Acessibilidade / Reportar erro

Corte portuguesa e monarquia no Brasil. Obstáculos da centralização do estado e estratégias da advocacia provisionada

Portuguese court and monarchy in Brazil. Obstacles from the centralization of the state and strategies by non-graduate lawyers

Resumo

O principal objetivo deste trabalho consiste na investigação do significado da advocacia provisionada no Brasil durante o primeiro quartel do século XIX. Esta investigação levará em conta os modos e mecanismos pelos quais os advogados provisionados se relacionavam entre si, se situavam nas relações ora com Estado ora com a sociedade e se colocavam na mediação entre um e outro. Procurando identificar obstáculos e estratégias no exercício da advocacia, o conjunto destas relações será pesquisado com base na fonte documental denominada “Pedidos de Licença Para Advogar”. Esta fonte documental ajudará também a descrever o modo como os advogados provisionados se viam, eram vistos e se constituíam como agentes da burocracia estatal.

Palavras-chave:
Monarquia brasileira; Centralização político-administrativa; Advogados provisionados

Abstract

The main objective of this work is to investigate the meaning of the practice of non-graduate lawyers in Brazil during the first quarter of the 19th century. This investigation will take into account the ways and mechanisms by which non-graduate lawyers related to each other, were situated in relations with the State or with the Society and put themselves in mediation between one and the other. Seeking to identify obstacles and strategies in the work of non-graduate lawyers, the set of these relationships will be researched based on the documentary source called “Applications for permission to be a lawyer”. This documentary source will also help describe how non-graduate lawyers viewed themselves, were seen and constituted themselves as agents of the state bureaucracy.

Keywords:
Brazilian monarchy; Political-administrative centralization; Non-graduate lawyers

1- Introdução

O principal objetivo deste trabalho consiste na investigação do significado da advocacia provisionada no Brasil durante o primeiro quartel do século XIX através dos modos e mecanismos pelos quais os advogados provisionados se relacionavam entre si, se situavam nas relações ora com Estado ora com a sociedade e se colocavam na mediação entre um e outro.

O conjunto destas relações será pesquisado com base na fonte documental denominada “Pedidos de Licença Para Advogar”. Localizados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, estes pedidos constituem série documental oriunda do centro político-administrativo do País e reúnem vasto conjunto de documentos (pedidos e provisões, pareceres e informações, testemunhos e atestados) que, em princípio, serviriam basicamente para caracterizar o funcionamento das instituições de governo e da administração em geral. No entanto, eles revelam dimensões das experiências e trajetórias dos advogados provisionados que ajudam a caracterizar momentos e aspectos da história desse tipo particular de advocacia, bem como a descrever o modo como os advogados provisionados se viam, eram vistos e se constituíam como agentes da burocracia estatal.

Provenientes das diversas capitanias e províncias do Brasil, os Pedidos de Licença para Advogar eram a expressão de súplicas de provisão que os interessados em advogar faziam ao monarca, pessoalmente ou por procuração, através do Tribunal do Desembargo do Paço, em uma época em que os cursos jurídicos não haviam sido ainda criados e que o número de bacharéis em direito diplomados por Coimbra era insuficiente para atender a demandas tanto da sociedade quanto da burocracia do governo. Apresentados àquele tribunal da Corte do Rio de Janeiro, os requerimentos para advogar eram principalmente pedidos de prorrogação de prazo e/ou de extensão de jurisdição para os advogados continuarem no exercício de seu ofício. Com fundamento em argumentos de natureza política, econômica e social, e formulados no contexto dos movimentos liberais que conduziram o País à independência em relação a Portugal, os Pedidos investigados neste trabalho cobrem um período que vai um pouco antes da chegada de D. João VI (1808) ao Brasil até a alguns anos depois da outorga da Constituição do Império (1824). Neste trabalho, o Estado é definido segundo sua localização político-administrativa, seus agentes públicos, suas regras e determinações e seus processos de concessão de autorização para o exercício da advocacia provisionada.

No período em questão, o Brasil viveu transformações que resultaram do encontro de duas sociedades distintas: “a sociedade de corte portuguesa migrada com a família real e a sociedade fluminense que a recebeu, que tinha no ápice de sua hierarquia social os comerciantes de ‘grosso trato’, envolvidos no comércio intercontinental de gêneros tropicais e no tráfico negreiro” (MALERBA, 2000MALERBA, Jurandir. A Corte no Exílio; civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.: 21). Se, do ponto de vista político-jurídico, o Brasil se constituiu como Nação e se construiu como Estado durante o período em que a corte portuguesa esteve instalada no Rio de Janeiro, do ponto de vista social ele não se transformou em sociedade de corte à semelhança de outras nobrezas europeias ou da própria nobreza portuguesa de outros tempos de acordo com a fidalguia que lhes era característica. Dependendo da etiqueta como elemento de sua identidade grupal, a corte portuguesa, bem como o rei e o Estado, dependia também do dinheiro dos comerciantes de “grosso trato” para cobrir suas altas despesas, comerciantes esses que não esperavam em troca senão a nobilitação pelo monarca. “No Brasil a aristocracia era nominal, ou então de posição. As origens das fortunas particulares não remontavam a favores da Coroa ou possuíam raízes feudais: representavam a recompensa de esforços individuais, dos que as desfrutavam ou dos seus pais ou avós” (LIMA, 1986LIMA, Oliveira. O Império Brasileiro (1822-1889). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.: 215).

Para além da distinção entre nobreza de linhagem e nobreza de toga, a sociedade de corte no Rio de Janeiro se caracterizava também pela presença de duas estruturas sociais de comportamento antagônicas: a da Corte que criava um novo modo de sociabilidade e alterava a vida na cidade e da população em geral e a da escravidão que “continuava a exigir o recurso indispensável da força e da violência para garantir a ordem e os privilégios da minoria branca” (NEVES, MACHADO, 1999NEVES, Lúcia Bastos Pereira, MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.: 47). As relações entre homem branco e homem negro estavam referidas às diferenças e hierarquias da “sociedade de corte” do Brasil segundo um sistema de classificação “que privilegia os atributos liberdade e propriedade” (MATTOS, GONÇALVES, 1991MATTOS, Ilmar Rohlof de, GONÇALVES, Marcia de Almeida. O Império da Boa Sociedade; a consolidação do Estado imperial brasileiro. São Paulo: Atual, 1991.: 18). Neste trabalho, estas são as principais variáveis que serão consideradas na definição da sociedade e da ocupação ou o trabalho do homem livre que não é proprietário, tal como o advogado provisionado.

Segundo a classificação acima, o advogado provisionado, que não era nem proprietário nem escravo, seria considerado, então, como homem livre e pardo, e ele solicitaria emprego público ao monarca como meio de sua sobrevivência e a de sua família. O advogado provisionado será analisado segundo o atributo “liberdade”, a motivação material ou não de seus pedidos, sua relação com o monarca e outros agentes públicos e o lugar de exercício da advocacia em relação à Corte como centro de poder. Tendo em vista os obstáculos de natureza político-administrativa que marcaram as trajetórias dos advogados provisionados, serão analisadas de modo enfático as práticas que eles adotavam para ingressar e permanecer no exercício da advocacia, com o reconhecimento formal ou não do monarca.

A forma pela qual eram formulados os pedidos de provisão e passadas as autorizações para advogar traduzia a existência de diferenças de níveis interdependentes (social, político, jurídico, religioso, moral) que reforçavam as estruturas político-sociais da época, caracterizadas segundo desigualdades hierarquizadas. Neste sentido, os advogados provisionados eram hierarquicamente desigualados de modo distinto. A estrutura hierárquica do Brasil da época constituía o político como nível abrangente e velado por meio do qual a sociedade se organizava e funcionava em sua visibilidade (GAUCHET, 2005GAUCHET, Marcel. La condition politique. Paris: Gallimard, 2005.) e como meio de ação pelo qual ela agia sobre si mesma (DÉLOYE, 1999DÉLOYE, Yves. Sociologia histórica do político. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999.). Daí a investigação da forma como o Estado, a sociedade e os advogados constituíam o político em suas relações de mútua dependência. Daí a possibilidade de desnaturalizar o Estado como centro da atividade política e o advogado como mero objeto de regulamentação estatal ou como simples prestador de serviços públicos de que dependia o Estado.

Do ponto de vista metodológico, os Pedidos de Licença para Advogar serão abordados não como expressão da realidade político-jurídico constituída histórica e socialmente, e sim como manifestação discursiva de advogados que buscavam realizar objetivos específicos e concretos em suas vidas. Do ponto de vista teórico, os Pedidos serão analisados segundo categorias de pensamento de autores e políticos (Visconde de Uruguai, Pimenta Bueno, Tavares Bastos) que, durante a monarquia constitucional brasileira, se debruçaram sobre questões que eram no mínimo análogas aos problemas que afligiam a vida dos advogados provisionados durante o Período Joanino (1808-1822): as questões da centralização e da descentralização no Brasil.

2- Administração Estatal, Funcionário Público e Advocacia Provisionada

Tendo mandado pelo meu real decreto de 18 de março de 1801 estabelecer uma administração geral para a cobrança e arrecadação das dívidas ativas através da Minha Real Fazenda, hei por bem (...) de prover ao dito Eugênio José Gomes no dito emprego para requerer nas Execuções que nos auditórios da vila de Queluz pendem contra os devedores da minha Real Fazenda1 1 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. .

Passada a Eugênio José Gomes, esta provisão de D. João VI, de 24 de setembro de 1806, revela a relação estreita que existia entre a administração do Estado e a ocupação de funções, cargos ou empregos públicos. A estrutura de funcionamento da Real Fazenda - antes mesmo de o Brasil tornar-se sede da monarquia portuguesa - dependia da seleção de advogados para defender e representar seus interesses nos Estados e Capitanias-Gerais. “Provisão” era o título pelo qual o soberano, através do Tribunal do Desembargo do Paço, investia uma pessoa em certo cargo ou ofício, para que o exercesse. Ela era uma mercê do poder monárquico absolutista com o objetivo de satisfazer necessidades da administração pública, e não um direito do provisionado estabelecido em lei. Como graça régia, a provisão era uma liberalidade do monarca, que podia, a qualquer momento, “mandar o contrário”2 2 Ver, por exemplo, a provisão passada a Antonio Xavier de Gusmão por Dom João, em 1820, para continuar no emprego de solicitador de causas nos auditórios da vila de Resende. Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , e revelava a “condição [própria] de sua majestade” (MALERBA, 2000MALERBA, Jurandir. A Corte no Exílio; civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.: 212): a capacidade de realizar concessões.

Porém, como graça concedida pelo poder soberano, a provisão para advogar decorria da súplica dos advogados, cujos fundamentos poderiam variar segundo o momento político da história do Brasil. Além de apresentarem argumentos que poderiam traduzir a condição de brasileiro3 3 Em seu pedido de licença para advogar de 1826, João Marques de Mattos precisou fazer prova de que era cidadão brasileiro. Em 1824, ele havia jurado a Constituição do Império em livro próprio. Em seu pedido havia a seguinte informação de José Thomas Nabuco de Araújo, deputado pela Província do Pará à Assembléia Geral e Legislativa do Império do Brasil: “[ele] aderiu a Independência do Império do Brasil com todo o entusiasmo na Província do Pará, aonde se acha estabelecido há mais de doze anos sem nota alguma”. Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 3. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. ou a fidelidade ao soberano em momentos festivos4 4 Em sua petição de justificação de 1826, Ignácio Dias de Oliveira afirmou sua condição de "fiel súdito brasileiro [que] pessoalmente compareceu no ato da feliz Aclamação de sua majestade o Imperador, dando decisivas provas do patriotismo, lealdade e adesão à Augusta Pessoa do mesmo Senhor". Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 1. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , os advogados sustentavam com frequência seus pedidos com base na importância do emprego de advogado para a administração em geral. Em 1819, assim revelou Francisco Cirilo5 5 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03, documento 42. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. sua visão sobre a advocacia em seu pedido de provisão para advogar na cidade da Paraíba do Norte: “meio pelo qual presta o suplicante serviços a Vossa Majestade e ao Público”. Na vila de Vitória, em 1817, Manoel de Moraes Coutinho6 6 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01, documento 04. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. formulou a razão de ser da advocacia nos seguintes termos: “servir no que for necessário ao bem do público e dos reais interesses”. A importância da advocacia como serviço que era posto à disposição do Estado ficava evidenciada diante das consequências da falta de advogados nas instâncias judiciárias. Neste sentido, é ilustrativa a informação de Antonio Batalha, Ouvidor das Alagoas, no pedido do padre Ignácio Francisco de Burgos Saldanha7 7 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , em 1818, para advogar nos auditórios seculares das capitanias da Paraíba do Norte e de Pernambuco:

O foro contencioso é quase negativo ou antes reina nele toda a sorte de desordem: as partes assinam seus papéis, despachados ou pela ignorância ou pelo interesse em sentidos diversos. (...) os juízes ordinariamente do termo são fáceis em desampararem as vilas.

No entanto, a importância da advocacia no funcionamento da estrutura judiciária do Estado não definia de forma mecânica e imediata o advogado provisionado como funcionário público. Na verdade, a provisão não traduzia nem constituía o advogado e a burocracia como sendo entidades puras ou abstratas. “A burocracia imperial eram várias. Dividia-se tanto verticalmente, por funções, como horizontalmente, por estratificação salarial, hierárquica e social” (CARVALHO, 1996CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996.: 130). Como remuneração dos membros das diversas burocracias (civil, eclesiástica e militar), em seus diferentes níveis (político, diretorial, auxiliar e proletário), o salário definia o funcionário público no Brasil imperial. A provisão concedida a André Pinheiro Requião8 8 Documentação Judicial. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. quanto a seu pedido de 1817 para exercer a advocacia nos auditórios públicos da Bahia descreve a natureza da remuneração dos advogados provisionados. Tendo o advogado efetuado o pagamento de trinta mil réis de Novos Direitos9 9 Novos Direitos eram o tributo que se pagava pelas mercês que o Rei concedia. De acordo com o Regimento de 11 de abril de 1661, “nenhum ofício [aqui compreendidos os de Justiça e Fazenda] é isento deles, nem escusa pessoa alguma (...) nem ainda eclesiástica”. “Em cada vila deve haver um tesoureiro e escrivão para a sua arrecadação, e são eleitos em Câmaras”, dispõe o Regimento. De acordo com o Alvará de 16 de setembro de 1675, “se mandou que o Superintendente dos Novos Direitos pudesse notificar os ministros e oficiais, proprietários e serventuários, para lhe apresentarem suas Cartas e Provimentos a fim de se ver por elas se têm pagado os Novos Direitos, e para proceder executivamente contra os que não tiverem pagado”. O decreto de 08 de junho de 1725 “mandou (...) que se não entregassem às partes os próprios provimentos, provisões, alvarás, padrões e cartas, mas somente bilhetes assinados pelos Secretários, ou escrivães, do despacho dos Tribunais, para se pagarem os Novos Direitos”. , e “não obstante não ser formado10 10 De acordo com o Liv. 1, Tít. 48, das Ordenações Manuelinas, os advogados deveriam ter “cartas de bacharel e formatura”. Porém, o Alvará de 24 de julho de 1713 estabelecia que, onde não houvesse “cópia de advogados formados”, podia o Desembargo do Paço passar provisões para advogar. ”, Dom João ordenou “aos Ministros, Justiça, e mais pessoas a quem tocar, o deixem assim exercer o dito emprego (...) [e receber] os salários e emolumentos11 11 Emolumentos eram, genericamente, os lucros que alguém tirava do seu cargo, ou emprego, e, especificamente, se dizia dos lucros casuais. Neste sentido, os emolumentos se contrapunham às rendas provenientes dos cargos ou empregos. Os decretos de 02 de março e de 24 de agosto de 1724 taxaram os emolumentos como sendo competentes para sustento e independência dos que administravam a justiça. que diretamente lhe pertencerem". Os diferentes tipos de pagamento que remuneravam os distintos cargos e empregos na burocracia da justiça imperial problematiza tanto a natureza do emprego de advogado como o uso da dicotomia “público-privado” na descrição desta atividade.

Se a burocracia imperial eram várias, o advogado que suplicava licença para advogar também eram vários. Em 1809, sofrendo com a perda dos ofícios de amanuense12 12 Amanuense era o escrevente, empregado de repartição pública, ou não, a quem cabia, geralmente, fazer cópias, registros, alguma correspondência oficial ou, simplesmente, escrever aquilo que lhe era ditado. , do Cartório dos Agravos e Apelações, e de escrivão, dos Órfãos e Almotaçaria13 13 Almotaçaria, de acordo com o Liv. 3, Tít. 4, das Ordenações Manuelinas, era o ofício do almotacé ou o local onde o almotacé realizava audiência na presença de escrivães, zeladores e homens da vara. Segundo Liv. 1, Tit.49, da mesma Ordenação, o almotacé tinha a seu cargo não apenas cuidar de prazos e medidas, mas também taxar e, às vezes, distribuir, mantimentos e outros gêneros comprados e vendidos “por miúdo”. , exercidos por oito e doze anos, respectivamente, Manoel Goes Tourinho14 14 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. “ficou inteiramente destituído de meios para a sua subsistência e para poder desempenhar os deveres das suas obrigações em alimentar e tratar a numerosa família que tem a seu cargo”. Sua família dependia de seu emprego de advogado. “A fim de poder sustentar uma onerosa família de mulher e filhos, e uma sogra viúva do falecido Coronel Francisco Soares Neiva, que, com distinção e honra, serviu a S.A.R15 15 A abreviatura S.A.R. significa Sua Alteza Real. Era fórmula que os advogados usavam para se dirigir ao poder soberano antes da independência do Brasil. no Regimento de Cavalaria Miliciana”, Manoel Ferreira da Costa16 16 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. também tinha na advocacia o sustento de sua família na cidade da Paraíba do Norte. “Aplicado desde os tenros anos aos estudos da gramática latina, filosofia e retórica com grande adiantamento, para depois passar à Universidade”, José Jacinto da Encarnação17 17 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. enfrentou as consequências de “achar-se o pai do suplicante em decadência e incidentes de fortuna, e querendo o mesmo suplicante tomar um modo de vida honesto, se pôs a amanuense do bacharel Manoel de Quental”. "Com numerosa família que tem a seu cargo", Francisco das Chagas Teixeira Parreiras18 18 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. reconheceu, em seu pedido de 1810, a necessidade de advogar em várias vilas, tais como Barbacena e Queluz e outras da comarca de São João d’El Rey. Os advogados tinham necessidade material de trabalhar para sobreviver. O emprego público não era, como para os aristocratas ingleses, um “hobby”.

Se necessário para satisfazer necessidades da administração pública e atender a interesses do Estado ou da sociedade, o emprego de advogado na burocracia judiciária era também fundamental para prover às necessidades de natureza pessoal e familiar dos advogados. A despeito dos diferentes motivos ou razões que fundamentavam o exercício da advocacia provisionada, quer segundo interesse público, quer segundo necessidade pessoal, o fato é que as súplicas dos advogados provisionados - diferentemente dos advogados diplomados que tinham a ambição de fazer carreira política - revelavam o papel de empregador do Estado. Os pedidos de licença para advogar suscitavam o problema do mercado de trabalho para o homem livre na sociedade escravocrata do Brasil durante o período joanino. Daí a suposta vocação deste homem para a burocracia do Estado: “a classe dos que assim vivem com os olhos voltados para a munificência do governo é extremamente numerosa, e diretamente filha da escravidão, porque ela não consente outra carreira aos brasileiros” (NABUCO, 1999NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.: 181). Apesar de não levar em conta as diferenças históricas quanto à situação dos trabalhadores rurais e urbanos do Brasil da época, o caráter genérico desta afirmação permite inscrever os advogados provisionados nessa classe numerosa de pessoas que procuravam emprego público. Afinal, a burocracia satisfazia necessidades também de natureza social.

Sem elementos que permitam descrever a origem social dos advogados provisionados e os diversos setores ou níveis que integravam o quadro administrativo subordinado à autoridade do monarca, os fragmentos dos discursos dos advogados não constituem senão o problema da definição do advogado como funcionário público: o preenchimento do cargo resulta de livre relação contratual; a seleção dos candidatos é realizada com fundamento em suas qualificações técnicas; o salário é a remuneração fixa do funcionário e a pensão constitui a segurança na sua velhice; o cargo define e traduz os fundamentos de uma carreira dentro da ordem hierárquica do serviço público (WEBER, 1974WEBER, Max. “Burocracia” IN WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.: 232-238). De acordo com o modelo weberiano de burocracia moderna, estes critérios constituem as principais normas que definem a nomeação e a atuação dos funcionários na burocracia (pública ou privada, civil ou religiosa, econômica ou política).

Como homens livres, os advogados não eram candidatos em um processo de seleção livre. Eles dependiam de apadrinhamentos, indicações e testemunhos. Eles possuíam qualificações técnicas decorrentes de conhecimento prático do direito quanto ao exercício de atividades de natureza jurídica. Mas, eles não possuíam conhecimento especializado decorrente de educação formal. Eles não eram nem formados nem treinados pelo Estado. Não havia para eles nem promoção, com fundamento na antiguidade ou no mérito, nem salário fixo nem aposentadoria. A reiteração dos pedidos de licença para advogar, bem como as concessões de provisão por tempo limitado, demonstra a ausência de estabilidade do advogado provisionado para que ele seja considerado como funcionário público e em condições de fazer carreira dentro do Estado. Não sendo funcionário público que integra a burocracia moderna segundo o tipo ideal weberiano, o advogado provisionado, como representante de interesses privados ou públicos, não sendo aqui considerado como advogado improvisado ou rábula, pode ser definido como empregado que exercia atividade de natureza liberal no âmbito de uma monarquia absolutista.

De forma esquemática, nos Pedidos de Licença para Advogar o público representava principalmente as partes ou clientes que os advogados defendiam e as vilas e cidades que experimentavam a necessidade e viviam a falta de advogados; a majestade simbolizava essencialmente a monarquia absolutista como forma de governo que possuía a capacidade de fazer concessões e o advogado encarnava a figura ideal do agente que operava de forma legítima tipos complexos de relação com o público, com a majestade e com o público e a majestade. Considerando sua natureza prática, a advocacia pode ser analisada segundo as seguintes concepções doutrinárias: ofício de justiça, múnus público, profissão liberal e como múnus público e profissão liberal a um só tempo (VIDAL, 1919VIDAL, Armando. A Ordem dos Advogados no Brasil. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1919.: 13-50).

Com fundamento na regulamentação do exercício da advocacia diplomada, esta classificação é aqui usada com o objetivo de definir o advogado provisionado em função da posição que ele ocupava no Estado e do papel que ele desempenhava na sociedade. Tendo em vista o caráter prático que caracterizava tanto a advocacia provisionada como a advocacia diplomada, a despeito das diferentes posições na hierarquia do trabalho forense que certamente influenciaram a própria prática da advocacia, esta classificação é aqui interpretada para ser usada em sentido amplo. Assim, canceladas idealmente as diferenças básicas referidas ao título de bacharel e à graça da provisão, a advocacia pode ser teoricamente considerada como uma mesma e única atividade cujo exercício situava o advogado tanto no Estado e na sociedade como nas relações que existiam entre eles.

Como ofício de justiça, a advocacia implicaria a condição de funcionário público para o advogado. Embora fosse parte da organização judiciária e provido pelo poder público, o advogado, como auxiliar na administração da justiça, não gozava do status de servidor público. Sua remuneração não constituía pagamento devido pelo Estado. Nem mesmo o fato de estar obrigado por lei a não desamparar a causa cuja defesa aceitou tornava o advogado funcionário público. Nem o exercício da advocacia de acordo com o juramento que prestava o advogado no sentido de obedecer às leis e ao poder soberano instaurava para o advogado aquela condição. Nem tampouco as formas de punição que lhe aplicava o Estado. Por outro lado, a indenização por dano causado ao cliente pelo advogado não tornava o Estado responsável. Contudo, não sendo funcionário nesse sentido restrito, o advogado seria ao menos um “agente público especial”, segundo parecer assinado por Pimenta Bueno, Visconde de Jequitinhonha e Visconde de Uruguay19 19 Aviso no 206, de 29 de maio de 1866. José Antonio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente) publicou o livro Direito Publico Brazileiro e Analyse da Constituição do Imperio (1857) quando já havia abandonado o partido liberal para juntar-se ao partido conservador. Paulino José Soares de Sousa (Visconde de Uruguai) publicou o livro Ensaio sobre o Direito Administrativo (1862), tendo sido senador do Império na bancada do Partido Conservador e Conselheiro de Estado. Os livros destes dois políticos serão usados na discussão do problema da centralização no Brasil imperial. Figura polêmica do Segundo Reinado, Francisco Gê Acayba de Montezuma (Visconde de Jequitinhonha) fundou o Instituto dos Advogados Brasileiros (1843). : “Com efeito, a profissão de advogado é de um caráter misto; ele não é só o mandatário da parte; é de mais uma espécie, senão de funcionário público ao menos de agente público especial a quem a lei confere direitos e impõe obrigações”. Assim sendo, a provisão régia, enquanto licença para advogar, não criava senão uma espécie de “quase-funcionário”. Assim, o advogado, ainda que público quanto àqueles e àquilo que representava, não era funcionário do Estado.

Como múnus público, a advocacia não poderia ser exercida por estrangeiro. Antes mesmo de o Alvará no 151, de 07 de outubro de 1828, trazer tal proibição, os advogados que solicitavam provisão para advogar ou continuar nesta atividade, após a independência do Brasil, deviam provar ser brasileiros, natos e/ou pela adesão à causa do País20 20 De Acordo com o Aviso 206, de 29 de maio de 1866, o estrangeiro não podia advogar no Brasil. Os fundamentos desta decisão foram a Consulta da Secção de Justiça do Conselho de Estado de 19 de abril de 1866; o Aviso no 151, de 07 de outubro de 1828; e o decreto de 03 de janeiro de 1833. . Em 1826, para poder advogar na Vila de Cunha, na Província de São Paulo, Francisco Gomes de Araújo21 21 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03, documento 45. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. foi considerado “cidadão brasileiro, natural e batizado na matriz desta Paróquia”. Era cidadão brasileiro não apenas pelo nascimento, mas “pelo juramento que prestou à Constituição do Império” e por pertencer a uma “das principais famílias daquele país e ter já servido os cargos da República antes de servir os mencionados ofícios do foro judicial”. Em 1826, a condição de brasileiro do padre Jacintho Julio Queirós Moura22 22 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. estava referida à relação entre o tempo de sua advocacia e o tempo em que residia no Brasil: “há mais de nove anos reside neste Império e há mais de um ano que tem advogado na cidade de Porto Alegre nas causas forenses de que tem prática”. Da mesma forma, no ano de 1826, Joaquim de Almeida Salles23 23 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. precisou provar ser “brasileiro, de fato e de direito, mostrando-se zeloso da causa [nacional] com reconhecido patriotismo (...), e que tem advogado com aplauso dos que por ele são patrocinados (...) [em Itu]”.

Assim caracterizada, a advocacia traduziria um encargo imposto ao advogado em nome da ordem social ou do bem público. Porém, como graça concedida pelo poder soberano, a advocacia decorria de súplica do advogado, e não de imposição legal24 24 Contudo, “leis” do período estudado consideravam a advocacia como múnus público: Aviso no 151, de 07 de outubro de 1828, e Provisão no 79, de 07 de dezembro de 1821. O Regimento de 07 de junho de 1605 também considerava a advocacia como múnus público. Mudanças de interpretação se verificaram, apenas, a partir de Avisos de 1860: Aviso 418, de 29 de setembro de 1860; Aviso 380, de 19 de junho de 1865; Aviso 522, de 23 de novembro de 1863; Aviso 423, de 16 de setembro de 1865. , da mesma forma que a gratuidade desta atividade dependia apenas da liberalidade do advogado, e não de imposição legal, tal como ocorria com aquele encargo. No contexto dos Pedidos, servir ao Estado e ao poder público, à sociedade e às partes não significava senão honra e necessidade para o advogado. Assim como a obrigatoriedade, a transitoriedade era característica apenas do múnus público, e nunca da advocacia. O caráter limitado quanto ao tempo de exercício da advocacia não cancelava a dimensão habitual desta atividade. Por outro lado, se quem estivesse sujeito ao múnus público não auferia qualquer vantagem, a advocacia era, sobretudo, fonte de satisfação de necessidades materiais de muitos advogados e de utilidade e recompensa por serviços prestados ao Estado e à sociedade.

Como profissão liberal, mais do que garantir a distinção entre advogados de provisão e advogados formados25 25 Decreto de 08 de outubro de 1771 consagrava esta distinção com fundamento na aposentadoria ativa e passiva como privilégio dos advogados formados. Este privilégio era concedido apenas aos advogados das Casas de Suplicação, os quais deveriam ser bacharéis formados, examinados por lição de ponto (Ord. L. I, Tít. 48, p. 1o). Alvará de 24 de outubro de 1813 não admitia advogado de provisão nas Casas de Suplicação. , a advocacia era atividade que podia ser exercida também por estrangeiros. No entanto, a nacionalidade brasileira foi condição exigida para o exercício da advocacia no Brasil após a independência do País. Por outro lado, ao exercer sua “indústria privada”, o advogado não podia ser empregado público26 26 Veja Aviso no 48, de 29 de setembro de 1860; Resolução de 15 de dezembro de 1860; Aviso no 522, de 23 de novembro de 1863. .

Como múnus público e profissão liberal a um só tempo, a advocacia importaria caráter misto. Seria múnus público sem ser emprego público27 27 Veja Aviso no 147, de 17 de abril de 1867. . Com isto, seria preciso reconhecer a existência de múnus público sobre indústria privada. Contudo, os advogados provisionados nunca foram obrigados por lei ou pelo governo a exercer a advocacia na defesa do Brasil ou da pátria, da ordem nacional ou do interesse geral, como se fossem funcionários ou empregados públicos ou como se desempenhassem funções públicas. Os advogados, diplomados ou provisionados, nunca se viram obrigados ao exercício da advocacia após terem sido julgados habilitados. Assim, a advocacia - embora exercida segundo regulamentação específica e como função desta mesma regulamentação - nunca se caracterizou pela obrigatoriedade e pela transitoriedade que definiam o serviço na Guarda Nacional ou no júri, a curatela ou a tutela.

3- Provisões Vitalícias que Questionam a Centralização Político-administrativa

A Lei do Livro primeiro, título quarenta e oito, parágrafo quarto, [das Ordenações Manuelinas], e a do mesmo Livro, título noventa e sete, parágrafo décimo, [das mesmas Ordenações, nelas se] acham os obstáculos para se cumprirem nesta comarca28 28 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. .

Esta citação faz parte da informação que Antonio Batalha, Ouvidor das Alagoas, prestou no pedido do padre Ignácio Francisco de Burgos Saldanha, em 1818, para advogar nos auditórios seculares das capitanias da Paraíba do Norte e de Pernambuco. As Ordenações impunham a obrigatoriedade das provisões régias para o exercício das profissões e ocupações de modo geral. Passadas pelo Tribunal do Desembargo do Paço, com sede na Corte do Rio de Janeiro, as provisões constituíam os obstáculos que definiam as dificuldades que enfrentavam os advogados para cumprir as Ordenações.

Em 1819, para continuar advogando nos auditórios da comarca de Jacobina, Província da Bahia, "ou em qualquer outra destes Estados do Brasil", Felix Miguel de Souza Barrem29 29 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. formulou pedido de provisão vitalícia. O pedido deste advogado ilustra as dificuldades da advocacia que dependia de modo sistemático de provisões regulares que deveriam ser requeridas, diretamente ou mediante procuração, junto ao Desembargo do Paço. Sem procurador, disse Barrem que "quer continuar no mesmo exercício e lhe é penoso, e prejuízo especial às partes, procurar provisões anuais pela longitude em que esta comarca está da cidade da Bahia”.

Antonio Pinto de Paula30 30 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. e Manoel Fernandes de Brito31 31 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. protagonizaram situação não muito diferente. A "dificuldade de recorrer todos os anos por causa da distância em que se acha em relação à Corte" legitimou, em 1822, o pedido que Paula fez de provisão "sem limitação de tempo, ou pelo menos de três anos”. Brito pediu mais do que provisão vitalícia. Há mais de vinte anos nos auditórios da Vila de Nossa Senhora da Purificação e Santo Amaro, advogando com provimentos anuais "que tira pela secretaria daquele governo", queixava-se não apenas da demora dos agentes, mas também dos frequentes "descaminhos nos transportes". Daí seu pedido, em 1814, para advogar "onde lhe convier morar".

Caetano José Pereira da Costa Queiroz32 32 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , alegando "ter dado em quatro anos sucessivos não equivocadas provas de ser revestido de todas as qualidades necessárias para exercer dignamente as funções do ofício de advogado", ressaltou o "grande incômodo que tem por falta de procuradores na Corte para requererem anualmente nova provisão" como forma de fundamentar seu pedido de provisão vitalícia, em 1811, para os auditórios da comarca de Pernambuco. Em 1809, advogando na Vila do Príncipe, comarca de Vila Rica, com provisão do Governador e Capitão General da Capitania de Minas Gerais e com aprovação do Ouvidor, Bernardino José de Queiroga33 33 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. pediu "provisão vitalíssima a fim de evitar mais despesa e incômodos".

As dificuldades enfrentadas pelos advogados na solicitação de licença para advogar, bem como os pedidos de provisão vitalícia como estratégia ou método eficiente de enfrentamento destas dificuldades, traduzem características da organização e funcionamento da administração pública no Brasil durante o período aqui estudado. E a principal dentre as características estava referida ao problema da centralização administrativa.

A vitaliciedade requerida pelos advogados provisionados possuía como referência duas instituições políticas do Império: o Senado e o Conselho de Estado. “A grande ambição do político era ser senador, posição vitalícia com a qual ficava com o prestígio local intacto na província (...) e com meios de viver, senão folgadamente, pelo menos decentemente na Corte” (LIMA, 1986LIMA, Oliveira. O Império Brasileiro (1822-1889). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.: 214). No entanto, para os advogados investigados, a vitaliciedade não constituía uma ambição associada a interesses quanto a uma carreira na burocracia judiciária. Ela correspondia à satisfação de necessidades materiais fundamentais através de um trabalho seguro e certo, isto é, permanente, à semelhança de um funcionário público. “Os conselheiros eram sentinelas vitalícias da ordem, da segurança, da disciplina, pelo status quo, contra a mudança, contra as inovações. Com isso, garantiam a perpetuidade do poder, a durabilidade do sistema, e desdenhavam da oposição” (RODRIGUES, 1978RODRIGUES, José Honório. O Conselho de Estado; quinto poder? Brasília: s. ed., 1978.: 281). Por outro lado, enquanto sentinelas precárias da segurança de suas famílias , os advogados identificavam na vitaliciedade o meio capaz de garantir a continuidade no exercício de seu trabalho “A vitaliciedade [do Senado] permite a continuidade de ação e o abrigo contra os longos ostracismos, ostracismos que desemparam os partidos de representantes na Câmara temporária” (FAORO, 1996FAORO, Raymundo. Os donos do poder; formação do patronato político brasileiro. São Paulo, Globo, 1996, v. 1.: 353).

A vitaliciedade era como que a razão última da luta dos advogados provisionados. Eles procuravam através dela superar os obstáculos decorrentes principalmente da centralização administrativa, continuar exercendo a advocacia de forma ininterrupta e abrigar-se contra o desemprego que ameaçava a ordem familiar. Neste sentido, a estabilidade dos advogados provisionados em virtude da vitaliciedade pela qual lutavam possuía sentido e objetivo bem diversos daqueles que caracterizaram o Senado e o Conselho de Estado no Brasil imperial34 34 Eram instituições políticas nas quais estava encastelado “o espírito conservador-retrógrado, que representava os interesses ligados à reação antiprogressista” (PRADO JUNIOR, 1947: 189). , mas revelava a habilidade e capacidade dos advogados provisionados quanto ao uso de linguagem política quanto a fins não políticos. Afinal, diferentemente do servilismo que caracteriza o mundo oficial da administração e da burocracia modernas, o advogado provisionado, como homem livre, através de suas súplicas para advogar, exerciam a liberdade de escrever - e assim de falar - de quem estava fora das repartições públicas.

Como governo, o poder executivo aplica por si só e diretamente as leis de ordem política. Como tal é o promulgador e o executor das leis, por meio de regulamentos e providências gerais. (...) Como administrador, o poder executivo não aplica nem lhe é possível aplicar, por si só e diretamente, as leis da ordem administrativa, mas sim por meio de um complexo de agentes de ordens diversas, disseminados pelas diferentes circunscrições territoriais (URUGUAI, 1862URUGUAI, Visconde do (Paulino José Soares de Sousa). Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: s. ed., 1862, tomos 1 e 2.: 16-17).

A distinção entre governo e administração feita por Uruguai possuía por objetivo definir e caracterizar os poderes que pertenciam ao imperador do Brasil segundo a Constituição de 1824. Esta distinção tinha por fundamento o reconhecimento de Uruguai quanto ao fato de que o Brasil talvez fosse o país “em que a administração esteja mais confundida com a política”. Os advogados provisionados aqui estudados eram os advogados da monarquia absolutista. Não era a distribuição dos agentes da administração pelas “diferentes circunscrições territoriais” que se apresentava como obstáculo em si ao exercício da advocacia, e sim o comparecimento obrigatório do advogado à Corte para, pessoalmente ou mediante procurador, requerer licença para advogar junto ao Desembargo do Paço, segundo as leis vigentes. A corte, com sede no Rio de Janeiro, em relação aos locais de moradia e exercício da advocacia, e o direito português ainda vigente, com suas determinações quanto ao processo de habilitação para advogar, eram percebidos e vividos pelos advogados provisionados como verdadeiros obstáculos ao exercício da advocacia. Neste sentido, os advogados provisionados eram confrontados a obstáculos de natureza tanto política quando administrativa.

Entendeu Antonio Batalha, o Ouvidor de Alagoas, que:

não há esperança que os que quiserem exercer a advocacia se sujeitem a tirarem provisões naquele tribunal, assim como (…) não há qualquer um ajudante de escrivão que anualmente não ganhe mais de cinquenta a setenta mil réis e os queira gastar na agência e custo das respectivas provisões anuais sem (…) algum lucro: é por isso que nem uns nem outros as têm retirado.

Disto resultava que "o foro contencioso é quase negativo ou antes reina nele toda a sorte de desordem: as partes assinam seus papéis, despachados ou pela ignorância ou pelo interesse em sentidos diversos". A distância do restante do Brasil em relação à Corte no Rio de Janeiro explicava os problemas de funcionamento da burocracia judiciária nas vilas e cidades do País35 35 Os problemas decorrentes da centralização administrativa podem também ser exemplificados de acordo com uma das etapas do processo de habilitação para advogar: a realização do Auto de Exame no Tribunal do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro. Segundo determinação do direito português, aplicado no Brasil sem adaptação às circunstâncias da colônia, o exame a que eram submetidos os advogados - que implicava despesas com viagens e permanência na Corte - visava a avaliar seus conhecimentos sobre a legislação pátria, o direito comum e a prática do foro. Ver, por exemplos, os autos de exame de Bento Joaquim de Miranda Henriques (Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional) e Francisco Leite Ribeiro (Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03. Arquivo Nacional). . “Espero mostrar que nos afligem muitos dos vícios inerentes à centralização, sem os benefícios acidentais que em outros países produz, e particularmente em França, graças à facilidade de comunicação, à pouca extensão do território, à perícia e desenvolvimento do pessoal” (BASTOS, 1975aBASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. 4ª. ed., feita sobre a 2ª. ed.de 1863. São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975a.: 22). Esta passagem, pressupondo principalmente as dimensões continentais do País e seus problemas de comunicação e transporte, não considerou o poder administrativo senão como um mal no império do Brasil, que poderia ser expresso através das restrições à liberdade de indústria36 36 Na mais longínqua província do País, era preciso implorar ao governo na Corte licença e aprovação dos estatutos para o exercício de qualquer atividade industrial. e da ausência de maior liberdade aos diferentes círculos administrativos. Embora “a maior centralização da administração portuguesa (...) [fosse] aparente” (CARVALHO, 1996CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996.: 12), a ênfase nos “vícios inerentes à centralização” permite melhor avaliar as dificuldades enfrentadas pelos advogados provisionados.

Por outro lado, reconheceu o Ouvidor que a negatividade do foro podia ser ainda explicada como consequência do cumprimento das ordens do monarca que mandou "suspender os advogados, e ajudantes de escrivães, que para o serem não tinham régias provisões passadas pelo Tribunal do Desembargo do Paço". Sob a perspectiva do direito português, o monarca encontrava-se investido de poderes “para mandar o contrário” e assim decidir. Desde que o governo “exerça do centro uma tutela incessante sobre cada um dos pontos da circunferência, todos se acostumam a considerá-lo o oráculo sagrado, como a divindade protetora, cuja cólera terrível não se deve provocar” (BASTOS, 1975aBASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. 4ª. ed., feita sobre a 2ª. ed.de 1863. São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975a.: 39). Sob a ótica dos advogados provisionados, a consideração dos “vícios inerentes à centralização” administrativa constituía fonte de legitimação do descumprimento das “leis de ordem pública” nas províncias do Brasil. Nesta hipótese, o poder político estaria relacionado com o poder administrativo quanto ao funcionamento problemático da burocracia judiciária. Talvez fosse possível afirmar que “o poder administrativo é, portanto, secundário e subordinado ao poder político. Organiza o pensamento deste e o põe por obra” (URUGUAI, 1862URUGUAI, Visconde do (Paulino José Soares de Sousa). Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: s. ed., 1862, tomos 1 e 2.: 24).

A negatividade do foro era também sinal da inexistência, ausência ou mesmo a recusa dos bacharéis formados em atuar na justiça local, fato esse que evidenciava as dificuldades antes mencionadas e reforçava a distinção dos advogados em diplomados e provisionados. Esse quadro mostra como a ausência dos bacharéis em Direito emperrava o funcionamento da burocracia judicial e fundamentava o pedido dos advogados sem “carta de formatura”. O parecer de Dom Diego de Souza, Conselheiro de Sua Alteza Real e Governador e Capitão General da Capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul, no pedido de licença para advogar de Domingos Martins Pereira37 37 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , em 1811, confirma a ausência de advogados formados no judiciário local: "[Pereira] se tem empregado na agência e solicitação dos negócios e dependências da administração da justiça, cuja precisão é bem notória pela falta de bacharéis formados que aceitem os patrocínios de semelhantes causas". O pedido de licença para advogar de Eleutério José Pinto38 38 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. revela onde se encontravam os advogados formados que faltavam na administração da justiça. Em 1823, ele pediu para advogar nos auditórios da cidade de São Paulo e alegou não haver "na mesma cidade mais do que um advogado provisionado, pois que os bacharéis formados se acham empregados no Governo da Província". Como afirmou Rodrigo Antonio da Silva Guimarães39 39 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , na Vila Real da Praia Grande, em 1820, “não poderá haver tão cedo [advogados diplomados] pelas poucas vantagens que promete o foro”. Assim, ao revelar a negatividade da justiça, os pedidos de provisão dos advogados revelavam a trajetória das elites políticas na construção do Estado (CARVALHO, 1996CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996.: 21-42).

Por outro lado, o quadro “negativo” da justiça no nível mais local da sociedade da época, em relação tanto aos bacharéis quanto aos provisionados, ajuda a compreender o caráter problemático do funcionamento da burocracia judiciária:

Eles [os juízes] são obrigados a mandarem a grandes distâncias, mesmo fora da comarca, e com despesas, os autos para se despacharem, e as querelas e devassas para serem os réus pronunciados, o que não convém ao segredo de justiça; os inventários fazem-se lenta e dificilmente por não haver quem decida as dúvidas que se suscitam; os órfãos não têm curador letrado que zele seus interesses; enfim, tudo é desordem no Foro, e cumpre prevenir as consequências do mal que, na verdade, é grande40 40 Informação prestada no Pedido de Licença de Eleutério José Pinto. Ver nota no 38. .

Em termos de administração pública, o problema das “grandes distâncias”, quer dentro das províncias, quer entre elas, quer entre as províncias e a Corte, pode ser definido como problema de economia de tempo, de dinheiro e de serviço de pessoal. Esta seria uma das consequências dos vícios administrativos no período investigado, com prejuízo para a sociedade e para o Estado. “Quando um governo, ignorante de seus próprios vícios, arrasta o país ao abismo dos desenganos (...), é preciso que os homens de bem (...) tomem a seu cargo estudar os males do presente, indicar os meios, abrir os caminhos e preparar no espírito do povo o leito para as futuras reformas” (BASTOS, 1975aBASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. 4ª. ed., feita sobre a 2ª. ed.de 1863. São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975a.: 13). A ideia da liberdade do trabalho, a realidade dos vícios da administração e a ambição política de reformas administrativas e econômicas no País que animaram o autor de Cartas do Solitário no Segundo Reinado não estão referidas diretamente à realidade do período aqui investigado, o da monarquia portuguesa instalada no Brasil em 1808.

No entanto, a citação acima permite pensar “os males do presente” da burocracia judiciária, vivenciados à época por advogados e juízes nas mais longínquas vilas e cidades do País, como consequência da estrutura político-administrativa que regulava as relações entre as localidades e o poder central. “A história interna da metrópole aclara a fisionomia da colônia” (BASTOS, 1975b________. Os males do Presente e as Esperanças do Futuro (Estudos Brasileiros). São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975b.: 30). Com esta citação, o autor de Os Males do Presente e as Esperanças do futuro procurou explicar “o embrutecimento do Brasil” no início do século XIX através do “sistema colonial”. “Poucos, talvez, observam o presente das alturas do longínquo passado, e vão procurar aí o fio dessa cadeia de elementos que, a meu ver, explica, de uma maneira completa, o quadro medonho oferecido à contemplação de nossos dias” (BASTOS, 1975b: 39).

A questão dos advogados e juízes não era com “as futuras reformas”, e sim com “os males do presente”. Não estando preocupados com o conhecimento capaz de instrumentalizar a mudança da realidade, estes agentes da justiça pareciam principalmente descrever através de suas narrativas as dificuldades frequentes e comuns que viviam e sentiam no exercício de seus ofícios. As “grandes distâncias” no “presente” dos advogados provisionados figuravam como método de apresentação de uma questão político-administrativa de origem antiga não estudada, e sim por eles vivenciada.

4- Provimentos Temporários que Questionam a Centralização Político-Administrativa

Sou obrigado a admitir advoguem (…) dois advogados aos quais ainda não chegaram as régias provisões, que mandaram buscar ao Tribunal (…), aonde os demais não requererão naturalmente, pela falta de meios e por sua constante pobreza.

Esta informação foi prestada pelo Ouvidor Antonio Batalha no pedido de provisão de Ignácio Francisco de Burgos Saldanha.41 41 Ver nota no 10. Reconheceu Batalha que a Relação da Bahia e o Governo de Pernambuco vinham passando provisões de modo sistemático e incompetente, mas que esta situação era justificada como forma “de obstar a que os providos fossem para outras comarcas, onde, penso, lhes é lícito servirem com semelhantes títulos”. Para que a comarca não ficasse sem advogado, fixou o Ouvidor de Alagoas em um ano o tempo para que os interessados tirassem suas provisões junto ao Tribunal do Desembargo do Paço:

[Afinal, na comarca em questão,] não há advogados formados, (...) e que, assustados, ou com a necessidade de subirem a um exame no Tribunal soberano, ou com a falta de meios para aí tirarem suas provisões, não têm mais cuidado em as tirarem, e as vilas das comarcas se acham sem quem requeira o direito das partes em desvantagem mesmo dos interesses da Real Fazenda.

Agindo em nome do interesse público, do Estado e da sociedade, e assim justificando comportamento que certamente não poderia explicar como sendo próprio da função e do cargo que ocupava na administração pública, o Ouvidor como que teria confirmado a ideia segundo a qual “a falta de iniciativa, portanto, transforma as secretarias em máquinas de processos de papéis, e, por assim dizer, em verdadeiros arquivos” (BASTOS, 1975aBASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. 4ª. ed., feita sobre a 2ª. ed.de 1863. São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975a.: 28). A iniciativa do Ouvidor de nomear advogados sem provisão régia, com comportamento cuja fronteira se situava entre a indisciplina do funcionário público e a autonomia do cidadão do comum nas assembleias42 42 O comportamento do Ouvidor talvez pudesse ser expressão de inconformismo. Supondo a criação de imperativos de reforma, “o inconformismo é definido por uma adesão aos pressupostos, acompanhada, porém, de negação das normas” (RAMOS, 1966: 253). , pode ser interpretada como juízo crítico das consequências da estrutura político-administrativa vigente no Brasil. Ela corresponderia à hipótese de uma forma concreta e particular de “descentralização”, em gérmen e ocasional, em reação ao que o espírito liberal do autor de Os Males do Presente e as Esperanças do Futuro chamou em sua época de “anarquia das ideias e dos fatos” (BASTOS, 1975b: 41), como sendo a anarquia moral que, de fato, ameaçava o Brasil.

Em 1821, no pedido de Luiz José de França43 43 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , para advogar na vila de São Salvador dos Campos de Goitacazes, determinou o monarca que "deve informar o ouvidor da comarca (…) qual é a lei, ou Ordem Régia, que lhe concede faculdade para passar provimentos aos advogados". Não se tratava de um capricho do monarca à frente de um governo absoluto. A determinação do rei quanto à informação a lhe ser prestada como que possuía caráter pedagógico quanto a uma lição a não ser esquecida pelos agentes do poder público: a da subordinação do poder administrativo em relação ao poder político. A resposta como que veio através da informação que o Ouvidor interino de São Paulo prestou, em 1822, no pedido de Manoel José da Silva e Castro44 44 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , ao declarar "não existir nesta Ouvidoria resolução, título ou ordem que autorize aos ouvidores a passarem provimento para advogar". Explicação provável para essa prática foi encontrada, em 1821, no despacho do Procurador da Coroa no pedido de Manoel Maria Ricaldes Marques45 45 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. . Ao determinar fosse passada "ordem ao Governador e Capitão General da Província de São Pedro para que fique na inteligência de que os governadores da dita província não têm autoridade para conceder provisões para advogar, como, aliás, tem concedido os seus antecessores", o Procurador atribuiu aquela prática ao equívoco da interpretação e aplicação do artigo dez do Regimento, "pois que este artigo é relativo unicamente aos provimentos dos ofícios da Fazenda (…), estando os da justiça nos casos da Carta Régia de dezenove de dezembro de mil setecentos e noventa e nove, visto que as provisões para advogar são da competência desta Mesa privativamente”. A informação do Procurador da Coroa foi a confirmação dos poderes pertencentes ao monarca de acordo com o direito vigente.

Em suma, uma prática hermenêutica costumeira e equivocada de uma determinação régia específica estaria na base da explicação da iniciativa que o próprio Ouvidor Batalha considerou resultar de uma obrigação que não decorria de seu ofício. No entanto, ela pode ser interpretada como uma saída liberal capaz de explicar o comportamento de quem enfrentava nas vilas e cidades do País as consequências diretas e imediatas da centralização político-administrativa. “Os inconvenientes de um tal sistema (...) tornam-se manifestos, sobretudo, quando se trata da nomeação e demissão de certos empregos exercidos nas províncias. Um carcereiro (...), um escrivão (...) e empregados de escrita das repartições gerais nas províncias, por que hão de ser nomeados pelo imperador?” (BASTOS, 1975aBASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. 4ª. ed., feita sobre a 2ª. ed.de 1863. São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975a.: 31). O espírito do Ouvidor Batalha talvez tenha sido afligido por indagações semelhantes acerca da necessidade de nomeação de empregados liberais pelo monarca.

Tendo em vista a promoção do direito da população local, cinco advogados sem provisão foram “autorizados pelos juízes das terras a assinarem seus papéis”. Procurava-se, assim, evitar na comarca de Vila Rica, em 1808, “o que tem dado motivo a serem os artigos e mais articulados assinados pelas partes”. Este foi o fundamento do pedido de licença para advogar de Lucindo Pereira dos Passos46 46 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. . Situação semelhante se repetiu nas seguintes histórias. Francisco da Silva Leitão Júnior47 47 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , "filho legítimo de outro advogado da vila de Serinhaem (...), obteve do Desembargador e Ouvidor do Cível, Corregedor da Comarca de Pernambuco, licença para exercer as funções de advogado da vila por tempo de seis meses, vista a necessidade que dele havia e ser o requerente examinado em direito civil na presença do ministro". De Serinhaem era também o advogado Francisco Soares Quintão48 48 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. . "Tendo já antes servido a V.A.R.49 49 V.A.R. é a abreviatura de Vossa Alteza Real. Era fórmula que os advogados usavam para se dirigir ao poder soberano antes da independência do Brasil. no magistério de mestre de primeiras letras da cidade de Olinda por provisão régia concedida por tempo de seis anos e depois no da vila de Serinhaem por provisão do Governador respectivo com toda a honra e probidade", Quintão pediu provisão vitalícia, em 1814, para "qualquer vila ou cidade das comarcas de Olinda e de Pernambuco". Em 1811, ao reconhecer a falta de advogados naquela vila, afirmou o Desembargador-Ouvidor do Recife que, de acordo com o "antigo costume, deram os meus antecessores as hábeis provisões para advogar, sendo o suplicante um dos contemplados". Contra a prática de passar provimento não tardou a se insurgir o poder monárquico na mesma provisão, de três anos, que concedeu a Quintão50 50 Veja nota 45. : " (...) e ordem ao Ouvidor declarando-se-lhe que não passe semelhantes provisões por não caberem na sua jurisdição".

Paradoxalmente, a prática do costume das provisões incompetentes, ou dos provimentos temporários sem amparo normativo, mais do que revelar a existência de conflitos de poderes entre o centro (monarca) e as províncias (governadores) ou conflitos no funcionamento da estrutura burocrática do Estado, entre o monarca e seus funcionários, ela reforçava o peso da ordem político-administrava que definia os limites da liberdade ou de iniciativa dos indivíduos. Na ausência da prática da liberdade dos advogados, que resultaria da luta segundo interesses coletivos organizados, o governo monárquico exercia sua função reguladora. A complexidade do quadro das relações entre o centro do poder e as províncias do País pode ainda ser identificada quando se considera a informação do Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca em relação ao pedido de Elias Bittencourt Vasconcellos51 51 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , de 1822, para advogar nos auditórios de Cabo Frio:

(...) não pode [Vasconcellos] fazer [a justificativa de ser capaz e ter os conhecimentos necessários para a ocupação de advogado] por não poderem suas testemunhas vir a esta Corte; e como ali há o Dr. Juiz de Fora, aonde o suplicante comodamente pode dar aquelas testemunhas sem detrimento destas, que pelos incômodos que sofrem, não quererão vir a esta Corte, requer a V.S.A.. se digne conceder comissão ao Dr. Juiz de Fora da Cidade de Cabo Frio [para o fim em questão].

Assim, à “dificuldade que o suplicante tem de requerer e conseguir provisão pela distância e não poder fazer por si próprio" se somava aquela do comparecimento das testemunhas necessárias para confirmar o conteúdo de seu pedido perante o poder concedente, e ambas podem ser compreendidas no contexto da própria estrutura do poder vigente de que se originavam. Diferentemente do Ouvidor de Alagoas que prestou informação quanto à sua iniciativa de nomear advogados, o Ouvidor Geral e Corregedor da Comarca de Cabo Frio informou sobre a iniciativa de advogado que solicitou ao monarca fosse concedida “comissão” a funcionário da burocracia judiciária para passar provisão. Nas duas situações, há elementos que permitem pensar a descentralização segundo o problema de distribuição de poder. Em 1815, o pedido de provisão vitalícia de José Ignácio Ribeiro de Abreu e Lima52 52 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. para advogar em Pernambuco mostrou como a ausência de poder local capaz de decidir e autorizar a continuidade de serviço de natureza pública definia os limites concretos do exercício do poder central sediado na Corte do Rio de Janeiro: “quando acaba o dito tempo de três anos, fica suspenso o suplicante de continuar na defesa de seus clientes pela falta de autoridade ali existente que o autorize, dando causa a isto a distância desta Corte”.

À semelhança dos ouvidores-gerais, os governadores e capitães - que possuíam jurisdição própria em suas capitanias e províncias, mas que não estavam autorizados pela Corte a passar provisões - podiam afastar-se da sede de seus governos para participar de “campanhas” pelo território. Em 1812, o governador do Rio Grande de São Pedro do Sul se achava "em campanha distante da mesma capitania perto de trezentos léguas". Com dificuldades de requerer anualmente junto ao Desembargo do Paço, Domingos Martins Pereira53 53 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. solicitou ao governador daquela capitania, através de seu procurador, a graça de advogar por tempo de três anos. Diferentemente de Vasconcellos que se dirigiu ao monarca na Corte para solicitar distribuição de poder a agente da burocracia do Estado, Pereira se dirigiu a representante de governo provincial em itinerância em sua localidade e, como quem lhe reconheceu ou concedeu poder de nomeação, solicitou autorização para advogar.

Orientado pela preocupação com a unidade do império, e não identificando na divisão deste em províncias senão o sentido e fim da conveniente distribuição dos órgãos da administração, um jurista conservador diria que as províncias “não são Estados distinctos ou federados, [e] sim circumscripções territoriaes, unidades locaes, ou parciaes, de uma só e mesma unidade geral (...) [e que] importa certamente muito que os centros administrativos não tenhâo raios tão extensos que amorteçâo a ação governamental” (BUENO, 1857BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Publico Brazileiro e Analyse da Constituição do Imperio. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e C., 1857.: 22). Identificando império com centralização e com fundamento nas experiências liberais vividas no País, afirma o autor de Ensaio sobre o Direito Administrativo: “a centralização é a unidade da Nação e a unidade do poder. É ela que leva às extremidades do corpo social aquela ação que, partindo do seu coração e voltando a ele, dá vida ao mesmo corpo” (URUGUAI, 1862URUGUAI, Visconde do (Paulino José Soares de Sousa). Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: s. ed., 1862, tomos 1 e 2.: 164, tomo II). Para um liberal que não reconhece a solução para o problema da centralização senão através “uma reforma séria e profunda”, as bases da mudança suporia: “Emancipação de todas as indústrias e profissões (...) [e] concessão aos presidentes do direito de nomear e demitir grande número dos empregados gerais nas províncias, e de processar e julgar definitivamente a maior parte dos negócios” (BASTOS, 1975aBASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. 4ª. ed., feita sobre a 2ª. ed.de 1863. São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975a.: 46)54 54 A disputa política entre os Saquaremas e os Luzias no Brasil dos anos 40 do século XIX possuía por fundamento a oposição entre poder forte e poder fraco e sua relação com a centralização e a descentralização, respectivamente. Ver Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema, 1994. .

5- Advogados Debaixo da Assinatura de Terceiros que Questionam a Centralização Político-Administrativa

Em 1816, na cidade da Bahia, “onde presentemente só existem quatro advogados formados”, Luís de França de Ataíde Moscoso55 55 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , ao fundamentar seu primeiro pedido de provisão, afirmou ter “a prática do foro, o conhecimento do direito em alguns papéis e despachos que tem feito debaixo da assinatura de outrem”. Manoel Quadrado de Araújo, bacharel formado pela Universidade de Coimbra e advogado no Tribunal da Relação e auditórios da cidade da Bahia, confirmou a advocacia de Moscoso. André Pinheiro Requião, que, em 1817, solicitou provisão para advogar na cidade da Bahia, advogava “debaixo da assinatura” de seu pai, que era advogado56 56 Este advogado viu-se “impedido de transportar-se à Universidade de Coimbra e formar-se no direito civil, como intentava, pelas grandes revoluções francesas, que atacaram o Reino de Portugal daquele mencionado ano de 1807 em diante até quase o presente”. Em 1824, “findado sua segunda provisão em outubro de 1821, (…) fora imediatamente impedido de requerer nova, por terem princípios as revoluções naquela cidade de o dia três de novembro do ano de 1821, que duraram até julho de 1823”. Ver nota 9. As "revoluções" nas províncias, que convulsionaram a Bahia em 1821, era o caminho que fazia a revolução liberal no País e a tradução do desejo de que o Brasil se tornasse constitucional. O apoio das Cortes de Lisboa à revolução constitucional do Porto, em 1820, coincidira com o pedido de regresso do Rei. Afinal, Portugal não mais se encontrava sob o jugo de Napoleão, e a elevação do Brasil à condição de Reino, colocando o País em pé de igualdade com Portugal, desagradava aos portugueses. Para os brasileiros, a sede da monarquia significara a experiência da liberdade, com a qual se acostumara, e a ida do príncipe herdeiro para Portugal não retirava este país da situação de inferioridade perante o Brasil. Tendo apoiado a revolução do Porto, o Brasil enviara os representantes das províncias que examinariam as leis constitucionais a serem discutidas em Lisboa. Foram eles mal recebidos em Portugal. A constitucionalização do Reino impunha, pois, fossem as "revoluções" feitas dentro das fronteiras do país de Requião. . Sob juramento aos Santos Evangelhos, dois advogados sexagenários dos auditórios da Relação da Bahia confirmaram a advocacia de Requião. Em 1818, na cidade da Bahia, Francisco José Damásio Matos advogava há mais de vinte e sete anos57 57 A advocacia debaixo da assinatura de terceiros de Manoel Gonçalves Pereira chama a atenção pela duração de seu exercício e, assim, da antiguidade da referida prática costumeira. Em 1812, ele advogava debaixo da assinatura dos licenciados na cidade da Bahia há mais de trinta e cinco anos. Afirmou este advogado que desejava “ser útil ao Estado e muito principalmente aos auditórios daquela cidade da Bahia”, onde tinha seus clientes para defender. . Tinha a seu cargo “a defesa de muitas partes, que protege debaixo das assinaturas de outros advogados”. Eleutério José Pinto58 58 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , que, em 1823, solicitou provisão para advogar na cidade de São Paulo, advogava “debaixo da assinatura" de advogados. Joaquim José da Silveira Baptista, Antonio Manoel de Jesus e Augusto de Lima Vasconcellos foram alguns dos advogados que confirmaram ter assinado os papéis de Pinto.

Conceito operacional e instrumento de análise do fenômeno “advocacia debaixo da assinatura de terceiros” pode ser a definição de “rábula”: “o Estatuto da Universidade de Coimbra, no Liv. 2, tit.6, cap. 8312, denomina os rábulas por professores de uma jurisprudência empírica.”59 59 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 02. Arquivo Nacional. A ênfase no caráter empírico desta advocacia, em oposição à advocacia diplomada, não permitiria distingui-la facilmente da advocacia provisionada, senão como prática não reconhecida formalmente pelo Estado. Do contrário, como “professores de uma jurisprudência empírica”, os rábulas e os provisionados não passavam de autodidatas com formação prática obtida com o estudo das Ordenações portuguesas e com domínio da palavra. Além disto, possuíam como clientela pessoas da sociedade destituídas de recursos materiais. Por outro lado, o uso prático dessa definição estatutária revelaria motivação que talvez até mesmo impedisse o exercício da advocacia. Em 1812, Antonio Cardoso da Silva requereu e obteve, junto à Chancelaria-Mor, o embargo do trânsito da candidatura de Theotonio Roque Fernandes a uma nova provisão pela Mesa do Desembargo do Paço, sob a alegação de que ele era “indigno de ocupar o honorífico número de Advogado.” Com provisão de um ano para advogar em Vitória, comarca da província do Espírito Santo, Joaquim José Pereira60 60 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. , cujo “honorífico posto de capitão” não lhe pertencia, pois não possuía “patente em alguma arma”, foi “cassado” pelo governador da província em razão das “desordens que este Rábula movia entre as partes (…) e muito mais como assessor do juiz ordinário Ignácio de Loyola Pimentel”, que, sob sua influência, era frequentemente levado a cometer injustiças. Assim, qualificar um advogado que possuísse provisão ou que exercesse a advocacia debaixo da assinatura de terceiros de “rábula” constituiria meio de desmoralizá-lo e desacreditá-lo como advogado.

Debaixo da assinatura alheia também se encontravam advogados que eram padres e que só eram autorizados a exercer a advocacia nos juízos eclesiásticos. Esta era a situação em que se encontrava Joaquim Elias de Vasconcelos.61 61 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. A falta de provimento também justificava a advocacia sob o patrocínio de terceiros. Caetano de Araújo Eça62 62 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. exercia “sem nota a advocacia nesta cidade [da Bahia] debaixo da assinatura alheia por falta de provimento”. Outro foi o fundamento da advocacia de Manoel José da Silva Soares63 63 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. : “para sua subsistência, usar de suas letras debaixo de precárias assinaturas de homens formados”.

De um lado, a prática da advocacia debaixo da assinatura de terceiros questionava, senão a legitimidade, ao menos a eficiência da estrutura político-administrativa vigente no Brasil quanto à nomeação de cargos pelo poder central. Ainda que sua origem histórica não se vinculasse orgânica e causalmente à estrutura político-administrativa vigente no País, a advocacia debaixo da assinatura de terceiros constituía forma de autonomia - ainda que relativa - dos advogados em relação às determinações monárquicas. De outro lado, ela revelava a dependência dos advogados não formados principalmente em relação aos advogados diplomados. Se autônomos em relação ao Estado quanto ao reconhecimento formal de suas atividades, os advogados deste tipo específico de advocacia dependiam do reconhecimento pessoal dos advogados diplomados, aos quais estavam sujeitos. Eles encarnavam autonomia e sujeição ao mesmo tempo. Considerando, por exemplo, a relação dos advogados debaixo da assinatura de terceiros com o monarca, a independência daqueles, em um primeiro momento, significaria escapar à rigidez da ordem político-administrativa constituída e representada por este, mas, em um segundo momento, com o exercício da advocacia no âmbito da burocracia judiciária do Estado, aqueles advogados terminariam por ajustar-se à tal ordem, ainda que ela não revelasse sinais de mudança. É esta dialética da ambiguidade que, melhor descrevendo o “regime autocrático do império”, explicaria “a função latente do formalismo” (RAMOS, 1966RAMOS, Guerreiro. Administração e Estratégia do Desenvolvimento; elementos de uma sociologia especial da administração. Rio de Janeiro: FGV, 1966.:369).

A realidade da advocacia não diplomada reproduzia aos menos formalmente características das condições de sujeição e subordinação dos advogados provisionados identificadas nos pedidos de provisão. Se, antes, eles se encontravam “sob os olhos do soberano” (MATTOS, 1994MATTOS, Ilmar Rohlof de. O Tempo Saquarema; a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: Access, 1994.: 183), agora eles estavam sob a vigilância do bacharel. Considerando a realidade “distância”, os advogados provisionados se encontravam separados e afastados do soberano, mas juntos e próximos do bacharel. A dialética da distância garantia a maior ou menor vigilância e direção dos advogados provisionados por parte do Estado ou do bacharel. Na hipótese do soberano, seu pressuposto era a centralização. Quanto ao advogado diplomado, havia uma espécie de ethos particular a regular as relações com o advogado provisionado que assumia sentido oposto àquele que define o papel dos agentes que formam a administração pública: “[colocar-se] em contato com os particulares, que lhes transmite[m] as suas ordens, que estuda[m] as suas necessidades e recebe[m] as suas reclamações.” (URUGUAI, ano: 18, tomo I). Como conjunto de mecanismos de regulação ou normalização dos comportamentos dos advogados, esse ethos seria a expressão de poderes difusos e quotidianos na vida dos advogados64 64 Estes seriam poderes “microfísicos”, poderes definidos através da seguinte pergunta: “O que é o poder -ou melhor (...) quais são, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, os diversos dispositivos de poder que se exercem a níveis diferentes da sociedade, em domínios e com extensões tão variados?” (FOUCAULT, 1979: 174). Estes seriam poderes “moleculares”, poderes referidos a “todas as lutas pelos espaços de liberdade” (GUATTARI, 1977: 221) e à questão da reprodução, ou não, dos modos de subjetividade dominantes. , poderes esses que talvez explicassem essa forma duradoura de advocacia.

Em 1810, Valentim José Maria da Fontoura65 65 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. advogava em vila da capitania de Minas Gerais. “Há seis anos se acha exercendo (...) o emprego de advogado, com banca aberta, fazendo todos os papéis (...), assinando-lhes os mesmos o bacharel José Borges Coelho, e este muitas vezes impedido para ser ajustar com as partes contrárias as do suplicante”. Coelho era o “único [advogado] formado que há por aqueles contornos”, e o “inconveniente” de não poder assinar certos papéis de Fontoura acarretava “grande prejuízo para as partes”, que terminaram precisando recorrer “para as causas de maior ponderação à cabeça da comarca distante vinte e oito léguas e à cidade de Mariana cinquenta e duas léguas com aviltadas despesas”. Estes fragmentos mostram que a solução de possíveis conflitos de interesses entres as duas categorias de advogados - quer de natureza ética, quer de natureza profissional, quer de natureza ético-profissional - produzia para as partes e a sociedade as mesmas dificuldades enfrentadas pelos advogados que solicitavam provisão ao monarca: as grandes distâncias. Elas poderiam ser interpretadas como sendo um problema de “insuficiência da divisão territorial” (URUGUAI, 52, tomo II) ou revelar que “a maior necessidade pública, a mais grave de todas, consiste em vias de comunicação” (BASTOS, 1975aBASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. 4ª. ed., feita sobre a 2ª. ed.de 1863. São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975a.: 36).

Ao garantir o exercício da advocacia de forma adaptada às circunstâncias reais da vida dos advogados, a advocacia debaixo da assinatura precária de terceiros - embora referida a advogados com habilidade técnica, com aprovação social e com comportamento recomendável - implicava o descumprimento das determinações jurídico-políticas quanto à necessidade de provisão para advogar. Tratava-se de um costume contra o direito e contra o Estado. Traduzindo a necessidade e a dependência da administração da justiça em relação aos advogados, a advocacia sem provisão era apoiada e mesmo estimulada por "homens da lei e do Estado". José Borges de Mello, procurador real da Fazenda e Coroa, juiz das Medições das Sesmarias e bacharel formado em Cânones pela Universidade de Coimbra, "nunca duvidou (…) de assinar quaisquer papéis de (…) Francisco das Chagas Teixeira Parreiras”66 66 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. . Embora soubesse da proibição da "Ordenação, Livro primeiro, Título quarenta e oito, de se não permitir provisão para advogar na Corte senão aos que se achassem munidos de Cartas de Formatura", Manoel José da Silva e Castro67 67 Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. aí "exercitou a mesma ocupação [por mais de quarenta anos] debaixo da assinatura de homens formados que conceituaram o [seu] talento" e, mesmo assim, ou por isso mesmo, requereu, em 1813, provisão ao Desembargo do Paço. Este tribunal rejeitou o pedido alegando "não haver exemplos da mesma graça quando havia necessidade de advogados, e como o número da lei nunca existisse nesta Corte, e hoje muito menos”.

"Debaixo da assinatura de terceiros" era situação protagonizada por não poucos advogados no Brasil dos provisionados. Ela sugere que a prática desse tipo de advocacia, comparada com a advocacia provisionada, não só foi uma prática corrente durante o período estudado como também servia - apesar das disposições reais em contrário - como fundamento para a obtenção de provisão em face da experiência que ela conferia. Sem ser reconhecida formalmente como emprego, ela existia como tal na realidade da justiça com a chancela dos “homens da lei”. E mais do que isto! Assim como os provimentos passados de forma incompetente suscitavam a reação contrária do monarca, a advocacia “costumeira” contra o direito vigente “possibilitava uma vigilância que tanto era [ou poderia ser] um controle sobre as infrações das regras impostas quanto uma modelagem daqueles que se tinha em vista civilizar” (MATTOS, 1994MATTOS, Ilmar Rohlof de. O Tempo Saquarema; a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: Access, 1994.: 191). À semelhança dos objetivos buscados com o panóptico benthamiano, a vigilância do monarca era a expressão “[d´] o olho do poder” (FOUCAULT, 1979FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.: 209).

6- Conclusão

Os pedidos de licença para advogar que os advogados formulavam ao monarca no Brasil durante as primeiras décadas do século XIX revelaram a existência de um sistema de relações que articulava fatos históricos, relações sociais, estruturas jurídicas, manifestações políticas, condições econômicas e práticas administrativas. A complexidade deste sistema de múltiplas relações produziu a discussão sobre duas ordens de fatos. Primeira: o emprego de advogado provisionado no funcionamento da burocracia judiciária e nas relações entre o Estado e a sociedade. Segunda: os obstáculos enfrentados pelos advogados provisionados segundo “as grandes distâncias” que separavam as vilas e comarcas onde eles moravam e exerciam a advocacia da sede do poder central onde se localizava o tribunal perante o qual os pedidos para advogar deveriam ser apresentados. Considerando que a preocupação dos advogados provisionados era quanto ao enfrentamento dos obstáculos ao exercício da advocacia, a discussão acerca da natureza desta atividade se impôs como necessidade de compreensão da relação da advocacia com a burocracia do Estado.

A principal consequência dos obstáculos vivenciados pelos advogados era a não obtenção do título que garantia o exercício da advocacia, a provisão régia. Como pressuposto necessário da vigilância do monarca, as grandes distâncias produziram dificuldades para os advogados que foram analisadas como consequências da centralização político-administrativa que caracterizava a monarquia absolutista no Brasil no primeiro quartel do século XIX. A análise da centralização político-administrativa do Segundo Reinado por políticos liberais e conservadores da época revelou que eles se preocuparam com questões que já haviam sido formuladas pelos advogados provisionados nos pedidos de licença para advogar feitos ao monarca através de uma linguagem circunstancial que apontava as dificuldades no exercício da advocacia como decorrência da centralização do governo.

As práticas adotadas pelos advogados para continuarem exercendo a advocacia nos juizados locais foram interpretadas como estratégias racionalmente empregadas no enfrentamento das dificuldades e obstáculos decorrentes da estrutura de centralização vigente no País. Os pedidos de provisão vitalícia ao monarca, os pedidos de provimento temporário feitos a agentes do poder e da administração em viagem pelas províncias e as práticas da advocacia debaixo da assinatura de terceiros foram considerados como tipos práticos das principais estratégias adotadas pelos advogados provisionados. Traduzindo mais o papel de práticas costumeiras já existentes do que o resultado de mudanças que pudessem alterar o sistema das relações, estas estratégias e mecanismos foram interpretados também não como expressão de comportamentos infratores das regras e determinações vigentes, e sim como manifestação da iniciativa ou autonomia, da capacidade ou liberdade de contestação dos advogados quanto à compreensão que possuíam acerca dos problemas de natureza igual ou semelhante que viriam a inquietar pensadores e políticos durante a monarquia constitucional.

Ao remeter também ao problema das administrações locais, a dialética da distância, sentida e compreendida pelos advogados provisionados, foi igualmente identificada na problematização tanto dos poderes públicos que concediam toda a sorte de autorização para o exercício da advocacia como do funcionamento das estruturas administrativas vigentes no País mesmo depois da independência política do Brasil em relação a Portugal e da promulgação da Constituição de 1824.

7- Referências bibliográficas

  • BASTOS, Aureliano Cândido Tavares. Cartas do Solitário. 4ª. ed., feita sobre a 2ª. ed.de 1863. São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975a.
  • ________. Os males do Presente e as Esperanças do Futuro (Estudos Brasileiros). São Paulo: Companhia Editora Nacional, INL, 1975b.
  • BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Publico Brazileiro e Analyse da Constituição do Imperio. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve e C., 1857.
  • CARVALHO, José Murilo de. A Construção da Ordem: a elite política imperial; Teatro de Sombras: a política imperial. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, Relume-Dumará, 1996.
  • DÉLOYE, Yves. Sociologia histórica do político. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 1999.
  • FAORO, Raymundo. Os donos do poder; formação do patronato político brasileiro. São Paulo, Globo, 1996, v. 1.
  • FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
  • GAUCHET, Marcel. La condition politique. Paris: Gallimard, 2005.
  • GUATTARI, Felix. Revolução Molecular; pulsações políticas do desejo. São Paulo: Brasiliense, 1985.
  • LIMA, Oliveira. O Império Brasileiro (1822-1889). Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986.
  • MALERBA, Jurandir. A Corte no Exílio; civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
  • MATTOS, Ilmar Rohlof de. O Tempo Saquarema; a formação do Estado Imperial. Rio de Janeiro: Access, 1994.
  • MATTOS, Ilmar Rohlof de, GONÇALVES, Marcia de Almeida. O Império da Boa Sociedade; a consolidação do Estado imperial brasileiro. São Paulo: Atual, 1991.
  • NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
  • NEVES, Lúcia Bastos Pereira, MACHADO, Humberto Fernandes. O Império do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
  • PRADO JUNIOR, Caio. Evolução Política do Brasil; ensaio de interpretação dialética da história brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1947.
  • RAMOS, Guerreiro. Administração e Estratégia do Desenvolvimento; elementos de uma sociologia especial da administração. Rio de Janeiro: FGV, 1966.
  • RODRIGUES, José Honório. O Conselho de Estado; quinto poder? Brasília: s. ed., 1978.
  • URUGUAI, Visconde do (Paulino José Soares de Sousa). Ensaio sobre o Direito Administrativo. Rio de Janeiro: s. ed., 1862, tomos 1 e 2.
  • VIDAL, Armando. A Ordem dos Advogados no Brasil. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, 1919.
  • WEBER, Max. “Burocracia” IN WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.

8- Fontes documentais

  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03, documento 42. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 1. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 3. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01, documento 04. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 1
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 2
    Ver, por exemplo, a provisão passada a Antonio Xavier de Gusmão por Dom João, em 1820, para continuar no emprego de solicitador de causas nos auditórios da vila de Resende. Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 3
    Em seu pedido de licença para advogar de 1826, João Marques de Mattos precisou fazer prova de que era cidadão brasileiro. Em 1824, ele havia jurado a Constituição do Império em livro próprio. Em seu pedido havia a seguinte informação de José Thomas Nabuco de Araújo, deputado pela Província do Pará à Assembléia Geral e Legislativa do Império do Brasil: “[ele] aderiu a Independência do Império do Brasil com todo o entusiasmo na Província do Pará, aonde se acha estabelecido há mais de doze anos sem nota alguma”. Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 3. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 4
    Em sua petição de justificação de 1826, Ignácio Dias de Oliveira afirmou sua condição de "fiel súdito brasileiro [que] pessoalmente compareceu no ato da feliz Aclamação de sua majestade o Imperador, dando decisivas provas do patriotismo, lealdade e adesão à Augusta Pessoa do mesmo Senhor". Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 1. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 5
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03, documento 42. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 6
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01, documento 04. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 7
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 8
    Documentação Judicial. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 9
    Novos Direitos eram o tributo que se pagava pelas mercês que o Rei concedia. De acordo com o Regimento de 11 de abril de 1661, “nenhum ofício [aqui compreendidos os de Justiça e Fazenda] é isento deles, nem escusa pessoa alguma (...) nem ainda eclesiástica”. “Em cada vila deve haver um tesoureiro e escrivão para a sua arrecadação, e são eleitos em Câmaras”, dispõe o Regimento. De acordo com o Alvará de 16 de setembro de 1675, “se mandou que o Superintendente dos Novos Direitos pudesse notificar os ministros e oficiais, proprietários e serventuários, para lhe apresentarem suas Cartas e Provimentos a fim de se ver por elas se têm pagado os Novos Direitos, e para proceder executivamente contra os que não tiverem pagado”. O decreto de 08 de junho de 1725 “mandou (...) que se não entregassem às partes os próprios provimentos, provisões, alvarás, padrões e cartas, mas somente bilhetes assinados pelos Secretários, ou escrivães, do despacho dos Tribunais, para se pagarem os Novos Direitos”.
  • 10
    De acordo com o Liv. 1, Tít. 48, das Ordenações Manuelinas, os advogados deveriam ter “cartas de bacharel e formatura”. Porém, o Alvará de 24 de julho de 1713 estabelecia que, onde não houvesse “cópia de advogados formados”, podia o Desembargo do Paço passar provisões para advogar.
  • 11
    Emolumentos eram, genericamente, os lucros que alguém tirava do seu cargo, ou emprego, e, especificamente, se dizia dos lucros casuais. Neste sentido, os emolumentos se contrapunham às rendas provenientes dos cargos ou empregos. Os decretos de 02 de março e de 24 de agosto de 1724 taxaram os emolumentos como sendo competentes para sustento e independência dos que administravam a justiça.
  • 12
    Amanuense era o escrevente, empregado de repartição pública, ou não, a quem cabia, geralmente, fazer cópias, registros, alguma correspondência oficial ou, simplesmente, escrever aquilo que lhe era ditado.
  • 13
    Almotaçaria, de acordo com o Liv. 3, Tít. 4, das Ordenações Manuelinas, era o ofício do almotacé ou o local onde o almotacé realizava audiência na presença de escrivães, zeladores e homens da vara. Segundo Liv. 1, Tit.49, da mesma Ordenação, o almotacé tinha a seu cargo não apenas cuidar de prazos e medidas, mas também taxar e, às vezes, distribuir, mantimentos e outros gêneros comprados e vendidos “por miúdo”.
  • 14
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 15
    A abreviatura S.A.R. significa Sua Alteza Real. Era fórmula que os advogados usavam para se dirigir ao poder soberano antes da independência do Brasil.
  • 16
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 17
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 18
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 19
    Aviso no 206, de 29 de maio de 1866. José Antonio Pimenta Bueno (Marquês de São Vicente) publicou o livro Direito Publico Brazileiro e Analyse da Constituição do Imperio (1857) quando já havia abandonado o partido liberal para juntar-se ao partido conservador. Paulino José Soares de Sousa (Visconde de Uruguai) publicou o livro Ensaio sobre o Direito Administrativo (1862), tendo sido senador do Império na bancada do Partido Conservador e Conselheiro de Estado. Os livros destes dois políticos serão usados na discussão do problema da centralização no Brasil imperial. Figura polêmica do Segundo Reinado, Francisco Gê Acayba de Montezuma (Visconde de Jequitinhonha) fundou o Instituto dos Advogados Brasileiros (1843).
  • 20
    De Acordo com o Aviso 206, de 29 de maio de 1866, o estrangeiro não podia advogar no Brasil. Os fundamentos desta decisão foram a Consulta da Secção de Justiça do Conselho de Estado de 19 de abril de 1866; o Aviso no 151, de 07 de outubro de 1828; e o decreto de 03 de janeiro de 1833.
  • 21
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03, documento 45. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 22
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 23
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 24
    Contudo, “leis” do período estudado consideravam a advocacia como múnus público: Aviso no 151, de 07 de outubro de 1828, e Provisão no 79, de 07 de dezembro de 1821. O Regimento de 07 de junho de 1605 também considerava a advocacia como múnus público. Mudanças de interpretação se verificaram, apenas, a partir de Avisos de 1860: Aviso 418, de 29 de setembro de 1860; Aviso 380, de 19 de junho de 1865; Aviso 522, de 23 de novembro de 1863; Aviso 423, de 16 de setembro de 1865.
  • 25
    Decreto de 08 de outubro de 1771 consagrava esta distinção com fundamento na aposentadoria ativa e passiva como privilégio dos advogados formados. Este privilégio era concedido apenas aos advogados das Casas de Suplicação, os quais deveriam ser bacharéis formados, examinados por lição de ponto (Ord. L. I, Tít. 48, p. 1o). Alvará de 24 de outubro de 1813 não admitia advogado de provisão nas Casas de Suplicação.
  • 26
    Veja Aviso no 48, de 29 de setembro de 1860; Resolução de 15 de dezembro de 1860; Aviso no 522, de 23 de novembro de 1863.
  • 27
    Veja Aviso no 147, de 17 de abril de 1867.
  • 28
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 29
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 30
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 31
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 32
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 33
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 34
    Eram instituições políticas nas quais estava encastelado “o espírito conservador-retrógrado, que representava os interesses ligados à reação antiprogressista” (PRADO JUNIOR, 1947: 189).
  • 35
    Os problemas decorrentes da centralização administrativa podem também ser exemplificados de acordo com uma das etapas do processo de habilitação para advogar: a realização do Auto de Exame no Tribunal do Desembargo do Paço, no Rio de Janeiro. Segundo determinação do direito português, aplicado no Brasil sem adaptação às circunstâncias da colônia, o exame a que eram submetidos os advogados - que implicava despesas com viagens e permanência na Corte - visava a avaliar seus conhecimentos sobre a legislação pátria, o direito comum e a prática do foro. Ver, por exemplos, os autos de exame de Bento Joaquim de Miranda Henriques (Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional) e Francisco Leite Ribeiro (Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03. Arquivo Nacional).
  • 36
    Na mais longínqua província do País, era preciso implorar ao governo na Corte licença e aprovação dos estatutos para o exercício de qualquer atividade industrial.
  • 37
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 38
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 39
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 40
    Informação prestada no Pedido de Licença de Eleutério José Pinto. Ver nota no 38.
  • 41
    Ver nota no 10.
  • 42
    O comportamento do Ouvidor talvez pudesse ser expressão de inconformismo. Supondo a criação de imperativos de reforma, “o inconformismo é definido por uma adesão aos pressupostos, acompanhada, porém, de negação das normas” (RAMOS, 1966: 253).
  • 43
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 44
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 45
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 46
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 47
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 48
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 49
    V.A.R. é a abreviatura de Vossa Alteza Real. Era fórmula que os advogados usavam para se dirigir ao poder soberano antes da independência do Brasil.
  • 50
    Veja nota 45.
  • 51
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 52
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 53
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 54
    A disputa política entre os Saquaremas e os Luzias no Brasil dos anos 40 do século XIX possuía por fundamento a oposição entre poder forte e poder fraco e sua relação com a centralização e a descentralização, respectivamente. Ver Ilmar Rohloff de Mattos, O Tempo Saquarema, 1994.
  • 55
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 176, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 56
    Este advogado viu-se “impedido de transportar-se à Universidade de Coimbra e formar-se no direito civil, como intentava, pelas grandes revoluções francesas, que atacaram o Reino de Portugal daquele mencionado ano de 1807 em diante até quase o presente”. Em 1824, “findado sua segunda provisão em outubro de 1821, (…) fora imediatamente impedido de requerer nova, por terem princípios as revoluções naquela cidade de o dia três de novembro do ano de 1821, que duraram até julho de 1823”. Ver nota 9. As "revoluções" nas províncias, que convulsionaram a Bahia em 1821, era o caminho que fazia a revolução liberal no País e a tradução do desejo de que o Brasil se tornasse constitucional. O apoio das Cortes de Lisboa à revolução constitucional do Porto, em 1820, coincidira com o pedido de regresso do Rei. Afinal, Portugal não mais se encontrava sob o jugo de Napoleão, e a elevação do Brasil à condição de Reino, colocando o País em pé de igualdade com Portugal, desagradava aos portugueses. Para os brasileiros, a sede da monarquia significara a experiência da liberdade, com a qual se acostumara, e a ida do príncipe herdeiro para Portugal não retirava este país da situação de inferioridade perante o Brasil. Tendo apoiado a revolução do Porto, o Brasil enviara os representantes das províncias que examinariam as leis constitucionais a serem discutidas em Lisboa. Foram eles mal recebidos em Portugal. A constitucionalização do Reino impunha, pois, fossem as "revoluções" feitas dentro das fronteiras do país de Requião.
  • 57
    A advocacia debaixo da assinatura de terceiros de Manoel Gonçalves Pereira chama a atenção pela duração de seu exercício e, assim, da antiguidade da referida prática costumeira. Em 1812, ele advogava debaixo da assinatura dos licenciados na cidade da Bahia há mais de trinta e cinco anos. Afirmou este advogado que desejava “ser útil ao Estado e muito principalmente aos auditórios daquela cidade da Bahia”, onde tinha seus clientes para defender.
  • 58
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 172. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 59
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 02. Arquivo Nacional.
  • 60
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 175, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 61
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 174, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 62
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 63
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 64
    Estes seriam poderes “microfísicos”, poderes definidos através da seguinte pergunta: “O que é o poder -ou melhor (...) quais são, em seus mecanismos, em seus efeitos, em suas relações, os diversos dispositivos de poder que se exercem a níveis diferentes da sociedade, em domínios e com extensões tão variados?” (FOUCAULT, 1979: 174). Estes seriam poderes “moleculares”, poderes referidos a “todas as lutas pelos espaços de liberdade” (GUATTARI, 1977: 221) e à questão da reprodução, ou não, dos modos de subjetividade dominantes.
  • 65
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 02. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 66
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 173, pacote 03. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
  • 67
    Documentação Judiciária. Desembargo do Paço. Pedidos de Licença para Advogar. Caixa 177, pacote 01. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 2020

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2020
  • Aceito
    12 Jul 2020
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier, 524 - 7º Andar, CEP: 20.550-013, (21) 2334-0507 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: direitoepraxis@gmail.com