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Um cárcere de memórias

PIRES, Thula; FREITAS, Felipe. Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018. 480

“Prisão é uma maneira muito cara de tornar os homens piores.”

(SP5 – 1011)1 1 Com a finalidade de preservar o anonimato e a segurança das autoras e dos autores das cartas remetidas pelas pessoas privadas de liberdade, o livro Vozes do Cárcere: ecos da resistência política desidentifica os escritos, marcando apenas os estados de procedência das cartas, numerando-as.

“Não sei fazer com palavras difíceis, fiz como sei falar.”

(SP5 – 906)

O recém-publicado Vozes do Cárcere, organizado por Thula Pires e Felipe Freitas, aparece em um momento no qual o encarceramento no Brasil registra dados alarmantes, com mais de 700 mil pessoas privadas de liberdade no país. E, de modo especial, o aprisionamento de mulheres, que cresce em escalada vertiginosa2 2 De acordo com o INFOPEN Mulheres de 2017, o número de mulheres submetidas à privação de liberdade aumentou 656% entre os anos 2000 e 2016, superando a marca de 42 mil mulheres encarceradas no Brasil. É importante destacar que, pelo menos, 62% dessas mulheres são negras. , e revela a prática do encarceramento como estratégia seletiva de controle social e de sujeição criminal da população negra e das classes pobres.

O livro, fruto do projeto institucional Cartas do Cárcere, representa um dos produtos da pesquisa desenvolvida pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), contemplada pelo edital lançado pela Ouvidoria Nacional dos Sistemas Penais (ONSP), no âmbito de um projeto firmado entre o Programa das Nações Unidas Para o Desenvolvimento (PNUD) e o Departamento Penitenciário Nacional/Ministério da Justiça. Realizada entre agosto de 2017 e janeiro de 2018, a pesquisa analisou as cartas escritas por pessoas privadas de liberdade no Brasil endereçadas à Ouvidoria e demais órgãos públicos.

A equipe do projeto, por meio da leitura, catalogação e classificação de 8.818 cartas de pessoas encarceradas, destacou as narrativas sobre as experiências nas instituições penais, de modo a identificar as repercussões raciais e de gênero nos seus percursos individuais e coletivos. O livro evidencia as reivindicações das pessoas privadas de liberdade e compartilha material substancial à ampliação da disputa por medidas alternativas de responsabilização penal.

O projeto teve a coordenadoria geral da Profa. Dra. Thula Rafaela de Oliveira Pires, com pesquisa e sistematização de informações coordenadas por Felipe da Silva Freitas, e expõe a crueza da realidade do cárcere no Brasil como lugar de violação sistemática dos direitos humanos, que escancara “as cumplicidades do ordenamento constitucional brasileiro vigente com as hierarquias de humanidade herdadas do projeto moderno colonial de base escravista” (FLAUZINA; PIRES, 2018FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; PIRES, Thula. Apresentação – Vozes do Cárcere: entre encruzilhadas da justiça e os caminhos da resistência política. In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018., p. 20).

A partir das narrativas da violência de Estado, endereçada prioritariamente aos corpos não brancos, as cartas revelam um sistema que desmitifica a ideia difundida socialmente sobre a existência de falhas nas instituições penais. As/os protagonistas dos escritos descrevem práticas que se relacionam à estruturação do cárcere: suas bases programaticamente seletivas; os destinatários da criminalização, apagamento e extermínio promovidos pelo ideal punitivista; e as consequências deletérias que impactam nos corpos encarcerados e reverberam sobre todos os atores imbricados às dinâmicas dos centros de detenção.

É nessa direção que apontam os onze ensaios que compõem o livro. De forma interseccional, as autoras e os autores apresentam as múltiplas ferramentas utilizadas pelo sistema penal para subjugar os corpos negros, periféricos e femininos: desde a supressão degradante de direitos fundamentais – como saúde, alimentação, salubridade e liberdade de expressão – aos atos manifestamente violentos, através das torturas e sanções físicas e psicológicas impostas. Os relatos pautados nas narrativas do cárcere desvelam a privação de liberdade como negação de todo direito humano. E não é apenas isso. Eles demonstram a construção das instituições penais fundada no aniquilamento e na hierarquização de humanidades.

O direito humano ao próprio corpo é aquilo que perdemos quando somos escravizadas e/ou presas. A escravidão, assim como o aprisionamento, propiciam o lento e doloroso processo de desagregação entre corpo e cabeça, entre cabeça e espírito, impingindo, via força necropolítica de Estado (em suas diversas presenças e técnicas), clivagens que agem sobre a memória, a identidade e, assim, sobre a própria condição de humanidade. (CARRASCOSA, 2018CARRASCOSA, Denise. Direito Humano. In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018., p. 31-32)

Daí o processo constante de desumanização e a negação da agência de pessoas subalternizadas, submetidas à força necropolítica de Estado e aos efeitos de políticas públicas que expressam a face mais nefasta do racismo/sexismo institucional, do classismo e da fragilidade dos pactos democráticos no Brasil contemporâneo. Não é de espantar que esse processo culmine na ampliação das vulnerabilidades e iniquidades, que agravam a violação da integridade dos sujeitos encarcerados e conferem o caráter racialmente genocida dos sistemas penais. O Estado, segundo Lúcia Xavier:

[...] aposta na morte física e social da pessoa condenada pelo crime de “ser quem é”, negros. Pois, num país que não existe autorização legal para a morte ou para a supressão de direitos fundamentais, essas ações se circunscrevem num projeto genocida [...]; reconhecer o projeto genocida em curso composto por morte e encarceramento, nos obriga a uma revisão do sentido da democracia e do direito quando tratamos de grupos raciais/étnicos excluídos (XAVIER, 2018XAVIER, Lúcia. “As cartas não mentem jamais”: quando o direito humano à saúde é negado. In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018., p. 352-353).

A morte física e a morte em vida produzidas pelo cárcere – antes, durante e depois do período de privação de liberdade – engendram a produção de estereótipos sobre as pessoas lançadas na zona do não ser (FANON, 2008FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 26). As instituições penais, ao tecer restrições sociais diversas às possibilidades de sobrevivência e vida dignas, imprimem, histórica e compulsoriamente, práticas de violência orquestradas contra as trajetórias de grupos marcados pela estigmatização da criminalidade:

Atentando para realidade brasileira, a atuação estatal na produção da morte está inscrita nas diversas vulnerabilidades construídas em torno do segmento negro. A pauta de extermínio que inundou os discursos do século XIX, principalmente com a proximidade da abolição, será recepcionada no interior da República dentro dessa nova metodologia. Assim, embalado na cantiga da democracia racial, o Estado foi, pela precarização da vida do contingente negro, construindo as condições para o descarte do segmento. (FLAUZINA, 2006FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: O Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação de mestrado em Direito. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2006., p. 100)

Antes de submetidos ao Estado de Coisas Inconstitucional3 3 Essa expressão foi utilizada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, MC–DF, com a finalidade de reconhecer o caráter sistemático, contínuo e generalizado da violação dos direitos fundamentais das pessoas encarceradas. das instituições penais, estes grupos já estão marcados como alvos do modus operandi bélico que provoca rupturas jurídicas e reveste os planejamentos em torno da Segurança Pública. Os atos excepcionais de violência são normalizados em territorialidades racialmente marcadas, promovendo a ostensividade como forma de direito em nome de políticas salvacionistas humanitárias. Em prol da branquitude e da manutenção de seus privilégios, a população negra é morta, torturada e encarcerada pelas forças policiais do Estado Soberano, o que é explicitado em trecho de uma das cartas do cárcere: “cadeia é comprovado: é somente para negro, pobre, favelado e cabelo duro” (RJ – 39).

As denúncias tornam-se, então, estratégia de expressão contra articulações políticas opressoras ao mobilizar a experiência do cárcere também como forma de resistência à realidade prisional. Com Vozes do Cárcere são abertas fendas no interior do dispositivo carcerário, que permitem entrever o subsolo da discursividade punitivista e que colocam em tensão o epicentro da segregação.

As cartas evidenciam, em seu processo de escritura, gesto que merece ser destacado: a prática discursiva, simultaneamente registro, reflexão e recordação, materializa-se como escrita do testemunho de sujeitos políticos, cujo fluxo é dirigido ao leitor/leitora potencial como memória de um presente intolerável, às vezes tipograficamente marcado por caixa alta, como gritos de socorro diante da violência de Estado.

A enunciação em primeira pessoa e as estratégias de singularização das narrativas biográficas não prescindem, porém, das vocalizações polifônicas que atravessam as cartas, ora como denúncia de grupos e “queixa” das opressões transversalizadas, ora como confissão, ora como lugar em que as “palavras encarceradas” – premidas entre a censura e a necessidade de comunicação – tensionam-se com o silêncio e com a invisibilização a que são submetidas as pessoas privadas de liberdade.

Talvez, por isso, a tônica do silêncio seja tão recorrente nas cartas, como conflito permanente entre a afonia e o jorro discursivo que esbarra nas parcas condições materiais que elas não deixam de expor: “Obs: perdão por escrever aos doutores com caneta vermelha (falta de educação) porém estou no castigo e foi o material que consegui arrumar desfazendo me de uma semana de café da manhã” (DPR – 5); ou, ainda, “A petição foi escrita em papel higiênico, pois houve a proibição da entrada de canetas e cadernos no intuito de dificultar socorro” (DMG – 1); e, até mesmo, pela obstaculização de certas cartas, censuradas pelas administrações prisionais, em evidente descompasso com os tratados internacionais que legislam sobre o exercício do direito fundamental à comunicação:

Todo preso estará autorizado a encaminhar, sem censura quanto ao conteúdo, petição ou reclamação sobre seu tratamento à administração penitenciária central e à autoridade judicial, ou a qualquer outra autoridade competente, incluídas as autoridades com competências revisionais ou recursais. (REGRAS DE MANDELA, 56, 3)

As performances da liberdade prefiguradas pelas cartas, como exercícios de escrita, escuta e verbalização, apontam para as ressonâncias da luta pela efetivação dos direitos humanos em contraposição aos limites do Estado Democrático de Direito. Sobretudo no interior das instituições penais, onde “o dilema entre recuperar e punir dissolve-se, em verdade, na constatação de que o sistema [penitenciário] constitui aparelho exemplarmente punitivo e funciona exclusivamente como depósito de corpos e mentes” (FISCHER; ADORNO, 1987FISCHER, Rosa Maria; ADORNO, Sérgio. “Políticas penitenciárias, um fracasso?” In: Lua Nova, vol. 3, nº. 4, p. 70-79, 1987., p. 78).

A relevância do livro está em apresentar ao leitor/leitora a crueza das narrativas através de suas fontes primárias, com a reprodução dos fac-símiles como elementos centrais, sem pretender dar conta ou mediar realidades que só podem ser integralmente enunciadas pelas vocalizações dos próprios sujeitos imbricados nos processos. Nessa estrutura, os textos ensaísticos desdobram, a partir de múltiplas perspectivas, reflexões que partem das proposições das pessoas submetidas à privação de liberdade e que reafirmam “a existência de sujeitos cuja capacidade de potência não foi aprisionada” (WERNECK, 2018WERNECK, Jurema. Prefácio – Cartas para quem? In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018., p. 9).

A prisão constitui realidade violenta, expressão de um sistema de justiça desigual e opressivo, que funciona como retroalimentador; serve apenas para reforçar valores negativos, proporcionando proteção ilusória. Quanto mais graves são as penas e as medidas impostas aos delinquentes, maior a probabilidade de reincidência. O sistema será, portanto, mais eficiente se evitar tanto quanto possível, mandar os condenados para a prisão, nos crimes pouco graves e se, nos crimes graves, evitar o encarceramento demasiadamente longo. (SP6 – 112)

Os ecos das Vozes do Cárcere ressoam a resistência política ao colocar em xeque o próprio Sistema de Justiça Criminal de nosso tempo: cartas-bomba no coração do presente. Essas vozes dissonantes, descontínuas e dissidentes emergem como acontecimentos políticos, em resposta à violência continuamente silenciada no interior e no entorno das instituições penais. Daí a relevância da publicação deste livro na conjuntura atual, quando as medidas governamentais apresentam o hiperencarceramento, a seletividade e a verticalização dos institutos penais como a solução final para toda questão de segurança pública.

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    Com a finalidade de preservar o anonimato e a segurança das autoras e dos autores das cartas remetidas pelas pessoas privadas de liberdade, o livro Vozes do Cárcere: ecos da resistência política desidentifica os escritos, marcando apenas os estados de procedência das cartas, numerando-as.
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    De acordo com o INFOPEN MulheresBRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres. 2ª. Edição. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública/Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf. Acesso em: 05 jul. 2019.
    http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen...
    de 2017, o número de mulheres submetidas à privação de liberdade aumentou 656% entre os anos 2000 e 2016, superando a marca de 42 mil mulheres encarceradas no Brasil. É importante destacar que, pelo menos, 62% dessas mulheres são negras.
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    Essa expressão foi utilizada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347, MC–DF, com a finalidade de reconhecer o caráter sistemático, contínuo e generalizado da violação dos direitos fundamentais das pessoas encarceradas.

Referências bibliográficas

  • BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Regras de Mandela: Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos/Conselho Nacional de Justiça, Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas, Conselho Nacional de Justiça. 1ª. Ed. Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2016. Disponível em: http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/05/39ae8bd2085fdbc4a1b02fa6e3944ba2.pdf Acesso em: 05 jul. 2019.
    » http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2016/05/39ae8bd2085fdbc4a1b02fa6e3944ba2.pdf
  • BRASIL. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN Mulheres. 2ª. Edição. Brasília: Ministério da Justiça e Segurança Pública/Departamento Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf Acesso em: 05 jul. 2019.
    » http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/infopenmulheres_arte_07-03-18.pdf
  • CARRASCOSA, Denise. Direito Humano. In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
  • FISCHER, Rosa Maria; ADORNO, Sérgio. “Políticas penitenciárias, um fracasso?” In: Lua Nova, vol. 3, nº. 4, p. 70-79, 1987.
  • FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
  • FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro; PIRES, Thula. Apresentação – Vozes do Cárcere: entre encruzilhadas da justiça e os caminhos da resistência política. In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
  • FLAUZINA, Ana Luiza Pinheiro. Corpo Negro Caído no Chão: O Sistema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro. Dissertação de mestrado em Direito. Brasília: Faculdade de Direito da UnB, 2006.
  • PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
  • WERNECK, Jurema. Prefácio – Cartas para quem? In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.
  • XAVIER, Lúcia. “As cartas não mentem jamais”: quando o direito humano à saúde é negado. In: PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (Org.). Vozes do Cárcere: Ecos da Resistência Política Rio de Janeiro: Kitabu, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2019
  • Aceito
    09 Set 2019
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