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Um olhar sobre as Boas Práticas de Enfermagem na Atenção Básica

Do ponto de vista da Enfermagem em Saúde Coletiva - campo de teorias e práticas fundamentadas no materialismo histórico e dialético - (Boas) Práticas da Enfermagem, em qualquer âmbito de ação, devem conter alguns pressupostos ou princípios. Neste editorial, pretendo me deter no âmbito da Atenção Básica, ou seja, do conjunto de equipamentos de saúde dispostos de forma articulada para dar conta do monitoramento, da intervenção, da avaliação da intervenção nos processos saúde e doença dos grupos sociais do território.

Dito de outra maneira, para assistir em termos de saúde, na perspectiva da determinação social do processo, a Enfermagem em Saúde Coletiva deverá provocar impacto tanto na dimensão singular (onde indivíduos se encontram presentes, articulados com suas famílias ou grupos relacionais do cotidiano) quanto na dimensão coletiva ou dos grupos sociais presentes no território.

Neste texto, ressaltarei dois pressupostos relevantes para as Boas Práticas da Enfermagem na Atenção Básica (BPEnAB): a) O território geopolítico de produção e reprodução da vida e do trabalho como cenário da BPEnAB; b) A metodologia científica como base das nossas ações: problematizando a genericidade.

a) O território geopolítico de produção e reprodução da vida e do trabalho como cenário da BPEnAB

As BPEnAB, mesmo ocorrendo no domicílio, na unidade básica de saúde, têm o território geopolítico como foco primordial. Um território ou um espaço geopolítico, é onde se produz a vida e, portanto, também onde aparecem as necessidades em saúde e as vulnerabilidades. Diferentemente com risco, vulnerabilidade tem a ver com grupos sociais. Risco centra-se na noção de indivíduos, usualmente mirando, exclusivamente, o corpo biopsíquico. Mas o clínico não se trata do corpo biopsíquico somente, como bem menciona Foucault no Nascimento da Clínica(11 Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979.). No território, o corpo clínico é visto de ponta cabeça, localizando o sujeito na esfera da produção e reprodução social, ou seja, sua participação em grupos sociais da sociedade, historicamente organizada, e até chegar no indivíduo e em sua família(22 Chaves MMN, Perna PO, Piosadlo LCM, Mafra MRP, Alessi SM. Territorialização em atenção primária à saúde/estratégia de saúde da família. Porto Alegre: Artmed Panamericana. PROENF Atenção Primária e Saúde da Família. 2014. Ciclo 3 Volume 1 p. 9-42.). A pergunta usualmente feita é “em que território geopolítico essa prática sucedeu?” Para responder a isso, eu preciso saber como esse território se encontra em relação à produção e reprodução social, e como funciona a sua geografia política e ambiental. É preciso saber qual é o perfil epidemiológico dos diferentes grupos sociais que habitam aquele território (município ou um distrito de um município). Então, na verdade, eu preciso voltar atrás, bem atrás, fazendo os seguintes questionamentos: O que move a economia do lugar? Quem são essas pessoas? Qual é a origem delas? Quais são as suas origens étnicas e de classe? Em que elas trabalham? Quais são os seus vínculos de trabalho? Não têm vínculos de trabalho? São agricultoras? São pessoas proprietárias de grandes terras? São latifundiárias? São pessoas proprietárias de pequenas empresas, como as de carrinhos de cachorro-quente que vende na rua? É dono do carrinho ou está trabalhando para alguém? Enfim, é preciso saber como essas pessoas produzem a vida e o trabalho, como parte da vida; e, além disso, como isto vem se dando historicamente no território, a história geopolítica do lugar; a história de produção social do lugar; e a história de reprodução social do lugar (consumo). Por isso, ao invés de só fazer uma fotografia do lugar, é preciso saber um pouquinho como a coisa vem vindo, como um filme. Para depois eu poder dizer se esse filme vai acabar bem ou mal e se as contradições provocadas por subalternidade de classe, de gênero, de étnica e de geração serão de tal sorte, que a realidade vai se transformar; mas, se não houver a intervenção planejada, coletiva e direcionada à autonomia dos sujeitos, a realidade objetiva poderá ficar ainda mais difícil na vida das pessoas.

b) A metodologia científica como base das nossas ações: problematizando a genericidade

Nosso fazer cuidativo necessita de amparo teórico, as evidências produzidas pelas pesquisas dão segurança de que uma ação cuidativa resultará positivamente(33 Lacerda RA, Nunes BK, Batista AO, Egry EY, Graziano KU, Angelo M, et al. Práticas baseadas em evidências publicadas no Brasil: identificação e análise de suas vertentes e abordagens metodológicas. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2017 Jan 20]; 45(3):777-86. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en_v45n3a33.pdf
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). Acho que isso é um ponto pacífico, especialmente quando se trata do corpo biológico. Será? Evidências são resultados de investigações científicas realizadas com um conjunto de pessoas, em certo tempo e em certo lugar. Pode gerar resultados satisfatórios para a média das pessoas, entretanto, elas não vêm acompanhadas de “bula”, ou seja, lista dos possíveis efeitos colaterais ou iatrogenias. Vamos a um exemplo bem simples, uma consulta de enfermagem com uma mulher grávida, realizada por um enfermeiro. Como parte da consulta, verificou-se a pressão arterial, colocando o manguito em contato com a pele do braço da gestante. Digamos que a paciente seguiu totalmente o protocolo, ou seja, esperou 5 minutos depois de sentar, não estava de bexiga cheia e não havia acabado de fumar ou subir correndo as escadas. Estava sentada confortavelmente na cadeira e sem as pernas cruzadas. Seguiu o protocolo? Sim, a pressão estava normal e o restante da consulta correu perfeitamente bem. Após a consulta, a gestante foi expulsa de sua família, seu primeiro filho foi confiscado pelo esposo e a sua família de origem a abandonou à própria sorte. O que sucedeu? A gestante era muçulmana que, de acordo com os códigos ditos por ela depois, uma mulher não pode ser tocada na pele por outro homem. Isto é para entender que evidências mostram bases científicas para o cuidado, usualmente pensado em um ser humano genérico, portanto para a média, mas que pode ter iatrogenias graves como esta que ocorreu com a gestante muçulmana. Grupos sociais que se diferenciam pela etnia ou raça são também evidências que precisam ser aplicadas nos processos cuidativos.

Finalmente, a intervenção pensada de maneira participativa pode tomar uma perspectiva emancipadora dos sujeitos. Parece óbvio demais dizer que o projeto de intervenção no processo saúde-doença do indivíduo e sua família deva ser pensado com o usuário. Quanto mais as pessoas ignoram os processos cuidativos, menos adesão têm aos planos de cuidado. Ao contrário, quanto mais compreendem os projetos cuidativos e sua responsabilidade na obtenção dos resultados, melhor será o desenvolvimento da consciência social, ou seja, que faz parte da sociedade(44 Duncan P, Bertolozzi MR, Cowley S, Egry EY, Chiesa AM, França FOS. “Health for all” in England and Brazil? Int J Health Serv [Internet]. 2015 [cited 2017 Jan 20]; 45(3):545-63. Available from: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0020731415584558
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). Para uma BPEnAB, é preciso compreender que o processo saúde-doença está diretamente associado ao potencial de desgaste e de fortalecimento dos grupos sociais, e que, ao lado de valores e contra-valores advindos dos processos de reprodução social, resultam no processo bio-psíquico-social do indivíduo.

REFERENCES

  • 1
    Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1979.
  • 2
    Chaves MMN, Perna PO, Piosadlo LCM, Mafra MRP, Alessi SM. Territorialização em atenção primária à saúde/estratégia de saúde da família. Porto Alegre: Artmed Panamericana. PROENF Atenção Primária e Saúde da Família. 2014. Ciclo 3 Volume 1 p. 9-42.
  • 3
    Lacerda RA, Nunes BK, Batista AO, Egry EY, Graziano KU, Angelo M, et al. Práticas baseadas em evidências publicadas no Brasil: identificação e análise de suas vertentes e abordagens metodológicas. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2017 Jan 20]; 45(3):777-86. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en_v45n3a33.pdf
    » http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n3/en_v45n3a33.pdf
  • 4
    Duncan P, Bertolozzi MR, Cowley S, Egry EY, Chiesa AM, França FOS. “Health for all” in England and Brazil? Int J Health Serv [Internet]. 2015 [cited 2017 Jan 20]; 45(3):545-63. Available from: http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0020731415584558
    » http://journals.sagepub.com/doi/abs/10.1177/0020731415584558

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Jun 2018
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