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Pela política pública de atenção ao comportamento suicida

RESUMO

Refletir sobre a necessidade de implantação efetiva de um programa de vigilância ao comportamento suicida e sobre os fatores causais e intervenientes do suicídio, além da formação e qualificação dos profissionais da área da saúde quanto a este tema e o perfil do indivíduo com comportamento suicida. O comportamento suicida é um grave problema mundial de saúde pública e deve ser enfrentado de modo consensual por gestores, profissionais e população. O suicídio é uma verdadeira catástrofe hodierna e um tipo de morte que pode ser evitada.

Descritores:
Suicídio; Vigilância em Saúde Pública; Políticas Públicas de Saúde; Saúde Mental; Enfermagem Psiquiátrica

ABSTRACT

The object is to reflect on the need for effective implementation of a surveillance program of suicidal behavior and of the causal and intervening factors of suicide, as well as to training and qualification of health professionals about this topic, and the profile of the individual with suicidal behavior. Suicidal behavior is public health serious, global problem and it should be faced in a consensual way by public administrators, professionals and population. Suicide is a real, current catastrophe and a kind of death that can be avoided.

Descriptors:
Suicide; Public Health Surveillance; Public Health Policy; Mental Health; Psychiatric Nursing

RESUMEN

Reflejar sobre la necesidad de implantación efectiva de un programa de vigilancia al comportamiento suicida y sobre los factores causales e intervinientes del suicidio, además de la formación y de la cualificación de los profesionales del área de la salud cuanto a este tema y el perfil del individuo con el comportamiento suicida. El comportamiento suicida es un grave problema mundial de salud pública y debe ser enfrentado de modo consensual por los gestores, los profesionales y por la población. El suicidio es una verdadera catástrofe hodierna y un tipo de muerte que puede ser evitada.

Descriptores:
Suicidio; Vigilancia en Salud Pública; Políticas Públicas de Salud; Salud Mental; Enfermería Psiquiátrica

O comportamento suicida abrange a ideação, o planejamento, a tentativa e o suicídio. De acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma pessoa se mata a cada quarenta segundos, e as tentativas de suicídio podem ser de quatro a quarenta vezes mais numerosas a depender de uma região geográfica específica; o número de suicídios no mundo cresceu 60% nos últimos anos(11 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.). Houve incremento do comportamento suicida em adolescentes e adultos jovens, mas se mantiveram altas as taxas entre adultos e idosos(11 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.). Verdadeira catástrofe hodierna, é o tipo de morte que pode ser evitada caso haja a descoberta precoce de tal comportamento e sejam implantadas intervenções adequadas.

O comportamento suicida tem etiologia multifatorial(11 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.) e não pode ser visto e tratado meramente no contexto orgânico/biológico, o que estreita o repertório de intervenções e possibilita o fracasso destas e a repetição ou cronificação desse comportamento. Os aspectos orgânicos, psicológicos, socioculturais e ambientais se mesclam e atuam decisivamente para a determinação do comportamento suicida. Comumente, o suicídio não ocorre por uma causa única ou um único estressor, porém de modo cumulativo; vários fatores de risco proporcionam maior vulnerabilidade do indivíduo ao comportamento suicida(11 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.). Portanto, o comportamento suicida necessita de compreensão e abordagem multidimensional.

Na literatura facilmente encontramos os transtornos mentais como o principal fator para o comportamento suicida, dando ênfase ao tratamento medicamentoso quando há que se ver e intervir em fatores outros, como os psicológicos (traumas, conflitos, formação de personalidade, abandono afetivo, abusos e outras violências recebidas) e socioculturais, como desemprego, solidão, estilo de vida. O ser humano se encontra em um momento decisivo, inserido no modelo capitalista que estimula ao máximo o modo de ser consumista, individualista, e a obtenção do sucesso a qualquer custo, mesmo que seja efêmero, como o do Facebook e outras redes sociais, onde se infla a exposição pessoal em busca de reconhecimento, de likes que desvelam a busca desenfreada pelo afeto e pertencimento.

Apesar do auxílio proporcionado pelo avanço tecnológico na era digital, também ocorre o mau uso dessas tecnologias, a trazer prejuízos graves, como o afastamento das pessoas quanto ao aspecto afetivo, substituindo as relações presenciais pela conexão à distância, impessoal, difusa, propagandeada, sem percebermos o não verbal expresso, “curtindo” o que a maioria “curte”, querendo pertencer sem estar no pertencimento real, mas apenas no estar no mundo artificial. Alguns casos que atendemos e outros conhecidos foram de jovens que tentaram suicídio por não ter recebido o número de “curtidas” esperadas.

Também é gerada a necessidade de resoluções rápidas e efetivas; basta observarmos a rapidez com que nos comportamos em grandes centros urbanos (andar, comer, falar, tudo com muita rapidez, a forma “fast” de viver); queremos soluções rápidas, não sabemos conviver com frustrações e procuramos pelo prazer, o domínio do hedonismo, não podemos ter desprazer. Retornamos ao princípio do prazer de nossos dias primaveris na fase oral, onde o instinto precisa ser educado para não nos dobrar à sua tirania.

Para piorar, nosso sistema educacional é péssimo, famílias já não oferecem solidez de princípios éticos e humanos, nosso tecido social se esgarçou a ponto de estar rompido. É muito peso para um simples ser humano e, assim, surgem condições favoráveis para não suportar o sofrimento e pensar de pronto na própria morte como saída plausível – pensamento que se repete intensamente na rotina diária de muitos indivíduos.

Ainda temos a influência do ambiente, cada vez mais degradado por toda a poluição (visual, sonora, atmosférica), cada vez há menos água potável para todos, a ausência de sol a influenciar nosso ritmo circadiano e os mecanismos reguladores do ciclo sono-vigília (cortisol-melatonina) a provocar alterações do humor, por vezes a levando à psicopatologia (transtorno depressivo) que desemboca em comportamento suicida.

Precisamos rever nosso estilo de vida e investir na vida afetiva, pois nossos valores influenciam primordialmente nossa saúde mental e a procura de uma saída fatal para o sofrimento que não queremos nem podemos suportar.

COMPORTAMENTO SUICIDA NO BRASIL

No Brasil não temos em prática um programa de vigilância ao comportamento suicida nem sequer dados confiáveis a respeito do tema. É notória a subnotificação do comportamento suicida no sistema de saúde, pois é passível de verificação na prática e na pesquisa o mascaramento de dados. Atendimentos de urgência em prontos-socorros, claramente relacionados à intenção suicida, ainda ficam sob diagnósticos disfarçados em intoxicação endógena, ferimento por arma de fogo ou arma branca e acidente automobilístico. Há ainda aqueles que tentam ou se matam sem que tenham acessado um equipamento de saúde, e os sobreviventes familiares escondem a causa real pela vergonha e o julgamento moral que cercam tal fato.

Isto reflete nos dados oficiais fornecidos à OMS, que apontam baixa taxa de suicídios na população brasileira, 5,8 por 100 mil habitantes, apesar de nossa oitava posição mundial em termos de mortes(11 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.). Essa baixa taxa é enganosa e de fácil comprovação pelos profissionais que atendem indivíduos com comportamento suicida e sobreviventes.

Verificamos o aumento do número de tentativas de suicídio nos últimos três anos pelo atendimento em nosso grupo de extensão, por pesquisas em pronto-socorro, pelas falas de numerosos profissionais da saúde mental e da emergência e pelos dados divulgados na imprensa pelo Centro de Valorização da Vida, que aponta o dobro de atendimentos no ano de 2017. Coincidentemente, esse período se atrela à grave crise ética-política-econômica que o país atravessa, com alta taxa de desemprego, fator interveniente para comportamento suicida(11 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.).

Sofremos de modo calamitoso a perda de inúmeros indivíduos que não recebem assistência adequada, alguns desassistidos, sem sequer ter o registro correto de seu gesto final. O suicídio é um dos temas tabus que ainda grassam na sociedade brasileira, eivado de preconceito com raízes em aspectos morais-religiosos e, principalmente, no desconhecimento a respeito. A ignorância prolifera o obscurantismo.

Temas interditos, como eutanásia, ortotanásia, suicídio assistido, suicídio e sexualidade, precisam ser trazidos à luz, com discussões científicas embasadas em conhecimentos das áreas da sociologia, filosofia, antropologia, psicologia, tanatologia, sexologia, suicidologia etc., e não apenas no viés da medicina.

É preciso debater, desvelar e revelar conhecimentos na busca de ampliar a perspectiva de entendimento e, consequentemente, adequar as intervenções atreladas aos diversos fatores associados ao comportamento suicida. Não é possível continuarmos a esconder de modo consciente algo que ocorre cada vez com mais frequência, a trazer sofrimento imensurável ao indivíduo com comportamento suicida e aos que convivem com ele.

A OMS aponta que para cada indivíduo que se mata temos no mínimo outros cinco ou seis que sofrerão com esse desfecho, e muitos outros podem ser impactados, sobretudo os familiares e pessoas do círculo afetivo (colegas de trabalho, de escola e de lazer, comunidade religiosa, grupos de ajuda e de ação social, vida associativa entre outros)(11 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a global imperative. Geneva: WHO; 2014.).

O sofrimento dos sobreviventes do suicídio, entendidos aqui não só como o indivíduo que tentou se matar, como também familiares e demais pessoas do círculo afetivo, se torna solitário e crônico, pois, na maioria das vezes, tais sobreviventes não procuram atendimento devido à vergonha, ao medo e o desconhecimento.

Verificamos em nosso grupo de atendimento a sobreviventes de suicídio o receio exacerbado em sofrer ao ser atendido, pelos relatos a serem feitos, com atuação da memória emocional, e pela vergonha e o medo do julgamento. Em geral, este é o principal motivo para não procurar auxílio.

Outro ponto fundamental é a dificuldade de atendimento, pois não há equipamentos de saúde mental suficientes para atender a demanda de outros casos da própria área temática, quanto mais aos indivíduos com comportamento suicida. Não há equipamentos de referência para prestar atendimento específico e supervisionar e capacitar outras unidades de saúde. Também não temos profissionais em número adequado nem qualificados para prestar assistência ao indivíduo com comportamento suicida.

Verificamos ao longo de nossa vivência profissional a atenção prejudicial dada comumente por médicos e profissionais da enfermagem ao indivíduo que tentou se matar. Punição, falas preconceituosas, ameaças, julgamento moral e agressão verbal foram atitudes comuns vistas em prontos-socorros e outras unidades de saúde – infelizmente, vindas também de profissionais de saúde mental, que deveriam ter melhor entendimento do que ocorre.

Ainda me defronto com situações em que a forma de tentar se matar ou a quantidade de tentativas se tornam a diretriz do atendimento, a determinar se o indivíduo queria mesmo se matar ou apenas “chamar a atenção”, sendo desconsiderado o sofrimento que levou a tal ato. É muito comum, por exemplo, a inadequação do atendimento a pacientes diagnosticados com o transtorno de personalidade borderline. Tais fatos reforçam a vergonha e o receio que os indivíduos com comportamento suicida têm de procurar atendimento, principalmente quando não estão em situação de risco à vida.

Os cursos da área da saúde, em geral, não contemplam em seus currículos conteúdos a respeito do comportamento suicida; a formação é superficial, centrada nas psicopatologias, sem uma unidade curricular ou disciplina específica para essa abordagem e sem docentes especializados. O tema é interdito nos cursos de graduação da saúde, reflexo da sociedade que esconde o indivíduo suicida, não permitindo que o tema seja discutido abertamente e fazendo da hipocrisia o seu leme, pois quando alguém se mata é como se desse um murro no estômago dessa sociedade, apontando o que ela fez com esse sujeito. O suicídio é reflexo, como bem aprofundou Durkheim(22 Durkheim E. O suicídio. São Paulo: Martin Claret; 2003.), de uma determinada sociedade, apontando o quanto há de agressividade destrutiva em seu tecido e o quanto falta de solidariedade e vínculo afetivo entre os indivíduos.

A instituição formadora é aparelho ideológico do Estado no sentido althusseriano. Não temos formação nem qualificação de profissionais que façam mediações quando de uma tentativa de suicídio em curso. O profissional não consegue muitas vezes identificar as seis características que se encontram em indivíduos com comportamento suicida, fundamentais para o manejo da situação de crise.

Embora a fantasia do suicida com sua própria morte possa ser vista como universal, a determinar seu sofrimento, há fantasias específicas, como as de cunho místico-religioso (ir para um lugar melhor, encontrar entes queridos que faleceram), de cunho ideológico (sacrifício por uma causa política, racial, honra, pelo país), de vingança, poder, controle, culpa, expiação, entre outras(33 Cassorla RMS. Do suicídio: estudos brasileiros. São Paulo: Papirus;1991.). Há também o pedido de socorro, de ajuda, em todo ato suicida, depositar no indivíduo que lhe atende seu desejo de manter-se vivo, a pedir silenciosamente que o tirem dessa situação, a mostrar com seu ato o quanto está desesperado e precisa readquirir esperança a fim de emergir para respirar novo ar que mantenha a vida. Por outro lado, com seu ato também se exterioriza a agressão que destila contra o meio, chocando, gerando culpa, fazendo sofrer aqueles que são parte de sua vida, e mesmo que no momento da tentativa de se matar haja apenas uma plateia de desconhecidos, há o intento de chocar as pessoas próximas(44 Menninger K. Eros e tanatos: o homem contra si próprio. São Paulo: Ibrasa,1970.). Quem assiste a um suicídio carrega a impactante lembrança e as emoções despertadas e, em geral, necessita de atendimento para o sofrimento gerado.

O método usado para se matar, o local, a hora do dia e a presença de pessoas-alvo, dizem muito a respeito de quem tenta se matar e a quem se tenta atingir com esse ato(55 Marquetti FC. O suicídio como espetáculo na metrópole. São Paulo: Fap-Unifesp; 2011.). Se matar no ambiente de trabalho, em local visível a todos ou com objetos do próprio trabalho, em frente à sala da chefia, diz muito a respeito de como eram as relações no trabalho.

O indivíduo com comportamento suicida apresenta ambivalência, pois há conflito interno entre o desejo de morrer/se matar e o de ficar vivo. Devemos trabalhar terapeuticamente para reforçar o desejo de viver(66 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a resource series. Geneva: WHO; 2000.). O indivíduo apresenta rigidez de pensamento, fixo quanto ao suicídio como única alternativa para seu sofrimento, como solução final. Quando lhe são oferecidas outras opções e trabalhadas diferentes visões e abordagens para seus problemas e seu sofrimento, abre-se a possibilidade de reforço do desejo de viver(66 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a resource series. Geneva: WHO; 2000.). Por fim, temos o impulso presente em indivíduos com comportamento suicida, o que leva muitas vezes à efetivação da tentativa e da morte(66 World Health Organization-WHO. Preventing suicide: a resource series. Geneva: WHO; 2000.).

Não temos nos cursos de graduação em enfermagem, inclusive nos de especialização, conteúdo para a qualificação em atendimento ao indivíduo com comportamento suicida. Ainda temos forte viés de formação voltado para o mercado de trabalho, que em sua hegemonia atende à lógica econômica e não ao contexto social, não se interessando, portanto, pelo comportamento suicida. Na enfermagem se valoriza a formação pela técnica, não priorizando a análise crítica reflexiva, a cidadania, a mudança do paradigma social, o comprometimento com o SUS, a humanização e a integralidade da assistência.

Há países que tratam o comportamento suicida como questão de saúde pública e investem na assistência à área da suicidologia como campo do saber, como disciplina, com cursos a formar suicidólogos, profissionais gabaritados para o atendimento. Quanto atraso se olhamos para o que ocorre nessa terra brasilis.

É fenômeno global o comportamento suicida em universitários, em especial os da área da saúde, e nos deparamos no país com notícias a respeito que não duram muito tempo nos jornais nem na mídia televisiva, pois trata-se de tema de grande incômodo social, a provocar mal-estar. Pesquisas científicas ao redor do mundo mostram tal fato, com o incremento do comportamento suicida em universitários da saúde, principalmente entre os da medicina e da enfermagem(77 Alves TCTF. Depression and anxiety among medical students. Rev Med[Internet]. 2014[cited 2018 Mar 01];93(3):101-5. Available from: http://www.revistas.usp.br/revistadc/article/viewFile/103400/101872
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8 Monteiro C, Freitas J, Ribeiro A. Stress in the Academic Daily: A Nursing Student View from the Federal University of Piauí - Brazil. Esc Anna Nery Rev Enferm[Internet]. 2007[cited 2018 Mar 01];11(1):66-72. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v11n1/v11n1a09.pdf
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9 Silva CA, Pereira MLG, Bustamante C, Ferraz ACT, Baldassin S, Andrade AG, et al. Suicidal ideation among students enrolled in healthcare training programs: a cross-sectional study. Rev Bras Psiquiatr[Internet]. 2009[cited 2018 Mar 01];31(4). Available from: http://www.scielo.br/pdf/rbp/v31n4/aop0909.pdf
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-1010 Melissa-Halikiopoulou C, Tsiga E, Khachatryan R, Papazisis G. Suicidality and depressive symptoms among nursing students in northern Greece. Health Sci J[Internet]. 2011[cited 2018 Mar 01];5(2):1-8. Available from: http://www.hsj.gr/medicine/suicidality-and-depressive-symptoms-among-nursing-students-in-northern-greece.pdf
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).

Em nosso meio ainda temos poucas pesquisas sobre o tema, mas alguns estudos localizados nos dão pistas do que pode ocorrer em nível nacional com estudantes de enfermagem. Em 2008, realizamos estudo acerca do comportamento suicida em estudantes de enfermagem da universidade em que atuamos e tornamos a realizá-lo dez anos depois; estamos na fase final para divulgação dos dados. Observamos a falta de humanização em relação aos estudantes; nós, que teoricamente enfatizamos tanto a humanização da assistência, não o fazemos com os estudantes, futuros profissionais a prestarem assistência.

Os estudantes de enfermagem apontaram para fatores da formação que agravaram quadros psicopatológicos preexistentes ou promoveram o sofrimento que levou ao comportamento suicida. Colaboraram para isso o excesso de atividades, como seminários, provas, trabalho de conclusão de curso, participação em pesquisas e em ligas acadêmicas, disciplinas optativas, engessamento da grade curricular, aridez de áreas verdes, que leva à falta de tempo livre para recreação e lazer, e falta de horas adequadas para dormir e estar com pessoas de seu círculo afetivo. Tais dados podem ser encontrados repetidamente em estudos a respeito do tema. Também foram muito citadas pelos estudantes a relação interpessoal inadequada com os docentes – com a falta de compreensão destes para as necessidades e problemas do estudante –, as situações a que por vezes eram submetidos e em que se sentiam humilhados, a pressão em campo de estágio, a frieza e distanciamento do docente e o sentimento de incapacidade.

Essa geração em campo não foi preparada nem tem essa cultura, portanto, mais facilmente irá sofrer e adoecer, sendo o suicídio a saída pensada, muitas vezes como primeira e única opção. Tal fato precisa ser detectado e compreendido, recebendo atenção por parte dos formadores. Da primeira pesquisa em 2008 para a atual houve aumento de sete vezes do comportamento suicida entre os estudantes e aumento de dez vezes entre os que tentaram suicídio.

Devemos repensar, enquanto formadores, que ensino é esse e o quanto devemos reformulá-lo, sair do formato quadrado, democratizando as relações e possibilitando a aprendizagem de forma mais harmoniosa e prazerosa, pois devemos formar cuidadores e não gerar sofrimento que desencadeie o comportamento suicida no estudante.

A formação do profissional da saúde deve ser revista quanto ao modo de ensinar, ao conteúdo, ao formato do curso, à formação interdisciplinar na busca do transdisciplinar, à humanização do ensino e da assistência, aos diversos cenários de ensino, à democratização das relações, à solidariedade ao invés da competição entre docentes e também entre discentes e ao ambiente de trabalho saudável, que não favoreça a síndrome de burnout.

Também há dados de pesquisas sobre o comportamento suicida presente em profissionais da saúde, em específico os da enfermagem, que apontam em larga escala para sintomatologia depressiva como agravo devido às condições de trabalho, sendo o comportamento suicida um desdobramento desse sofrimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modelo sueco de vigilância ao comportamento suicida foi o escolhido para os países da comunidade europeia e referenciado pela OMS; o Brasil tem, no papel, diretrizes que deveriam consolidar um programa de vigilância ao suicídio, porém não houve nem há iniciativa dos gestores para colocá-las em prática.

No Brasil, saúde e educação, cada vez mais mercantilizadas, não são prioridades. Há entraves políticos, ideológicos e econômicos para o pleno desenvolvimento do SUS, com a reforma do modelo de atenção em saúde mental, que deixa muito a desejar quanto aos preceitos das I, II e III conferências nacionais de saúde mental. O tema suicídio permanece tabu e é difícil implantar um programa de vigilância ao comportamento suicida. Precisamos iniciar essa discussão, ventilando de forma ética e científica o tema junto à população para diminuir o preconceito e o estigma que acompanham o suicídio, principalmente para salvarmos vidas.

É necessário investir em formação, em especializar e qualificar profissionais da área da saúde, em especial da saúde mental; precisamos ter cursos de suicidologia, temos de formar sujeitos de referência no contexto social para atuarem de modo preventivo. É preciso investir na formação de profissionais para atuar na prevenção ao comportamento suicida, com realização de diagnósticos e intervenções precoces, monitoramento para risco de suicídio, mediação in loco das situações de tentativa de suicídio e posvenção aos sobreviventes.

Temos de ampliar equipamentos de saúde para atender aos indivíduos que necessitam e aos entes de seu círculo afetivo. Há que se ter a vigilância para detectar/monitorar e levantar dados confiáveis sobre o problema a fim de intervir de modo adequado. O plano/programa nacional deve priorizar as ações voltadas para a prevenção ao comportamento suicida e a promoção à saúde, atendendo a grupos de risco e aos indivíduos vulneráveis, em acordo com o perfil epidemiológico detectado.

Há muito por se fazer, porém é necessário iniciar e dar o primeiro passo, pois sabemos que o comportamento suicida é grave problema mundial de saúde pública. Não podemos fechar os olhos e ignorá-lo, pois ele está presente no cotidiano do cenário nacional, a nos lembrar que pouco está sendo feito no enfrentamento desse problema.

É necessário esforço conjunto, capitaneado pelo Ministério da Saúde e as secretarias estaduais e municipais de saúde, pelas instituições formadoras e pelos meios de comunicação para reverter esse quadro desanimador. Urge a tomada de medidas para se evitar mortes desnecessárias, sofrimento atroz para os sobreviventes e perdas econômicas, já que nosso sistema com isso se preocupa, ainda que tenhamos exército de reserva, dada a imensa massa de mão de obra desempregada. Em um país em que não se pode confiar nem nas estatísticas oficiais sobre suicídio, mudanças profundas são desejadas.

REFERENCES

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  • 4
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2017
  • Aceito
    21 Maio 2018
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