento por uma miríade de ações judiciais no Supremo Tribunal Federal - um total de vinte ações foram manejadas junto ao STF para discutir estas alterações legislativas, sendo dezenove Ações Diretas de Inconstitucionalidade e uma Ação Declaratória de Constitucionalidade -, que tiveram julgamento conjunto encabeçado pela ADI 5794, por 6 votos a 3 se declarou a alteração compatível com o texto Constitucional pátrio.

As alterações afetaram gravemente o movimento sindical já no início de 2018 - a cobrança da contribuição sindical das categorias profissionais de empregados sempre foi e persiste sendo feita no mês de março de cada ano, a teor do que dispõe o artigo 582 da CLT, seja na redação antiga, seja na redação atual. A quantidade de recursos disponíveis para a consecução das atividades sindicais caiu drasticamente, diminuindo sobremaneira a possibilidade de sucesso de sua atuação. Conforme amplamente noticiado pela imprensa, a queda de arrecadação decorrente da contribuição sindical obrigatória, agora tornada facultativa, foi de 90% comparando-se 2018 a 2017, com concentração das perdas nas entidades sindicais profissionais, cuja arrecadação caiu de R$ 2,24 bilhões para R$ 207,6 milhões6 6 Os dados foram amplamente noticiados, mas a fonte original parece ter sido apuração de O Estado de São Paulo sobre números de divulgação oficial da Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia (SILVA, 2019). . Embora o desmonte do Ministério do Trabalho - rebaixado a secretaria do Ministério da Economia e com sua estrutura completamente desarticulada com o governo Jair Bolsonaro - tenha dificultado o acesso aos dados, que foram publicados de forma confusa e atrasada, apurações preliminares obtidas pela imprensa apontam que a queda em 2019 teria sido ainda maior, já que o acumulado de janeiro a novembro deste ano registrava a arrecadação de apenas R$ 88,2 milhões (LOPES, 2020LOPES, Marcos Rogério. Mudança na lei trabalhista reduziu contribuições sindicais em 96%. R7, 22 de janeiro de 2020. Disponível em: https://noticias.r7.com/brasil/mudanca-na-lei-trabalhista-reduziu-contribuicoes-sindicais-em-96-22012020. Acesso em 02 de março de 2020.
https://noticias.r7.com/brasil/mudanca-n...
). A mesma realidade foi observada pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos - DIEESE (2018: 5) junto às centrais sindicais. O levantamento aponta que “quando se compara a arrecadação da contribuição sindical do mês de abril de 2018 à de abril de 2017, nota-se queda da ordem de 90%. Entre as Centrais, a CUT foi a que registrou a maior redução da receita (queda de 94%); e a CSB, a menor (queda de 85%)”.

A entidade intersindical levanta ainda outro dado bastante peculiar. Sempre tratando de entidades representativas da classe trabalhadora, afirma que:

Em 2018, 1.391 entidades (20% do total) não receberam recursos referentes à Contribuição Sindical. Dessas, 11% haviam arrecadado mais de R$ 100 mil em 2017 e foram, dessa forma, profundamente afetadas pela reforma trabalhista. Entre aquelas que recolheram recursos relativos à Contribuição Sindical em 2018, 3.309 (48% do total) receberam menos de 10% da receita do ano anterior; 1.072 (15% do total) receberam entre 10% e 20% da receita de 2017; e 482 (7% do total), entre 20% e 30% da receita também de 2017. Juntas, representam, portanto, quase 70% das entidades sindicais cadastradas na CEF. Por outro lado, 98 entidades - cerca de 1,3% do total - receberam mais recursos do que obtido no ano anterior (DIEESE, 2018: 5).

Os dados coincidem também com a percepção da maior parte das direções sindicais. Em pesquisa qualitativa realizada pela Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista - REMIR, “o imposto sindical deixou de figurar como principal fonte em 86% dos casos em que fora mencionado anteriormente. A mensalidade ganha importância como primeira fonte em 40% dos casos e a taxa negocial ganha importância como segunda fonte em 35%” (GALVÃO, 2019GALVÃO, Andréia. "Reforma trabalhista: efeitos e perspectivas para os sindicatos". In: KREIN, José Dari. OLIVEIRA, Roberto Véras de. FILGUEIRAS, Vitor Araújo (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Numuendajú, 2019.: 214-215). Essa percepção dos dirigentes ganha importância quando se observa suas respostas sobre as estratégias de resistência à contrarreforma, em que a maior fração, de 53%, aponta a necessidade de adequar a estrutura do sindicato à nova realidade financeira e política, ao lado da também expressiva porção de 25% que mencionou o compartilhamento de estruturas7 7 A pergunta em questão comportava respostas múltiplas. . A percepção de Andreia Galvão (2019GALVÃO, Andréia. "Reforma trabalhista: efeitos e perspectivas para os sindicatos". In: KREIN, José Dari. OLIVEIRA, Roberto Véras de. FILGUEIRAS, Vitor Araújo (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Numuendajú, 2019.: 219-220) a partir da pesquisa da REMIR é a de que

O que se destaca é a importância dada à necessidade de adequação à nova realidade financeira. Quando instados a mencionar mudanças organizativas, os entrevistados se referem à redução de custos, mostrando preocupação com a questão dos recursos materiais. Nesse quesito, apontam as seguintes medidas: reestruturação dos serviços oferecidos pelo sindicato, demissão de funcionários, redução de patrimônio, fechamento de subsedes e redução de visitas em locais de trabalho.

Esse dado, que por si só já seria impactante, ainda contrasta fortemente com a situação anterior à contrarreforma, em que apenas 9% dos entrevistados indicaram a infraestrutura e os recursos financeiros como uma das dificuldades enfrentadas pelo movimento sindical para barrar a reforma (GALVÃO, 2019GALVÃO, Andréia. "Reforma trabalhista: efeitos e perspectivas para os sindicatos". In: KREIN, José Dari. OLIVEIRA, Roberto Véras de. FILGUEIRAS, Vitor Araújo (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Numuendajú, 2019.: 208-209).

Tamanhas perdas financeiras, somadas a todo o restante do contexto adverso, tiveram graves consequências. Essa é, evidentemente, a percepção subjetiva das direções, dentre as quais, ainda com respaldo na pesquisa da REMIR, “a grande maioria dos entrevistados sustentou que houve alteração, para pior, nas condições de negociação” (GALVÃO, 2019GALVÃO, Andréia. "Reforma trabalhista: efeitos e perspectivas para os sindicatos". In: KREIN, José Dari. OLIVEIRA, Roberto Véras de. FILGUEIRAS, Vitor Araújo (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Numuendajú, 2019.: 212), o que por certo decorre da maior fragilidade das entidades expressa em concreto no momento da barganha. Cabe, porém, investigar alguns outros indicadores que possam referendar esta percepção.

Uma primeira constatação, formulada pelo DIEESE a partir de plataforma denominada Mediador, instituída pelo extinto Ministério do Trabalho para o acompanhamento dos acordos e convenções coletivos de trabalho, dá conta de que, em números absolutos, de janeiro a outubro de 2018, “as convenções registravam queda de 25% em relação a igual período de 2017; e os acordos, queda de 23%” (DIEESE, 2018: 7). Os números mostram de maneira clara, portanto, que uma quantidade significativamente menor de categorias teve acesso a negociações coletivas de trabalho.

É claro que tais números não podem ser lidos isoladamente. A diminuição da quantidade de negociações coletivas num contexto ainda nebuloso em que passa a ser possível pela primeira vez que uma negociação coletiva diminua o patamar de proteção legislativa é, de fato, um fenômeno ambíguo. Tanto pode representar uma deterioração das condições de negociação, conforme relatos obtidos pela pesquisa da REMIR acima noticiados, quanto uma maior cautela dos sindicatos no engajamento em negociações coletivas, conforme interessantíssima sugestão de Andréia Galvão (2019GALVÃO, Andréia. "Reforma trabalhista: efeitos e perspectivas para os sindicatos". In: KREIN, José Dari. OLIVEIRA, Roberto Véras de. FILGUEIRAS, Vitor Araújo (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Numuendajú, 2019.: 212) no texto que apresenta a mesma pesquisa:

Nossa hipótese é que, num contexto mais desfavorável, o sindicato se torna mais cauteloso no processo de negociação, o que leva ao impasse nas negociações: de um lado, os sindicatos, mesmo os pequenos e com menos tradição de luta, resistem a introduzir algumas das medidas que consideram prejudiciais aos trabalhadores; de outro, buscam preservar as cláusulas anteriormente pactuadas e introduzir salvaguardas (por exemplo, a manutenção das prerrogativas sindicais, como a homologação com participação dos sindicatos), a introdução da taxa negocial para compensar as perdas financeiras.

Parece-nos fundamental destacar, porém, que um elemento decisivo a incidir nesta conta e que deixa de ser considerado por Galvão é o do fim da ultratividade das normas coletivamente compostas. Na forma do texto vigente do art. 614, parágrafo terceiro, da CLT, para além da impossibilidade da negociação de convenções e acordos coletivos com validade superior a dois anos, inscreve-se também no ordenamento brasileiro a vedação do efeito ultrativo às normas sindicalmente ajustadas. A alteração vem ao arrepio do entendimento historicamente conformado na Súmula n. 277, do Tribunal Superior do Trabalho, que embora tenha sofrido no curso da história substantivas alterações em sua redação, comportava a aderência das normas coletivamente compostas ao contrato individual, passando estas a não comportarem alterações lesivas às categorias profissionais. Muito embora referida alteração não tenha passado incólume aos questionamentos postos no que chamamos microrresistência hermenêutica (MENDES, 2017MENDES, Marcus Menezes Barberino. "Autonomia coletiva e a Lei 13467/2017: apertem os cintos porque o garante do interesse público sumiu. Será?". In: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 443-450.), ela vem irradiando efeitos na realidade sindical brasileira.

Este fato, entendemos, é um impulsionador estrutural das entidades sindicais à negociação, ainda que seja para conter as perdas cristalizadas nas convenções e acordos coletivos históricos, a fim de não se chegar em patamares mínimos - estes mesmos passíveis de flexibilização - previstos em lei.

Evidenciando tais fatos, aponta Clóvis Scherer (2019SCHERER, Clovis. "Diálogo e proteção social: a negociação coletiva após a Reforma Trabalhista". In: KREIN, José Dari. OLIVEIRA, Roberto Véras de. FILGUEIRAS, Vitor Araújo (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Numuendajú, 2019.: 192) que “do total dos respondentes” de pesquisa que toma por base seus dados - de natureza qualitativa conduzida pelo DIEESE com dirigentes sindicais ligados à Central Única dos Trabalhadores - CUT -,

59,5% consideraram que o resultado da negociação de 2018 foi pior do que o normal, pela perda de direitos, dificuldades para conquista de novos direitos, pauta patronal extensa e pressão devido ao fim da ultratividade. Apenas 12,7% responderam que o resultado foi melhor, mas, em muitos desses casos, a negociação ficou restrita ao item salarial, quando o acordo, para as outras cláusulas, tinha vigência bianual.

Parece-nos que este elemento não só torna a ambiguidade acima denunciada ainda mais aguda, como também complexifica o arguto alerta trazido por Galvão, pressionando ainda mais as entidades sindicais de trabalhadoras e trabalhadores à míngua no processo de negociação coletiva. Tendo este fator em conta, o cenário traçado pela professora da UNICAMP revela-se ainda mais preocupante, tomadas as perspectivas de salvaguarda das condições de existência da classe trabalhadora.

Para buscar se livrar dos efeitos dessa ambiguidade, é necessário modificar o ângulo de observação, afastando o olhar do objeto para enfocá-lo mais panoramicamente. É necessário relacionar os indicadores sobre negociações coletivas com indicadores econômicos, inclusive a fim de evitar imprecisões de análise resultantes de fraturas quanto ao trato de certas determinações. Isso revela, segundo ficará demonstrado, que essa diminuição na quantidade de instrumentos coletivos negociados os leva a se concentrar nas categorias mais fortes, mais estruturadas e organizadas, que tinham menor dependência financeira em relação à contribuição sindical obrigatória e, por isso, experimentaram uma menor deterioração nas condições de negociação, embora não necessariamente esta revele um grau adequado de contenção de ofensiva do capital cristalizada nos instrumentos de negociação coletiva.

2. Negociação coletiva e direitos da classe trabalhadora

Um apelo ao impressionismo poderia nos levar a afirmar que as condições de existência da classe trabalhadora passaram por expressiva piora no último período, sobretudo após as contrarreformas trabalhistas implementadas em 2017. Calcar-se em experiências cotidianas e olhares particulares - mesmo ante a inescapável constatação de que o mundo em que vivemos está cada vez mais tomado por relações de trabalho voláteis, circunstanciais, em que os marcos tradicionais de perenidade acabam aparentemente mitigados pela mediação da exploração por interfaces virtuais, que se avolumam aos olhos atentos - não nos parece um modo adequado de aferir diagnósticos gerais de nosso tempo social, quanto menos alcançar conclusões científicas adequadas para nele intervir.

Tendo em conta o enfoque de nosso estudo nas negociações coletivas - que expressaram queda nominal de instrumentos de composição sindical entabulados após a contrarreforma instituída pela Lei n. 13.467/2017 -, na fragilização arrecadatória das entidades sindicais e nas condições de existência da classe trabalhadora, entendemos despontar como melhor baliza para interpretar o atual mundo do trabalho e sua ligação com a crise capitalista a análise de indicadores. Apenas estes indicativos, entendemos, são capazes de revelar, quando tomados de forma articulada e atenta às suas complexidades, os efeitos trazidos pela contrarreforma trabalhista à classe trabalhadora.

Elegemos assim duas séries de dados compilados pelo DIEESE e pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para amparar nossas reflexões e formulações críticas. Os dados em menção ilustram as condições do mercado de trabalho e os níveis de renda da população no último período, conferindo condições para que de forma cruzada possamos traçar indicativos do estado atual do processo de negociações coletivas de trabalho no país, sobretudo sinalizando quais são os campos em que se concentram e os que mostram maior fragilidade.

De um lado, pode parecer surpreendente que a comparação entre os “Balanços das negociações dos reajustes salariais” de 2017 e 2018 - publicações anuais que sumariam os dados do Sistema de acompanhamento de salários do DIEESE - SAS-DIEESE - revele um crescimento no número de negociações de reajustes acima da inflação medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC-IBGE) e uma diminuição no número de reajustes abaixo desse índice - muito embora aponte uma diminuição no número total de negociações de reajustes (DIEESE, 2018b: 3; 2019: 3), corroborando a percepção anteriormente noticiada, obtida a partir do sistema Mediador8 8 O próprio DIEESE (2019a: 2) também aponta para isso, ao justificar a redução da base de dados: “A demora em ultrapassar o limiar de 700 reajustes pode ser um indicativo das dificuldades enfrentadas pelas entidades sindicais em concluir seus processos de negociação, possivelmente em razão da crise econômica e pelo endurecimento da postura patronal pós-reforma trabalhista, como relatado por diversas entidades sindicais filiadas ao DIEESE”. . Este dado aparentemente positivo, por outro lado, fica contextualizado a partir da constatação de sua restrição a uma menor quantidade de categorias fortes e organizadas, uma vez que discrepa de dados sobre emprego e renda abrangendo a totalidade da população trabalhadora.

É nesse particular que reside um dos pontos centrais de reflexão que pretendemos imprimir com o presente estudo, como demonstraremos a seguir.

Auxilia-nos, como lente para avaliação das condições de trabalho desde a contrarreforma, o recentemente criado Índice de Condições de Trabalho (ICT-DIEESE). Tendo em conta que “observar os supostos efeitos positivos ou negativos” das contrarreformas trabalhistas de 2017 “valendo-se somente de indicadores específicos como renda, desocupação ou informalidade pode dar origem a visões pouco abrangentes, ainda mais em um mercado de trabalho notadamente heterogêneo como o brasileiro” (DIEESE, 2019e: 1), entendeu o Departamento Intersindical em criar este novo índice. Adotando metodologia que comporta, de modo unitário, os subíndices de inserção ocupacional, desocupação e rendimento - em cada qual incidindo uma série de critérios outros de leitura, dentre os quais formalização de vínculos, contribuição ao INSS, tempo de permanência no emprego, desocupação e desalento, procura por trabalho, rendimento por hora trabalhada e distribuição dos rendimentos do trabalho -, toma a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios contínua (PNADc) do IBGE como manancial de dados (DIEESE, 2019c).

Muito embora tenha sido criado após a contrarreforma de 2017, com vistas a criar bases comparativas mais sólidas para perceber as mudanças ocorridas nas condições de trabalho, foram seus critérios de aferição projetados para anos anteriores à sua idealização, sendo lançado em 2019 um relatório expondo os dados concernentes à aplicação do índice desde o ano de 2012 (DIEESE, 2020d).

Tomemos, pois, os primeiros resultados na aplicação deste indicador, voltados aos anos de 2017 e 2018. Estes apontaram resultados que, tomados de forma precipitada ou monodeterminada, poderiam sinalizar novas ambiguidades: verificamos, comparando o quarto trimestre de 2017 - ou seja, o período em que entra em vigor a contrarreforma trabalhista instituída pela Lei n. 13.467, fato que se deu em 11 de novembro daquele ano - com o de 20189 9 Conveniente registrar que a opção por nos balizarmos nos últimos trimestres de cada ano se ampara, primeiramente, na necessidade de firmar cadência que proporcione leituras comparativas desde um referencial objetivo e, em segundo, por ter em conta que o mercado de trabalho guarda tendências regulares de oscilação em alguns indicadores que se verificariam e dificultariam nossa análise caso tomássemos o compasso trimestral, e não anual - como é o caso da crescente empregabilidade, ainda que em condições precárias, no período de Natal, distorção potencial expressa nas próprias sínteses do ICT (DIEESE, 2020b). , “que a condição do trabalho no Brasil piorou, com ampliação da desigualdade de rendimentos, ligeira alta do rendimento médio, crescimento do trabalho informal e do tempo de procura por trabalho” (DIEESE, 2019b).

Passado um ano, os comparativos do trimestre final de 2018 para com o de 2019 “mostram que o índice da condição do trabalho ficou estável em relação a 2018, mantendo-se, assim, no nível mais baixo observado nos quartos trimestres dos anos anteriores” (DIEESE, 2020b: 2), constatação possível pela já mencionada projeção do índice até o ano de 2012 (DIEESE, 2020d).

A síntese conclusiva do estudo aponta como motivação principal deste cenário de estagnação do mercado de trabalho estar no “baixo dinamismo da atividade econômica brasileira, em 2019 (...), com a abertura de postos de trabalho em velocidade também lenta”, isso para além do fato de que muito “embora tenha se observado aumento do emprego com carteira assinada, a maior parte dos postos de trabalho foi gerada em condições precárias” (DIEESE, 2020b: 2).

É claro que a assunção de indicador único e amplo pode turvar também nossa vista, e a redução às minudências do ICT-DIEESE nos ajuda a compreender de que forma estes fatores de ordem econômica se expressaram na conformação das condições de trabalho no período.

Como expusemos acima, cada um dos subíndices que constituem o ICT-DIEESE são por sua vez compostos por determinantes diversas, daí essa relativa estabilidade das leituras do 4º trimestre de 2018 e 2019 comportar variações internas muitas. Levando-se em conta que o índice e os subíndices revelam melhora nas condições laborais quanto mais próximos de 1, e piora quanto mais se aproximam de 0, verificamos que se de um lado “piorou a Inserção Ocupacional (de 0,34 para 0,30)”, esta “foi compensada por pequenas melhoras nos Rendimentos (de 0,44 para 0,46) e na dimensão Desocupação (de 0,36 para 0,38)” (DIEESE, 2020b: 2). Ao olhar cada um destes três pés de sustentação do ICT-DIEESE, percebe-se que essas variações podem ser apreendidas de forma ainda mais complexa:

Na dimensão Inserção Ocupacional, o resultado negativo foi reflexo da elevação da ocupação precária no período, com menor proporção de pessoas ocupadas há menos de 12 meses e redução na proporção de contribuintes à previdência social. A melhora na dimensão Rendimento decorreu de pequena elevação do rendimento médio real, enquanto a desigualdade de renda do trabalho teve pequena queda. Embora a distância relativa do rendimento médio dos 10% mais ricos em relação aos 40% mais pobres tenha apresentado pequena redução, a diferença em reais cresceu pelo quarto ano consecutivo. Em 2019, a distância ficou R$ 32 maior do que no ano anterior. Já na dimensão Desocupação, houve redução da taxa de desocupação e do desalento, bem como na proporção de pessoas que estava procurando trabalho há mais de cinco meses, nessa base de comparação interanual (DIEESE, 2020b: 2).

Tomado em conjunto com os dados governamentais expostos desde o Cadastro Nacional de Empregados e Desempregados - CAGED, do Ministério da Economia, que aponta 644 mil novos empregos criados em 2019 (MARTELLO, 2020), os dados poderiam levar a boas impressões acerca do mercado de trabalho. Ocorre que o dado, também tomado pura e simplesmente, não comporta as variações em expansão da população economicamente ativa, muito menos a qualidade destes postos de trabalho, elemento determinante à leitura destes saldos.

Daí, retomando o ICT-DIEESE, é que deste conjunto de informações é possível perceber que muito embora tenha aumentado a média da renda e da ocupação da classe trabalhadora no período, este aumento veio acompanhado de uma intensificação de vínculos precários, expresso na queda do subíndice Inserção Ocupacional - determinado pelo grau de formalização dos vínculos, das contribuições previdenciárias e do tempo de permanência dos contratos. Desse modo, uma percepção global que revela tímida melhora ao conjunto das pessoas que trabalham, ao ser apreendida desde suas nuances qualitativas, revela que a expansão da ocupação se deu em condições mais precárias, e os indicadores de melhora de renda se concentraram de forma mais acentuada em uma parcela da classe trabalhadora.

Ainda que em 2019 tenhamos notado uma tímida minoração da desigualdade relativa no país, esta não conseguiu transpor de modo algum limites estruturais relevantes, aprofundando, por exemplo, a desigualdade nominal das rendas ano após ano. Também neste particular tocante da desigualdade, é de se perceber o aumento do índice de Gini no país - que revela o crescimento de desigualdade - entre os anos de 2017 e 2018, isso voltando-se aos mais diversos comparativos. Tomado este índice a partir do rendimento médio mensal real habitualmente recebido de todos os trabalhos, passou-se de 0,501 para 0,509, sobretudo impulsionado pelos impactos tidos nas regiões Norte, Sudeste e Sul (IBGE, 2019: 9). Quando o tomamos a partir do rendimento médio domiciliar, a diferença é ainda mais brutal, saltando nacionalmente de 0,538 em 2017 para 0,545 em 2018 (IBGE, 2019: 11).

Deste modo, descortinando as eventuais percepções que possam advir da leitura de dados que remetem apenas à renda nominal, é de se verificar que entre 2017 e 2018 essa desigualdade, que já era grande, apenas se aprofundou.

Em 2018, o Índice de Gini do rendimento médio mensal real domiciliar per capita para o Brasil foi estimado em 0,545. Entre 2012 e 2015 houve uma tendência de redução do Índice de Gini do rendimento domiciliar per capita (de 0,540 para 0,524), que foi revertida a partir de 2016, quando o índice aumentou para 0,537, chegando a 0,545 em 2018. (IBGE, 2019: 10)

Tal qual sinalizado desde outros índices, as condições de melhora da desigualdade - como também de renda, ocupação etc. (DIEESE, 2020d) - foram cessadas desde que a crise econômica passa a irromper de forma mais acentuada no país.

Parte da agudização da desigualdade apontada pelo índice se revela pela mais acentuada distância interna de rendas verificada em algumas regiões - como é o caso do Nordeste - e a redução de desigualdades dentro de algumas regiões, combinada a um proeminente crescimento da renda real na região Sudeste, em que historicamente a renda de quem trabalha já é mais alta (IBGE, 2019: 9-10).

Os dados concernentes à renda da classe trabalhadora podem ser ainda melhor explicitados tomando-se em conta outras referências, com que o próprio IBGE nos municia.

Os levantamentos obtidos na PNAD mensal e operados pelo sistema SIDRA, do IBGE (2020), revelam comparativamente, sempre tendo em conta o último trimestre de cada ano, que a renda média da classe trabalhadora brasileira foi de R$ 2235,00 para 2017, R$ 2270,00 para 2018 e R$ 2275,00 para 2019. Ou seja, demonstra um tímido acréscimo comparativo, sobretudo tendo-se em conta os índices de inflação acumulados para doze meses, que alcançaram 3,43% em dezembro de 2018 e 4,48% no mesmo mês de 2019 (IBGE, s/d b), e que não alcança os padrões de renda médios do ano de 201410 10 Em um levantamento no mesmo sistema do IBGE, constata-se que a média da renda para o último trimestre de 2012 foi de R$ 2.156,00, R$ 2.236,00 em 2013 e R$ 2.281,00 em 2014, passando por queda em 2015, chegando ao patamar de R$ 2.207, e chegando a 2016 em R$ 2.216,00. .

Temos que ter em conta, porém, que as perspectivas de negociação coletiva a que pretendemos nos ater se vinculam propriamente às categorias profissionais da iniciativa privada. Isso em razão tanto do fato de a CLT, alterada drasticamente em 2017 a proporcionar inflexão na arrecadação sindical e nas potencialidades da negociação coletiva - objeto da nossa mais preocupada incisão - , não se aplicar a larga parcela do serviço público, quanto por conta dos ditames da Convenção n. 151, da Organização Internacional do Trabalho - que pugna entre outras coisas pela afirmação de práticas negociais no serviço público - não serem observados no Brasil.

Daí os dados que exsurgem serem ainda mais alarmantes, a denotar que entre os anos de 2017 e 2019, a renda média do trabalhador na iniciativa privada não se alterou nominalmente, mantendo-se em exatos R$ 2014,00, o que importa em corrosão da renda real sobretudo quando confrontada com a inflação no período, já exposta.

Deste modo, muito embora a negociação coletiva tenha proporcionado saldos remuneratórios a uma série de categorias, por certo tais negociações no período não tiveram condão de alcançar os componentes mais massivos da classe trabalhadora, sobretudo alocados em categorias profissionais com menor tradição de organização sindical, maior precariedade e, logo, menor condição de articulação em defesa de direitos trabalhistas. Tais categorias foram, como também demonstramos, aquelas que mais participaram do incremento de ocupação, já que muito embora as taxas de desocupação passam a crescer vertiginosamente após 2014, estas marcam um decréscimo pelo avolumar de postos de trabalho precários. Daí que desde dados do IBGE (s/d c), sempre tomando o mês de dezembro, possamos notar a tímida baixa de desocupação que sai de 11,8% em 2017, passando por 2018 com 11,6% e chegando a 11% em 2019.

A hipótese é confirmada, por exemplo, desde a perspectiva de renda, pela constatação de que duas das mais tradicionais categorias profissionais do ramo industrial - metalúrgicos e têxteis - se colocaram relativamente em melhores condições negociais no período comparado com o restante dos trabalhadores e trabalhadoras da indústria:

Dentre as negociações da Indústria, destacaram-se aquelas realizadas pelos metalúrgicos, trabalhadores da alimentação e trabalhadores têxteis, com incidência de reajustes acima da inflação superior à média do setor (81%, 70% e 64%, respectivamente, frente a 61% do setor) (DIEESE, 2019a: 7).

Tais fatos endossam também a dimensão impressionista expressa na pesquisa já referenciada de Clóvis Scherer (2019SCHERER, Clovis. "Diálogo e proteção social: a negociação coletiva após a Reforma Trabalhista". In: KREIN, José Dari. OLIVEIRA, Roberto Véras de. FILGUEIRAS, Vitor Araújo (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Numuendajú, 2019.), no sentido de que a percepção das direções sindicais da base CUTista a que ele voltou os olhos entendem que as supostas “melhorias”, apontadas em quase 60% das entrevistas, limitam-se a aspectos diretos da remuneração, e não quanto ao restante das condições de trabalho.

O caráter desigual de como este ataque à renda assola as heterogêneas frações e categorias profissionais que compõem a classe trabalhadora no país pode ser verificada quando nos deparamos com a única parcela da classe trabalhadora que nos dados constantes no sistema SIDRA do IBGE pode ser apartada: a das trabalhadoras domésticas11 11 Aqui, a flexão de gênero foi mantida exclusivamente no feminino ante o caráter preponderante de mulheres que compõe esse setor do assalariado brasileiro, chegando às margens de 96,6% em 2018 (DIEESE, 2019d: 1). .

Categoria historicamente desprestigiada na organização sindical brasileira, fato que trouxe efeitos diversos às perspectivas de negociação sindical em prol de seus direitos (VIEIRA, 2018VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. Tese de Doutorado defendida junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2018.), expressa sintomaticamente não só a exclusão histórica da articulação sindical como a cristalização das mazelas econômicas e culturais que remontam à escravidão, à divisão sexual e racial do trabalho desde a realidade dependente brasileira e ao desprestígio das atividades reprodutivas no país. Revela ainda de forma exemplar o quanto a proteção social da atividade empregatícia ordinária potencializa os padrões de renda de quem trabalha, e o quanto a exclusão deste modelo de regulação do trabalho importa na corrosão da renda.

Tomado o conjunto das trabalhadoras domésticas - tanto com carteira assinada como sem -, a renda média pelo trabalho caminhava numa crescente até 2017. Enquanto a renda média no ano de 2015 era de R$ 906,00, alçando a R$911,00 em 2016 e R$924,00 em 2017, passou, a partir deste momento, a sinalizar queda. A renda média das trabalhadoras domésticas em 2018 caiu para R$916 e em 2019 para R$ 909,00, dados todos obtidos desde os meses de dezembro. Conveniente registrar aqui que muito embora a renda média das empregadas sem carteira de trabalho assinada tenha se mantido estável - de um período a outro no mesmo patamar de R$ 767,00 mensais -, a renda das empregadas domésticas com CTPS assinada desceu do patamar de R$1299,00 em 2017 para os R$1284,00 em 2018 e R$1275,00 em 2019.

A discrepância posta sintomaticamente nos revela uma série de elementos importantes: primeiramente, a visível desigualdade de rendimentos que marca uma fração da classe trabalhadora composta dominantemente por mulheres, que se mostra ainda mais acentuada quando lidamos com profissionais informalizadas. Em segundo lugar, que setores mais fragilizados em suas perspectivas de auto-organização, articulação sindical e, por consequência, negociação com setores patronais encontram maiores debilidades para salvaguardar seus padrões de renda e acompanhar a cadência nacional de incremento remuneratório. Em terceiro lugar, que existe um estrato do conjunto da classe trabalhadora que, dado o tão achatado padrão de renda e informalidade, não guarda inflexões negativas, e que são as formalmente empregadas no trabalho doméstico que percebem não só uma redução média relativa em sua remuneração, mas também nominal.

Estes elementos todos, conjugados com indicadores macroeconômicos por um nexo cronológico, poderão nos trazer bons influxos do quanto as alterações proporcionadas no gozo de direitos trabalhistas - motivados inclusive pela dinâmica de negociações sindicais no país - não traz benesse à saúde econômica capitalista.

3. Direitos da classe trabalhadora e crise econômica

A ruína das condições econômicas da classe trabalhadora, revelada de forma mais sensível desde os dados acima expostos, tanto em sua perspectiva de renda, proteção social e desigualdade, desembocam na necessária articulação com indicadores macroeconômicos que revelam que a retração de direitos trabalhistas - motivada não só por objetivas alterações legislativas que imprimem novos arranjos para as relações de trabalho, mas sobretudo se ancoram em uma recomposição das dinâmicas negociais sindicais - mais do que não fomentar o aquecimento da economia capitalista, colabora para o agravamento de sua crise.

O primeiro deles, talvez mais intuitivo e elementar, é o do Produto Interno Bruto (PIB). Ele enfrenta uma queda brutal que passa a se ver em 2014, saindo do marco de crescimento de 3,2% no 1º trimestre de 2014 até chegar à marca de -4,6% no 2º trimestre de 2016. A “recuperação” no crescimento econômico capitalista se coloca doravante de forma bastante tímida, e dentro do recorte cronológico que elegemos para o estudo - posto entre o quarto trimestre de 2017 e o período final de 2019 - o crescimento da fatura capitalista seguiu estagnado (IBGE, s/d d).

Percebemos que as oscilações do PIB no período, que vinha em crescente desde seu ponto de vale em 2016, não tiveram grande variação, seguindo em patamares pífios. Chegando após subida ao marco de 1,3% de crescimento no 4o trimestre de 2017, e expressando modesta flexão a 1,6% nos trimestres subsequentes, voltou a 1,3% no 4o trimestre de 2018, passando dali em diante a de forma oscilante bater entre 1% e 1,1% no transcorrer de todo ano de 2019 (IBGE, s/d d).

Outro índice ordinariamente utilizado para mensurar o valor da economia capitalista desde nosso registro nacional é o valor do Dólar comercial. Este, após recuperação do pico dado entre 2015 e 2016, no dia 13 de novembro de 2017 - primeiro dia útil após a entrada em vigor da Lei n. 13.467/2017 - era cotado a R$ 3,29, fechando o mesmo ano a R$ 3,31. No ano subsequente teve alta para a cotação diária até alcançar R$ 3,87, seguindo a mesma toada, ainda que menos vertiginosa, para fechar o ano de 2019 a R$ 4,01.

Outro indicador de suma relevância e que expressa idêntica tendência aos demais é o da taxa de investimento calculada para o Brasil pelo IBGE. Tendo experimentado seu ápice entre os anos de 2008 e 2014, passa a partir de então a verificar queda considerável - saindo de 19,2% no último trimestre de 2014 para 16,4% no mesmo período de 2015. A queda segue para 2016, marcando no último semestre taxa de 14,6%, mantida em idêntico patamar no fim de 2017 e, muito embora com um tímido acréscimo em fins de 2018 (marcando 15,2%), retornou a um mesmo patamar, centrado em 14,8%, no fim de 2019.

Talvez o único índice que poderia em alguma medida expressar contrariedade à nossa hipótese seriam as cotações médias de ações apuradas pelo Índice BOVESPA (IBOVESPA). Como se pode verificar, o referido apontou ao cabo do ano de 2017 76.402 pontos, subindo a 87.887 no último dia de pregão de 2018, alcançando exorbitantes 115.645 pontos ao cabo de 2019. Este vôo de galinha, em parte motivado pelas expectativas do capital especulativo em ampliar suas margens de lucro com o advento das contrarreformas trabalhistas de 2017, não teve longa duração: estes oníricos indicativos, marcados pela dinâmica especulativa, não conseguem resistir à prova da economia real e ante o avanço da nuvem de contaminação da COVID-19, e sobretudo com o solavanco dado com seu estatuto pandêmico - declarado pela Organização Mundial de Saúde em 11 de março de 2020 -, viu suas bases fictícias ruírem. Deste modo, o índice passa a marcar quedas abissais a partir de 19 de fevereiro de 2020 - uma semana antes da confirmação do primeiro caso da doença no Brasil -, agudizando-se após o mencionado 11 de março, chegando, na data de fechamento deste artigo, dia 23 de março de 2020, marca de 63569 pontos (INFOMONEY).

Deste modo, o “vigor” da economia brasileira medido pelo referido índice teria senão um caráter aparente, ou então fictício, o que impossibilita seu uso para infirmar o quanto aqui exposto. Ao contrário, deixa muito evidente o completo descolamento existente entre a economia especulativa consistente nas expectativas de investidores parasitários e a economia capitalista real, que seguem padrões bastante discrepantes entre si, vindo a ser forçosamente reconciliados em momentos de crise.

O conjunto de indicadores exposto neste item nos leva a perceber que a crise econômica, que a partir de 2014 passou a ser sentida de modo mais contundente na economia capitalista brasileira, não observou qualquer esboço de recuperação no período subsequente, apesar dos esforços governamentais de implementar uma agenda regressiva de contrarreformas - já prenunciados pelos governos social-liberais do Partido dos Trabalhadores, mas implementados de forma mais acintosa depois de 2016 por Michel Temer e continuamente por Jair Bolsonaro - não só na esfera trabalhista, como também na Previdência Social e no conjunto de salários indiretos que compõem os serviços públicos. Muito pelo contrário, as ganas expansivas de afirmação capitalista - ordinariamente tomadas como de crescimento ou desenvolvimento econômicos, como se só a economia capitalista pudesse se desenhar! - seguindo as miseráveis bases de existência da classe trabalhadora no país, tal qual demonstradas no item precedente, agravadas pela reduzida capacidade de negociação das entidades sindicais de categorias profissionais - em que pese não apenas determinadas por este fator - se mostram incapazes de vicejar.

O que se pode perceber destes indicadores macroeconômicos, em verdade, é que muito embora um certo grau de entusiasmo tenha se verificado pelo conjunto das classes proprietárias brasileiras e estrangeiras no período subsequente à aprovação das contrarreformas trabalhistas em 2017, o mercado capitalista segue estagnado. A corrosão das condições de existência dos trabalhadores e trabalhadoras - cogitado horizonte para expansão às margens de lucro - mostra-se, em verdade, como uma via desobstruída para afirmação da queda tendencial das taxas de lucro, que de modo desesperado intentam se revigorar.

Deste modo, as novas e precárias formas de contratação da força de trabalho, aliadas ao enfraquecimento das entidades sindicais e à abertura de permissivo de que a flexibilização das condições de trabalho se opere por negociação coletiva, demonstram o quanto o enfraquecimento dos marcos protetivos do Direito do Trabalho - a renda, perenização de vínculos e salvaguarda de tempos livres à classe trabalhadora - acaba por trazer impactos negativos à própria reprodução da relação social do capital, sem jamais ter o condão de proporcionar o revigoramento da cadência de produção e circulação de mercadorias.

Conclusão

As reflexões ora trazidas no presente artigo demonstram o quanto o direito do trabalho cumpre um papel efetivamente capitalista, como garante e remediador de tendências estruturais do modo de produção capitalista, e que sua míngua é a receita certa para o aprofundamento do colapso do modo de produção, ao menos desde sua perspectiva exclusivamente econômica - sabido que é que seu efetivo abolir só advirá de forças políticas revolucionárias.

De outro lado, revela o quanto o mesmo repertório jurídico cumpre papel na melhoria das condições de existência da classe trabalhadora, ainda que insertos nas miseráveis bases de reprodução da vida que o modo de produção capitalista proporciona.

Deste modo, incidindo diretamente nas duas frentes de intervenção crítica que se colocam ao lado de quem trabalha na leitura do direito do trabalho, pudemos demonstrar que a fragilização das entidades sindicais - proporcionada sobretudo pela Lei n. 13.467/2017, que aboliu repentinamente a contribuição sindical, principal fonte de arrecadação de entidades de classe no Brasil - importa também na redução do espectro protetivo juslaboral. Percebida a redução de instrumentos de composição coletiva após a contrarreforma, passamos a perceber a complexidade de compreensão destes dados: se de um lado há o cenário em que é possível às negociações coletivas acarretar a minoração do espectro de abrangência do direito do trabalho, e em que a extinção da ultratividade impulsiona os sindicatos a negociar ao menos a manutenção de direitos historicamente conquistados e assentados em convenções e acordos coletivos - pressionando, cada um desde sua perspectiva de classe, a majoração das negociações -, de outro é de se perceber que as cautelas postas a estas entidades sindicais tão fragilizadas as levam a conter novas pactuações que possam acarretar prejuízo às categorias profissionais representadas.

Fugindo deste cenário de espinhosa apreensão, é possível perceber de toda uma série de indicadores microeconômicos o quanto as inflexões no campo da negociação sindical interpelam as diversas categorias de atividade de forma heterogênea, proporcionando a categorias que possuem uma tradição maior de articulação sindical, com maior índice de sindicalização, gozar dos frutos positivos de negociações sindicais - sobretudo quanto a aspectos de renda -, ao revés de outras tantas categorias profissionais que experimentam crescente arrocho em suas condições de existência, aprofundando desigualdades de renda existentes no interior da própria classe trabalhadora. O comparativo das categorias de trabalhadores industriais metalúrgicos e têxteis e de empregadas domésticas evidencia bem o fato.

A fragilização arrecadatória das entidades sindicais de categorias profissionais, emplacada pela Lei n. 13.467/2017 e tomada como grande trunfo pelas classes proprietárias em nosso país, na verdade se revela, pelo comparativo cronológico com dados macroeconômicos, um grande tiro no pé.

Ao se abrir a vereda de minoração das garantias trabalhistas, proporcionando imediatos e diretos efeitos na renda de quem trabalha e na qualidade dos vínculos laborais concertados, o que se verifica é a fragilização do motor circulacionista mercantil indispensável à reprodução ampliada do modo de produção capitalista. Aquele juízo favorável feito pelos capitalistas e demais apologetas da ordem se mostra turvo após um palmo na frente de seus narizes, tendo-se em conta que as ânsias da relação social do capital não se esgotam nos processos produtivos simples, mas sim no embrenhar profundo e complexo entre processos de produção e circulação, permanentes e acelerados, que caso se vejam interditados colocam em xeque a saúde sistêmica. Ao tolher à importante engrenagem da classe trabalhadora parcela de renda indispensável ao consumo - ou seja, à circulação de mercadorias para atenção destas suas necessidades vitais -, vê-se o próprio modo de produção apunhalado, revelando a importância que o direito do trabalho, bem como as entidades sindicais capturadas pela funcionalização capitalista, guardam para o modo de produção.

Referências

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  • MARTINEZ, Luciano. Condutas antissindicais. São Paulo: Saraiva, 2013.
  • MENDES, Marcus Menezes Barberino. "Autonomia coletiva e a Lei 13467/2017: apertem os cintos porque o garante do interesse público sumiu. Será?". In: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 443-450.
  • SARTORI, Vitor Bartoletti. "Direito, política e reconhecimento: apontamentos sobre Karl Marx e a criítica ao Direito". In: Revista da Faculdade de Direito - UFPR, Curitiba, vol. 61, n. 2, maio/ago. 2016, p. 203-233.
  • SCHERER, Clovis. "Diálogo e proteção social: a negociação coletiva após a Reforma Trabalhista". In: KREIN, José Dari. OLIVEIRA, Roberto Véras de. FILGUEIRAS, Vitor Araújo (orgs.). Reforma trabalhista no Brasil: promessas e realidade. Campinas: Curt Numuendajú, 2019.
  • SEFERIAN Scheffer Machado, Gustavo. Direito do Trabalho como barricada: sobre o uso tático da proteção jurídica dos trabalhadores. Tese (doutorado) defendida junto à Faculdade de Direito da FDUSP, 2017.
  • SILVA, Cleide. Sindicatos perdem 90% da contribuição sindical no 1º ano da reforma trabalhista. O Estado de São Paulo, 05 de março de 2019. Disponível em: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,sindicatos-perdem-90-da-contribuicao-sindical-no-1-ano-da-reforma-trabalhista,70002743950 Acesso em 02 de março de 2020.
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  • SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; SEVERO, Valdete Souto. Resistência: aportes teóricos contra o retrocesso trabalhista. São Paulo: Expressão Popular, 2017.
  • ________. Resistência II: defesa e crítica da justiça do trabalho. São Paulo: Expressão Popular, 2018.
  • ________. Resistência III: o direito do trabalho diz não à terceirização. São Paulo: Expressão Popular, 2019.
  • VIEIRA, Regina Stela Corrêa. O cuidado como trabalho: uma interpelação do Direito do Trabalho a partir da perspectiva de gênero. Tese de Doutorado defendida junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2018.
  • 1
    Este é, inclusive, o título de uma série de obras coordenadas por Jorge Luiz Souto Maior e Valdete Souto Severo (2017, 2018 e 2019), dois dos maiores expoentes nacionais da corrente de pensamento comentada neste parágrafo.
  • 2
    Nunca é demais ressaltar, em textos que apresentam o marco teórico aqui sufragado, que resistir à adoção de contrarreformas precarizantes de direitos sociais é tarefa incontornável de qualquer estudioso que se pretenda marxista e isso não está em questão aqui em absoluto. O problema claramente não é como atuar na prática cotidiana da luta de classes, em que os dois campos teóricos noticiados no texto sempre cerram fileiras, mas como inserir esta atuação cotidiana no horizonte mais amplo de luta contra o modo de produção capitalista. A esse respeito, ver, de um lado, a indispensável contribuição de John Holloway (2019), e, de outro, as perspectivas de um uso tático do direito do trabalho, reconhecidas suas limitações e qualidades estruturais (SEFERIAN, 2017), sempre atentos que devemos estar às distinções potenciais do “terreno do direito” e da politicidade, guardados os limites do primeiro e as potências da segunda (SARTORI, 2016).
  • 3
    Observe-se, por exemplo, no tocante à estrutura sindical brasileira e sua relação com o Estado, o longo recenseamento de literatura jurídica sobre a personalidade jurídica de direito público ou de direito privado do sindicato, promovido por BRITO FILHO (2009: 102-106)
  • 4
    Importante ressaltar que se diz cosmética tal modificação porque em nada influiu na natureza ou na forma de cobrança da verba. Veja-se, a esse respeito, que o Supremo Tribunal Federal persistiu sufragando a natureza jurídica tributária da cobrança da contribuição sindical, como se pode depreender do julgamento do Agravo Regimental em Recurso Extraordinário nº 496456, sob relatoria da Ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha. No trato popular, a referência a contribuição sindical enquanto “imposto sindical” seguiu e segue costumeira.
  • 5
    Destaque-se que a Medida Provisória nº 873/2019 tentou piorar ainda mais a situação dos sindicatos, eliminando o próprio sistema de desconto em folha de pagamento, ainda que prévia e expressamente autorizado, com a imposição do sistema de pagamento por boleto bancário ou cobrança eletrônica, que exigiria não apenas autorização, mas postura ativa do trabalhador representado pelo sindicato. A norma, entretanto, não foi apreciada pelo Congresso Nacional dentro do prazo constitucional, o que equivale à sua rejeição tácita, com o que sua vigência foi encerrada e permaneceram válidas as redações estabelecidas pela Lei nº 13.467/2017.
  • 6
    Os dados foram amplamente noticiados, mas a fonte original parece ter sido apuração de O Estado de São Paulo sobre números de divulgação oficial da Secretaria de Trabalho do Ministério da Economia (SILVA, 2019).
  • 7
    A pergunta em questão comportava respostas múltiplas.
  • 8
    O próprio DIEESE (2019a: 2) também aponta para isso, ao justificar a redução da base de dados: “A demora em ultrapassar o limiar de 700 reajustes pode ser um indicativo das dificuldades enfrentadas pelas entidades sindicais em concluir seus processos de negociação, possivelmente em razão da crise econômica e pelo endurecimento da postura patronal pós-reforma trabalhista, como relatado por diversas entidades sindicais filiadas ao DIEESE”.
  • 9
    Conveniente registrar que a opção por nos balizarmos nos últimos trimestres de cada ano se ampara, primeiramente, na necessidade de firmar cadência que proporcione leituras comparativas desde um referencial objetivo e, em segundo, por ter em conta que o mercado de trabalho guarda tendências regulares de oscilação em alguns indicadores que se verificariam e dificultariam nossa análise caso tomássemos o compasso trimestral, e não anual - como é o caso da crescente empregabilidade, ainda que em condições precárias, no período de Natal, distorção potencial expressa nas próprias sínteses do ICT (DIEESE, 2020b).
  • 10
    Em um levantamento no mesmo sistema do IBGE, constata-se que a média da renda para o último trimestre de 2012 foi de R$ 2.156,00, R$ 2.236,00 em 2013 e R$ 2.281,00 em 2014, passando por queda em 2015, chegando ao patamar de R$ 2.207, e chegando a 2016 em R$ 2.216,00.
  • 11
    Aqui, a flexão de gênero foi mantida exclusivamente no feminino ante o caráter preponderante de mulheres que compõe esse setor do assalariado brasileiro, chegando às margens de 96,6% em 2018 (DIEESE, 2019d: 1).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2020
  • Aceito
    07 Jun 2020
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