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A necessária crítica para o método científico em Direito

CUNHA, José Ricardo. Epistemologias Críticas do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2016

Construída por diversos autores, Epistemologias Críticas do Direito tem como organizador José Ricardo CunhaCUNHA, José Ricardo (org.). Epistemologias Críticas do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2016., que é Professor Associado da Faculdade de Direito da UERJ, docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da referida Universidade e desenvolve investigação na linha de pesquisa Teoria e Filosofia do Direito.

O livro em questão foi escrito por ele e por outros professores, doutores e/ou doutorandos de diversas universidades do país, todos compartilhando de uma ideia de repensar o papel do Direito frente aos conflitos sociais, dando ênfase na interação dele com violências, assimetrias e desigualdades, no exame de suas conexões com lutas populares e movimentos sociais, na investigação de um eventual e incerto potencial emancipatório do Direito assim como na avaliação dos limites e possibilidades da relação entre direito e justiça. Mas, mais do que isso, merece destaque a busca por um marco epistemológico que não aprisione a ciência jurídica a tão somente conhecer e descrever um núcleo hermético de normas jurídicas seguindo um ideal de uma pureza metodológica (KELSEN, 1998). Daí a necessária crítica para o método científico em Direito. Cumpre explicitar ainda o desafio em adensar a discussão sobre a crítica no ensino de Direito, que contempla a dimensão epistemológica, ou mesmo de compreender de que crítica reivindica o Direito (MENDONÇA; ADAID, 2018MENDONCA, Samuel; ADAID, Felipe Alves Pereira. Tendências teóricas sobre o Ensino Jurídico entre 2004 e 2014: busca pela formação crítica. Rev. direito GV, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 818-846, set. 2018. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322018000300818&lng=pt&nrm=iso>, acessos em 21 fev. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201831.
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).

Apresentando-se a partir de seus 22 artigos e 411 páginas, o livro é um convite a problematizar o saber jurídico contemporâneo. O organizador argumenta que o mais alto grau de conhecimento passou a ser, a partir da modernidade, unicamente o saber científico, ainda que confundido com o dogmático. Neste cenário, a ciência jurídica se tornou cada vez mais descritiva e menos crítico-reflexiva, tanto mais considerando o positivismo e a sagração jurídica do espírito da Modernidade (BITTAR, 2014BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O Direito na Pós-Modernidade. São Paulo: Atlas, 2014.). Em artigos de diversos autores, Epistemologias Críticas do Direito busca a problematização e a superação desse paradigma positivista. Agora, observando-se os limites de uma resenha, algumas das temáticas desenvolvidas no livro.

Uma primeira reflexão é trazida pelo próprio organizador ao analisar a Complexidade do Paradigma Epistemológico. Valendo-se do pensamento de Edgar Morin, o autor demonstra que mais do que entendimento técnico, é necessária uma compreensão do objeto e das suas relações com o contexto em que se situa, a partir das noções de causabilidade complexa, intengibilidade e transinterdisciplinaridade. Tudo isso contrasta com o positivismo e seus paradigmas de ordem, separabilidade, especialização abstrata e de um racionalismo absoluto em busca da verdade. Ele adverte que, e já superando o paradigma kelseniano, a complexidade do paradigma epistemológico mostra que não basta a produção formal da norma jurídica, pois ela, por si só, não remete à compreensão de uma intenção ética que forneça os sentidos e fundamentos da decisão, ao contrário do que propõe, por exemplo, o princípio alexyano da proporcionalidade.

Aqui, portanto, a emergência de uma consciência ética no Direito, tão necessária se vista aos olhos da complexidade do paradigma epistemológico de Morin. Este autor tem sido utilizado com base em diferentes campos do conhecimento e, por certo, sua episteme que coloca em relevo a compreensão como elemento mais abrangente que o entendimento, no sentido kantiano do termo (KANT, 1956KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft 1. Frankfurt: Suhrkamp, 1956.), abre o campo científico para a fenomenologia. Assim, o livro poderia dispor de mais conteúdos de Morin, sobretudo aqueles que guardam pertinência com a dimensão antropológica, na argumentação de que não há separação fundamental entre o homem e a natureza (MORIN, 1975MORIN, Edgar. O Enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.).

Dar ao Direito um Amanhã: Cinco Elementos a Uma Epistemologia da Injustiça é outra reflexão tão cara à ciência jurídica contemporânea. Também superando a ideia de uma pureza metodológica da ciência do Direito, o texto de Bethania Assy está em busca de um conhecimento alçado ao grau de cientificidade jurídica, mas, que valorize a experiência concreta da injustiça e que não se prenda apenas a ditames de normas abstratas. Para isso, na argumentação da autora, se fazem imperativas, dentro da análise científica do Direito, mais do que teorias abstratas sobre justiça, um conhecimento engajado que considere as dimensões de (i) temporalidade, (ii) espacialidade, (iii) de narrativa do sujeito da injustiça, (iv) afeição e amor, e (v) o outro e a responsabilidade.

Pequeno Ensaio sobre como o Direito Ensina Errado a História ou Algumas Dicas para Quem Faz um Trabalho Acadêmico mostra o problema metodológico dos cientistas do Direito quando buscam uma contextualização histórica. Neste sentido, Gustavo S. Siqueira argumenta que um trabalho acadêmico não é feito com a descrição de leis escritas ao longo da História, pois o Direito é muito mais do que isso. Ao final, o autor ressalta a importância de um trabalho acadêmico rigoroso e distinto de uma petição judicial, dado que ele não é feito em prol de uma posição que já se defendia, citando artigos de leis, e sim pelo olhar para o desconhecido, para a dúvida e para o questionamento da realidade histórica. Embora essa dimensão filosófica tenha valor, o autor não enfrentou, no texto, o problema central da pesquisa jurídica que diz respeito não à metodologia, mas, justamente, à dimensão que remete à antropologia, afinal, o que é o homem disposto a pesquisar em Direito?

A Univocidade na Pluralidade: Confluências Epistemológicas e Limites do Conhecimento. Um Estudo a Partir dos Programas de Pós-Graduação em Teoria e Filosofia do Direito no Brasil é um trabalho feito por Cecilia Caballero Lois e tem por objetivo mapear e analisar as pesquisas dos 64 Programas de Pós-Graduação em Filosofia e Teoria Geral do Direito, descortinando a pluralidade do pensamento jurídico contemporâneo, verificando até mesmo a existência de algumas escolas jusfilosóficas no Brasil. Importante frisar que esse método, de mapeamento de pesquisa, é pouco usual no campo jurídico, da mesma forma que o uso de instrumentos como entrevista, questionário ou grupo focal no que diz respeito à pesquisa empírica. Com efeito, a autora alude à uma agonizante caminhada pela superação do paradigma positivista, muito embora a pesquisa no país ainda cambaleie por reflexões desse naipe. Mais uma vez, a crítica é metodológica e, portanto, deixa passar o aspecto de fundo, aquele segundo o qual remete à dimensão das condições do sujeito de pesquisa do campo jurídico.

Em Considerações Propedêuticas para uma Epistemologia do Direito em Bases Discursivas, os autores Antón Lois Fernandez Álvarez e Gilvan Luiz Hansen se propõem a uma análise do Direito e de seu papel na Modernidade. Firmando o triunfo da razão, de acordo com os autores, a Modernidade foi responsável pelo advento do que hoje entendemos por ciência, traçando parâmetros epistemológicos e metodológicos para a construção de um conhecimento verdadeiro, o que não deixou de lado o Direito. Daí que se ergueu, na argumentação dos autores, a escola do pensamento denominada positivismo jurídico. Contudo, a preocupação deles é a de trazer indicativos para uma epistemologia jurídica em bases discursivas, valendo-se do pensamento de Jürgen Habermas e consignando a legitimidade do Direito a partir das suas conexões com a Democracia e com a Justiça. O texto carece de ampla revisão de literatura que poderia ter sido feita nas bases Scopus e Scielo e que, portanto, demonstraria os avanços de pesquisas outras que assumem tanto a perspectiva de autores da conhecida escola crítica, como, principalmente, investigações em torno de perspectiva pós-estruturalista (MACHADO, 2013MACHADO, Igor Suzano. Jurisdição, hegemonia e integridade: uma Visão pós-estruturalista sobre o direito e sua relação com a sociedade e a política no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 943-974, dez 2013.; MOLLER, 2015MOLLER, Kolja. Crítica do direito e teoria dos sistemas. Tempo soc., São Paulo, v. 27, n. 2, p. 129-152, dec. 2015.).

José Renato Gaziero Cella, em Kelsen Contra Kelsen: a Desnecessária Postulação da Norma Fundamental, expõe o debate entre Bulygin e Kelsen para o refinamento e para a reconstrução de uma reflexão acerca da Teoria Pura do Direito. Para tal, são consideradas algumas premissas do debate, tais quais o positivismo jurídico, o ceticismo ético, a separabilidade entre ser e dever ser e a neutralidade científica. A partir disso, é dado destaque ao problema da validade, termo ambíguo em Kelsen que pode significar tanto pertinência (conceito descritivo) quanto obrigatoriedade (conceito normativo). Por essa razão, e demonstrando a ausência da necessidade da Norma Fundamental, o autor afirma que Bulygin propõe o termo aplicabilidade, o qual dá margem à verificação de relações lógicas dos sistemas jurídicos que não da matriz clássica, como o exemplo das lógicas paraconsistentes. Neste sentido, o artigo é rigorosamente colorido por esquemas e representações lógicas.

Outra reflexão é apresentada por Mário Cesar Andrade e Margarida Maria Lacombe Camargo em Análise Crítica de Argumentos no Direito: Contribuição da Análise de Conteúdo para o Exame Crítico das Audiências Públicas. Com a distinção entre as epistemologias críticas e as tradicionais, os autores colocam a questão da neutralidade e da imparcialidade do conhecimento em torno da temática das audiências públicas. Assim, buscam verificar se os Ministros das altas cortes brasileiras consideram nas suas decisões o conteúdo exposto nessas audiências, o que poderia significar uma maior legitimidade e democratização da própria decisão judicial. Concluem que, quando muito, os Ministros se valem de pareceres técnicos de cientistas, como se eles ainda carregassem a tese de um conhecimento verdadeiro, purificado, neutro e imparcial. O texto carece de discussão ampla em torno da questão da dogmática jurídica, notadamente no que diz respeito à exigência de resposta aos problemas levantados, o que, de certo modo, possibilita a compreensão de tomada de decisões de magistrados e sua meta no distanciamento dos fenômenos. (FERRAZ JR., 2015FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Atlas, 2015.). É paradoxal e urgente que se possa assumir, no âmbito de decisões jurídicas, o aspecto subjetivo, assim, caberia ainda incluir reflexões em torno da impossibilidade de ser neutro nesse campo, da mesma forma que no ambiente de pesquisa (SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. 7.ed. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003.).

Por sua vez, Leonardo Figueiredo Barbosa sublinha o debate em busca de uma superação do paradigma positivista com seu artigo intitulado Pressupostos Teóricos e Questões Metodológicas Relevantes no Debate Hart-Dworkin. Nele, o autor explora os principais pontos da teoria de Hart, tais como o Direito enquanto combinação de regras primárias e secundárias, a tese das fontes sociais, que diz respeito à regra de reconhecimento como fundamento último de validade, a tese da discricionariedade jurídica e a tese da separação entre Direito e Moral, além de frisar a metodologia meramente descritiva empregada por ele. De outra banda, o autor expõe a teoria de Dworkin, e seus principais pontos, como as divergências teóricas e empíricas entre os juristas, o Direito enquanto prática argumentativa e enquanto conceito interpretativo (metodologia interpretativa, então, e não mais meramente descritiva) e a finalidade do Direito. Ademais, Antonio Augusto Madureira de Pinho também destaca a importância de Dworkin para o pensamento jurídico contemporâneo em seu trabalho A Filosofia do Porco-Espinho e a Crítica ao Direito, tratando também da interpretação, do modo correto de decidir, da reaproximação entre Direito e Moral assim como do Juiz-Hércules.

Portanto, trata-se de livro fundamental posto que assume o lugar de fundo da compreensão do Direito, isto é, sua dimensão epistemológica, ainda que careça de adensamento quanto à dimensão antropológica e também ontológica. É recomendado para estudantes de pós-graduação em Direito, de forma precisa, mas, também de graduação e outros profissionais de áreas conexas com o Direito, desde que preocupados com aspectos da pesquisa com ênfase na dimensão da necessária crítica para o método científico em Direito. Os limites apontados na resenha significam apenas e tão somente caminhos outros que poderiam ter sido assumidos, de forma crítica e propositiva. No geral, os textos apresentam linguagem clara e didática, de modo a possibilitar ao leitor ferramentais a serem empregados na problematização do estatuto da ciência jurídica contemporânea sem, no entanto, limitar a compreensão do mundo do Direito e sem reprimir a pergunta pelo valor humano do afã científico (SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. 7.ed. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez, 2003.).

Referências bibliográficas

  • BITTAR, Eduardo Carlos Bianca. O Direito na Pós-Modernidade. São Paulo: Atlas, 2014.
  • CUNHA, José Ricardo (org.). Epistemologias Críticas do Direito Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2016.
  • FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Função social da dogmática jurídica São Paulo: Atlas, 2015.
  • KANT, Immanuel. Kritik der reinen Vernunft 1 Frankfurt: Suhrkamp, 1956.
  • KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito São Paulo: Martins Fontes, 2018.
  • MENDONCA, Samuel; ADAID, Felipe Alves Pereira. Tendências teóricas sobre o Ensino Jurídico entre 2004 e 2014: busca pela formação crítica. Rev. direito GV, São Paulo, v. 14, n. 3, p. 818-846, set. 2018. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322018000300818&lng=pt&nrm=iso>, acessos em 21 fev. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201831
    » http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-24322018000300818&lng=pt&nrm=iso» http://dx.doi.org/10.1590/2317-6172201831
  • MACHADO, Igor Suzano. Jurisdição, hegemonia e integridade: uma Visão pós-estruturalista sobre o direito e sua relação com a sociedade e a política no Brasil. Dados, Rio de Janeiro, v. 56, n. 4, p. 943-974, dez 2013.
  • MOLLER, Kolja. Crítica do direito e teoria dos sistemas. Tempo soc., São Paulo, v. 27, n. 2, p. 129-152, dec. 2015.
  • MORIN, Edgar. O Enigma do homem: para uma nova antropologia. Rio de Janeiro, Zahar, 1975.
  • SANTOS, Boaventura de Sousa. 7.ed. Um discurso sobre as ciências São Paulo: Cortez, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2018
  • Aceito
    20 Fev 2019
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