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Ética & técnica em psicologia: Narciso e o avesso do espelho

EXPERIÊNCIA EM DEBATE

Ética & técnica em psicologia: Narciso e o avesso do espelho

Nélson Ernesto Coelho Júnior

Tomarei como ponto de partida para este texto reflexões estabelecidas a partir da experiência como docente de disciplinas introdutórias em cursos universitários de psicologia (Teorias e Sistemas em Psicologia – PUC-SP- 1989-1990 e Psicologia Geral - USP- 1995-2002). No convívio com alunos recém ingressos na Universidade venho notando, a cada ano, um progressivo desinteresse pelas conseqüências éticas das teorias e técnicas psicológicas. Costuma acompanhar esse desinteresse uma atitude pragmática e utilitarista, que transforma as técnicas em objetos de consumo de primeira grandeza, na expectativa de que se bem adquiridas, façam a diferença entre o sucesso e o fracasso em um mercado cada vez mais competitivo. Do outro lado do espectro que abrange as relações entre alunos, professores e instituições de ensino, gostaria também de tematizar as dificuldades de professores e instituições de ensino em tolerar aspectos que escapem aos modelos esperados para uma formação, que escapem de formatações previamente estabelecidas. Ou seja, a dificuldade em conviver com o que difere das expectativas, com a resposta ou a reflexão produzida por um aluno que eventualmente conteste ou ultrapasse os limites estabelecidos como necessários para uma formação em psicologia. Como uma forma de resposta a essas constatações, pretendo, neste texto, colocar em discussão alguns aspectos das relações entre ética e técnica no ensino e nas práticas em psicologia.

Para começar, proponho uma pequena vinheta de abertura:

Trata-se de uma experiência recente, vivida em sala de aula. Um aluno capaz, porém displicente, apresenta como resposta a uma questão de uma prova da disciplina Psicologia Geral I do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a cópia - palavra por palavra - de três páginas de um texto oferecido aos alunos como referência bibliográfica básica. Como se não bastasse, o texto era de minha autoria. A questão era a seguinte: "Argumente, exemplificando, favorável ou desfavoravelmente a respeito da seguinte proposição: enfocar eticamente as teorias psicológicas redefine o plano epistemológico característico da modernidade, concebido a partir da oposição sujeito/objeto." Não era uma questão fácil para um aluno de primeiro semestre de um curso de graduação de Psicologia. Embora sejam alunos que passaram por um exigente vestibular, questões como essa supõem uma grande capacidade de abstração e elaboração de um conhecimento recém apresentado. Em função disso, a prova é com consulta e propõe que o aluno escolha uma questão dentre quatro, seguindo a instrução de priorizar o esforço reflexivo e não a busca pela "resposta certa".

No momento da correção da prova desse aluno, levo um enorme susto e depois de titubear um pouco resolvo dar nota zero, comentando por escrito: "O que foi que aconteceu? Ou você acha que eu não tenho memória ou então que sou vaidoso demais". Na aula seguinte, em que comento a prova, converso com o aluno que acaba por reconhecer que usou de má fé, porque não tinha tido tempo de estudar, mas mesmo assim pede insistentemente que eu considere apenas o último parágrafo da prova em que ele tinha alinhavado, com suas próprias palavras, alguma coisa que ele chamou de conclusão. Com isso ele talvez obtivesse a nota mínima para fazer a prova de recuperação. Evidentemente nego seu pedido e dou o caso por encerrado. Passadas duas semanas, recebo ainda um e-mail do aluno reiterando seu pedido.

Acho que podemos explorar alguns aspectos ou possibilidades interpretativas dessa história, para além da displicência e óbvia má fé do aluno. O que podemos tirar disso tudo para nosso tema? É possível desenvolver argumentos que suponho estivessem na origem da atitude desse aluno. Algo do tipo: "de que serve estudar para essa matéria?" Ou: "esses professores provavelmente não corrigem as provas, já que ganham pouco e devem procurar todas as formas de trabalhar menos para não se sentirem tão otários, etc." Ou ainda, "Ah!, esse professor é do tipo que só dá nota boa se a prova for escrita com as palavras que ele usa nas aulas, uma prova que seja uma cópia perfeita do que ele pensa e diz." Pois bem, se esse for o caso, o aluno de meu relato levou isso ao pé da letra. E se for essa última opção interpretativa a correta, o que será que ela revela? De fato, não são raros os professores que narcisicamente gostam de ler e ouvir suas próprias palavras. Não se trata apenas de uma postura dogmática com relação ao conhecimento. Também não me parece que o fenômeno se reduza a formas de uso e abuso do poder. Não estaria nessa necessidade de um professor um dos sintomas que revelam o impedimento de uma ética que propicie o advento do que difere, o aparecimento daquilo que não é conhecido, do não familiar? O aprendizado formatado e rígido de técnicas não acaba sendo uma das formas de impedir o estabelecimento do contato com esse não familiar e ao mesmo tempo não se revelaria a melhor forma de garantir uma formação pragmática, para além desse estraga prazeres que é o questionamento ético? Por fim, não haveria, em situações desse tipo, que infelizmente não são tão raras, um acordo tácito entre alunos, professores e instituições para que prevaleça o mesmo e que não seja reconhecido o que difere, ou até mais, que seja excluído o que difere, o que escapa à formatação? É claro que quando um sintoma chega às raias do escândalo, como na situação relatada, o professor pode sempre se isentar e pôr toda a culpa no aluno. Afirmar algo como, "eu visava justamente o contrário, já que propus uma prova que valorizasse a capacidade reflexiva do aluno. Se o aluno não foi capaz, culpa dele. Se o aluno optou pela cópia de meu livro ou ainda - o que é mais provável, das notas que um colega preparou para a prova e não disse ser cópia do texto utilizado no curso, erro do aluno e eu não tenho nada com isso".

Mas como sou psicanalista e por vício de ofício acabo sempre querendo ver o latente por detrás do manifesto, não me restou outra alternativa a não ser pensar um pouco mais sobre o assunto e aproveitar a situação como um estímulo para uma reflexão sobre os esta estatutos da ética e da técnica na formação em Psicologia. Voltarei a isso um pouco mais à frente.

Cabe agora dar um passo atrás e comentar o impacto gerado pelo primeiro contato com a psicologia, em alunos de primeiro ano. Tenho escutado muitas vezes em sala de aula na disciplina de Psicologia Geral, questões do seguinte tipo:

® "Que critérios devo usar para escolher esta abordagem e não aquela, essa área de atuação e não a outra entre as que existem na Psicologia?"

® "Como posso fazer para resolver o mal estar e a ansiedade causada pela multiplicidade e a diversidade em Psicologia?"

E, em um outro patamar, às vezes surgem questões ainda mais complexas:

® "Como conciliar, na posição de psicólogo, o respeito pela diversidade e pela diferença, já que o outro é diferente de mim (um postulado ético), com as exigências de um mercado que cobra um conhecimento de técnicas e que exige que eu mostre competência (ou seja, devo estar voltado para mim mesmo, preocupado em cumprir as normas e prescrições corretamente)?"

® "Como acolher em mim e no outro aquilo que diverge, que coloca em discussão certezas identitárias?"

® "Como lidar com os preconceitos, com os limites e com as exclusões em psicologia?"

® "Como enfrentar um mercado com características cada vez mais competitivas?"

® "Devo agir eticamente e com isso, muitas vezes ser passado para trás, ou devo conquistar espaço a qualquer preço?"

Evidentemente, não são todos os alunos que conseguem perceber essas questões a ponto de formulá-las em palavras. Estes, estão um pouco mais aptos a lidar eticamente com os paradoxos de uma formação em psicologia dentro do mercado de trabalho atual. Infelizmente, os demais correm o risco de, apenas sentindo o impacto desses paradoxos e impossibilitados de decodificá-los, optarem pela solução mais simples. São os alunos que reproduzem conceitos e técnicas sem questioná-los, chegando a extremos como o exemplificado na vinheta apresentada anteriormente.

A FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO ENTRE OS PÓLOS DA ÉTICA E DA TÉCNICA:

Diante da série de questões apresentadas acima entendo que cabe avaliar, prioritariamente, algumas das tensões que emergem no processo formativo a partir das polarizações entre técnica e ética:

a) Prescrições de normas e técnicas versus formação de atitude ética:

Formar-se psicólogo parece cada vez mais caracterizar-se (como de resto, aliás, tem sido a marca dos mais diversos tipos de formação para o mercado), como uma rota pensada em termos de uma eficácia técnica. Tenho a sensação que há uma exigência para que a formação passe a ser uma extensão de práticas de consumo (só que aqui, supostamente, consumo de informações, conhecimentos e técnicas). Essa forma de exigência, muitas vezes, aparece expressa na fala e postura de alunos que de alguma forma, legitimamente, temem por seu futuro profissional em um mercado com características claramente pragmáticas, em que a mensuração da competência se faz através de supostas avaliações de eficácias técnicas. Deste ponto de vista, quanto mais explícito e doutrinário for o discurso dos professores universitários, melhor; quanto mais explícitas forem as prescrições de normas e técnicas ainda melhor, já que assim não haverá espaço para questionamentos e dúvidas e não se corre risco de falhas e "descaminhos". Assim, ao invés do privilégio de uma ética que valorize a busca de uma atitude profissional e de vida que se abra para a alteridade, para o reconhecimento das singularidades e pelo respeito às diferenças, coloca-se uma suposta "necessidade pragmática da eficiência", em função da qual prega-se o dever e a obediência ao primado da técnica.

b) Necessidade de formalizar escolhas (sempre em parte narcísicas)versusvoltar-se para a alteridade.

O aluno recém chegado ao universo de um curso de Psicologia aprende rapidamente que precisará fazer escolhas. Um professor de Análise Experimental do Comportamento apresentará na segunda semana de aula os postulados básicos de sua disciplina e, explicita ou implicitamente, sugerirá que suas técnicas são mais eficazes e que sua teoria é mais verdadeira. No dia seguinte o professor especialista em Piaget fará o mesmo e no terceiro dia o apóstolo de Lacan imporá suas verdades. Sem muito esforço o aluno perceberá que as verdades são mutuamente excludentes e as técnicas incompatíveis. Qual escolher, como se posicionar diante da multiplicidade e da diversidade da psicologia? Provavelmente uma 'oferta' será mais bem apresentada que outra, um professor será mais sedutor do que o outro, mas, principalmente, algo da experiência subjetiva do aluno, algum elemento pessoal (possivelmente de ordem narcísica) fará com que essa teoria e não aquela, essa técnica e não outra, surjam afetivamente como as mais simpáticas ( e/ou racionalmente, como a melhor, mais eficiente e verdadeira). Cada um de nós, é claro, traz em sua bagagem modelos identificatórios, que pouco mais, pouco menos, acabam por influenciar nossas escolhas. Isto é inevitável. Mas será que nossas escolhas entre teorias e técnicas da Psicologia têm que ter apenas esses elementos como critério?

Luis Cláudio Figueiredo (1996) desenvolveu uma sólida argumentação no sentido de propor a "ética" como critério fundamental para o desenvolvimento de escolhas entre teorias e técnicas no campo da Psicologia. Quais são as concepções éticas que sustentam cada uma das teorias psicológicas? De que forma cada uma das teorias e técnicas abre-se para o diferente, propõem-se a acolher ou não a alteridade? A partir de questões como estas Figueiredo sugere que a ética pode e deve substituir uma avaliação de cunho mais puramente epistemológico no campo das psicologias.

A meu ver, o que está implícito nessa discussão é se é ou não possível conjugar uma escolha, em grande medida narcísica, com uma abertura ética para aquilo que diverge (tanto em mim, de mim para comigo mesmo, como no outro). A perspectiva que procuro defender é que um curso de psicologia deveria proporcionar justamente essa conjugação. Ou seja, mesmo reconhecendo que escolhas serão necessariamente pautadas por necessidades narcísicas e identificatórias (e com isso, limitando a possibilidade mais ampla de convívio, aceitação e reconhecimento do que me é estrangeiro, daquilo que difere de mim e de meus modelos) faz-se necessário buscar fortalecer o aspecto formativo, voltado para uma ética que conjugue a prazerosa "familiaridade", com o que emerge como o inevitável estrangeiro (que simultaneamente nos habita e nos confronta a partir do externo). Mas para que isso se efetive, teremos que ir além e aquém do ensino e prescrições de normas e técnicas. Neste sentido, cabe agora desenvolver um pouco mais o que entendo pelas noções de ética e técnica.

CONCEPÇÕES DE ÉTICA E TÉCNICA:

Como se sabe, os termos ética e moral possuem, ao menos etimologicamente, o mesmo significado. Ética tem origem no grego ethikós e moral no latim mores, ambos se referindo a costumes. No entanto, ética foi assumindo o sentido mais abrangente de estudo dos juízos de apreciação referentes às condutas humanas suscetíveis de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, enquanto moral foi sendo mais usada no sentido restrito de normas e prescrições de conduta em um grupo social. Para além das origens etimológicas, entendo Ética, no contexto do que venho expondo:

[...] como posição e como lugar (morada), como postura fundamental, como modo de escutar e falar ao e do outro na sua alteridade. Uma ética compreendida como abertura, respeito, resposta e propiciação ao outro. Algo que não se assemelha em nada a uma "moral" e que, portanto, não poderá jamais ser convertido em um código de prescrições e proibições. Trata-se, de fato, muito mais de uma disposição ao convívio acolhedor, mas nem por isso tranqüilo, com o inesperado e o irredutível que caracteriza a alteridade, do que da formulação de regras prescritivas que pudessem modelar o fazer (FIGUEIREDO; COELHO JUNIOR, 2000, p. 7).

Já a noção de técnica costuma ser estabelecida por oposição à de conhecimento teórico e muitas vezes acaba sendo considerada uma forma de aplicação de um certo saber. Aplicação que tende a se autonomizar e a perder de vista seu enraizamento em processos reflexivos, que ao mesmo tempo deveriam sustentar a técnica como instrumento e questioná-la em seus usos e abusos. Foi Heidegger (1954/2002), em "A Questão da Técnica", quem mais claramente reconheceu os riscos e os perigos decorrentes do papel essencial ocupado pela técnica na construção do assim chamado mundo moderno, opondo esse uso ao que reconhecia em uma certa tradição grega, que unia técnica à natureza e fazia do homem a testemunha de um desvelamento ou descobrimento, através de seu pro-duzir (uma forma de trazer à tona – hervorbringen). Para Heidegger, o desastre impetrado pelo primado da técnica é o de nos aprisionar no mundo da atividade, do fazer, sem deixar lugar para a nossa possibilidade de ação passiva, própria da atitude do pro-duzir, que é a capacidade simultânea de agir e se colocar em repouso à espera do surgimento de algo. Segundo Heidegger (1954/2002, p. 17), retomando a tradição grega, "a técnica não é, portanto, um simples meio. A técnica é uma forma de descobrimento". Acrescentaria, que o primado absoluto da técnica, dentro da atmosfera de um mundo marcado por um pragmatismo selvagem, em que os resultados são buscados a qualquer preço deixa de lado, inevitavelmente, a possibilidade de uma reflexão mais efetiva sobre as metas de toda e qualquer ação humana.

A questão fundamental que confere aos discursos e práticas psicológicas uma dimensão ética, como bem apontou Figueiredo (1996) em Revisitando as Psicologias, é que as diferentes doutrinas psicológicas jamais podem ser entendidas como um simples modo de representar o psicológico. As doutrinas psicológicas são inevitavelmente, sempre, e antes de tudo, dispositivos aptos a propiciar, configurar e constituir tanto os seres humanos como os seus objetos e suas relações sociais. Nesse sentido, teorias psicológicas, e é evidente, também suas práticas, não são instrumentos neutros e acadêmicos de supostas formas de descrever ou explicar comportamentos e processos mentais. São, isso sim, formas potentes de "instalações do humano" como sugere (FIGUEIREDO,1996 p. 24); precisam ser consideradas eticamente em seu caráter de dispositivos constitutivos da experiência humana.

Não resta dúvida que as teorias e práticas psicológicas contemporâneas mobilizam processos e geram efeitos que concernem a dimensões éticas. Geram efeitos éticos tanto ao favorecerem a reprodução de velhas formas como ao criar novas formas de relação entre seres humanos. É claro que podem também favorecer a geração novas formas de se estar no mundo, propiciando a partir de experiências intersubjetivas transformações importantes, em cada sujeito, nas formas de contato com o outro e consigo mesmo.

Por fim, vale afirmar que a investigação do que há de latente nas manifestações cotidianas em sala de aula, incluindo aí as atitudes e posturas de alunos e professores é, antes de tudo, o exercício da postura ética, em sua marca de acolhimento e respeito às diferenças, em um permanente exercício de contato com a alteridade. Esta forma de investigação não pode, portanto, ser confundida com práticas de avaliação e auto-avaliação tão em voga em muitas de nossas instituições de ensino.

Gostaria ainda de explicitar que, a meu ver, toda técnica "deve" ser ética. Não deveria ser possível separar ética de técnica. Mas para que isso se efetive parece ser necessário que cada um de nós (psicólogos e estudantes de psicologia) possa suportar as frustrações decorrentes dos limites (seus próprios e de seus objetos de escolha), sem precisar recorrer às defesas identitárias e narcisistas, que geram inevitavelmente movimentos de onipotência e também alta intensidade de desprezo com aqueles ou aquilo que diverge, já que afinal, "narciso acha feio o que não é espelho...".

  • FIGUEIREDO, L. C. Revisitando as Psicologias. 2. ed. rev. e ampl. Petrópolis: Vozes; São Paulo: EDUC, 1996.
  • FIGUEIREDO, L. C.; COELHO JUNIOR, N. E. Ética e Técnica em Psicanálise São Paulo: Escuta, 2000.
  • HEIDEGGER, M. A Questão da Técnica (1954). Tradução de Emmanuel Carneiro Leão. In: ______. Ensaios e Conferências Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Universidade São Francisco, 2002. p. 11-38.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Mar 2008
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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