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Para uma sociologia da ressignificação

Towards a sociology of ressignification

Resumo

O conceito de ressignificação desenvolvido por Butler designa a inversão política de um termo depreciativo por aqueles que dele fazem uso e que passam a lhe atribuir um sentido positivo, afirmativo. Essa concepção, porém, permanece refém da teoria dos atos de fala de matriz fonocêntrica. O artigo faz uma crítica da categoria da ressignificação e sugere ampliá-la sociologicamente incorporando a mobilização coletiva (Bourdieu) e a produção documental (Latour) como dimensões indispensáveis para conferir materialidade aos processos históricos de ressignificação.

Palavras-chave:
Teoria do discurso; Atos de fala; Ressignificação; Materialidade

Abstract

Butler’s theory of ressignification addresses the political reversion of a depreciative word by those who deploy it, using the originally prejudicial word in an affirmative way. However, this conception remains attached to traditional speech act theories in its phonocentric aspect. The paper submits Butler’s concept of ressignification to critic and suggests a sociological expansion of ressignification by combining it with collective political action (Bourdieu) and inscription processes (Latour). These two approaches provide materiality to historical processes of ressignification.

Keywords:
Discourse theory; Speech acts; Resignification; Materiality

Introdução

Judith Butler é uma das principais filósofas da atualidade e muitos de seus insights reverberam para além das fronteiras dos estudos de gênero. É o caso do conceito de ressignificação: desenvolvido no quadro de uma teoria performativa da política que parte da discussão jurídica dos discursos de ódio nos Estados Unidos (Butler 1997a), trata-se de categoria promissora para o aprofundamento da teoria sociológica, cujo potencial analítico ainda está longe de se esgotar. A partir da teoria dos atos de fala de Austin e da crítica de Derrida a ela, tem-se um processo de ressignificação quando um termo tradicionalmente usado em sentido pejorativo ou depreciativo (e.g., “gay”, “negro”, “lésbica” etc.) é politicamente invertido por aqueles que dele fazem uso e que passam a lhe atribuir um sentido positivo, tornando-o afirmativo. O discurso se torna, definitivamente, um campo de batalha em que signos e significados - e com eles também a história - são disputados politicamente. Esse é um ganho incontestável da teoria do discurso de Butler.

O problema, porém, é que essa concepção de ressignificação parece ainda refém da teoria dos atos de fala de matriz fonocêntrica, o que limita seu alcance teórico. Com efeito, quando é possível dizer, do ponto de vista da sociedade, que um termo foi efetivamente ressignificado? A rigor, na esteira de Derrida, a linguagem (mas também a consciência, a percepção etc.) só é possível como iterabilidade - uma repetição sem origem no bojo da qual algo de novo é produzido, ainda que esse algo novo seja um efeito de continuidade - de forma que todo uso linguístico é, em alguma medida, uma espécie de ressignificação de usos linguísticos pretéritos (Derrida 1972). Isso nos coloca outra questão: ressignificação ocorre a todo e qualquer momento? Ou é uma condensação histórica de sentido? Como aferir, sociologicamente, a mudança de sentido de um termo para além da intenção dos participantes no discurso? Do ponto de vista da construção dessa categoria teórica, tem de ser possível apreendê-la sociologicamente, isto é, observá-la e descrevê-la como um fenômeno social (i.e., da sociedade, e não de seus indivíduos). Além disso, ressignificação pode ocorrer de forma conservadora e reacionária - ou não? Como categoria linguística, nada há que, de saída, lhe imponha um sentido político pré-determinado e necessariamente progressista ou emancipatório, por assim dizer.

Neste trabalho, importa-nos não a ressignificação em sua relação com a questão de gênero, mas a leitura sociológica dessa categoria, em sua articulação com o discurso; mas com o discurso compreendido como prática material, e não como uma espécie de “superestrutura” ideológica que paira sobre uma “base” material. Compreendido como prática material, o discurso supera a distinção canônica entre palavras e coisas e vincula a produção de sentido a práticas institucionais (jurídicas, políticas, econômicas, científicas etc.) que fundem enunciados, fatos e ações (cf. Foucault 1966Foucault, Michel, Les mots et les choses. Paris: Gallimard, 1966., Derrida 1990Derrida, Jacques, Limited Inc. Paris: Galilée, 1990., Bourdieu 1972_____ , Esquisse d’une theorie de la pratique. Paris: Éditions du Seuil, 1972., Latour 1986_____ , “Visualisation and Cognition: Drawing Things Together”, in Knowledge and Society: Studies in the Sociology of Culture Past and Present 6, 1986, S. 1-40., 2002, 2005 e 2012, Reckwitz 2010Reckwitz, Andreas, “Grundelemente einer Theorie sozialer Praktiken”, in Unscharfe Grenzen: Perspektiven der Kultursoziologie, 2. ed. Bielefeld: Transcript, 2010, S. 97-130.). Portanto, a teoria da ressignificação de Butler será aqui lida exclusivamente no registro de uma teoria sociológica - e, no limite, no bojo de uma teoria material do discurso, i.e., uma teoria que compreende o discurso como prática social institucionalmente estruturada.

O artigo faz uma crítica da categoria da ressignificação tal como desenvolvida por Butler e sugere ampliá-la com recurso às teorias do discurso de Pierre Bourdieu e Bruno Latour, a fim de conferir materialidade à categoria da ressignificação, incorporando a mobilização coletiva e a produção documental como dimensões indispensáveis para operar, sociologicamente, processos de ressignificação. A crítica aqui pretendida sustenta que, sem esses dois aportes materiais - a ação política coletiva (Bourdieu) e alguma forma de inscrição documental (Latour) dessa ação política - a ressignificação gira em falso e se torna, ao fim e ao cabo, uma categoria da consciência. Mais ainda: uma categoria que reproduz o cacoete metafísico que identifica logos e phone. Há que se considerar, inclusive, que as obras mais recentes de Butler procuram justamente endereçar o primeiro desses aspectos (e.g., Butler 2018). Mas não há, ainda, qualquer consideração da dimensão documental.

A argumentação se estrutura em quatro momentos: inicialmente, a categoria da ressignificação é brevemente situada no contexto da evolução intelectual de Butler (seção I). Na sequência, discutiremos os principais problemas presentes na formulação teórica dessa categoria (seção II). Em seguida, procuraremos enriquecer a categoria da ressignificação com uma teoria do discurso tornado prática pela ação coletiva (seção III) e pela teoria das inscrições (seção IV). Acredita-se que, com isso, os processos sociais de sedimentação e crítica (e, eventualmente, também de quebra) de narrativas estabelecidas - incluindo posições hegemônicas de poder e dominação por elas reproduzidas e legitimadas - poderão ser descritos de maneira mais acurada. No atual momento do país, nada melhor do que levar Butler realmente a sério do ponto de vista de sua construção teórica1 1 Em recente passagem pelo Brasil, Butler foi alvo de protestos (veja-se a matéria da Folha de S. Paulo de 7.11.2017: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/11/1933437-manifestantes-pro-e-contra-judith-butler-protestam-no-sesc-pompeia.shtml). .

I. O giro linguístico de Butler

Butler se tornou uma das mais importantes pensadoras da atualidade ao problematizar, no início dos anos 1990, o conceito central da teoria feminista - a mulher ou o corpo feminino - enquanto ponto de partida dado, auto-evidente e suficiente em si mesmo para orientar o movimento feminista. Considerando que a teoria de gênero emergiu no bojo do movimento feminista, suas publicações iniciais provocaram fortes reações contrárias, de sorte que o enquadramento de Butler no debate ainda divide opiniões (cf. Benhabib, Butler, Cornell e Fraser 1995Benhabib, Seyla, Butler, Judith, Cornell, Drucilla e Fraser, Nancy, Feminist Contentions: A Philosophical Exchange. New York & London: Routledge, 1995.; Nussbaum 1999Nussbaum, Martha C., »The Professor of Parody: The Hip Defeatism of Judith Butler«, in The New Republic, 22. Februar 1999.; Breen & Blumenfeld 2005Breen, Margaret Sönser & Blumenfeld, Warren J. (Orgs.), Butler Matters: Judith Butler’s Impact on Feminist and Queer Studies. Aldershot: Ashgate, 2005.; e Hark 2005Hark, Sabine, Dissidente Partizipation: Eine Diskursgeschichte des Feminismus. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 2005.). Não temos aqui como entrar nos pormenores desse debate. A perspectiva de Butler sobre sexo e identidade de gênero será aqui mobilizada única e exclusivamente para situar a categoria da ressignificação em seu percurso teórico.

Em sua maioria, as teorias feministas têm assumido a existência de alguma identidade, entendida pela categoria da mulher, que não apenas inicia os interesse feminista e seus objetivos dentro do discurso, mas que constitui o sujeito em nome de quem a representação política é perseguida. [...] Recentemente, essa concepção dominante acerca da relação entre a teoria feminista e a política foi desafiada por dentro do discurso feminista. A própria mulher como sujeito não é mais entendida em termos estáveis ou imutáveis. Há uma quantidade significativa de material que questiona a viabilidade ‘do sujeito’ enquanto o candidato último para representação, ou, ainda, para liberação, mas há muito pouco consenso acerca daquilo que constitui, ou deveria constituir, a mulher enquanto categoria [conceitual fundante da teoria feminista]. (Butler 1990_____ , Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York/London: Routledge, 1990., ps. 1/2, trad. livre).

O objetivo de Butler é não apenas contestar a binariedade do sexo biológico e a implicação causal “sexo biológico → gênero → desejo sexual”, mas também apresentar gênero e identidade de gênero como produtos de constelações de poder que se fundamentam em uma matriz heterossexual. Com o conceito de matriz heterossexual, Butler designa a propensão incrustrada nas instituições e reproduzida intergeracionalmente pela socialização para naturalizar corpo, sexo, gênero e identidade de gênero, impondo assim uma convergência biológica e antropomórfica supostamente natural. A sociedade se estrutura com auxílio de uma preferência normativa pela heterossexualidade (Butler 1990, p. 151). A teoria feminista deve principiar assim pela crítica dessa associação entre heterossexualidade e normalidade. Butler contesta a compreensão naturalista do corpo realidade pré-discurisva dada pela natureza, sobre a qual o sujeito supostamente poderia construir sua identidade de gênero, de forma livre (Butler 1990, p. 129).

Butler está interessada em reconstruir as estruturas de poder dentro das quais a determinação da identidade de gênero ocorre, i.e., como tais estruturas permitem e ao mesmo tempo condicionam a determinação da identidade de gênero, sem renunciar, de saída, à dimensão ativa da subjetividade (“agency”):

Para Beauvoir, o gênero é ‘construído; mas sua construção implica um agente, um cogito, que de alguma maneira recebe e se apropria do gênero e que poderia, em princípio, assumir algum outro gênero. O gênero é tão variável e volitivo como a perspectiva de Beauvoir parece sugerir? [...] Se o gênero e o sexo são fixos ou livres - trata-se de uma função do discurso, que, pode-se sugerir, procura definir certos limites à análise ou salvaguardar certos fundamentos do humanismo como pressupostos de qualquer análise de gênero (Butler 1990_____ , Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York/London: Routledge, 1990., p. 8/9, trad. livre).

Esse aspecto é costumeiramente mal compreendido por críticos de Butler (Smith 2001Smith, Anna Marie Smith, “Words that Matter: Butler’s Excitable Speech”, in Constellations v. 8, N. 3, 2001., p. 390). Com efeito, o processo de construção do sujeito em Butler é ambivalente e trabalha na fronteira entre o auto-desenvolvimento e a contenção da subjetividade. É por isso que o sujeito exsurge no entrecruzamento entre relações de poder e sua ação subjetiva (Butler 1997b, p. 14/15). Ela se apoia em Foucault para compreender o processo de formação da subjetividade como o resultado contingente da relação entre poder e linguagem (Mills 2003Mills, Catherine, “Contesting the Political: Butler and Foucault on Power and Resistance”, in The Journal of Political Philosophy 11, Nr. 3, 2003, S. 253-272.). Há, portanto, um componente performativo no processo de construção do gênero e da identidade de gênero:

Nesse sentido, gênero é sempre um fazer, embora não um fazer por um sujeito que pré-existe à ação que realiza. [...] Não há identidade de gênero por trás da expressão do gênero; essa identidade é constituída performativamente justamente pelas ‘expressões‘ que tomamos por ser o resultado da identidade de gênero. [...] Como prática discursiva contínua e ininterrupta, está sempre aberta a intervenção e ressignificação (1990, p. 25 e p. 33, trad. livre).

A performatividade do gênero em Butler é construída a partir da teoria da performatividade de John L. Austin e do conceito de iterabilidade de Derrida. É claro que Butler faz uma tradução exclusivamente empírica da iterabilidade.2 2 Em Derrida, originalmente, a iterabilidade se enraíza na indecidibilidade entre o empírico e o transcendental: Derrida principia pelas características empíricas da escrita mas constrói um conceito de iterabilidade que se torna condição não apenas da escrita, mas do sentido em geral, e, no limite, de toda experiência, cognição ou ação. Essa “condição de possibilidade” sem recurso a uma origem última e absoluta evita que a iterabilidade recaia em uma espécie de a priori formal categórico. Por isso ela é “quasi-transcendental” (Gasché, 1986, p. 274). Não temos como aprofundar esse ponto neste artigo. Cf. Gasché 1986 e Bachur 2017, ps. 69 e ss. Se, do ponto de vista da filosofia acadêmica esse movimento poderia ser considerado tecnicamente questionável, trata-se, do ponto de vista sociológico, de insight extremamente produtivo, pois Butler combina a contingência do processo de subjetivação com a codificação social pré-existente, que o condiciona sem conseguir determiná-lo totalmente. Por essa razão, a teoria de gênero de Butler é performativa: o gênero se constrói pela iteração de atos por meio dos quais estruturas sociais são incorporadas, rejeitadas, transformadas, apreendidas, distorcidas, reincorporadas e assim indefinidamente, sem origem e sem um final teleológico:

O sujeito não é determinado pelas regras através das quais ele é gerado porque significação não é um ato fundante, mas um processo regulado de repetição que ao mesmo tempo se invisibiliza e impõe suas regras justamente por meio da produção de efeitos essencialistas (Butler 1990_____ , Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity. New York/London: Routledge, 1990., p. 145, trad. Livre, grifos originais); Performatividade não é, assim, um ‘ato’ singular, pois requer-se sempre a iteração de uma norma ou de um conjunto de normas. E, à medida que esse processo adquire o status de fato [“an act-like status”] no presente, ele obscurece ou dissimula as convenções que regulam sua repetição (Butler 1993, p. 12, trad. livre).

O problema é que Butler não leva essa ambivalência constitutiva da subjetivação às últimas consequências para a sua teoria performativa da política e reintroduz um momento logo-fonocêntrico em sua teoria da ressignificação, em que o sujeito determina, absolutamente - e pela fala! - a si mesmo. Há uma recaída metafísica na teoria de uma das mais célebres versões do pós-estruturalismo tributário de Derrida.

A teoria política de Butler, em que tem lugar a categoria da ressignificação, deriva de sua teoria de gênero. Em Excitable Speech (Butler 1997a), ela abre diversas polêmicas em torno do discurso do ódio (“hate speech”) sancionado pela Suprema Corte Americana, da questão da pornografia, da homoafetividade no exército americano e de quais medidas o Estado pode ou deve tomar nesses casos. O debate se articula em polos antagônicos: de um lado, líderes e teóricos ativistas reivindicam a proibição estatal do discurso do ódio e da pornografia, com o argumento de que essas formas discursivas estão baseadas em uma forma ilegítima de discriminação e dominação (e.g., Matsuda et al. 1993Matsuda, Mari J., Delgado, Richard, Lawrence, Charles R. & Crenshaw, Kimberlé (Orgs.), Words that Wound: Critical Race Theory, Assaultive Speech, and the First Amendment, 2. ed. Boulder: Westview Press, 1993. e MacKinnon 1993MacKinnon, Catharine A., Only Words. Cambridge: Harvard University Press, 1993.). De outro lado, defensores radicais da liberdade de expressão recusam qualquer forma de censura estatal. Em síntese, trata-se de saber se a Constituição Americana protege toda forma de expressão - inclusive o discurso do ódio (Walker 1994Walker, Samuel, Hate Speech: The History of an American Controversy, 2. Aufl. Lincoln/London: University of Nebraska Press, 1994. e Herrmann et al. 2007Herrmann, Steffen K., Krämer, Sybille und Kuch, Hannes (Orgs.), Verletzende Worte: Die Grammatik sprachlicher Missachtung. Bielefeld: Transcript, 2007.).

Nesse contexto, Butler se posiciona contra a regulação estatal do discurso. Para ela, a censura estatal é uma forma de tutelar a agency subjetiva, minando-a de saída. Butler prefere alternativas que reforcem a espontaneidade dos agentes em resistir, por conta própria, a discursos de ódio (Butler 1997a, ps. 127 e ss). É nesse contexto que ressignificação aparece como estratégia linguístico-política para fazer frente à violência perpetrada por discursos de ódio:

Desapropriar a força da linguagem injuriosa para contradizer a injúria constitui uma estratégia que resiste à solução da censura patrocinada pelo Estado, de um lado, bem como o retorno à impossível noção da liberdade soberana de um indivíduo, de outro. [...] A ressignificação do discurso requer a abertura de novos contextos, falar de formas que ainda não foram legitimadas, produzindo daí legitimação em uma forma nova e ainda futura (Butler 1997a_____ , Excitable Speech: A Politics of the Performative. New York/London: Routledge, 1997a., p. 41, trad. livre).

Enquanto nos primeiros textos as formas de subversão do gênero “oficial” imposto pela matriz heterossexual eram as práticas corporais de “drag” e “parody”, (Butler 1993Butler, Judith, Bodies that Matter: On the Discursive Limits of Sex. New York/London: Routledge, 1993., p. 231 e 1990, p. 146), a ressignificação passa a ocupar o centro da teoria política de Butler, consubstanciando uma espécie de “giro linguístico” (Lloyd 2007Lloyd, Moya, Judith Butler: From Norms to Politics. Cambridge: Polity Press, 2007., p. 120; Smith 2001Smith, Anna Marie Smith, “Words that Matter: Butler’s Excitable Speech”, in Constellations v. 8, N. 3, 2001., p. 391; e Disch 1999Disch, Lisa, “Judith Butler and the Politics of the Performative”, in Political Theory 27, Nr. 4, 1999, S. 545-559.).

Butler constrói sua categoria da ressignificação em quatro passos: inicialmente, ela se apoia em uma recepção da teoria dos atos de fala de Austin que enfatiza o papel do corpo ao suportar a força performativa da linguagem (Felman 1980Felman, Shoshana, Le scandale du corps parlant: Don Juan avec Austin, ou, la seduction en deux langues. Seuil, 1980.). Tomando a sério a teoria dos atos de fala, Butler se interessa pelo componente ativo do ato de fala performativo, i.e., aquele momento em que a expressão linguística performa (executa) uma ação3 3 Afastando-se assim de uma leitura inicial meramente retórica de Austin - Butler, 1993, p. 224: “A centralidade da cerimônia de casamento nos exemplos de J. L. Austin para atos performativos sugere que a heterossexualização do vínculo social é a forma paradigmática pela qual os atos de fala executam aquilo que enunciam”. Como se vê, trata-se de apreensão muito pouco técnica da teoria dos atos de fala de Austin. . E, seguindo Derrida, a performatividade da linguagem tem sempre um componente de repetição: é a iteração de atos de fala que torna a comunicação possível. Não existem atos de fala soberanos que, pronunciados uma única vez, produzem exatamente os efeitos pretendidos, em uma relação positivista de causa e efeito. Esse é o principal argumento de Butler contra a censura: da mesma forma como nenhum discurso de ódio é, de saída, soberano e absoluto, também a censura não o será. O falante, ao pronunciar o ato de fala, não tem total domínio sobre os efeitos de sua própria fala, não domina a forma pela qual o ato de fala será recepcionado pelo ouvinte. É por isso que a contingência do ato de fala - a possibilidade de ser bem ou mal sucedido sempre acentuada por Derrida - é o ponto central da apropriação que Butler faz da teoria dos atos de fala de Austin, acentuando, outrossim, o papel do corpo na fala: ele introduz um excesso de significação que torna incontrolável a recepção do conteúdo da proposição linguística enunciada (Butler 1997a, p. 11).

E, mais do que contingente, o ato de fala é constitutivamente disputável: “o enunciado linguístico se tornou cenário de conflitos” (Butler 1997a_____ , Excitable Speech: A Politics of the Performative. New York/London: Routledge, 1997a., p. 91). Portanto, compreendido como ato de fala - como enunciado linguístico sujeito ao risco de fracassar, entendendo-se o fracasso pela não produção dos efeitos desejados por quem pronuncia o ato de fala - o discurso do ódio se torna linguisticamente vulnerável. Todo e qualquer discurso (tanto o hate speech quanto a censura a ele) são assim constitutivamente abertos à ressignificação.

Em segundo lugar, a teoria da ressignificação de Butler se apropria da concepção de interpelação de Althusser: o endereçamento linguístico que nomeia um sujeito (Butler 1997a, p 29; e 1997b, p. 106 e ss.). Há, na interpelação, um momento performativo que contribui para a constituição do sujeito. É dizer, ninguém domina plenamente o processo de constituição de própria subjetividade, de sorte que a forma pela qual somos interpelados por outros contribui (sempre de maneira não soberana) para a elaboração de nossa própria auto-compreensão subjetiva.

Em terceiro lugar, Butler rejeita o determinismo linguístico de Bourdieu (1982Bourdieu, Pierre, Ce que parler veut dire: l’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982.), acentuando (em linha com Austin e Derrida) a contingência dos atos de fala. Com efeito, Bourdieu se apropria da recepção de Austin por Émile Benveniste, que compreende o ato de fala inexoravelmente como um ato de autoridade. Diferentemente de Derrida, que o vê como constitutivamente contingente, Benveniste sustenta que a única forma de assegurar que o ato de fala produza os efeitos pretendidos por quem o enuncia é compreendê-lo como ato de autoridade ou “ato de instituição” (“acte d’institution”), pronunciado no contexto de uma relação hierárquica (Benveniste 1963). Bourdieu se apropria da vinculação entre linguagem e autoridade para criticar o habitus linguístico que reproduz, na fala, as relações de poder dadas. Bourdieu chega mesmo a definir os interactantes como porta-vozes de suas próprias posições de poder, neutralizando assim qualquer autonomia do discurso face aos elementos exteriores a ele (elementos não-discursivos). Ao fim e ao cabo, a linguagem em Bourdieu finda por assumir o caráter de um meio neutro de transmissão das cadeias de dominação que reitera as posições de poder fáticas dos interactantes. Para Butler (1997, ps. 142/145), a sociologia da linguagem de Bourdieu é, por isso, inerentemente conservadora, pois elimina o elemento crítico permitido pela contingência intrínseca a todo e qualquer ato de fala4 4 Butler tem um ponto: Bourdieu se aproxima excessivamente da concepção do ato de fala como “acte d’institution” de Benveniste e, com isso, neutraliza o elemento mais interessante da teoria da performatividade de Austin - mas há um aspecto crítico na teoria do discurso de Bourdieu que abordaremos na seção III. .

Por fim, Butler se apropria do conceito de iterabilidade de Derrida, mas o investiga do ponto de vista de sua estabilização social. Se, como já mencionado, essa leitura pode ser questionada do ponto de vista da técnica da filosofia acadêmica5 5 Ao que seria possível redarguir que Derrida não desenvolveu, ele mesmo, uma filosofia acadêmica estrita. , vale ponderar que ela é extremamente produtiva do ponto de vista da teoria sociológica:

Derrida parece instalar a ruptura [com o contexto] como característica estruturalmente necessária em cada sentença e em cada código escrito, paralisando assim a análise social de sentenças capazes de exercer sua força [“forceful utterance”]. Temos ainda de chegar a uma consideração da iterabilidade social da sentença (Butler 1997, p. 150 - grifos originais, trad. livre).

A discussão técnica da crítica de Butler a Derrida nos desviaria do objeto deste artigo. Apenas é preciso registrar que a possibilidade de romper com o contexto em que é usado é uma possibilidade inscrita em qualquer signo e que seu uso conforme o contexto não elimina essa possibilidade enquanto tal. Mas Butler tem razão ao apontar que Derrida acentua excessivamente a ruptura com o contexto, sem explicar os momentos em que o signo funciona efetivamente conforme o contexto. Derrida exagera o risco potencial sempre presente na comunicação, mesmo quando, empiricamente, a maior parte das interações ocorre conforme o contexto, sem ruídos disruptivos significativos. A iterabilidade do signo (mas também da ação, da experiência, da cognição etc.) é socialmente ancorada e estabilizada por instituições e convenções sociais, de forma que o risco da ininteligibilidade (nunca eliminado enquanto possibilidade inscrita no funcionamento do próprio signo linguístico) resta, do ponto de vista da sociedade, um tanto quanto artificialmente ampliado (Bachur 2017_____ , Schrift und Gesellschaft: Die Kraft der Inskriptionen in der Produktion des Sozialen. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2017., ps. 81 e ss.). Ou seja, quando a linguagem funciona, quando as interações transcorrem de maneira trivial, sem precisarem ser interrompidas para tomarem a si mesmas como objeto de reflexão, os signos estarão sendo usados conforme o contexto; é dizer, não haverá quebra nas expectativas de sentido empregadas pelos interactantes. Nesses casos, a iterabilidade do signo linguístico é socialmente estruturada, pois ocorre conforme convenções de sentido institucionalizadas socialmente, estabilizando as expectativas de sentido dos interactantes:

Em outras palavras, quando palavras executam ações ou se constituem, elas mesmas, em uma forma de ação, isso ocorre não porque elas refletem o poder da intenção ou da vontade individual de um sujeito, mas porque elas recorrem a convenções que obtiveram seu poder precisamente através de uma iterabilidade sedimentada (Butler 1995_____ , “For a Careful Reading”, in Seyla Benhabib, Judith Butler, Drucilla Cornell & Nancy Fraser, Feminist Contentions: A Philosophical Exchange. New York & London: Routledge, 1995, ps. 127-143, p. 134, trad. livre).

Com isso, tem-se o quadro geral conforme o qual a categoria da ressignificação foi desenvolvida: partindo da leitura que Derrida e Felman fazem da teoria dos atos de fala de Austin, Butler rejeita o determinismo linguístico de Bourdieu e vê na interpelação de Althusser o momento em que subjetivação e sujeição às estruturas de poder dadas se inter-relacionam. Com isso, é possível compreender a dinâmica ambivalente e contingente do discurso, fundamentando uma teoria performativa da política.

II. Aspectos críticos

Até aqui, vimos como a categoria da ressignificação foi construída do ponto de vista teórico. Agora é preciso passar aos aspectos críticos dessa construção. Antes de qualquer outra consideração, é preciso reconhecer que Butler não desenvolve conceitualmente a formulação de uma “iterabilidade socialmente sedimentada”, a partir de sua leitura de Derrida. Ao contrario, ela recorre a um exemplo: ela se reporta a Black Atlantic, de Paul Gilroy, para explicar que a narrativa iluminista tem claramente um avesso, um lado perverso que permitiu acomodar a escravidão negra do outro lado do Atlântico; mas reforça que justamente essa narrativa subterrânea não está encerrada em si mesmo - pode ser resgatada e apropriada em sua força crítica, como forma de combater a narrativa hegemônica estabelecida pela dominação (Butler 1995, p. 128). É aí que tem lugar a ressignificação.

O problema é que Butler associa a performatividade do ato de fala diretamente à ressignificação: “nesse sentido, o discurso é o horizonte da ação, mas também é preciso pensar performatividade como ressignificação” (no original: “In this sense, discourse is the horizon of agency, but also, performativity is to be rethought as resignification” - Butler 1995, p. 135, trad. livre). Se é verdade que a ressignificação pode designar com clareza a luta travada no campo discursivo-semiótico para questionar a repetição de conceitos e narrativas apoiadas em relações de dominação, ela não assimila, por inteiro, o aspecto performativo da linguagem. Vale para Butler a mesma crítica por ela endereçada a Derrida: se a iterabilidade permite quebrar com o contexto comunicativo, a linguagem funciona “na média” conforme o contexto; e se, por outro lado, narrativas hegemônicas podem ser efetivamente questionadas e ressignificadas, a comunicação trivial do cotidiano funciona “na média” sem essa carga crítica. Se todo ato de fala tem um componente performativo, nem todo ato de fala implica a ressignificação de categorias discursivas estabelecidas. A assimilação entre performatividade e ressignificação traz problemas consideráveis para o uso sociológico dessa última categoria (para além de seu uso nas questões de gênero).

Nessa esteira, é preciso indagar primeiramente: por que a ressignificação ocorre sempre em sentido progressista ou emancipatório? Com efeito, Butler afirma: “a linguagem jurídica é precisamente o tipo de linguagem que pode ser citada em sentido reverso ao oficial, quando essa reversão se apropria de uma lei com histórico reacionário e a converte em uma norma com intuito progressivo” (Butler 1997, p. 98, trad. livre). Ora, se não há ato de fala ou discurso soberano, isso vale inclusive para aqueles atos de fala que procuram perpetrar a ressignificação de conceitos impregnados pelas relações de poder estabelecidas. Se o discurso do ódio, a censura estatal ou a narrativa histórica do Esclarecimento não constituem unidades semânticas inatacáveis, fechadas sobre si mesmas, também o próprio contra-discurso que pretende desconstituí-las é, de saída, falível. Não há nada que imponha, necessariamente, uma orientação anti-hegemônica à ressignificação enquanto categoria conceitual (Mills 2003Mills, Catherine, “Contesting the Political: Butler and Foucault on Power and Resistance”, in The Journal of Political Philosophy 11, Nr. 3, 2003, S. 253-272., p. 254).

Basta pensarmos, por exemplo, na cristalização do discurso neoliberal pelo establishment político e econômico ao longo dos anos 1980 e 1990, já extrapolando o conceito de ressignificação para além da política identitárias e de gênero. Conceitos como “liberdade”, “eficiência”, “pleno emprego”, “justiça social”, “austeridade fiscal”, “risco” e muitos outros foram profundamente impregnados por uma lógica discursiva que submete o Estado ao mercado (é dizer, ao mercado concebido de uma maneira muito específica, conforme pressupostos às vezes muito distantes da forma pela qual os mercados concretos funcionam na vida real). E qualquer tentativa de “abrir” esses significantes, que funcionam na verdade como black boxes discursivas (os “textos-máquina” de Derrida), encontrará forte resistência por parte das instituições que mantêm esses significantes automatizados em ação - e.g., o pensamento acadêmico dominante nas faculdades de economia, o discurso político oficial, as organizações internacionais, os jornais, as organizações empresariais etc. Essas instituições trabalham preservando o núcleo do discurso neoliberal.

Em um outro exemplo, o Brasil passa por um momento em que nosso passado ditatorial-militar vem sendo afirmado positivamente à luz da crise institucional que vivemos. E isso a despeito do trabalho da Comissão Nacional da Verdade, tardiamente instalada em 2011. É inegável que há um movimento de ressignificação positiva da ditadura militar brasileira. A greve dos caminhoneiros de maio de 2018, por exemplo, foi dominada por uma ofensiva política que pedia a volta dos militares. Antes disso, os protestos de junho de 2013, inicialmente convocados por movimentos sociais de mobilidade urbana, conviveram com discursos que pediam a volta dos militares. O mesmo se passou com as manifestações pedindo o impeachment de Dilma Rousseff em meados de 2015. Em todos esses casos, a ditadura militar aparecia como solução para a crise institucional em curso. Como se não bastasse, o Decreto n° 9.288, de 16 de fevereiro de 2018, de Michel Temer, opera uma intervenção de caráter militar no Rio de Janeiro. Na sequência, o comandante do exército brasileiro cobra em sua rede social liberdade para os militares agirem “sem risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”. Mais remotamente, mas não menos importante, o jornal Folha de S. Paulo caracterizou em editorial o período militar brasileiro como “ditabranda” - e não era uma ironia. E, por fim, mas não menos importante, às vésperas do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018 - lideradas com folga por um ex-militar aposentado precocemente e dedicado à reconstituir o regime militar no país - o presidente do Supremo Tribunal Federal nomeia como seu assessor um general envolvido nessa campanha presidencial e afirma, em evento comemorativo dos 30 anos da Constituição Federal de 1988, que prefere designar a ditadura militar como “movimento de 1964”6 6 Todos esses fatos são hoje amplamente conhecidos. Vejam-se os respectivos links com notícias extraídas de jornais de circulação nacional: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/30/politica/1527703161_738090.html; https://g1.globo.com/politica/blog/cristiana-lobo/post/general-vilas-boas-militares-precisam-ter-garantia-para-agir-sem-o-risco-de-surgir-uma-nova-comissao-da-verdade.ghtml; https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ opiniao/fz1702200901.htm; https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/nomeacao-de-general-por-toffoli-e-alvo-de-questionamentos.shtml e https://www.jota.info/stf/do-supremo/toffoli-golpe-64-movimento-01102018?utm_source=JOTA+Full+List&utm_campaign=5afbf6893a-EMAIL_CAMPAIGN_2018_10_02_09_41 &utm_medium=email&utm_term=0_5e71fd639b-5afbf6893a-380467909, respectivamente (consultados em 10 de outubro de 2018). . Ou seja, em perspectiva histórica, o país procurou ajustar contas com o passado por meio de uma tardia Comissão Nacional da Verdade cujos resultados, porém, foram tímidos e muito aquém do esperado. Por outro lado, uma onda de ressignificação reacionária foi desencadeada com o intuito de reinterpretar positivamente a ditadura militar brasileira. Ou seja: o discurso reacionário (que durante décadas nos pareceu definitivamente sepultado) se revigorou e reagiu. Hoje, ele ruma para retomar (pela via parlamentar!) sua antiga hegemonia7 7 Este artigo foi concluído entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial de 2018. . Se nenhum ato de fala é soberano, isso vale para todas as narrativas hegemônicas, mas também para todas as tentativas de desestabilizá-las. É isso que Butler não considerou ao formular sua categoria da ressignificação.

Em segundo lugar, é preciso considerar que as narrativas dominantes poderão (e tenderão) a usar a força e a violência física para silenciar tentativas de ressignificação. Se, de fato, o discurso se tornou uma arena aberta ao conflito, não há qualquer garantia de que o conflito discursivo seja processado de maneira exclusivamente discursiva, isto é, de que ele não seja silenciado com auxílio da violência física (estatal ou paraestatal). Nesse passo, Butler recorre inclusive a Habermas, sugerindo que o processo de ressignificação poderia configurar aquela situação ideal de fala em que a força crítica da linguagem é utilizada de modo livre (Butler 1997, p. 86). A vida real, contudo, tende a ser dura com tentativas voltadas interpretar criticamente o passado e o presente8 8 Especialmente nos trópicos - nossa crise institucional é tão grave que é possível identificar inúmeros exemplos de ressignificação reacionária: professores são hostilizados em seminários acadêmicos sobre o centenário da Revolução Russa (veja-se: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/professora-da-uerj-hostilizada-em-evento-sobre-revolucao-russa-22003757), enquanto o ministro da educação de Temer manifesta a intenção de impedir uma disciplina acadêmica a ser oferecida na Universidade de Brasília com o título “golpe de 2016” (veja-se: https://oglobo.globo.com/brasil/mec-vai-acionar-mpf-contra-disciplina-da-unb-sobre-golpe-de-2016-22420187). Seria possível recuperar ainda um longo inventário de atos de violência física cometidos contra gay, negros, mulheres e jornalistas entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2018 - mas isso tornaria impossível concluir este artigo. .

Em terceiro lugar, é importante afirmar que Butler veicula uma forma de pensamento anti-institucional (tributária de Foucault), conforme a qual o direito e o aparato estatal são concebidos de forma unilateral e até mesmo um tanto ingênua. Butler rejeita a censura estatal à pornografia afirmando que o Estado, ao fazê-lo, estará replicando a linguagem que pretende proibir e, de outro lado, dificultando a emergência de resistência espontânea por parte da sociedade civil (e aqui o tom da argumentação é curiosamente habermasiano). A censura ampliaria a incidência do Estado sobre a esfera do discurso, intensificando seu poder regulatório e incorrendo em inevitáveis desvios burocratizantes, pois o Estado somente tem a seu dispor a sua própria linguagem burocrática (Butler 1997, p. 101). Muito críticos apontaram aqui uma compreensão limitada do papel histórico do Estado em afirmar direitos (Lloy 2007, p. 127-131; Mills 2003Mills, Catherine, “Contesting the Political: Butler and Foucault on Power and Resistance”, in The Journal of Political Philosophy 11, Nr. 3, 2003, S. 253-272., p. 266; Jenkins 2001Jenkins, Fiona, “The Heeding of Differences: On Foreclosure and Openness in a Politics of the Performative”, in Constellations 8, Nr. 3, 2001, S. 366-368;, p. 366-368; Zivi 2008Zivi, Karen, “Rights and the Politics of Performativity”, in Judith Butler’s Precarious Politics: Critical Encounters, in Terrell Carver & Samuel A. Chambers (orgs.). London & New York: Routledge, 2008, S. 157-169.). Ao sustentar, como já citado, que a “a linguagem jurídica é precisamente o tipo de linguagem que pode ser citada em sentido reverso ao oficial, quando essa reversão se apropria de uma lei com histórico reacionário e a converte em uma norma com intuito progressivo” (Butler 1997, p. 98), vale indagar: como ressignificar o conteúdo de decisões jurídicas, leis e outros atos oficiais sem o recurso à legislação ou a outras decisões judiciais? A ressignificação de uma decisão judicial não pode ser processo meramente mental ou verbal; como processo social, ela precisa ocorrer institucionalmente, i.e., apoiada em uma linguagem documental.

Em quarto lugar, ao rejeitar a censura por conta dos efeitos deletérios da regulação estatal, a estratégia de Butler pode soar conservadora. De saída, ela garante uma margem de vantagem para o discurso do ódio já praticado - enquanto não houver censura ou reação espontânea da sociedade civil, haverá apenas o discurso do ódio (Lloyd 2007Lloyd, Moya, Judith Butler: From Norms to Politics. Cambridge: Polity Press, 2007., p. 127). E, do ponto de vista formal da construção do argumento, Butler recusa a censura estatal por suspeitar, em princípio, de toda e qualquer regulação estatal, bem como porque a interferência estatal produzirá efeitos paradoxais: ela inibirá a emergência de contra-discursos espontâneos. É assim que Butler reproduz a retórica reacionária que vê, na ação estatal, efeitos perversos, fúteis ou prejudiciais à espontaneidade dos atores privados (Hirschmann 1991Hirschman, Albert O., The Rhetoric of Reaction: Perversity, Futility, Jeopardy. Cambridge/London: The Belknap Press, 1991.). Butler não considera que o papel do Estado pode galvanizar posições contrárias ao discurso do ódio, catalizando-as, e não as inibindo ou ameaçando.

Em quinto lugar, Butler não indica uma única condição para que o ato de ressignificação seja socialmente estabilizado (Smith 2001Smith, Anna Marie Smith, “Words that Matter: Butler’s Excitable Speech”, in Constellations v. 8, N. 3, 2001., p. 397). Ao rejeitar a versão determinista da linguagem de Bourdieu, Butler desconsidera a necessária compreensão da ressignificação como práxis social, i.e., como prática inserida socialmente e estruturada pelas instituições e convenções sociais. Butler não investiga o papel que as classes sociais ou as diferenças de capital (econômico, cultural e simbólico) exerceriam em uma luta por ressignificação.

Em sexto e último lugar, encerrando a crítica à categoria da ressignificação, é imprescindível mencionar que Butler, ao rejeitar toda e qualquer dimensão institucional, i.e., ao compreender ressignificação de forma eminentemente não-documental, excluiu automaticamente a escrita de sua teoria política, reencenando justamente a identificação entre logos e phone criticada por Derrida. Se, em sua teoria da subjetivação ela menciona “inscrições corporais” (“bodily inscriptions”) para descrever atos pelos quais gênero e identidade de gênero são construídos (Butler 1990, p. 128 e ss.), o sentido dessas “inscrições corporais” é metafórico e não diz respeito à escrita propriamente dita, enquanto prática social de tradução de operações sociais em superfícies bidimensionais. Ao contrário a teoria da performatividade política de Butler é toda apoiada em atos de fala literalmente considerados, i.e., a performatividade política da ressignificação é compreendida como ato de fala em sentido estrito (Vila 2010Vila, Paula-Irene, “Butler - Subjektivierung und sprachliche Gewalt”, in Philosophien sprachlicher Gewalt: 21 Grundpositionen von Platon bis Butler, in Hannes Kuch & Steffen K. Herrmann (orgs.). Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2010., p. 421). E isso com a exclusão literal da escrita:

Faz sentido lembrar que a ‘força‘ do ato de fala [...] tem tudo a ver com o status da fala enquanto ato corporal [“bodily act”]. Que a fala não é idêntica à escrita parece claro; mas não porque o corpo está presente na fala em uma forma que inexiste na escrita, mas porque a relação oblíqua do corpo com a fala é ela mesma performada pela sentença, refratada por ela e conduzida pela própria performatividade. Arguir que o corpo é igualmente ausente na fala e na escrita é verdade apenas na medida em que nem a fala, nem a escrita fazem o corpo imediatamente presente. Mas a forma oblíqua pela qual o corpo aparece na fala é, necessariamente, diferente da forma em que ele aparece na escrita (Butler 1997, p. 152 - trad. Livre, grifos acrescidos)9 9 A frase é truncada mesmo no original: “It makes sense to remember that the ‘force’ of the speech act [...] has everything to do with the status of speech as a bodily act. That speech is not the same as writing seems clear, not because the body is present in speech in a way that it is not in writing, but because the oblique relation of the body to speech is itself performed by the utterance, deflected and carried by the performance itself. To argue that the body is equally absent in speech and writing is true only to the extent that neither speech nor writing makes the body immediately present. But the way in which the body obliquely appears in speech is, of necessity, different from the way it appears in writing”. .

Ora, com isso, uma das mais reputadas seguidoras de Derrida refaz o gesto metafísico pelo qual a escrita é extirpada de uma relação privilegiada estabelecida entre o corpo e a fala. A escrita é exterior, mera técnica rude; a fala e o corpo estão co-presentes para si mesmos de maneira diferenciada. Ainda que Butler pretenda destacar o excesso de sentido proporcionado pelo corpo e nunca inteiramente transmitido pela fala, porque irredutível à semiose do discurso; e ainda que ela reconheça o corpo como exterioridade tanto para a fala quanto para a escrita, ela confere ao corpo, na fala, um status diferenciado. O resultado disso é reiterar uma relação privilegiada entre o corpo e a fala. E o problema não é a escrita entendida como ato solipsista e monológico, mas a escrita como prática institucional necessariamente coletiva: decisões de tribunais, aprovação de leis e decretos, preparação de documentos empresariais (atas, balanços contábeis, estatutos) etc.; enfim, todas as organizações da sociedade - organizações não governamentais e partidos políticos, bancos e empresas, hospitais, escolas, universidades, instituições governamentais, parlamentares e judiciais - se estruturam pela escrita e o trabalho por elas realizado é institucionalmente regrado e coletivamente produzido. Inscrições, nesse sentido, são trabalho congelado (Bachur 2017_____ , Schrift und Gesellschaft: Die Kraft der Inskriptionen in der Produktion des Sozialen. Weilerswist: Velbrück Wissenschaft, 2017.).

Retoma-se assim a crítica já endereçada a Butler: como ressignificar uma decisão judicial sem recorrer a alguma forma de linguagem documental? Apesar de Butler apresentar a sugestiva formulação de uma “iterabilidade socialmente sedimentada”, ela não investiga as instâncias sociais e institucionais encarregadas de estabilizar o discurso (e, com isso, bloquear ou viabilizar processos de ressignificação). A não ser que ressignificação seja compreendida como ato de fala em sentido estrito (à la Searle), portanto, como uma operação da consciência, e não da sociedade. Ora, é isso, com efeito, que Butler expressamente apresenta ao exemplificar o que seria a ressignificação:

Eu me lembro de uma vez, andando por uma rua de Berkeley, quando uma criança apareceu numa janela e perguntou ‘Você é lésbica?‘. Simples assim. Eu respondi ‘Sim, eu sou lésbica‘. Eu devolve a injúria em uma versão afirmativa. Foi um momento totalmente impulsivo. Uma interpelação do nada. Na medida em que eu fui capaz, muito rápido, de voltar e dizer ‘Sim, eu sou lésbica‘, o poder de meu inquiridor se perdeu (Butler 2000_____ , “Changing the Subject: Judith Butler’s Politics of Radical Resignification”, in JAC: A Journal of Rhetoric, Culture, and Politics 20, 2000., p. 759/760 - grifos originais, trad. livre).

O exemplo torna muito claro tratar-se de um caso de ato de fala típico da filosofia da linguagem analítica, que reduz o discurso à interação verbal e essa à frase na ordem direta em primeira pessoa no presente do indicativo. No caso, é a intenção do sujeito que opera a reversão linguística designada como ressignificação. Há uma identificação entre logos e phone. Esse ato de fala, contra toda a leitura que Butler faz de Austin e Derrida, é apresentado como se fosse um ato de fala soberano. Como saber se, no exemplo narrado, trata-se efetivamente de ressignificação? Um observador externo descreveria a situação como ressignificação? Com base em quais elementos? Como saber se o garoto do exemplo não voltou a empregar a palavra “lésbica” em sentido pejorativo e discriminatório? Ele compreendeu e se convenceu do elemento discriminador contido no termo “lésbica”? Não poderia ter ocorrido o contrário e o garoto ter ficado ainda mais sexista e ainda mais preconceituoso a partir da resposta de Butler?

Todas essas questões ficam sem resposta à luz da formulação original de Butler para a categoria da ressignificação. Não obstante, do ponto de vista da teorização sociológica, a categoria da ressignificação pode ser empregada de modo muito produtivo para: (i) designar o campo semiótico do discurso como uma arena de conflito em que se disputa não apenas a interpretação do presente e do passado, mas também as possibilidades de sentido abertas para o futuro, pois é a interpretação do passado e do presente que abre ou fecha cursos de ação possíveis no futuro; (ii) designar essa luta como uma prática que, enquanto tal, funde aspectos sociais, políticos, institucionais e discursivos, colaborando assim para a construção de uma teoria material do discurso. Tal como teorizada por Butler, porém, a categoria da ressignificação não aproveita todo esse potencial e fica reduzida a uma operação mental, como se o sujeito pudesse determinar, por sua vontade psicológica íntima, o conteúdo das palavras e seu efeito sobre a sociedade. Isso não ocorre, para o bem e para o mal. A forma pela qual a categoria da ressignificação pode fundamentar uma teoria material do discurso exige que ela seja complementada, de um lado, pela ação política coletiva e, de outro, pela inscrição documental como prática social.

III. O discurso herege: mobilização social com Pierre Bourdieu

Bourdieu, em O que falar quer dizer (Bourdieu, 1982Bourdieu, Pierre, Ce que parler veut dire: l’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982.), critica tanto a linguística estrutural de Saussure quanto a teoria dos atos de fala de Austin. Na leitura de Bourdieu, a teoria da linguagem ignora todo o contexto social e institucional em que os usos linguísticos ocorrem, abstraindo as relações de poder que conformam o habitus linguístico. Recuperando-as, temos uma sociologia da linguagem em que o uso da fala é respaldado por posições de poder e dominação. Os falantes são porta-vozes de suas posições de poder subjacentes.

Sem prejuízo da crítica que Butler faz a Bourdieu, já que a força da linguagem - a ilocução; isto é, o caráter performativo da linguagem conforme o qual um dizer é simultaneamente um fazer - perde sua autonomia para o contexto não-linguístico das relações fáticas de poder, há um mérito em reconhecer que as diversas teorias da linguagem não conseguem apreender a materialidade da produção de sentido. A crítica de Butler a Bourdieu é correta, pois Bourdieu reproduz de fato um mecanicismo social ao derivar toda produção de sentido de posições de poder pré-linguísticas. Mas Bourdieu tem um ponto ao ressaltar que os aspectos extra-linguísticos participam da formação do sentido. A linguagem ordinária, ponto de partida da filosofia da linguagem, nunca funcionou com atos de fala depurados do contexto, como pretende Searle.

Contudo, Bourdieu não é tão determinista quanto pretende Butler. A parte final de O que falar quer dizer é dedicada ao que Bourdieu designa por “discurso herege”: a contestação discursiva de visões de mundo, classificações e distinções de grupo que estruturam o campo político (Bourdieu 1982, ps. 149 e ss.). Isso porque o campo político tem uma dimensão cognitiva anterior - a estruturação de grupos, classes sociais e regras de distinção pressupõe uma leitura do mundo, que tem de ocorrer necessariamente pela estruturação do discurso. Segundo Bourdieu, essa dimensão cognitiva precede a luta política. Sempre há, portanto, em Bourdieu, espaço para a utopia:

A subversão herética explora a possibilidade de mudar o mundo social mudando a representação desse mundo, a qual contribui para sua própria realidade, ou, mais precisamente, opondo uma pré-visão paradoxal, uma utopia, um projeto, um programa, à visão ordinária que apreende o mundo social como mundo natural: enunciado performativo, a pré-visão política é, por si mesma, uma pré-dição que visa a fazer advir aquilo que ela enuncia (Bourdieu 1982Bourdieu, Pierre, Ce que parler veut dire: l’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982., p. 150 - grifos originais).

Nota-se assim que Bourdieu não fecha o discurso sobre si mesmo com base nas posições de poder. Remanesce um componente crítico que pode ser mobilizado para introduzir a contingência que as narrativas hegemônicas pretendem suprimir ao enunciar o mundo social como mundo dado, natural. Esse ponto não é, de maneira alguma, discrepante da forma pela qual Butler apresenta o discurso como arena do conflito. O discurso herege explora a possibilidade de mudar o mundo social mudando a representação semântica desse mundo, opondo-o a utopias e programas ainda não realizados e que contestam a afirmação do mundo tal como ele é. Essa é a dimensão performativa do discurso herético: ele pré-forma o mundo pretendido e, com isso, deslegitima o mundo fático.

É claro que o status quo reage com ortodoxia. É por isso que Bourdieu fala em um trabalho de enunciação (“travail d’énonciation”): a necessidade de que o discurso herético se estruture socialmente como prática voltada a desmistificar o caráter natural, dado, imutável que as narrativas hegemônicas atribuem ao mundo que elas ajudam a criar. Ao fim e ao cabo, tem-se aqui uma releitura discursiva altamente sofisticada da teoria da ideologia - com a vantagem de apresentar os aspectos (improváveis, mas possíveis) pelos quais a ideologia pode ser combatida nos mesmos termos em que ela é produzida.

Por isso, processos discursivos não estão mecanicamente fechados sobre si mesmos, são sempre contingentes. E, para que o discurso herege tenha alguma chance de sucesso, ele depende diretamente de mobilização coletiva:

A luta em que o conhecimento do mundo social está em jogo não teria jamais objeto se cada agente encontrasse em si mesmo o princípio de um conhecimento infalível da verdade de sua condição e de sua posição no espaço social e se esses mesmos agentes não pudessem se reconhecer no discurso e em classificações diferentes (Bourdieu, 1982Bourdieu, Pierre, Ce que parler veut dire: l’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982., p. 156).

Ou seja, a constituição de identidades de grupo - a demarcação de linhas de distinção e, no limite, das classes sociais - é resultado de uma luta discursiva ininterrupta, no contexto da qual nos identificamos, nos reconhecemos e nos alinhamos ou nos opomos aos outros. É por isso que Bourdieu sustenta que aquilo que circula não é a linguagem em abstrato (Bourdieu 1982Bourdieu, Pierre, Ce que parler veut dire: l’économie des échanges linguistiques. Paris: Fayard, 1982., p. 16), mas clusters discursivos estilizados pelos interactantes - coletivamente. A luta pelo discurso, em Bourdieu, nunca se resumiria ao exemplo que Butler oferece para ressignificação, como algo que o falante opera unilateralmente. É, ao contrário, o resultado imprevisível de uma luta. Essa dimensão coletiva da linguagem é incontornável.

Em um de seus livros mais recentes, Butler procura preencher essa lacuna oferecendo uma teoria performativa da assembleia: trata-se de uma aplicação de sua teoria performativa da política aos fenômenos de agremiação política:

agir em concordância pode ser uma forma corporizada de colocar em questão as dimensões incipientes e poderosas das noções reinantes da política. O caráter corpóreo desse questionamento opera ao menos de dois modos: por um lado, contestações são representadas por assembleias, greves, vigílias e ocupações de espaços púbicos; por outro, esses corpos são o objeto de muitas das manifestações que tomam a condição precária como sua condição estimulante. Afinal de contas, existe uma forca indexical do corpo que chega com outros corposo a uma zona visível para a cobertura da mídia: é esse corpo e esses corpos, que exigem emprego, moradia, assistência médica e comida, bem como um sentido de futuro que não seja o futuro das dívidas impagáveis (Butler 2018_____ , Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia, trad. F. S. Miguens. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018., ps. 15/16 - grifos originais).

Com efeito, Butler procura incorporar a dimensão coletiva da política, mencionando inclusive que se trata de dimensão que não pode ser reduzida à fala verbal (Butler 2018, ps. 226/227). Não obstante, ela não retoma, em sua teoria da assembleia, o componente coletivo da luta política na luta discursiva por ressignificação. A teoria da assembleia é esboçada em paralelo à categoria da ressignificação. Butler não conecta os dois componentes de sua teoria política: a luta discursiva por determinações de sentido, de um lado, e movimentos políticos coletivos, por outro. O corpo coletivamente criado na assembleia se apresenta como categoria paralela ao discurso. Em Bourdieu, as posições de poder dos grupos envolvidos no discurso são fundamentais para definir o próprio espectro de possibilidades para o discurso.

A ressignificação, portanto, nunca será efetiva como ato de fala de um sujeito soberano; muito pelo contrário, ela tem de ser pensada, enquanto categoria produtiva para a teoria sociológica, em um quadro conceitual mais amplo que inclua a produção discursiva de distinções, grupos e classes sociais em lutas políticas coletivas. Sem essa perspectiva, a categoria da ressignificação tende a recair no velho ato de fala da filosofia analítica da linguagem, repetindo a identificação metafísica entre logos e phone. Por óbvio: nem todos os movimentos de protesto coletivo configuram lutas por ressignificação, mas toda luta por ressignificação ganha densidade histórica e política se incorporar esse momento coletivo.

Não obstante, o momento coletivo é apenas metade do caminho.

As recentes interpretações da política coletiva praticada nas ruas - sejam os chamados “novos movimentos sociais” dos anos 1980, a esfera pública de Habermas, a multidão de Toni Negri ou as assembleias de Butler - apresentam um traço comum: tais agremiações são cada vez mais fragmentárias e contingentes, alinhavadas de maneira ad hoc em torno de uma determinada pauta. Em síntese, trata-se da ocupação do espaço público e da mídia com os corpos dos manifestantes de forma a conturbar a rotina das instituições jurídicas e políticas e focar a atenção da esfera pública e da mídia de massa na pauta que veiculam. Esse é o repertório do protesto coletivo conduzido conforme o paradigma “Occupy Wall Street”, por assim dizer. O conceito de repertório, nesse sentido bastante específico, foi cunhado por Charles Tilly ao estudar os padrões identificáveis nos protestos coletivos na Inglaterra de meados do século XVIII e princípios do século XIX: “In particular times and places, performances cluster into a limited number of recurrent, well-defined types” (Tilly 2005, p. 60). No período por ele estudado, a ação política coletiva abandona o saque de edifícios e grãos, bem como formas públicas de humilhação e violência, e passa a adotar estratégias apoiadas em “public gatherings” e na subscrição de “petitions”. Atualmente, o protesto político tende a seguir o padrão “Occupy”: corpos físicos se aglomeram no espaço público em defesa de uma determinada pauta, pressionando o sistema político oficial.

Há, contudo, um limite intrínseco a esse repertório político: a grande energia política gerada pelas assembleias via de regra não se permite institucionalizar; ao contrário, ela tende a se dissipar a partir do momento em que o sistema político rejeita ou absorve a pauta veiculada pelo protesto. Tem-se inicialmente um alvoroço, uma multidão em revolta que, com o decurso do tempo, contudo, recai na apatia da rotina10 10 Curiosamente, o melhor diagnóstico dessa dialética entre revolta e resignação ainda parece ser o oferecido por Luhmann - cf. Luhmann 1997 e Luhmann & Hellmann 1996. Os movimentos de junho de 2013 no Brasil em torno do passe livre estudantil e a greve dos caminhoneiros de 2018 ilustram precisamente essa dinâmica: o país para por um momento, obstruído pelo protesto; o sistema político reage inicialmente rejeitando a pauta, mas é forçado a reconhecê-la, em geral concedendo a reivindicação - e a vida retoma então seu curso. . Esse é o limite intrínseco do repertório de protesto construído com recurso exclusivamente à materialidade do corpo: ele não se converte em instituição. E isso por uma razão quase óbvia, mas renitentemente negligenciada pela teoria social - o protesto não se institucionaliza por não incorporar a dimensão documental do discurso.

IV. Móveis imutáveis: as inscrições de Bruno Latour

O recurso a Bourdieu foi importante para mostrar que ressignificação não pode ocorrer conforme a vontade subjetiva de um único indivíduo, mas tem de estar inserida em uma mobilização, em uma ação política coletiva. Se símbolos e significantes não tiverem seu conteúdo transformado para uma determinada coletividade, parece difícil sustentar a ocorrência de um processo social e histórico de ressignificação. A sociedade precisa, em alguma medida, incorporar a mudança semântico-linguística em seus processos de reprodução simbólica, isto é, nas operações de autodescrição que faz de si mesma nas esferas científica, política, jurídica, nos meios de comunicação de massa, nas universidades, nas interações cotidianas das pessoas etc. Isso não elimina o caráter conflituoso da ressignificação. Mas alguma base fática consistente para seu uso precisa estar estabelecida11 11 Pensemos, por exemplo, no escândalo político do primeiro mandato do governo Lula, cujo julgamento ocupou a cúpula do judiciário brasileiro por anos: o conflito semântico se estabeleceu inicialmente entre atores que empregavam o termo “mensalão” e atores que se referiam à “ação penal 470” (veja-se o link: https://direitosp.fgv.br/ap470, consultado em 19/09/2018). Hoje, a sociedade parece ter pacificado um determinado uso semântico para o termo “mensalão”, tendo inclusive derivado outros usos tais como “mensalão mineiro” (por exemplo: https://tudo-sobre.estadao.com.br/mensalao-mineiro, consulta em 19/09/2018) ou “mensalão tucano” (em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mensal%C3%A3o_tucano, consulta em 19/09/2018). Mas o uso da palavra “mensalão” para designar o escândalo de corrupção no primeiro mandato do governo Lula parece ter deixado de ser problematizado. . Agora é importante juntar a segunda materialidade indispensável a uma sociologia da ressignificação, qual seja, a prática documental. Para tanto, recorreremos à teoria das inscrições de Bruno Latour.

Latour (dentre outros, como Michel Callon e John Law) se apresenta como expoente da teoria do ator-rede, iniciativa que ampliou significativamente o horizonte da teoria social advogando uma simetria radical entre a natureza, a sociedade e a técnica (Latour 1991; Latour 2005). Partindo dos chamados Science and Technology Studies, Latour argumenta que distinções simples tais como “sujeito/objeto” ou “natureza/cultura” são inadequadas para compreender a situação em que nos encontramos hoje. Somente quando observarmos humanos e não-humanos de maneira rigorosamente simétrica é que entenderemos o entrelaçamento entre fenômenos, naturais, sociais, discursivos e técnicos, marca distintiva da modernidade - não obstante o discurso oficial do Iluminismo insista em uma retórica de purificação (Latour 1991).

Apoiado na semiótica de Julien Greimas, na etnografia de Harold Garfinkel, na filosofia de Gilles Deleuze e na sociologia de Gabriel Tarde, Latour desenvolveu um sofisticado vocabulário conceitual que tem sido objeto de intenso debate. Não é o caso de apresentar ou problematizar a construção teórica de Latour neste ensaio (para tanto veja-se Bachur 2016Bachur, J. P., “Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour”, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 31, n. 92, 2016, ps. 1-21.); interessa-nos um aspecto específico de sua teoria social: a rica descrição que Latour faz dos processos de inscrição. Partindo de estudos etnográficos (Latour & Woolgar 1979, Latour 2002), Latour observa o papel crucial das inscrições em moldar o mundo em que nos movemos. É por meio delas que a ciência constrói sua verdade, é por meio delas que o direito estabelece responsabilidades, obrigações e culpabilidades em seus vereditos. Essas operações práticas da sociedade só encontram seu objetivo final quando são materializadas documentalmente.

Tal como Butler, Latour contesta aspectos cruciais da teoria dos atos de fala de Austin, oferecendo uma espécie de “teoria material do discurso”, segundo a qual cadeias discursivas são sustentadas por um trabalho coletivo que mantém determinados enunciados (“statements”) circulando como verdadeiros. Não é possível entrar aqui em todos os pormenores da teoria da inscrição de Latour, basta dizer que ela nos permite romper com alguns dos postulados ortodoxos da teoria da linguagem ao apoiar a performatividade da linguagem não na fala, mas nas escrita - mais ainda, na escrita como processo de inscrição coletivo e estabilizado institucionalmente.

Inscrições são “móveis imutáveis”: traduzem em uma superfície bidimensional operações concretas que, nessa tradução, ganham relativa autonomia para serem inseridas em outras operações e em outras inscrições, mantendo, contudo, seu caráter imutável (Latour 1986_____ , “Visualisation and Cognition: Drawing Things Together”, in Knowledge and Society: Studies in the Sociology of Culture Past and Present 6, 1986, S. 1-40.). Uma inscrição se permite definir da seguinte maneira:

Um termo geral que se refere a todos os tipos de transformações pelas quais uma entidade se torna materializada em um signo, um arquivo, um documento, um pedaço de papel, um vestígio [“a trace”]. Usualmente, mas não sempre, inscrições são bidimensionais, combináveis e passíveis de superposição. Elas são sempre móveis, isto é, elas permitem traduções e articulações ao mesmo tempo em que mantêm alguns tipos de relações intactas. Daí serem chamadas também de ‘móveis imutáveis‘ (Latour 1999_____ , Pandora’s Hope: Essays on the Reality of Science Studies. Cambridge & London, Harvard University Press, 1999., ps. 306/307, grifos originais, trad. livre).

Uma inscrição é imutável porque não é possível alterá-la sem corrompê-la, mas é ao mesmo tempo móvel, isto é, combinável com outras inscrições e manuseável praticamente, inclusive incorporando-a em uma nova inscrição. Nesse encadeamento, seu sentido pode se alterar à luz de novas inscrições, mas ela permanece imutável. Isso porque ela é o registro documental - ou uma tradução bidimensional - de práticas sociais. Latour, como Butler, identifica o universo discursivo como uma “situação agonística”: versões de um evento “lutarão” entre si pelo estabelecimento “da verdade”. Um tema qualquer que esteja em disputa cinde o universo discursivo e permite que se formem coalizões argumentativas cujo resultado é o estabelecimento de uma versão que será tomada daí em diante como “verdade”, i.e., como ponto de partida para novas argumentações:

Quem irá vencer no encontro agonístico entre dois autores, e entre eles e todos os outros necessários para construir um enunciado? Resposta: aquele capaz de gerenciar o maior número de aliados fiéis e alinhados. [...] Meu ponto é que escrever e construir imagens não podem por si mesmas explicar as mudanças em nossas sociedades científicas, a não ser na medida em que ajudem a tornar essa situação agonística mais favorável. [...] Nós precisamos, em outras palavras, olhar as formas pelas quais alguém convence alguém a aceitar um enunciado e passá-lo adiante, tornando-o mais próximo de um fato, e reconhecer a propriedade e originalidade primária do autor (Latour 1986_____ , “Visualisation and Cognition: Drawing Things Together”, in Knowledge and Society: Studies in the Sociology of Culture Past and Present 6, 1986, S. 1-40., p. 5, trad. livre).

Portanto, contrariando o cânone da teoria da linguagem, é o trabalho coletivo exigido para produzir inscrições que sustentam uma determinada afirmação, que asseguram assim sua “felicidade” ou “infelicidade”, para usarmos os termos de John L. Austin. A teoria do discurso de Latour é, por isso, material: o discurso não flutua acima das práticas sociais, mas é mantido por elas (Bachur 2016Bachur, J. P., “Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour”, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 31, n. 92, 2016, ps. 1-21. e 2017). Nota-se uma convergência não confessada com Derrida e Foucault, pois as relações entre linguagem, poder e instituições são constitutivas da teoria das inscrições de Latour. É o texto escrito que materializa determinadas operações da sociedade e é o trabalho coletivo de produção e interpretação desses textos (desenvolvido institucionalmente) que sustenta o próprio conteúdo semântico ali materializado. Esse aporte é fundamental para uma teoria sociológica da ressignificação.

Com efeito, densificada pela mobilização coletiva e pela necessidade de transcorrer nos trilhos da linguagem documental, a categoria da ressignificação passa a designar processos sociais por meio dos quais semânticas sociais - rubricas que a sociedade usa para sua autodescrição - são alteradas documentalmente no contexto de ações políticas coletivas. Essa releitura faz com que ressignificação deixe de abranger exclusivamente processos identitários, permitindo que ela ganhe em alcance sociológico ao mostrar que a narrativa do tempo histórico está não apenas permanentemente em aberto, está também sempre em disputa. E, mais ainda: que essa disputa se processa pelas balizas institucionais da sociedade.

Luhmann e Koselleck, por exemplo, definem alterações na semântica social como processos mais ou menos congruentes com as alterações estruturais da sociedade. Haveria, nessas versões, uma convergência básica entre a estrutura social e sua semântica (apesar dessa convergência não configurar um bloco monolítico perfeito e, ao contrário, estar suscetível a descompassos e contradições). Mas, para eles, tais fórmulas semânticas não são objeto de disputa. Elas antecipam ou retardam alterações estruturais, mas não são vistas como um campo de batalha em que o sentido dos processos históricos está inserido concretamente, em uma disputa por definição. Compreendida como prática documental coletiva, a ressignificação ganha potencial crítico para descrever formas de contestação e resistência, mas também de defesa e afirmação da sociedade vigente.

Por um lado, abandonamos definitivamente a visão excessivamente subjetivista de Butler. Afinal, não é possível estabilizar socialmente um processo de ressignificação sem respaldo na mobilização coletiva e na documentação. Documentação designa aqui não apenas a produção de textos oficiais (leis, decisões judiciais, decretos etc.), mas também a produção de textos jornalísticos, científicos, políticos e de outra ordem, que documentam alguma operação de autodescrição da sociedade. Reitere-se: é claro que ressignificação não implica consenso, nos termos de Habermas. Mas é preciso que uma determinada formulação semântica (“socialismo”, “liberalismo”, “democracia”, “ditadura”, “petismo”, “anti-petismo”, “revolução de 64”, “golpe de 64” etc.) seja empregada pela sociedade - em sentido positivo ou negativo - para descrever um determinado evento histórico concreto.

A perspectiva construída neste ensaio, e que não equivale às visões de Butler, Bourdieu ou Latour isoladamente consideradas, vê, nas narrativas cristalizadas historicamente, um campo de disputa marcado por relações de poder e hegemonia. Relações de dominação não podem abrir mão dessa dimensão simbólica - pois, como visto, ela é também material: ancorada documentalmente nas instituições da sociedade. Com uma sociologia da ressignificação, abandonamos a visão mecanicista de um “aparato ideológico” inerte, instrumentalizável por uma classe dominante e tornamos também essa esfera palco de luta. Com efeito, estratégias para quebrar narrativas hegemônicas têm de se valer dos canais formais e informais de comunicação, combinando mobilização coletiva e documentação. Essas duas formas de atuação, isoladamente, não são suficientes para alterar a forma de reprodução da sociedade. Mobilização, sozinha, causa tumulto, mas não provoca transformações fundamentais na estrutura social. A documentação, por sua vez, não pode ser conduzida como se fosse um ato de fala.

Mas mobilização somada a estratégias de documentação - decisões judiciais, leis, textos científicos e jornalísticos, enfim, toda a cadeia de textos que sedimentam uma determinada narrativa e uma determinada interpretação do passado e do presente - podem ser capazes de alterar o rumo dos acontecimentos. Em nossa releitura, ressignificação ocorre tanto em sentido crítico quanto em sentido conservador, i.e., ela pode ser uma estratégia para criticar as estruturas sociais vigentes, mas também uma forma de reação dessas estruturas, como forma de sobrevivência e invalidação da crítica.

Por outro lado, embora abandonemos o subjetivismo da visão de Butler, não deixamos os processos semânticos imunes à ação (agency): a constelação de fatores que permite que autodescrições da sociedade sejam criticadas e eventualmente substituídas é complexa, mas permeável à vontade política coletiva. O sucesso dependerá, sempre, da capacidade de mobilização coletiva das forças progressistas e de sua capacidade de se apoderar dos canais institucionais de (re)produção documental da sociedade.

Esse aporte permitiria o desenvolvimento de diversas pesquisas empíricas acerca da estabilização de narrativas hegemônicas e contra-hegemônicas. Um último exemplo nos permite concretizar a leitura sociológica que se pretende da categoria da ressignificação. Recentemente, a justiça brasileira alterou a certidão de óbito de Vladimir Herzog, morto em 1975 durante seções de tortura conduzidas pela ditadura militar. A decisão foi um dos primeiros documentos em que se reconheceu oficialmente a existência de tortura pelo Estado, sempre negada pelo regime militar. É claro que essa decisão, sozinha, não é capaz de alterar totalmente a semântica utilizada para a descrição do regime militar. Mas é um marco importante. E, por óbvio, temos de mencionar o processo atualmente em curso de ressignificação do regime militar conduzido por movimentos de extrema direita no Brasil. Questiona-se desde a existência de práticas de tortura ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, afirma-se a legitimidade de tortura praticada contra militantes de extrema esquerda. Está em curso no Brasil um claro processo de reinterpretação do regime militar. E a categoria da ressignificação enriquecida pelos aportes sociológicos da mobilização coletiva e da linguagem documental nos ajuda a obter uma descrição sociológica acurada da dinâmica social e histórica que transcorre diante dos olhos enquanto observamos, atônitos, à marcha aparentemente inevitável do retrocesso.

V. Conclusões

Ao longo deste trabalho, buscamos desenvolver, ainda que de forma ensaística e preliminar, uma compreensão do discurso como prática material: isto é, não como mera fala que paira sobre a sociedade concreta, mas como rotina que estrutura comportamentos, expectativas e instituições, atribuindo assim sentido ao mundo. Como prática material, o discurso supera a distinção canônica entre palavras e coisas e vincula a produção de sentido a práticas institucionais (jurídicas, políticas, econômicas, científicas etc.). Esse mote tem guiado nossos últimos esforços (Bachur 2016Bachur, J. P., “Assimetrias da antropologia simétrica de Bruno Latour”, in Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 31, n. 92, 2016, ps. 1-21. e 2017). Se a atribuição de sentido ao mundo, isto é, a construção articulada de uma narrativa sobre o passado, o presente e o horizonte de possibilidades aberto para o futuro, narrativa esta ancorada nas instituições e na reprodução de expectativas e padrões comportamentais que orientam nossa existência no mundo; enfim, se tais processos semióticos têm uma dimensão material que os enraíza na própria reprodução da sociedade, eles permitem compreender o discurso como prática material.

Essa noção ainda está apenas inicialmente trabalhada neste artigo e deverá ser objeto de investigações posteriores mais robustas. Não obstante, ela já nos permite dialogar, de forma crítica, com a categoria da ressignificação de Butler. Trata-se, como se viu, de um poderoso insight para a teoria sociológica: identificar como, quando e por quais processos uma palavra, uma sentença, um enunciado ou uma narrativa dominante pode vir a ser contraditado e revertido de forma a abrir respiros para discursos subalternos. As perspectivas abertas a partir daí para uma análise empírica do discurso são vastíssimas.

Antes, porém, é preciso refinar o conceito de ressignificação. Pudemos destacar seis pontos críticos: (i) não há nada que, de saída, imponha à ressignificação um sentido necessariamente progressista, pois o discurso conservador recorre historicamente à ressignificação do passado para se legitimar; (ii) se o discurso é material, é preciso considerar que a força poderá ser mobilizada contra estratégias progressistas de ressignificação; (iii) Butler assume uma postura radicalmente anti-institucional, obliterando o papel importante que as instituições podem eventualmente desempenhar na afirmação de direitos; (iv) a perspectiva anti-institucional, que aposta nos movimentos espontâneos da sociedade civil, pode soar conservadora; (v) Butler não indica uma única instância de estabilização social da ressignificação e, por fim (vi) Butler reedita o privilégio dado à fala em detrimento da escrita, quando a ressignificação parece ser uma categoria essencialmente documental. Ao fim e ao cabo, portanto, a ressignificação de Butler parece ser justamente um ato de fala soberano, restrito ao subjetivismo da consciência individual.

Para contornar esses problemas, sugerimos dois aportes de materialidade: uma materialidade do corpo, extraída de Bourdieu, e uma materialidade documental, retirada de Latour.

Bourdieu abre sua teoria do discurso para uma dimensão não mecanicista ao teorizar, com o que ele chama de “discurso herege”, a mobilização coletiva para o trabalho de enunciação que denuncia classificações e hierarquias sociais como dadas, naturais. Há, como se vê, grande afinidade entre essa perspectiva e a própria teoria de gênero de Butler. Latour, a seu turno, é um dos poucos teóricos recentes a incorporar as inscrições no cerne de sua leitura sociológica. O registro documental do passado e do presente são indispensáveis para orientar o comportamento humano. Grande parte das práticas sociais desenvolvidas no direito, na economia, na política, na educação, na ciência, na arte etc., estão apoiadas no registro documental. Assim também a ressignificação: para reverter, socialmente, o que a sociedade entende por um determinado termo, é preciso mudar a forma pela qual esse determinado termo é registrado. Sem essas duas dimensões, a categoria da ressignificação perde seu potencial sociológico.

É claro que essas indicações críticas não permitem, ainda, a formulação positiva de uma teoria sociológica da ressignificação. Para tanto, talvez seja preciso recorrer a alguma forma de análise empírica do discurso. Não obstante, a indicação desses dois aportes de materialidade - ação política coletiva e produção de inscrições - são fundamentais para tornar a categoria da ressignificação produtiva em termos sociológicos, contribuindo assim para o desenvolvimento de uma teoria do discurso como prática material.

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  • 1
    Em recente passagem pelo Brasil, Butler foi alvo de protestos (veja-se a matéria da Folha de S. Paulo de 7.11.2017: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/11/1933437-manifestantes-pro-e-contra-judith-butler-protestam-no-sesc-pompeia.shtml).
  • 2
    Em Derrida, originalmente, a iterabilidade se enraíza na indecidibilidade entre o empírico e o transcendental: Derrida principia pelas características empíricas da escrita mas constrói um conceito de iterabilidade que se torna condição não apenas da escrita, mas do sentido em geral, e, no limite, de toda experiência, cognição ou ação. Essa “condição de possibilidade” sem recurso a uma origem última e absoluta evita que a iterabilidade recaia em uma espécie de a priori formal categórico. Por isso ela é “quasi-transcendental” (Gasché, 1986, p. 274). Não temos como aprofundar esse ponto neste artigo. Cf. Gasché 1986 e Bachur 2017, ps. 69 e ss.
  • 3
    Afastando-se assim de uma leitura inicial meramente retórica de Austin - Butler, 1993, p. 224: “A centralidade da cerimônia de casamento nos exemplos de J. L. Austin para atos performativos sugere que a heterossexualização do vínculo social é a forma paradigmática pela qual os atos de fala executam aquilo que enunciam”. Como se vê, trata-se de apreensão muito pouco técnica da teoria dos atos de fala de Austin.
  • 4
    Butler tem um ponto: Bourdieu se aproxima excessivamente da concepção do ato de fala como “acte d’institution” de Benveniste e, com isso, neutraliza o elemento mais interessante da teoria da performatividade de Austin - mas há um aspecto crítico na teoria do discurso de Bourdieu que abordaremos na seção III.
  • 5
    Ao que seria possível redarguir que Derrida não desenvolveu, ele mesmo, uma filosofia acadêmica estrita.
  • 6
    Todos esses fatos são hoje amplamente conhecidos. Vejam-se os respectivos links com notícias extraídas de jornais de circulação nacional: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/30/politica/1527703161_738090.html; https://g1.globo.com/politica/blog/cristiana-lobo/post/general-vilas-boas-militares-precisam-ter-garantia-para-agir-sem-o-risco-de-surgir-uma-nova-comissao-da-verdade.ghtml; https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ opiniao/fz1702200901.htm; https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/nomeacao-de-general-por-toffoli-e-alvo-de-questionamentos.shtml e https://www.jota.info/stf/do-supremo/toffoli-golpe-64-movimento-01102018?utm_source=JOTA+Full+List&utm_campaign=5afbf6893a-EMAIL_CAMPAIGN_2018_10_02_09_41 &utm_medium=email&utm_term=0_5e71fd639b-5afbf6893a-380467909, respectivamente (consultados em 10 de outubro de 2018).
  • 7
    Este artigo foi concluído entre o primeiro e o segundo turnos da eleição presidencial de 2018.
  • 8
    Especialmente nos trópicos - nossa crise institucional é tão grave que é possível identificar inúmeros exemplos de ressignificação reacionária: professores são hostilizados em seminários acadêmicos sobre o centenário da Revolução Russa (veja-se: https://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/professora-da-uerj-hostilizada-em-evento-sobre-revolucao-russa-22003757), enquanto o ministro da educação de Temer manifesta a intenção de impedir uma disciplina acadêmica a ser oferecida na Universidade de Brasília com o título “golpe de 2016” (veja-se: https://oglobo.globo.com/brasil/mec-vai-acionar-mpf-contra-disciplina-da-unb-sobre-golpe-de-2016-22420187). Seria possível recuperar ainda um longo inventário de atos de violência física cometidos contra gay, negros, mulheres e jornalistas entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais de 2018 - mas isso tornaria impossível concluir este artigo.
  • 9
    A frase é truncada mesmo no original: “It makes sense to remember that the ‘force’ of the speech act [...] has everything to do with the status of speech as a bodily act. That speech is not the same as writing seems clear, not because the body is present in speech in a way that it is not in writing, but because the oblique relation of the body to speech is itself performed by the utterance, deflected and carried by the performance itself. To argue that the body is equally absent in speech and writing is true only to the extent that neither speech nor writing makes the body immediately present. But the way in which the body obliquely appears in speech is, of necessity, different from the way it appears in writing”.
  • 10
    Curiosamente, o melhor diagnóstico dessa dialética entre revolta e resignação ainda parece ser o oferecido por Luhmann - cf. Luhmann 1997 e Luhmann & Hellmann 1996. Os movimentos de junho de 2013 no Brasil em torno do passe livre estudantil e a greve dos caminhoneiros de 2018 ilustram precisamente essa dinâmica: o país para por um momento, obstruído pelo protesto; o sistema político reage inicialmente rejeitando a pauta, mas é forçado a reconhecê-la, em geral concedendo a reivindicação - e a vida retoma então seu curso.
  • 11
    Pensemos, por exemplo, no escândalo político do primeiro mandato do governo Lula, cujo julgamento ocupou a cúpula do judiciário brasileiro por anos: o conflito semântico se estabeleceu inicialmente entre atores que empregavam o termo “mensalão” e atores que se referiam à “ação penal 470” (veja-se o link: https://direitosp.fgv.br/ap470, consultado em 19/09/2018). Hoje, a sociedade parece ter pacificado um determinado uso semântico para o termo “mensalão”, tendo inclusive derivado outros usos tais como “mensalão mineiro” (por exemplo: https://tudo-sobre.estadao.com.br/mensalao-mineiro, consulta em 19/09/2018) ou “mensalão tucano” (em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mensal%C3%A3o_tucano, consulta em 19/09/2018). Mas o uso da palavra “mensalão” para designar o escândalo de corrupção no primeiro mandato do governo Lula parece ter deixado de ser problematizado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    10 Out 2018
  • Aceito
    12 Jun 2019
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