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Trabalho Invisível e Ilícito: reflexões criminológicas críticas e feministas do aumento do encarceramento de mulheres por tráfico de drogas no Brasil.

Invisible and Illicit Work: critical and feminist criminological reflections on the increase in the incarceration of women for drug trafficking in Brazil.

Resumo

Diante de um aumento vertiginoso do encarceramento de mulheres por tráfico de drogas, este artigo visa colaborar na análise das múltiplas determinantes deste fenômeno desde o diálogo entre pensamento criminológico crítico e teorias feministas marxistas, tendo como central a afirmação da condição destas mulheres enquanto trabalhadoras do tráfico e a compreensão da dinâmica de seus lugares na produção e reprodução social do capital.

Palavras-chave:
Encarceramento de mulheres; Guerra às drogas; Divisão sexual do trabalho; Reprodução social

Abstract

Faced with a dizzying increase in the incarceration of women for drug trafficking, this article aims to collaborate in the analysis of the multiple determinants of this phenomenon from the dialogue between critical criminological theory and Marxist feminist theories, with the affirmation of the condition of trafficking workers as central of these women and the understanding of the dynamics of their places in the production and social reproduction of capital.

Keywords:
Imprisonment of women; War on drugs; Sexual division of labor; Social reproduction

1. Introdução

Partindo da reunião de três importantes áreas do pensamento - quais sejam reflexões de pesquisadoras e pesquisadores das criminologias críticas, das criminologias feministas e das teorias feministas marxistas1 1 Buscando realizar um delicado diálogo entre as autoras da consubstancialidade das relações sociais de gênero, classe e raça com aquelas que reivindicam, desde uma Teoria Unitária, a Teoria da Reprodução Social. - e tendo como fio condutor a divisão sexual e racial do trabalho, desde uma leitura da relação entre produção e reprodução social -, buscaremos realizar neste artigo uma contribuição ao estudo dos elementos determinantes do boom do encarceramento feminino por tráfico de drogas.

Antes de tudo, justificamos a pertinência do estudo. A população em situação de prisão no Brasil já ultrapassou 770 mil pessoas. Mais do que isso, a velocidade do encarceramento e a sua quantificação proporcional também são elevadas, em comparação com o resto do mundo. Deste cenário destacamos a existência de um problema histórico ainda maior quanto aos dados da realidade do aprisionamento de mulheres, que, ainda que tenham se tornado um dos bodes expiatórios privilegiados do sistema, continuam sendo numericamente minoritárias - são 37.129, totalizando 4,94% do total da população penitenciária -, o que faz com que as informações sobre elas, assim como políticas específicas às mesmas, sejam invisibilizadas.

Para nós, mais do que elemento pertinente de análise, compreender o fenômeno do aumento do encarceramento das mulheres nos últimos quinze anos é uma importante tradução da conjunção de fatores determinantes da onda punitiva neste período. É uma expressão significativa do impacto do Estado penal contemporâneo, desde o polo que mais diretamente pode sentir os efeitos dos tempos de barbárie permanente: as mulheres periféricas e superexploradas, predominantemente negras. Do mesmo modo, é também um retrato elucidativo do que significam as reconfigurações da interdependência entre produção e reprodução social na etapa de crise estrutural do capital e como isso impacta a vida das mulheres trabalhadoras.

Para entender a dramaticidade do vivido, vale destacar que a proporção de mulheres presas subiu vertiginosamente neste período, sendo que 56,16% delas estavam presas por crimes de drogas em meados do ano 20192 2 A maioria dos dados estatísticos com os quais trabalharemos neste artigo são referentes às informações consolidadas no INFOPEN Mulheres, lançado pelo Departamento Penitenciário Nacional em 2018, referente ao ano de 2016. Este mesmo Departamento lançou, em 2020, um link com atualizações de dados referentes ao período de janeiro-junho de 2019, porém não se trata de relatório pormenorizado como o anterior. Deste modo, uma informação ou outra será atualizada a partir desta última fonte e assim explicitada. , quase o dobro da porcentagem dos homens, que contabilizavam neste período 27,97% do seu total.

Nestes dados foram contabilizadas de maneira insuficiente as mulheres custodiadas em carceragens de delegacias ou outros órgãos destinados à custódia de pessoas, que sejam administrados por órgãos do sistema de segurança pública estadual, pois há uma “ausência de informações com recorte de gênero sobre essa população para a maior parte dos estados brasileiros”, o que “limita a análise do fenômeno do encarceramento feminino no Brasil e tem impacto direto sobre a posição ocupada pelo País no ranking mundial do encarceramento feminino” (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 9).

Quanto ao perfil deste aprisionamento feminino por tráfico, o relatório detalha:

3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes ligados ao tráfico. Entre as tipificações relacionadas ao tráfico de drogas, o crime de associação para o tráfico corresponde a 16% das incidências e o crime de tráfico internacional de drogas responde por 2%, sendo que o restante das incidências refere-se à tipificação de Tráfico de drogas, propriamente dita (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 53).

Apenas por estes números já se evidencia o perfil desorganizado criminalmente da maioria das mulheres, como teremos oportunidade de melhor entender ao longo deste escrito.

O Brasil é o quarto país em números absolutos de encarceramento de mulheres, ficando atrás apenas dos Estados Unidos, da China e da Rússia. Quanto à taxa proporcional (números de mulheres presas por 100 mil mulheres), “o Brasil figura na terceira posição entre os países que mais encarceram, ficando atrás apenas dos Estados Unidos e da Tailândia” (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 13).

Assim como nos dados gerais do aprisionamento, o elemento ainda mais preocupante refere-se à velocidade do encarceramento (a variação da taxa de aprisionamento), sendo que na situação específica da mulher o número brasileiro é incomparavelmente alarmante, pois “em um período de 16 anos, entre 2000 e 2016, a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou em 455% no Brasil. No mesmo período, a Rússia diminuiu em 2%” (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 13-14). Já em números absolutos o aumento de 2000 a 2016 foi de 656%, enquanto o masculino neste mesmo período foi de 293%.

Na mesma toada dos dados gerais, 45% das mulheres, como uma média nacional, são presas provisórias, entretanto com uma variação temporal maior, pois, comparando ao relatório publicado em 2018 com o de dois anos antes, o aumento foi de 15%.

Elementos estruturais e de perfil sociodemográfico da população feminina privada de liberdade no país serão descritos em momentos oportunos, mas já podemos ter noção da dimensão do impacto social que a máquina penal tem gerado no Brasil desde o processo de redemocratização, especialmente a partir dos anos 2000.

Para nós, a explicação deste fenômeno não está nem desde um a priori de que houve um aumento da prática de crimes por mulheres, nem está em uma análise estrita sobre a atuação das agências do controle penal brasileiro, especialmente as polícias, Ministério Público e Judiciário. O que defenderemos e desenvolveremos neste artigo é que estas análises precisam estar dialeticamente permeadas pela reflexão acerca da condição das mulheres na sociedade brasileira hoje, especialmente suas condições de trabalho (desde aquelas atividades reconhecidas como trabalho formal e informal, lícito ou ilícito até as dimensões do trabalho reprodutivo) e o reflexo disso em sua vida social de conjunto.

A ordem social sob a qual vivemos é nitidamente racista, sexista e heterocisnormativa. Essa “relação-capital” engloba todas as instâncias de reprodução social em seu círculo autoexpansivo, sendo central a percepção de que se traduz em relações sociais de gênero, classe, raça e sexualidade, destacando-se a importância do giro epistemológico feminista e anti-racista para a compreensão estrutural da ordem social posta.

Desde este horizonte teórico e metodológico imediatamente anunciado, o presente artigo costurará suas ideias desde o seguinte percurso:

i. Realizando uma breve exposição teórica acerca da origem da divisão sexual do trabalho, a partir da defesa de ideias de autoras que partem seus estudos da análise da dimensão da reprodução social, desde uma perspectiva da teoria unitária, combinadas com a noção de consubstancialidade das relações de gênero, classe e raça, defendida pela escola materialista francesa, com forte enraizamento no Brasil;

ii. Estudando as teorias históricas sobre a “delinquência” feminina e seus limites, a partir da defesa da noção de seletividade penal, combinada com as desigualdades de gênero na sociedade capitalista-patriarcal. O que nos permitirá caracterizar o sistema penal androcêntrico e seus efeitos sob a vida das mulheres;

iii. Analisando com mais pormenores o perfil das mulheres trabalhadoras do tráfico, buscando perceber as condições dessas mulheres no mundo do trabalho e na vida social. A condição delas no tráfico é reflexo e expressão da divisão sexual do trabalho e das condições de reprodução social na ordem do capital, uma vez que o tráfico possibilita a reprodução da divisão sexual do trabalho;

iv. Desde esta compreensão da relação entre reprodução social e a condição destas mulheres como trabalhadoras do tráfico, o artigo findará suas análises descrevendo linhas gerais do processo de trabalho do tráfico de drogas e os papeis desempenhados pelas mulheres. Aqui se evidenciará a outra faceta da divisão sexual do trabalho, percebendo (ou complexificando este entendimento) as causas da ocupação de lugares mais vulneráveis dentro da hierarquia do trabalho ilícito.

Desde estas quatros etapas, esperamos conseguir complexificar o entendimento das múltiplas determinantes a fundamentarem as razões do aumento exponencial de mulheres em situação de prisão por tráfico de drogas.

2. Buscando os fundamentos da divisão sexual do trabalho

Podemos perceber que a mulher foi inserida, de maneira significativa, no mundo do trabalho, há muito tempo e cada vez mais. Do mesmo modo, na maior parte do globo está em condições de igualdade formal aos homens, em decorrência de muitos direitos terem sido por elas conquistados. Ainda assim, perpetuam-se desigualdades salariais mesmo ocupando-se cargos similares3 3 Alguns dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, referente ao 4o trimestre de 2019 são oportunos de serem anunciados. A média no país de rendimento mensal é de R$2.495 para homens e R$1.958 para mulheres, sendo, portanto, o dessas 22% menor do que o deles. Quando se trata de pessoas com ensino superior, a discrepância é ainda maior, com o rendimento mensal médio dessas mulheres 38% menor do que o dos homens na mesma condição. A contribuição para a previdência das mulheres é menor e mais descontínua (pela entrada e saída maior do mercado de trabalho), sendo, em média, 17% menor do que a dos homens. O desemprego é maior entre elas (13, 1% e 9,2% entre eles) e o índice de busca de emprego há mais de um ano também maior (37% para elas e 27% para eles). , há disparidades significativas em cargos de chefia ou liderança, além de permanecerem elevadíssimos os índices de violência de gênero e o trabalho doméstico, bem como os mais precarizados, continuarem sendo majoritariamente femininos.

Ainda de acordo com a mesma Pesquisa referida acima (Pnad Contínua), do IBGE, as mulheres gastam uma média de 21h18min semanais dedicadas aos afazeres domésticos, enquanto os homens gastam 10h54min. Ou seja, as mulheres gastam 95% mais tempo em afazeres domésticos do que os homens.

Complexificando a análise, importante evidenciar como o racismo institucional se expressa nas diferenças salariais, estando mulheres negras na base, com menores salários, realizando majoritariamente trabalhos precarizados, sobretudo como trabalhadoras domésticas4 4 De acordo com dados do Pnad Contínua, o número de trabalhadores domésticos chegou a 6,3 milhões no país em 2019, com apenas 1,7 milhão de formalizados. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2018, 92% das pessoas trabalhadoras domésticas eram mulheres e, desta, 68,5% eram negras. . Do mesmo modo, observa-se a maior quantidade de mulheres negras que morrem nos atendimentos de saúde ou que adoecem por doenças como diabetes e hipertensão em comparação com outros grupos de mulheres (DAVIS, 2011 e CARNEIRO, 2003), além dos índices multiplicadores de feminicídio de mulheres negras no país.

Não mais mulheres escravizadas, mas individual e institucionalmente violentadas, oprimidas e exploradas sob mecanismos diferenciados. Isto nos reforça o entendimento das autoras consubstancialistas que concebem as dimensões de gênero, raça e classe não apenas como marcadores de diferença, mas também como estruturantes da ordem social posta - denominadas por elas como relações sociais e não exclusivamente intersubjetivas.

A opressão das mulheres não teria existido desde sempre e para sempre. Fincar raízes sobre suas origens nos parece elemento fulcral para determinarmos seu caráter estruturante nas relações sociais postas.

Historicamente, foi à apropriação pelo homem do trabalho feminino de reprodução social e que o fazia dependente dela que estabelece a combinação de exploração e opressão específicas às mulheres:

Se, na origem da opressão feminina estão os elementos sociais e econômicos ligados à produção, à apropriação e à distribuição da força de trabalho, são estes que têm um papel determinante e não os elementos biológicos. O elemento central é, assim, o tipo de trabalho que desempenha a maioria das mulheres nesta sociedade, o trabalho de recolecção, de horticultura e de preparação dos alimentos, que torna os homens economicamente dependentes do trabalho delas, muito mais do que podem sê-lo em relação a eles. Assumir o controle deste trabalho equivale não só a assegurar o controle da produção dos bens de subsistência, mas também a poder potenciar esta produção, garantindo a acumulação do excedente” (ARUZZA, 2010, p. 95)

Por isso, os mais recentes estudos antropológicos percebem na patrilocalidade e na apropriação do excedente pelos homens as origens da opressão das mulheres. Isso ocorre na transição para a sociedade pautada na propriedade privada e ganha ainda vulto diferenciado com o desenvolvimento do capitalismo e o abandono da esfera doméstica como locus de produção.

Este marco “inaugural” é fundamental para os desdobramentos acerca de concepção de feminismo e suas consequências de percepção táticas e estratégicas, reunidos simplificadamente abaixo a partir de três conjuntos de “jogos de palavras” formulados por Cinzia Arruza, a apresentar o risco de existir:

  • - “a classe sem o gênero”: referente às construções artificializantes da relação entre as dimensões de opressão e exploração. Sobre este aspecto, a história poderia já ter servido como lição, ao demonstrar como a entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho e o alto desenvolvimento tecnológico não diminuíram a divisão sexual do trabalho, sendo elemento estruturante das possibilidades de expansão e reprodução do sociometabolismo do capital. A perpetuação intacta das relações privadas para garantir a dimensão da reprodução social denota sua centralidade para melhor exploração da mercadoria força de trabalho. Seguindo as pistas da autora que aqui dialogamos, a perpetuação desta hierarquização e a localização “superestrutural” da dimensão de desigualdade de gênero pode ser ou um “otimismo cego” na fé automática de transformações desta magnitude com a tomada do poder pelos trabalhadores organizados ou mesmo “má fé” de estruturas partidárias e sindicais profundamente patriarcais. Nos anos sessenta, conforme nos aponta Cinzia Arruza (2010, p.55), “a teorização do patriarcado como sistema de opressão anterior ao capitalismo e da relação de domínio entre os sexos como matriz de todas as outras relações de domínio, opressão e exploração” fez com que se rejeitasse “a ordem hierárquica das contradições”, ainda que se escorregasse nos dois próximos “equívocos”, o do “gênero como classe” e, posteriormente, o do “gênero sem a classe”.

  • - “o gênero como classe”: todos os debates sobre teoria do valor e as características da dimensão produtiva do trabalho doméstico gerou, para muito além de um preciosismo categórico, uma série de consequências políticas, especialmente no que tange a quem usufrui desta exploração invisível, se o próprio homem ou o capitalismo, alcançando pelas materialistas, em especial sua primeira expoente Christine Delphy, o ponto de afirmar que haveria a concomitância de dois modos de produção, o capitalista e o patriarcal e sugerindo que, sendo o homem quem usufrui desta exploração, são as mulheres pertencentes a uma mesma classe, oposta a eles. Além da corrente materialista, as feministas operárias também defendiam que o trabalho doméstico produz valor indireto e, ainda que não caíssem no erro de defender as mesmas coisas, concluíam que a solução para o problema seria o assalariamento do trabalho doméstico, debate polêmico até os dias atuais. A conclusão quanto as duas possui uma semelhança: “a esfera da reprodução é condicionada pela da produção, perdendo-se de vista a sua especificidade” (ARRUZZA, 2010ARRUZZA, Cinzia. Feminismo e Marxismo: entre casamentos e divórcios. Lisboa: Edições Combate, 2010., p.105).

  • - “O gênero sem a classe”: pautadas nas questões psicanalíticas ou biológicas, essencializantes das desigualdades e afastando seu caráter histórico, destacando-se aqui a percepção das feministas radicais, que colocam a diferença biológica como raiz da dominação.

Para nós, o desafio seria justamente perceber, desde as teorias da diferença, o quanto as relações estruturais e de poder determinam uma tendência à performatividade de gênero, a criar normalidades e sujeitos e corpos abjetos em contraposição e, ao mesmo tempo, a apontar as possibilidades de transcendência, que envolvem, necessariamente, mobilizações subjetivas e coletivas.

Distanciando-se destas três categorizações acima, defendemos como horizonte analítico - e também político - para a compreensão das desigualdades de gênero no sociometabolismo do capital a noção de uma Teoria Unitária, que não parte o sexismo e o racismo como sistemas autônomos a influenciarem na sociedade de classes capitalista, mas sim como dimensões que compõem a possibilidade de produção e reprodução expandida deste sociometabolismo.

Como afirmamos anteriormente, a inserção da mulher no mundo do trabalho não significou por si só sua emancipação. Isso porque, apesar de ocupar o espaço público, seu trabalho serviu como maior fonte de lucro ao capitalista, tanto pelos salários mais baixos pagos a elas, como pela possibilidade de rebaixar salários dos homens, uma vez que a fonte de renda familiar aumentou. O paradoxo, bem revelador de aspectos que denotam o caráter estruturante dessas relações sociais, é que o capitalismo atingiu altíssimo desenvolvimento de suas forças produtivas nesta sua última etapa de acumulação, mais do que o suficiente para liberar todas as mulheres do trabalho doméstico. Como detalha Angela Davis:

Em outras palavras, as tarefas domésticas não precisam mais ser consideradas necessária e imutavelmente uma questão de caráter privado. Equipes treinadas e bem pagas de trabalhadoras e trabalhadores, indo de casa em casa, operando máquinas de limpeza de alta tecnologia, poderiam realizar de forma rápida e eficiente o que a dona de casa atual faz de modo tão árduo e primitivo (DAVIS, 2016___. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 226).

Assim, a ordem sociometabólica do capital pressupõe forma de controle discriminatória e hierárquica, tendo como sua base fundante e essencial a divisão hierárquica do trabalho, considerando que a família nuclear é central como reprodutora ideológica dos valores do sistema, reprodutora material da força de trabalho e multiplicadora de potenciais consumidores.

De todo o exposto, as autoras que reivindicam uma Teoria Unitária discordam da ideia de que o patriarcado possa ser considerado um sistema de regras e mecanismos que autonomamente se reproduzem na ordem do capital. Ao mesmo tempo, defendem que não se pode compreender tal ordem meramente como um conjunto de leis econômicas, mas antes “como uma complexa e articulada ordem social, uma ordem que tem seu núcleo constituído de relações de exploração, dominação e alienação”. Ao que Cinzia Arruzza (2015_____. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. In: Revista Outubro, n.23, 1o semestre de 2015, p. 33-58., p.38) complementa: “Deste ponto de vista, o desafio é entender como a dinâmica de acumulação de capital continua a produzir, reproduzir, transformar e renovar relações hierárquicas e opressivas, sem expressar estes mecanismos em termos estritamente econômicos ou automáticos”.

O capitalismo é marcado pela valorização do valor como seu combustível essencial, porém, enquanto sistema é “um conjunto de processos e relações complexas” (ARRUZZA, 2015_____. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. In: Revista Outubro, n.23, 1o semestre de 2015, p. 33-58., p. 43) e que, historicamente, produziu uma realidade que faz com que a reprodução social seja predominantemente relegada à esfera privada.

O capitalismo não é um Moloch, um Deus escondido, um marionetista ou uma máquina: é uma totalidade viva de relações sociais. Nela, encontramos relações de poder conectadas a gênero, orientação sexual, raça, nacionalidade, e religião, e todas estão a serviço da acumulação de capital e sua reprodução, ainda que frequentemente de formas variadas, imprevisíveis e contraditórias (ARRUZZA, 2015_____. Considerações sobre gênero: reabrindo o debate sobre patriarcado e/ou capitalismo. In: Revista Outubro, n.23, 1o semestre de 2015, p. 33-58., p.48).

Dessa maneira, a autora deste trabalho ainda está convencida de que esta compreensão do capitalismo enquanto totalidade histórica a explicar a relação entre alienação, opressão e exploração para as autoras da Teoria Unitária não está em oposição às consubstancialistas, que defendem que as relações sociais de gênero, classe e raça são duais e conflituosas, se co-determinam e se reproduzem de maneira não homogênea e não hierárquica, formando um nó, sem que haja a contradição central e as complementares, sem que haja sobreposição de uma às outras a-historicamente e a-temporalmente. Do mesmo modo, ao pensar gênero, classe e raça de maneira coexistente/imbricada, não há uma dimensão econômica e outra cultural. A divisão social e internacional do trabalho é, necessariamente, racializada e sexualizada.

Mais do que este diagnóstico de fundo, ocorre que esta estrutural divisão sexual e racial do trabalho adquire características ainda mais drásticas nesta atual etapa de acumulação do capital, seja pela mercantilização de todos os aspectos da vida, seja pelo desemprego crônico, que tende a afetar especialmente a condição das mulheres trabalhadoras, principalmente as imigrantes e aquelas habitantes de países de capitalismo dependente, onde a exploração desigual sempre pesou mais.

3. Sistema Penal: feito por homens e para homens

Com todas as variações históricas - sendo a queima das bruxas na Inquisição a principal demonstração - até o século XX e, em alguma medida, perdurando hoje, o imaginário foi e é de que a mulher teria menor tendência criminal, praticando menos crimes e, quando o pratica, haveria uma tendência de ser crimes “especificamente femininos”.

Na história moderna ocidental, a partir do momento no qual a pena de prisão (racional e proporcionalmente definida, de acordo com o que aqueles que ditam as leis consideram como de maior ou menor gravidade) se consolida como pena por excelência - o que coincide com o assalariamento do trabalho para a maioria das pessoas e a medida do tempo de trabalho como medida do capital, buscou-se criar teorias, com pretensões de ciência (por gerações refutadas como conhecimento válido), que dessem conta de explicar as razões e justificativas das pessoas estarem encarceradas (e, portanto, terem cometido crimes). Em um primeiro momento, o livre arbítrio era suficiente para justificar a positivação do direito penal e o funcionamento do sistema, porém, com o aguçamento das desigualdades na sociedade, eis que surgem teorias para explicar uma inerente diferença entre os sujeitos, justificando uma suposta inferioridade de uns em relação a outros.

Com relação às mulheres, ainda que estas fossem secundarizadas enquanto preocupação de justificação, já que eram inexpressivas numericamente nas estatísticas criminais, algumas questões se consolidaram desde este campo, sendo símbolo a publicação do livro La donna delinquente, de Cesare Lombroso, em 1892.

Ao visitar as penitenciárias femininas italianas, Lombroso identificou sinais biológicos a determinados tipos de delitos cometidos por mulheres: criminosas natas, criminosas ocasionais, ofensoras histéricas, criminosas de paixão, suicidas, mulheres criminosas lunáticas, epilépticas e moralmente insanas (Mendes, 2012:46). E afirmou que sua estrutura biopsicológica favorecia uma maior adaptação e obediência às leis, e por este motivo delinquia menos que os homens. Entretanto, apesar de sua docilidade, a mulher se mostrava potencialmente amoral, enganosa, fria, calculista, sedutora e malévola, características que, apesar de não impulsionarem ao crime, fariam- na cair na prostituição (CHERNICHARO, 2014CHERNICHARO, Luciana Peluzio. Sobre mulheres e prisões: seletividade de gênero e crime de tráfico de drogas no Brasil, 2014. 160 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014., p. 34-35).

O lugar do controle do feminino era o privado, o doméstico. As teorizações aqui em análise serviam nitidamente como apêndice para as justificações culturais e ideológicas da naturalização de características femininas e de seu papel social.

Isso se deve primordialmente ao fato de que o direito penal é uma forma de controle que se dirige às relações de trabalho produtivo (trabalho, moral do trabalho e a ordem que o garante), enquanto a esfera da vida privada, que diz respeito à reprodução, sexualidade e procriação da família, não é o objeto central do controle penal. O sistema de controle que se dirige ao comportamento da mulher no seu papel de gênero é o informal, realizado na família mediante o domínio patriarcal e, em última instância, o exercício da violência física contra as mulheres. Assim, o direito penal se dirige, sobretudo, aos homens que desempenham papéis na esfera pública da produção material, enquanto o sistema de controle informal se dirige à mulher que desempenha papéis na esfera privada de reprodução natural. Nesse sentido, do ponto de vista simbólico, o direito penal é masculino (ARGUELLO; MURARO, 2015ARGÜELLO, Katie; MURARO, Mariel. Mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Brasil: as diversas faces da violência contra a mulher. Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão. out. 2015. 30 p. Disponível em: <http://www.seminarioprisoes.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozMzoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjI6Ijc2Ijt9IjtzOjE6ImgiO3M6MzI6ImFhMjNkMTEwMWZhNjAzZmU1NWFmYWNjNjY2Y2VkMmYzIjt9>. Acesso em: 05 nov. 2017.
http://www.seminarioprisoes.sinteseevent...
, p. 5).

Os estudos se focavam, quando existiam, na condição das mulheres enquanto vítima, separando aquelas que poderiam receber o título de vítima e as outras que sofreriam processos de culpabilização pelo seu status de mulher questionado a partir de uma rotulação de seu comportamento, perfil (“mulher honesta” ou o seu oposto).

Seguindo a história, vale a pena destacar algumas explicações teóricas que, ao longo do século XX, fugiram do grotesco da naturalização de papeis, mas que possuem certos limites.

Conforme Chernicharo (2014CHERNICHARO, Luciana Peluzio. Sobre mulheres e prisões: seletividade de gênero e crime de tráfico de drogas no Brasil, 2014. 160 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.) desenvolve ao longo de sua dissertação, podemos partir de autoras, desde a década de 70, enquadradas no que ela denomina “Teoria da Emancipação Feminina”, que colocam a prática de crimes por mulheres como a ocupação de um espaço tradicionalmente ocupado por homens, em decorrência da sua maior inserção no mercado de trabalho e, consequentemente, na esfera pública como um todo, inclusive nas práticas ilícitas. Porém, faz-se importante distinguir que nada há de biologicizante nesta leitura, o que a diferencia em muito das explicações etiológicas tradicionais da Escola Positiva, que separavam características inatas de certas mulheres “anormais” e “desviantes”:

É importante ressaltar que, ao se referir à ideia de “masculinização”, estas teorias afirmam que a mulher delinquente assumiria um papel masculino, diferente daquele estabelecido para mulheres, o que difere da ideia desenvolvida pelas teorias etiológicas, que afirmavam que a criminalidade feminina estava associada às mulheres masculinizadas em sua estrutura biopsicológica. Deste modo, enquanto estas teorias dizem que a mulher se masculiniza ao praticar crimes (e que isso advém de estágios de emancipação), as teorias biológicas dizem que a mulher é delinquente por ser masculinizada, algo que advém de sua biologia (CHERNICHARO, 2014CHERNICHARO, Luciana Peluzio. Sobre mulheres e prisões: seletividade de gênero e crime de tráfico de drogas no Brasil, 2014. 160 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014., p. 55).

Esta teorização sobre a masculinização de comportamentos sociais de mulheres ser a explicação para o fenômeno estudado dá ensejo a muitas leituras do fenômeno atual no Brasil ser lido como o outro lado da moeda de um suposto “empoderamento feminino”, como discutiremos critica e atentamente em momento subsequente.

Neste mesmo sentido, a autora realiza ponderações quanto aos elementos constitutivos da “Teoria do tratamento diferenciado às mulheres no Sistema de Justiça Criminal”, que seria mais benevolente com elas em decorrência da cultura patriarcal. Teria ocorrido um aumento da criminalidade real ou apenas da legal ou da aparente? Teria mais relação com a atuação do sistema de justiça criminal ou com a marginalização econômica das mulheres? Em quais situações as mulheres supostamente possuiriam tratamento mais benevolente?

Em momento posterior verificaremos, através da realidade brasileira atual, que tal hipótese poderia se confirmar em parte, reforçando o caráter patriarcal do sistema de justiça criminal, que pune mais ou menos (e sempre com outra qualidade, ainda mais perversa) as mulheres, a depender da característica de sua conduta. Ainda que isso não seja suficiente para a apreensão total do fenômeno.

Por isso tudo, a análise dos fenômenos aqui em questão não se faz possível se não for pautada pelo estudo da seletividade penal e, ao mesmo tempo, das desigualdades de gênero na sociedade capitalista-patriarcal. Esta é a carente combinação necessária.

O Direito Penal, historicamente, falsamente protegeu as mulheres, desde um enquadramento dual como “honestas” ou “desonestas”. Diante de firmes pressões históricas, houve mudanças legais fundamentais, como o fim do crime de adultério, o de sedução de menores e o fim da justificativa de “legítima defesa da honra” para atenuar a dosimetria da pena. Entretanto, ainda que os processos históricos e o alargamento do reconhecimento dos direitos humanos das mulheres - de todas as mulheres - batam na porta e provoquem mudanças, não necessariamente isso se reflete em alterações significativas nas instituições, na cultura jurídica e, por consequência, nos processos judiciais, todos ainda marcadamente pautados em uma ideologia patriarcal.

Dentre tais mudanças, aquela que, em 2009, unificou o crime de estupro e atentado violento ao pudor, foi talvez um exemplar caso de reflexo de uma mudança social e cultural significativa, por deixar de proteger a mulher mais fortemente contra o primeiro, como se fosse mais grave quando houvesse conjunção carnal, apenas pelo risco de gravidez, ou seja, por um argumento que tem tudo a ver com a honra e a moral e nada a ver com os direitos reprodutivos da mulher e a autonomia de seu corpo, suas escolhas e o respeito à sua sexualidade.

Estes breves exemplos demonstram que o direito penal essencialmente não tem vocação para respeito aos direitos humanos, muito menos das mulheres, estejam elas enquadradas em qual polo for, como vítimas ou supostamente agentes de alguma conduta tipificada penalmente.

Mais do que isso, em quaisquer destas situações, são inúmeras e muito prováveis as possibilidades de viverem violências institucionais, com processos duros de revitimização, seja pelo despreparo profissional, pelo não entrelaçamento dos atendimentos e políticas públicas, seja por suas versões e condutas serem questionadas.

Quando se trata de mulheres processadas criminalmente ou já em situação de prisão, a violência institucional é potencialmente mais complexa. Isto por algumas razões. Em primeiro lugar, por serem minoria proporcional na realidade do sistema prisional, os estabelecimentos são precários e adaptados, sendo mais comum que a arquitetura prisional seja pensada para o público masculino e depois adaptada às mulheres e, por consequência, não atendam as necessidades que são próprias das mulheres, como são “atividades que viabilizam o aleitamento no ambiente prisional, espaços para os filhos das mulheres privadas de liberdade, espaços para custódia de mulheres gestantes, equipes multidisciplinares de atenção à saúde da mulher, entre outras especificidades” (INFOPEN MULHERES, 2017, p. 23)5 5 O mesmo relatório informa que, quanto aos espaços exclusivos para visitação social - que, portanto, não devem coincidir com o pátio do banho de sol -, apesar de previstos no modelo arquitetônico normativamente regulamentado, existem na proporção de uma por cada duas unidades exclusivas para as mulheres, três por cada dez nas unidades mistas e 34% no caso das exclusivamente masculinas. Relacionado ao espaço físico, pensando em sua ocupação, é notório pelos números elemento corriqueiramente dito sobre os laços de sociabilidade que se preservam muito mais precariamente para as mulheres em situação de prisão, visto que o dever de cuidado, afeto e responsabilidade pelo outro são características ensinadas e reproduzidas em grau máximo para as mulheres. A média de visitação nos presídios exclusivamente masculinos é de 7,8 pessoas por semestre e nos femininos e mistos é de 5,9 pessoas. .

Esta precariedade tem como grau máximo a falta de estabelecimentos e consequente impossibilidade de efetiva progressão de regime, gerando situações inconcebíveis de cumprimento adaptado de regime semiaberto em estabelecimento para regime fechado, fruto de uma racionalidade punitivista e inconstitucional de nossos magistrados, conforme descreve Luciana Ramos (2014, p. 76) abaixo, desde a realidade do Distrito Federal até o ano de 2014:

Não há no país nenhum estabelecimento de regime semiaberto para as mulheres. Desta forma, o regime geralmente é cumprido no próprio estabelecimento prisional feminino, em local diferente à carceragem das que cumprem regime fechado, com saída das presas para trabalho durante o dia e retorno à noite. O que acontece no Distrito Federal é que as mulheres com direito a cumprirem a pena no regime semiaberto não têm trabalho fora da unidade, nem lhes são ofertados trabalhos para que possam sair durante o dia e regressar à noite. É ínfimo o número de mulheres que estão no regime semiaberto trabalhando. A maioria está dentro das celas, sem qualquer atividade, o que caracteriza cumprimento da pena em regime diverso ao determinado em sentença. Essa nova categorização revela que há ausência de política penitenciária.

A situação descrita por Luciana Ramos se relaciona com o dado de que, daquelas que já receberam uma condenação, 32% foram sentenciadas em regime fechado, 16% em regime semiaberto e 7% em regime aberto. Ainda neste sentido, quanto ao tempo da pena, a situação é muito semelhante aos dados gerais (masculino e feminino), com 70% das mulheres condenadas a até, no máximo, 8 anos de prisão (ainda que só haja informações de 37% da população prisional feminina quanto a este dado). As pessoas condenadas a penas entre 4 e 8 anos, não reincidentes, podem cumpri-la em regime inicial semiaberto. E não reincidentes, com penas iguais ou inferiores a 4 anos, poderão cumprir em regime aberto. Assim, ainda que não haja informações mais precisas sobre a reincidência, destaca-se que:

Embora 29% da população prisional feminina seja condenada a penas inferiores a 4 anos, apenas 7% das mulheres encarceradas no Brasil em Junho de 2016 cumpria pena em regime aberto. Da mesma forma, temos 41% da população condenada a pena entre 4 e 8 anos e o regime semiaberto contempla apenas 16% do total da população prisional feminina (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 56).

Além desta primeira dificuldade, que poderíamos dizer ser mais estrutural, os outros entraves estão relacionados às diferenças de regras e tratamentos, como, por exemplo:

i. As travas na implementação das regras de visita íntima de cônjuge ou outro parceiro ou parceira para as mulheres em situação de prisão, em ambiente reservado e garantindo a privacidade.

Em resolução de 2011, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, observando o Plano de Política Criminal e Penitenciária vigente à época e o relatório do Grupo de Trabalho Interministerial para Reorganização e Reformulação do Sistema Prisional Feminino, editado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, e fundamentado no princípio da igualdade de direitos, reformulou a definição de visita íntima para assegurar o direito à visita íntima “às pessoas presas casadas entre si, em união estável ou em relação homoafetiva”, contemplando também a população carcerária LGBT (INFOPEN, MULHERES 2018, p. 26).

Ainda que com importantes mudanças como esta, a lógica imperante é do trato mais liberal de regras para as visitas íntimas ao homem, discursivamente encarado pelas administrações como melhor alívio para a tensão da privação de liberdade com precariedade e superlotação e, no caso das alas femininas ou unidades exclusivas, uma vedação velada - pela falta de estrutura, muitas vezes - da possibilidade da visita íntima, o que por trás conserva o ideário do sexo exclusivamente enquanto fórmula reprodutiva para a mulher, ausente de desejos próprios.

Faz-se perceptíveis todos os obstáculos na garantia dos direitos básicos da mulher presa no que tange ao exercício da maternidade, de celas adequadas para gestantes, berçário, creche, centro de referência materno-infantil. Segundo o relatório consolidado referente aos dados de 2016, com muitas variações locais, a média nacional é de 50% das mulheres estarem em unidades com celas adequadas a gestantes e lactantes. Quanto aos locais para que a mulher possa estar em contato com o bebê durante a amamentação, “apenas 14% das unidades femininas ou mistas contam com berçário e/ou centro de referência materno-infantil, que compreendem os espaços destinados a bebês com até 2 anos de idade” (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 32). A situação fica ainda mais drástica ao verificar a existência de espaços de creche para crianças acima de 2 anos, sendo compatíveis apenas 3 % dos estabelecimentos.

Os dados oficiais sobre filhos ainda são insuficientes, sendo que no último relatório, as informações recolhidas quanto a este quesito contabilizavam apenas 7% das mulheres - 2689 delas. Mesmo assim o dado foi analisado como indício formal de uma questão sensivelmente perceptível. Pelo cálculo “74% das mulheres privadas de liberdade têm filhos”, enquanto “para o mesmo período, temos que 53% dos homens que se encontram no sistema prisional declaram não ter filhos”. O relatório conclui com um diagnóstico da situação:

Em que pesem as desigualdades persistentes na sociedade quanto à distribuição da responsabilidade sobre a execução do trabalho de cuidados (domésticos e com os filhos, especialmente), entre homens e mulheres, que podem influenciar a declaração sobre filhos junto aos cadastros sociodemográficos, é preciso aprofundar a análise sugerida pelos dados do Infopen, que apontam para uma importante desigualdade na distribuição de filhos entre homens e mulheres no sistema prisional e demandam, assim, a formulação de serviços e estruturas penais capazes de responder, por um lado, à possibilidade de institucionalização da criança e, por outro, aos efeitos da separação da mãe na vida das crianças e comunidades (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 51).

Uma sociedade ainda pautada pela referência cultural prioritária da figura materna como cuidadora das crianças e adolescentes. Elemento que resulta na efetiva responsabilização material muito maior de mulheres, inclusive com a prevalência de famílias monoparentais, conduzidas por mulheres. Esta, a mesma sociedade dos discursos “pró-vida”, da condenação das escolhas da mulher sobre seu próprio corpo. A mesma sociedade que responsabiliza a mulher pelos desajustes familiares. Por ironia, esta mesma sociedade não se preocupa com a separação mãe-filhos e suas consequências. Este é, sem dúvida, o ponto mais dramático desta política irracional e genocida.

O perfil dos trabalhos que lhes são oferecidos, quase nunca permitindo uma qualificação, mas sim uma reprodução dos trabalhos já antes atribuídos às mesmas, ditos “femininos”, especialmente os de limpeza e culinária da unidade prisional como um todo. Ademais, para todos os presos, inclusive as mulheres, o trabalho - direito e dever na execução penal - é utilizado como “moeda de troca” no controle interno prisional.

Quanto a este elemento das oportunidades de trabalho às mulheres na realidade prisional, enquanto reforçadoras do papel social feminino que foi descumprido, em alguma medida, ao serem presas, a reflexão de Danièle Kergoat (apudHIRATA, 1989HIRATA, Helena. Divisão capitalista do trabalho. Tempo Social, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 73-103, USP. 1989.) parece-nos relevante para este contexto, ao explicar que, tradicionalmente, há um discurso legitimador de que essas diferenciações de atribuições/postos ou funções de trabalho são da própria “natureza feminina” (trabalhos repetitivos ou minuciosos são mais fáceis às mulheres, por serem mais pacientes e delicadas) ou então que o desafio está na desigual qualificação da mulher, receitando soluções como estímulo na educação, concessão de trabalho, maiores oportunidades, ao que a autora rebate, dizendo que “as mulheres operárias não são operárias não-qualificadas ou ajudantes porque são mal-formadas pelo aparelho escolar, mas porque são bem formadas pelo conjunto do trabalho reprodutivo” (KERGOAT apud HIRATA, 1989, p. 94). Isso significa que são formadas formal e informalmente, de maneira consolidada, para ocuparem determinado espaço social.

Estes obstáculos, especialmente os referentes ao trabalho e à proximidade com seus filhos, dificultam o lidar com os dilemas econômicos da família, o que para as mulheres, tal como foram socializadas, possui outro significado, outra responsabilidade e, por consequência, um sofrimento incomparavelmente mais aflitivo que o do homem.

Enfim, retornando à reflexão anterior, hoje há estudos - inclusive, muitos deles, baseados em pesquisas empíricas - sobre as mulheres apenadas por crimes não tidos como “femininos”. Há quem aponte diferenciação do rigor judicial a depender do tipo de conduta e do quanto se aproxima ou se afasta do papel social feminino.

Afirma Baratta que os juízes homens têm uma postura mais ‘cavalheiresca’, de maior benevolência nesses casos, pois há uma preocupação do sistema da justiça criminal em interferir no cumprimento dos papéis de reprodução da mulher, desejando-lhes demonstrar que não ‘pertencem’ à prisão, mas sim à casa, ao lado dos filhos (CASSOL, SILVA, DINARTE, 2018CASSOL, Paula Durks; DA SILVA, Maria Beatriz Oliveira; DINARTE, Priscila Valduga. “A vida mera das obscuras”: sobre a vitimização e a criminalização da mulher / “The mere life of obscures”: about women's victimization and criminalization. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 9, n. 2, p. 810-831, maio 2018., p.822).

Assim, receberá um tratamento “mais severo” quando o delito não seja especificamente feminino ou quando ela não se adapte à imagem da mulher convencional, ou seja, a de casada, com filhos e dependente economicamente. Por exemplo, pode ser que haja menor drasticidade na penalidade quando o motivo de um furto ou roubo for famélico e familiar (para alimentar seus filhos), uma vez que comete o ato sem se desfazer por completo do papel social que lhe é atribuído e naturalizado. Ao contrário, quando pega por tráfico ou por qualquer conduta sem conteúdo apelativo moral, tende a ter penas mais duras.

Dentre tais possibilidades de “abrandamento” de pena, existe uma específica que merece nossa atenção, quando se tratam de prisões que podem ser caracterizadas como microtráfico ou tráfico interno, por terem levado drogas para outras pessoas no interior de uma unidade prisional.

Percebe-se que há um abrandamento quando da aplicação da pena para mulheres que levam droga para a prisão, com penas no mínimo ou abaixo do mínimo legal. Se não tivesse o recrudescimento da Lei nº 11.343 de 2006, que obstaculiza a aplicação de outros regimes que não somente o fechado, embora os Tribunais superiores já tenham julgados contrários a isso, verifica-se um forte contingente de mulheres que poderiam estar cumprindo outras penas, fora da cadeia, estão fechadas atrás das grades, cumprindo toda a sentença presas, pela ausência de políticas de progressão de regime específicas para as mulheres presas no Distrito Federal, bem como pela legislação que não faz discriminações no âmbito da atuação das acusadas na estrutura do tráfico (RAMOS, 2014, p. 81).

Conforme Luciana Ramos analisa acima, desde a realidade do Distrito Federal, esta situação específica de menor apenamento inevitável - ainda que outra condição mais digna deveria prevalecer - é existente não porque haveria generosidade do judiciário ou por algum papel social cumprido por estas mulheres nestas condições de tráfico interno, mas sim por ser latente a desproporcionalidade da previsão legal referente às hipóteses de enquadramento de condutas como tráfico de drogas em nosso país. Esta é uma situação que vem sendo cada vez mais crescente do encarceramento feminino e suas especificidades serão melhor abordadas adiante.

4. Quem são as mulheres em situação de prisão em nosso país? O perfil e as necessidades concretas dessas mulheres trabalhadoras e suas duplas ou triplas jornadas pela sobrevivência.

A realidade grita: a ampla maioria das mulheres em situação de prisão por tráfico (o que, como dissemos inicialmente, são a maioria da totalidade das aprisionadas hoje) deveriam ser compreendidas como trabalhadoras do tráfico e não como traficantes, com toda a carga ideológica essencializadora que este termo carrega.

De acordo com as pesquisas empíricas que pudemos ter acesso e pelos dados oficiais, arrisca-se aqui traçar o perfil de que são maioria de mães solteiras, que estavam desempregadas ou em trabalhos informais.

Uma importante demonstração disso é o fato de quase todas elas não receberem o benefício do auxílio-reclusão, conforme Arguelo e Muraro (2015, p. 11) relatam abaixo na pesquisa empírica que realizaram em uma unidade prisional no Paraná:

90,7% das mulheres afirmaram que não recebem auxílio reclusão e apenas 4,85% recebem. Para o recebimento do auxílio reclusão é necessário que a condenada esteja trabalhando registrada, ou seja, no mercado formal, antes de ser presa, situação que se apresenta paradoxal, pois essas mulheres em geral foram selecionadas pelo sistema de justiça criminal, não apenas porque transgrediram a norma (há muitos que transgridem e não são presos), mas essencialmente por serem portadoras de indicadores sociais negativos, eis que fazem parte dos excluídos do mundo do trabalho, do mercado de trabalho formal (regido por leis trabalhistas e direitos sociais mínimos). Assim, a condenada, além de sofrer a pena de prisão, sente que esse sofrimento se estende aos seus familiares, especialmente a seus filhos, porque, se a vida já era precária antes da prisão, como não o será durante esse período?

Fato este que complementam com outra observação:

Raríssimos foram os casos em que o tráfico possibilitou aquisição de artigos de luxo, roupas e carros importados, no total de 141, apenas duas. A maioria ressaltou a dificuldade de arranjar um emprego que possibilitasse a sua subsistência (pagamento do aluguel de uma casa, alimentação e roupa), o que mostra que o tráfico era alternativa para a falta de trabalho. Mesmo entre as que responderam que não sobreviviam do tráfico, a renda que possuíam era muito aquém do necessário à sobrevivência (ARGUELLO, MURARO, 2015ARGÜELLO, Katie; MURARO, Mariel. Mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Brasil: as diversas faces da violência contra a mulher. Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão. out. 2015. 30 p. Disponível em: <http://www.seminarioprisoes.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozMzoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjI6Ijc2Ijt9IjtzOjE6ImgiO3M6MzI6ImFhMjNkMTEwMWZhNjAzZmU1NWFmYWNjNjY2Y2VkMmYzIjt9>. Acesso em: 05 nov. 2017.
http://www.seminarioprisoes.sinteseevent...
, p. 12).

Trata-se de uma atividade viável para o cumprimento de suas tarefas de mulheres trabalhadoras com pouca instrução escolar e que enfrentam, concomitantemente, outras barreiras sociais/raciais, com responsabilidades imperantes de cuidados familiares, em uma realidade de capitalismo dependente como é a brasileira.

Estes desafios para a garantia de autonomia financeira da mulher trabalhadora selecionada pelos filtros da justiça criminal e que se encontra em situação de prisão também se expressa pelo perfil geracional, pois, apesar da maioria jovem (50% das mulheres presas em 2016) e das chances destas serem presas ser “2,8 vezes maior do que as chances de mulheres com 30 anos ou mais serem presas” (INFOPEN MULHERES, 2018, p. 39), uma parcela significativa e crescente apresenta entre 35 e 45 anos, fenômeno também distinto do masculino e que explica as peculiaridades das mulheres no mundo do trabalho, que conforme Luciana Ramos (2014, p.68) nos elucida, possuem mais dificuldades de serem inseridas nele com o avançar da idade, ao que acrescentamos que também de nele permanecer, especialmente após gerarem filhos e temporariamente se retirarem do mercado de trabalho.

A partir destes elementos, tratar de um processo de trabalho que se dá desde a ilicitude e cujas expressões capturáveis são sempre parciais e permeadas por filtros políticos - as ocultações diversas na realidade prisional - faz com que as explicações sobre o boom do encarceramento feminino não possam ser calcadas nem apenas na existência de leis mais rigorosas, nem no fato das mulheres serem os alvos mais fáceis da seleção policial sobre o tráfico, muito menos na simples afirmação de que mais mulheres estão se envolvendo com o tráfico. Entretanto, como sugerido no início deste artigo, todas essas razões necessariamente devem ser permeadas pela compreensão das condições dessas mulheres no mundo do trabalho e na vida social.

Assim, podemos afirmar que o ingresso da mulher no tráfico, bem como sua posição hierárquica nele são expressões da divisão sexual do trabalho e das condições de reprodução social na ordem do capital. No item seguinte descreveremos as posições mais frequentemente ocupadas por mulheres no processo de trabalho do tráfico de drogas e, assim, melhor o compreenderemos. Agora, destacamos algumas reflexões sociológicas sobre seu suposto maior envolvimento com o tráfico de drogas.

É possível dizer que o tráfico possibilita a reprodução da divisão sexual do trabalho, pois garante que a mulher concilie suas funções no tráfico dentro do lar, com suas tarefas domésticas e de cuidado, além de possibilitar um aparente ganho econômico superior ou mais vantajoso do que os trabalhos ditos “femininos”, que poderiam ser desempenhados por ela.

Assim, parece-nos importante destacar que, ao se afirmar que a maior incorporação das mulheres na indústria do tráfico e a sua maior seleção penal estão diretamente relacionadas à divisão sexual do trabalho, deve-se frisar que se está botando nesta conta também a dimensão do trabalho reprodutivo.

Isso quer dizer que entendemos ser da máxima importância destacar que o trabalho doméstico e de cuidados é a outra faceta garantida com a atividade precária exercida pelas mulheres trabalhadoras do tráfico.

Para entendermos as variadas facetas da divisão sexual do trabalho na sociedade capitalista parece-nos da máxima valia recorrermos à definição da imbricação da produção e reprodução social neste sociometabolismo, tal como as autoras marxistas da Teoria da Reprodução Social argumentam.

O valor da força de trabalho contém em si o valor necessário das mercadorias necessárias para a sua reprodução (alimento, moradia, roupa), que demandam um trabalho invisível, doméstico, muitas vezes não remunerado para que tais mercadorias possam ser “consumidas” pelo trabalhador - um trabalho feito por quem limpa, cozinha, costura, cuida, acalma e dialoga. Muitos desses serviços também podem ser produzidos e trocados como mercadorias, mas, como apontamos no início deste artigo, são majoritariamente garantidos na esfera privada, não pela natureza dessas atividades, mas apenas porque foram retiradas da troca e circulação na ordem social posta e, por isso, não produzem valor, no sentido rigoroso atribuído pela economia política.

No entanto, afirmar que o trabalho doméstico produz valor equivale a depreciar aquele que deveria ser o aspecto essencial para compreender a natureza e a forma pela qual o capitalismo transformou a família. De fato, o ponto fundamental é que este trabalho reprodutivo acontece fora do mercado, não é uma produção de mercadorias, não é uma produção destinada à troca. E não o é precisamente porque o capitalismo, por um lado, subtraiu à família o papel de unidade produtiva e, por outro, levou a que o trabalho de reprodução da força de trabalho tivesse lugar majoritariamente no espaço da família, separando-o do processo de produção e de circulação de mercadorias (ARUZZA, 2010, p.102).

A falta de socialização do trabalho de cuidado, sendo absorvido predominantemente na esfera privada, faz do homem um beneficiário indireto, mas não há uma apropriação de “excedente” por ele, o que significa dizer que se esta tarefa fosse socializada, o homem não perderia nada - ainda que a cultura sexista faça com que parte significativa dos homens internalizem que estas são atividades natural e essencialmente desempenhadas por mulher. Fato este que desconstroi a ideia de uma classe de mulheres versus uma classe de homens que as exploram. Ao revés, como afirma Arruza, o capitalista sim perde diretamente, pois “não se trata apenas de suas convicções sobre a forma que o mundo funciona e seu lugar nele, mas de lucros massivos que ele alegremente expropria dos trabalhadores” (ARRUZA, 2015, p.32).

Aderindo ao posicionamento de Angela Davis sobre a caracterização do trabalho de reprodução social desde os critérios da economia política, pensamos ser possível caracteriza o trabalho reprodutivo como uma extensão da mais-valia extraída no trabalho formal, uma vez que garante a reprodução da força de trabalho a baixos custos.

Angela Davis (2016___. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.) realiza fundamental contribuição sobre este tema. A autora descreve como a natureza do trabalho doméstico se transformou após o processo de industrialização. Até então o trabalho doméstico, eminentemente feminino, era valorizado socialmente e englobava atividades que depois foram incorporadas pela indústria, como a própria construção e reformas das casas, a confecção de roupas, sabão, manteiga. A industrialização criou o fenômeno das “donas de casa”, com seus trabalhos invisíveis, desvalorizados, provocadores de tristeza e depressão.

De outro lado, a história da mulher negra foi sempre diferente da oficial, pois há muito tempo trabalha no espaço público, quando escravizada e quando liberta, e seu serviço doméstico acabou por possuir outro peso, até porque representam grande contingente de trabalhadoras domésticas, dedicando mais tempo para o cuidado dos filhos e limpeza do ambiente da patroa do que os seus próprios (DAVIS, 2016___. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.).

E aqui alcançamos um ponto muito importante. Longe das polêmicas sobre trabalho produtivo e improdutivo no capitalismo, Angela Davis (2016___. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.) descreve como, com a industrialização, houve uma separação estrutural entre a economia pública do capitalismo e a economia privada do lar, mas que esta última, em todo este período, foi imprescindível para garantia da reprodução da força de trabalho. Isso faz com que entenda o trabalho doméstico como precondição àquele que, oficialmente, é entendido verdadeiramente como trabalho. Isto possui tons ainda mais nítidos em uma realidade de capitalismo dependente, onde a classe trabalhadora é historicamente explorada com mais intensidade, com seu quinhão da produção (salário) tendente à insuficiência para a reprodução da vida.

Diante de todo o exposto, reitera-se a noção do capitalismo enquanto totalidade não mecânica, estável e automática, pressupondo a unidade entre processo de produção e reprodução social.

Para o feminismo marxista o conceito de reprodução é mais preciso, não acoplando todas as dimensões/mediações de segunda ordem da reprodução societal, mas, de acordo com Thithi Battacharya (2013), especificamente “a manutenção e reprodução da vida, em nível diário e geracional”, como uma “forma na qual o trabalho físico, emocional e mental necessário para a produção da população é socialmente organizado”, englobando e também extrapolando a dimensão do trabalho doméstico.

Para a autora, a produção de produtos e a produção de vida estão como um processo integrado. Ao responder à indagação de como a força de trabalho é ela mesma produzida, para assim poder produzir outras mercadorias, Thithi Battacharya (2013) destaca três processos interconectados: i. a realização de atividades que regeneram os trabalhadores; ii. a realização de atividades que mantém e regeneram trabalhadores que estão fora do processo de produção (futuros, antigos trabalhadores ou aquelas pessoas impossibilitadas de vender sua força de trabalho); iii. a possibilidade de reprodução de novos trabalhadores (capacidade das mulheres cis de gerar vidas). Estes três processos estão permeados por uma reprodução de subjetividade, de disciplina para adequadamente vender sua força de trabalho (não é possível separar a capacidade de trabalhar da produção de nossa individualidade).

Essa noção de totalidade heterogênea reverberada pelas autoras da teoria unitária nos faz perceber que as dimensões de produção e reprodução social são mutuamente determinantes, sendo a alteração em uma reverberada na outra. Isso nos auxilia a compreender como medidas de arrocho de salário, de direitos e de sucateamento de serviços geram sobrecargas domésticas e de cuidados e ainda mais violência de gênero.

Para que o desenho desta realidade seja o mais fidedigno possível, no sentido de reunir o máximo de determinantes que compõe esta cena complexa, é imprescindível enegrecer seus traços. O primeiro relatório de mulheres do INFOPEN aponta que “duas em cada três mulheres presas no Brasil são negras, com uma taxa de 68%; ao passo que a média da população negra no país não ultrapassa a casa de 51%, segundo dados do IBGE” (LIMA, MIRANDA, 2017LIMA, Fernanda da Silva; MIRANDA, Carlos Diego Apoitia. O encarceramento feminino e a política nacional de drogas: a seletividade e a mulher negra presa. In: Anais do XIII Seminário Nacional - Demandas sociais e políticas públicas na sociedade contemporânea & III Mostra Nacional de Trabalhos Científicos. UNISC: 2017., p. 8).

Os dados mais recentes, de 2016, relativos ao alcance de informações de 72% da população prisional feminina, atestam que 62% das mulheres se autodeclaram negras. Para nós, o que mais impressiona é a percepção regional. Para exemplificar, enquanto Paraná, Rio Grande do Sul Santa Catarina, possuem, respectivamente, 33%, 30% e 38%, estados como Acre, Ceará, Maranhão, Pará, Piauí e Tocantins apresentam, respectivamente, 97%, 94%, 90%, 89%, 90% e 90%.

Isto demonstra que são as mulheres negras as que enfrentam as maiores dificuldades no mercado de trabalho e que são mais prejudicadas no acesso a serviços de saúde, educação e assistência sociais dignas.

Há um processo de pauperização das mulheres negras e pardas, historicamente sustentado pelo regime escravocrata no período colonial. Assim, considerando que, a partir de dados do PNAD e de pesquisas recém publicadas sobre o tema, a maioria das famílias brasileiras são monoparentais, chefiadas por mulheres, na sua maioria negra, e que estão, majoritariamente, inseridas no mercado informal de trabalho, verificar-se-á que há um caminho histórico que reflete o processo de exclusão e de afirmação do lugar precarizado das mulheres negras no mercado de trabalho (RAMOS, 2014, p. 69).

Ademais, corroboramos com ideias como as de Flauzina (2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado Brasileiro. 2006. 145 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de Brasília, Brasília, 2006.) e Piza (2016) de que nosso sistema penal nasce e se desenvolve com vocação genocida, sendo instrumento de controle e extermínio da população negra desde o período da colonização, sofisticando seus mecanismos com o passar do tempo, mas sem minimizar sua vocação.

Com as mulheres esta tendência não é diferente, ainda que se expresse com nitidez apenas no último período. Se há um fenômeno de pauperização e maior desigualdade e injustiça social atrelado ao aprofundamento da realidade neoliberal, que empurra mulheres para a mais intensa conciliação do trabalho produtivo e reprodutivo, para as jornadas mais extenuantes, para os trabalhos mais precários, inclusive os ilícitos, esta realidade é ainda mais pulsante para as mulheres negras, pois o racismo estruturante do capitalismo permeia todas as suas instituições sociais e torna as vidas dessas mulheres ainda mais desafiadoras e permeadas de obstáculos sociais.

Por tudo isso, já se pode perceber que não há que se falar em perfis ontológicos de mulheres que atuam no “mundo do crime”. As mulheres selecionadas pelo sistema de justiça criminal como traficantes são trabalhadoras e, quase sempre, chefes de família, criando formas de viver com um pingo de possibilidade e, quem sabe, dignidade. Mulheres que encontram no encarceramento o esfacelamento desta mínima possibilidade.

A seguir, reuniremos alguns elementos que nos permitem entender o lugar das mulheres no processo de trabalho do tráfico de drogas - a outra faceta da divisão sexual do trabalho -, bem como as graves limitações da Lei de Drogas que ameaçam a vida das mesmas.

5. O processo de trabalho do tráfico de drogas e as posições ocupadas predominantemente pelas mulheres - o lugar do risco e da desvalorização

No item anterior destrinchamos alguns fundamentos teóricos a nos auxiliarem a entender as razões estruturais do maior envolvimento de mulheres como trabalhadoras do tráfico enquanto reflexos da feminização da pobreza, havendo necessidades de garantirem o sustento familiar e conciliarem geração de renda com as tarefas domésticas e de cuidados.

Os motivos mais relatados pelas mulheres para escolherem o envolvimento com o crime são as dificuldades em sustentar os/as filhos/as e a falta de inserção no mercado de trabalho lícito e formal. Essas motivações reafirmam a hipótese de que, para grande parte daquelas que escolhem a participação no tráfico, o objetivo é a obtenção de dinheiro, entendido aqui como fonte de renda (CORTINA, 2015CORTINA, Monica Ovinski de Camargo. Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 23 (3): 406, setembro-desembro/2015, p. 761-778., p.767).

No presente tópico buscaremos reunir elementos para compreensão da outra faceta da divisão sexual do trabalho, percebendo (ou complexificando este entendimento) as causas da ocupação de lugares mais vulneráveis dentro da hierarquia do trabalho ilícito.

De acordo com Luciana Ramos, podemos afirmar que há no Brasil, atualmente, uma média de “doze perfis de mulheres presas por tráfico de drogas: bucha, consumidora, mula-avião, vendedora, vapor, cúmplice, assistente/fogueteira, abastecedora/distribuidora, traficante, gerente, dona de boca e caixa/contadora” (RAMOS, 2014, p. 70).

Em geral, possuem uma responsabilidade pela circulação das drogas, como as que se enquadrariam como “avião” ou “mulas”, justamente por serem passíveis de disfarçar a conduta, pela fuga do estereótipo criado do que seria a figura do “bandido”, cultivado desde a forma masculina. Tais posições, por consequência, tornam-nas mais vulneráveis à seleção policial, pela maior exposição. Em geral, tais mulheres são abordadas junto a grupos mais amplos e sem porte de armas.

Os últimos estudos demonstram que o perfil vem mudando, ainda que haja uma prevalência de postos mais vulneráveis e das mulheres presas por tráfico intrapresídio. Mas, é importante que se destaque que outras posições mais “altas”, como chefe de boca ou gerente, também são ocupadas por mulheres, sendo certo que, na maioria destes casos, as bocas são herdadas por elas de algum parente, principalmente marido e filho (sendo, muitas vezes, a única renda da família).

Ocupar um lugar de posse, de ostentação, ser temida pelas demais, dá a estas mulheres a possibilidade de existirem, serem respeitadas e fazerem história. Estar associada a facções criminosas, assim como andar armada, representa para estas mulheres a possibilidade de serem diferentes das demais, mesmo que o preço a pagar seja caro e traga sentimentos e consequências negativas para suas histórias de vida (VARGAS, FALCKE, 2019VARGAS, Bruna Krause de; FALCKE, Denise. Criminalizadas e/ou vulneráveis? A trajetória no crime de mulheres aprisionadas por tráfico de drogas. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.55, p.<195-214>, jul./dez. 2019, p. 195-214., p. 198).

A percepção também deste lugar simbólico de ascendência no tráfico por algumas poucas mulheres não é por nós lido como empoderamento ou emancipação. Ainda que deva sim ser entendido como um protagonismo alcançado, também é, na contra-face, uma precarização/vitimização. Os relatos dessas mulheres revelam anos de submissões e expropriações por homens inseridos na rede de tráfico para que pudessem alcançar esse lugar “masculino”, tendo como pressuposto a subordinação e humilhação de outras mulheres.

Assim, concordamos com Barcinski e Cúnico (2016BARCINSKI, Mariana; CÚNICO, Sabrina Daiana. Mulheres no tráfico de drogas: retratos da vitimização e do protagonismo feminino. In: Civitas - Revista de Ciências Sociais, v.16, n.1, Porto Alegre Jan./Mar. 2016, p. 59-70., p.63) quando afirmam a importância de se romper com a noção de vitimismo para pensar o amplo espectro da violência de gênero, atribuindo poder de agência às mulheres que possam vivenciar situações de opressões e explorações, o que elas denominam como uma “perspectiva relacional da violência”.

Em regra, as mulheres reproduzem nessas organizações criminais os papéis ou tarefas associados ao feminino, como cozinhar, limpar, embalar drogas ou realizar pequenas vendas, e só conseguem ascender de posição quando mantêm atitudes de extrema subserviência às ordens dos chefes do tráfico. Esta é uma referência à clássica divisão sexual do trabalho, que destina às mulheres o trabalho doméstico, normalmente não remunerado, formando os chamados “guetos femininos”, que se reproduz na esfera do tráfico de drogas (CORTINA, 2015CORTINA, Monica Ovinski de Camargo. Mulheres e tráfico de drogas: aprisionamento e criminologia feminista. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, 23 (3): 406, setembro-desembro/2015, p. 761-778., p.761).

Sobre as mulheres que transportam drogas ao presídio masculino (intrapresídio) - modalidade que vem sendo cada vez mais frequente entre as incriminadas - os estudos consultados ressalvam que essas mulheres não necessariamente possuem uma relação afetiva com o preso:

Neste momento é importante separar duas grandes situações. A primeira se refere ao mencionado no parágrafo acima: a situação das mulheres que têm envolvimento afetivo com homens presos e por um sentimento de cuidado transportam a droga. Contudo, verificou-se que há um grupo considerável de mulheres que não guarda qualquer relação com o destinatário da droga, sequer sabiam o seu nome. Esta última categoria revela um microssistema de tráfico, que cada vez mais cresce no país e que tem movimentado o mercado interno das drogas. Esse microssistema só é possível porque há, de um lado, um discurso interno nos presídios de que a droga é importante para acalmar os homens, por isso as administrações fazem vista grossa sobre o tráfico nos presídios, e de outro, a necessidade, também apontada pelas administrações, do sexo “fácil” para os internos, ou seja, não há rigor na entrada de mulheres para a visita íntima, o que possibilita a entrada desde profissionais do sexo, em algumas unidades, a mulheres recrutadas para o tráfico intrapresídio (RAMOS, 2014, p. 92).

Esta desmistificação é importante por dois aspectos. Um primeiro por, ao demonstrar os dois perfis de relação nesta modalidade de tráfico, escancarar-se a hiprocrisia das razões declaradas e reais de funcionamento do sistema penal. A pena não possui qualquer função que não seja de neutralização, ainda que nossa legislação verbalize o exato oposto, e o funcionamento do sistema prisional é regido pelo imperativo da garantia da ordem interna, nem que para isso se estimule na surdina a exploração sexual e a entrada de drogas (enquanto se perpetua a revista vexatória aos familiares, com um falso discurso que escamoteia o real interesse em humilhar e estender a criminalização e punição a todas essas pessoas).

O outro aspecto fundamental trata-se da necessária desconstrução de argumentos de que a mulher faz tudo isso pelo fato de cultivar um amor incondicional e leal, ao que Luciana Ramos contesta com sabedoria:

Não é só por amor que muitas mulheres padecem todos os dias em filas e revistas íntimas vexatórias para visitarem seus homens na prisão, mas também pela assimilação de que é papel da mulher, delas, portanto, cuidar da família. Não se pretende, com isso, negar que há influência masculina para as mulheres entrarem no tráfico, contudo convida-se a uma análise mais profunda que tenta buscar na história social das mulheres, bem como na relação com o mercado de trabalho, alguns olhares que ajudam a compreender melhor o aumento no encarceramento de mulheres por tráfico de drogas. Há uma reprodução do discurso vitimizador que é, no mínimo, equivocado, pois anula a mulher, mesmo que autora de um delito, da condição essencial de sujeito, de protagonista, pois o conceito de vítima reduz o problema a um dano individual e gera um sentimento de pena com relação àquela situação específica (RAMOS, 2014, p.107-108).

As mulheres, ao se depararem presas, sentem o abandono familiar, o inverso do acima narrado. De fato mulheres cultivam o cuidado, e o contrário não, na maior parte das vezes. Mas isso não pode ser explicado desde uma essencialização de comportamentos femininos e masculinos, mas sim desde a percepção de que o ensinamento passado de geração a geração, cultivado com afinco nas escolas, igrejas e telinhas da TV, de fato se reflete em comportamentos de responsabilidade afetiva e cuidado familiar, bem como o seu oposto, no caso dos homens. Mas não se trata de um amor romântico e heroico, mas sim de uma dura missão que aprendem a carregar e que, muitas vezes, pelos entrelaçamentos financeiros e de sobrevivência, não vislumbram possibilidades de romper.

Conforme análise de Bruna Vargas e Denise Falcke (2019VARGAS, Bruna Krause de; FALCKE, Denise. Criminalizadas e/ou vulneráveis? A trajetória no crime de mulheres aprisionadas por tráfico de drogas. Barbarói, Santa Cruz do Sul, n.55, p.<195-214>, jul./dez. 2019, p. 195-214., p. 198), esta necessidade de se colocar as mulheres trabalhadoras do tráfico em um lugar secundário perante os homens que supostamente as aliciam e condicionam pode se considerada mais uma faceta perversa do processo de vitimismo acima referido, não podendo caber a elas um papel central na “criminalidade” ou mesmo de ação de algum modo independente, ainda que condicionadas por elementos de necessidades sociais e materiais.

Steffensmeier e Allan (1996) apontam, como mencionado acima, para o caráter relacional dos crimes cometidos por mulheres. Segundo os autores, mulheres envolvidas em atividades criminosas tendem a enfatizar seu papel como cuidadoras, justificando seu envolvimento no crime como estratégia de proteção de suas relações afetivas. Em estudo conduzido com mulheres com longa história de envolvimento na rede do tráfico de drogas no Rio de Janeiro, Barcinski (2008) afirma a centralidade de parceiros, filhos e mães nos argumentos das participantes para se engajarem em tal atividade. A provisão material para a família, especialmente quando da ausência da figura masculina no núcleo familiar, bem como a manutenção de uma relação afetiva com parceiro envolvido na rede do tráfico são apontadas como motivadoras do ingresso na atividade (BARCINSKI, CÚNICO, 2016BARCINSKI, Mariana; CÚNICO, Sabrina Daiana. Mulheres no tráfico de drogas: retratos da vitimização e do protagonismo feminino. In: Civitas - Revista de Ciências Sociais, v.16, n.1, Porto Alegre Jan./Mar. 2016, p. 59-70., p.61).

Assim, dando continuidade à descrição do perfil da ocupação das mulheres no tráfico de drogas, a maioria ainda é primária e a reincidência, quando ocorre, é muito comum que seja específica (pela mesma tipificação). A investigação realizada pelas pesquisadoras em uma unidade prisional do Paraná revela bastante sobre o mito e o real sobre a realidade dessas mulheres:

Das 141 entrevistas analisadas, 79,72% delas nunca portaram arma, enquanto apenas 19,85% delas já portaram arma. Majoritariamente, elas não possuíam condenações pela prática de outros crimes, além do tráfico, e nem participavam de organizações criminosas, bem como foram presas com quantidade pequena de drogas, em geral. Entretanto, as condenações são muito rigorosas. Por um lado, o aumento de prisões femininas leva a crer que a mulher se volta ao mercado de ilicitudes como meio de subsistência, por outro lado, é plausível também que o aumento da repressão ao tráfico nos últimos anos tenha alcançado o gênero feminino, pois o art. 33 envolve tantos núcleos verbais (importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar) que aumenta significativamente a possibilidade de arbitrariedade do sistema de controle penal (ARGUELLO, MURARO, 2015ARGÜELLO, Katie; MURARO, Mariel. Mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Brasil: as diversas faces da violência contra a mulher. Seminário Internacional de Pesquisa em Prisão. out. 2015. 30 p. Disponível em: <http://www.seminarioprisoes.sinteseeventos.com.br/arquivo/downloadpublic2?q=YToyOntzOjY6InBhcmFtcyI7czozMzoiYToxOntzOjEwOiJJRF9BUlFVSVZPIjtzOjI6Ijc2Ijt9IjtzOjE6ImgiO3M6MzI6ImFhMjNkMTEwMWZhNjAzZmU1NWFmYWNjNjY2Y2VkMmYzIjt9>. Acesso em: 05 nov. 2017.
http://www.seminarioprisoes.sinteseevent...
, p. 5).

Com isso, temos, de um lado, os rigores cegos e seletivos/punitivistas do judiciário e, de outro, alimentando-o, o sério problema da Lei de Drogas, que não estabelece proporcionalidade entre as condutas e que atribui arbítrio ao juiz para definir, no limite, quem é o usuário e quem é o traficante.

Desde a Constituição Federal e, logo em seguida, a Lei dos Crimes Hediondos (8.072/90), o crime de tráfico é equiparado ao hediondo, sendo inafiançável, sem anistia e com vedações de benefícios e institutos da execução penal, destacando-se a vedação original da liberdade provisória.

A Lei de Drogas, vigente desde 2006, veio aperfeiçoar este quadro, apresentando um discurso polarizado, com o fortalecimento do discurso médico e “protetivo” no caso daqueles rotulados como “consumidores” da droga e com penas aumentadas significativamente e menores chances de substitutivos penais e de outras condições para o amplo rol de condutas que se enquadrariam como elementares do crime de tráfico de drogas. Esta dualidade em oposição revela a perversidade da política criminal brasileira guiada através desta Lei.

O art. 28, parágrafo 2º estabelece que a determinação de que a droga era destinada a consumo pessoal ou para tráfico dependerá de uma interpretação do juiz desde elementos como tipo de droga, quantidade, local e, pasmem, condições da ação, circunstâncias sociais e pessoais.

E apesar de o Brasil ter buscado na legislação um novo enfoque no tratamento das drogas, criando o Sistema Nacional de Políticas Públicas Sobre Drogas (SISNAD) e estabelecendo algumas ações de prevenção, na prática, pouco mudou, mantendo-se a repressão ao tráfico como principal bandeira no tratamento às drogas (LIMA, MIRANDA, 2017LIMA, Fernanda da Silva; MIRANDA, Carlos Diego Apoitia. O encarceramento feminino e a política nacional de drogas: a seletividade e a mulher negra presa. In: Anais do XIII Seminário Nacional - Demandas sociais e políticas públicas na sociedade contemporânea & III Mostra Nacional de Trabalhos Científicos. UNISC: 2017., p. 10).

Até o início do século XX não havia qualquer legislação no mundo regulando ou proibindo o comércio das drogas. A política de Guerra às Drogas forja-se em nível internacional e visa, essencialmente, aperfeiçoar o controle sobre as classes sociais exploradas e oprimidas.

Onde houver demanda, haverá oferta, este é o fracasso intrínseco da guerra às drogas e, ao mesmo tempo, seu voraz sucesso lucrativo (com a droga e a indústria do controle do crime ao seu redor), avassalador de vidas e esperanças.

O Brasil, por sua localização geopolítica, assume um dos mais dolorosos papeis nesta política de barbárie, por representar um grande celeiro de venda e consumo de drogas, recrutando e arrasando uma geração jovem periférica e tendo no boom do encarceramento feminino um importante símbolo de seus efeitos nefastos.

Para se ter ideia do alcance deste projeto, a pesquisa de Arguelo e Muraro (2015) revela que as próprias mulheres em situação de prisão são a favor da criminalização das drogas, o que denota a adesão a um discurso moral de malefícios, instrumentalizado desde a legalidade (o que é ruim, é proibido), ainda que elas próprias sejam as mais cientes e, indubitavelmente, as mais afetadas pelos malefícios da criminalização.

6. Considerações finais

Por fim, podemos dizer que o momento histórico atual, de crise estrutural, aguça as contradições inerentes da ordem do capital. Homens e mulheres negras, com suas devidas especificidades, bem como a comunidade LGBT6 6 Ainda que o artigo não se proponha a analisar com foco o tema da sexualidade, destacamos apenas que esta é uma limitada escolha analítica, uma vez que a mais complexa compreensão do fenômeno da precarização das vidas e do trabalho precisa ter em conta a imbricação dinâmica e inerente entre as relações de gênero, classe, raça e sexualidade. A dimensão da sexualidade precisa ter relevância no estudo das pessoas em situação de prisão. , ocupam os espaços de trabalho mais precarizados, sendo a marginalização social e econômica uma constante em suas trajetórias.

Para a possibilidade de acumulação e expansão, passa a ser vital que o capital promova a acentuação da exploração do trabalho, ao mesmo tempo em que há um desemprego crônico, o uso do Estado para a retirada de direitos previdenciários, trabalhistas e sociais outros, conquistados historicamente, sendo as mulheres, pessoas negras, pessoas transexuais e travestis as mais afetadas.

Este cenário, concomitantemente, gera uma ainda maior desvalorização do trabalho doméstico, concomitantemente a uma sua sobrecarga, e a naturalização desta função às mulheres. Aqueles dois princípios permanentes de Kergoat - da separação entre trabalhos de homem e de mulher e da hierarquização/valorização de um e não do outro - são repaginados e reforçados. E o alerta é nítido e alto: quanto mais privatização e desregulamentação, mais trabalho gratuito das mulheres na esfera doméstica e familiar, mais mulheres com carga horária de trabalho reduzida para darem conta dos trabalhos domésticos e maior concentração nossa em trabalhos informais e terceirizados e, por consequência lógica, passando a participar ainda mais de redes ilegais (tráfico de mulheres e de drogas).

É preciso que se conheça a realidade e que se articule a reflexão teórica e mais ampla com as especificidades deste tipo de opressão-exploração vivenciadas pelas mulheres em situação de prisão por tráfico de drogas, para que as verdadeiras saídas de desencarceramento e políticas alternativas de vida digna a essa gama de mulheres possam ser encontradas e construídas.

7. Referências Bibliográficas

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  • 1
    Buscando realizar um delicado diálogo entre as autoras da consubstancialidade das relações sociais de gênero, classe e raça com aquelas que reivindicam, desde uma Teoria Unitária, a Teoria da Reprodução Social.
  • 2
    A maioria dos dados estatísticos com os quais trabalharemos neste artigo são referentes às informações consolidadas no INFOPEN Mulheres, lançado pelo Departamento Penitenciário Nacional em 2018, referente ao ano de 2016. Este mesmo Departamento lançou, em 2020, um link com atualizações de dados referentes ao período de janeiro-junho de 2019, porém não se trata de relatório pormenorizado como o anterior. Deste modo, uma informação ou outra será atualizada a partir desta última fonte e assim explicitada.
  • 3
    Alguns dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE, referente ao 4o trimestre de 2019 são oportunos de serem anunciados. A média no país de rendimento mensal é de R$2.495 para homens e R$1.958 para mulheres, sendo, portanto, o dessas 22% menor do que o deles. Quando se trata de pessoas com ensino superior, a discrepância é ainda maior, com o rendimento mensal médio dessas mulheres 38% menor do que o dos homens na mesma condição. A contribuição para a previdência das mulheres é menor e mais descontínua (pela entrada e saída maior do mercado de trabalho), sendo, em média, 17% menor do que a dos homens. O desemprego é maior entre elas (13, 1% e 9,2% entre eles) e o índice de busca de emprego há mais de um ano também maior (37% para elas e 27% para eles).
  • 4
    De acordo com dados do Pnad Contínua, o número de trabalhadores domésticos chegou a 6,3 milhões no país em 2019, com apenas 1,7 milhão de formalizados. De acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2018, 92% das pessoas trabalhadoras domésticas eram mulheres e, desta, 68,5% eram negras.
  • 5
    O mesmo relatório informa que, quanto aos espaços exclusivos para visitação social - que, portanto, não devem coincidir com o pátio do banho de sol -, apesar de previstos no modelo arquitetônico normativamente regulamentado, existem na proporção de uma por cada duas unidades exclusivas para as mulheres, três por cada dez nas unidades mistas e 34% no caso das exclusivamente masculinas. Relacionado ao espaço físico, pensando em sua ocupação, é notório pelos números elemento corriqueiramente dito sobre os laços de sociabilidade que se preservam muito mais precariamente para as mulheres em situação de prisão, visto que o dever de cuidado, afeto e responsabilidade pelo outro são características ensinadas e reproduzidas em grau máximo para as mulheres. A média de visitação nos presídios exclusivamente masculinos é de 7,8 pessoas por semestre e nos femininos e mistos é de 5,9 pessoas.
  • 6
    Ainda que o artigo não se proponha a analisar com foco o tema da sexualidade, destacamos apenas que esta é uma limitada escolha analítica, uma vez que a mais complexa compreensão do fenômeno da precarização das vidas e do trabalho precisa ter em conta a imbricação dinâmica e inerente entre as relações de gênero, classe, raça e sexualidade. A dimensão da sexualidade precisa ter relevância no estudo das pessoas em situação de prisão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2020
  • Aceito
    07 Jun 2020
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