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O conceito de vulnerabilidade aplicado às Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde

RESUMO

Objetivo:

discutir as potencialidades do uso do conceito de vulnerabilidade para embasar as ações de prevenção e controle das Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS).

Método:

estudo de base teórica, realizado em etapas: 1) apresentação dos marcadores que compõem o conceito de vulnerabilidade; 2) apresentação das características do agravo ao qual se pretende aplicar o conceito de vulnerabilidade; 3) identificação de lacunas de pesquisa que podem ser potencialmente preenchidas por meio do uso do conceito; 4) identificação das potencialidades do uso do conceito para o manejo de IRAS.

Resultados:

proposta de um quadro de análise das IRAS na perspectiva da vulnerabilidade, compondo dimensões individual e coletiva.

Conclusão:

o uso do conceito de vulnerabilidade no estudo e manejo de IRAS favorece um novo olhar sobre um antigo problema, diferente dos estudos hegemônicos que tratam de destacar os aspectos individuais relativos às práticas de atenção nos serviços de saúde.

Descritores:
Infecção Hospitalar; Vulnerabilidade; Enfermagem; Doença Infecciosa; Doença Transmissível

ABSTRACT

Objective:

To discuss the potentialities of using the concept of vulnerability to support measures for preventing and controlling healthcare-associated infections (HAIs).

Methods:

This theoretical study was conducted in steps: 1) presentation of markers that frame the concept of vulnerability; 2) presentation of the characteristics of the health events to which the concept of vulnerability is intended to be applied; 3) identification of research gaps that could be potentially filled by using the concept of vulnerability; 4) identification of the potentialities of using the concept of vulnerability to deal with HAIs.

Results:

Proposal of a framework for analyzing HAIs from a vulnerability perspective, including the individual and collective dimensions.

Conclusion:

Using the concept of vulnerability to study and deal with HAIs favors a new approach to an old problem, unlike the dominant studies that highlight the individual aspects of the practices in healthcare services.

Descriptors:
Hospital-Acquired Infection; Vulnerability; Nursing; Infectious Disease; Contagious Disease

RESUMEN

Objetivo:

Discutir las potencialidades del uso del concepto de la vulnerabilidad para basar las acciones de prevención y control de las Infecciones Relacionadas con la Asistencia Sanitaria (IRAS).

Método:

Estudio de base teórica, realizado en etapas: 1) presentación de los marcadores que componen el concepto de la vulnerabilidad, 2) presentación de las características del agravio al que se pretende aplicar el concepto de la vulnerabilidad; 3) identificación de las lagunas de investigación que pueden ser potencialmente cumplimentadas por medio del uso del concepto; 4) identificación de las potencialidades del uso del concepto para el manejo de las IRAS.

Resultados:

Propuesta de un marco de análisis de las IRAS bajo la perspectiva de la vulnerabilidad, componiendo dimensiones individuales y colectivas.

Conclusión:

El uso del concepto de la vulnerabilidad en el estudio y manejo de las IRAS favorece una nueva mirada sobre un antiguo problema, diferente de los estudios hegemónicos que tratan de destacar los aspectos individuales relativos a las prácticas de atención en los servicios de salud.

Descriptores:
Infección Hospitalaria; Vulnerabilidad; Enfermería; Enfermedad Infecciosa; Enfermedad Transmisible

INTRODUÇÃO

A utilização do conceito de vulnerabilidade na saúde é recente e necessita exceder o sentido comum do termo para uma ontologia conceitual, agregando significados mais densos com base em marcos teóricos mais amplos(11 Oviedo RAM, Czeresnia D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface Comun Saúde Educ [Internet]. 2015; [cited 2018 Jul 18];19(53):237-50. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0436
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). Na acepção em que utilizaremos no presente estudo, o termo "vulnerabilidade" busca compreender e transformar um determinado processo ou fenômeno de saúde a partir de uma perspectiva sociopolítica.

A vulnerabilidade surge como um quadro de referência teórico para responder às necessidades sociais que demandam conhecimento e transformação da realidade. É exemplar que a vulnerabilidade em saúde venha a ser utilizada a partir da pandemia da AIDS. A AIDS tem demonstrado que uma resposta adequada, desafia o próprio sistema social, exigindo a contribuição de outras áreas do conhecimento, não só das tradicionais na área da saúde, como também das ciências humanas e sociais(11 Oviedo RAM, Czeresnia D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface Comun Saúde Educ [Internet]. 2015; [cited 2018 Jul 18];19(53):237-50. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0436
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). A epidemia mostrou que o conceito de risco, central em Epidemiologia e Saúde Pública, não foi suficiente para produzir êxito no seu controle, e, mais do que isso, acentuou os sentimentos e atitudes de estigma, preconceito e "culpabilização" dos indivíduos acometidos pela doença(22 Mann J, Tarantola DJM, Netter TW (Orgs.). A aids no mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Abia: IMAS-UERJ; 1993. Chapter Programas nacionais de combate a aids.).

A contribuição do conceito de vulnerabilidade foi a transformação na concepção do significado da AIDS, como um esforço de superar a noção de risco, individual e de grupo, para uma nova compreensão de vulnerabilidade social à infecção e à epidemia, necessário a uma resposta global capaz de conter o seu avanço(22 Mann J, Tarantola DJM, Netter TW (Orgs.). A aids no mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Abia: IMAS-UERJ; 1993. Chapter Programas nacionais de combate a aids.). A constituição desse conceito tem possibilitado produção de conhecimento e de práticas efetivamente interdisciplinares(11 Oviedo RAM, Czeresnia D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface Comun Saúde Educ [Internet]. 2015; [cited 2018 Jul 18];19(53):237-50. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0436
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). É um conceito que vem sendo utilizado na Enfermagem(33 Nichiata LY, Bertolozzi MR, Gryschek AL, Araújo NV, Padoveze MC, Ciosak SI, Takahashi RF. The potential of the concept of vulnerability in understanding transmissible diseases. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2018 Jul 18];45 Spec No 2:1769-73. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342011000800023. English, Portuguese.
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) e tem possibilitado a interlocução do conhecimento entre enfermeiros/pesquisadores de diferentes localidades, com vista ao aprimoramento dos saberes e da prática de Enfermagem.

Como ferramenta para estratégias de prevenção, a vulnerabilidade entende o problema-alvo do ponto de vista de susceptibilidades populacionais e o resultado esperado é a resposta social capaz de apresentar a maior potência para a minimização ou resolução do problema-alvo. Nesse contexto, surge a questão de pesquisa aqui apresentada: "Pode o conceito de vulnerabilidade ser aplicado às Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS)"?

OBJETIVO

Apresentar e discutir as potencialidades do uso do conceito de vulnerabilidade para embasar as ações de prevenção e controle das Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS).

PERCURSO METODOLÓGICO

Trata-se de estudo de base teórica, realizado em quatro etapas: 1) apresentação dos marcadores que compõem o conceito de vulnerabilidade; 2) apresentação das características do agravo (IRAS) ao qual se pretende aplicar o conceito de vulnerabilidade; 3) identificação de lacunas de pesquisa que podem ser potencialmente preenchidas por meio do uso do conceito em questão; e 4) identificação das potencialidades e fragilidades do uso do conceito.

Para o desenvolvimento desse percurso metodológico foram utilizadas as bibliografias elementares e aplicadas referentes ao conceito de vulnerabilidade e o conhecimento de epidemiologia crítica. Os estudos teóricos foram apresentados e debatidos junto aos especialistas, em reuniões do grupo de pesquisa cadastrado no CNPQ "Vulnerabilidade, Adesão e Necessidades em Saúde Coletiva", na Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, no período de fevereiro a dezembro de 2016.

Marcadores que compõem o conceito de Vulnerabilidade

Na área da Saúde, inicialmente na análise sobre a pandemia de HIV/AIDS, o conceito foi definido como a 'chance de exposição das pessoas ao adoecimento, resultante de um conjunto de aspectos que, ainda que se refiram imediatamente ao indivíduo, são também relacionados ao coletivo no qual esse indivíduo está inserido". Propôs-se uma análise que considera graus distintos de vulnerabilidade à epidemia com base em marcadores que compõem as dimensões interdependentes: individual e coletiva (social e programática)(22 Mann J, Tarantola DJM, Netter TW (Orgs.). A aids no mundo. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Abia: IMAS-UERJ; 1993. Chapter Programas nacionais de combate a aids.). Objetivamente, o marcador funciona como um sinal de alerta, trata do que ou aquele que marca ou serve para marcar, segundo os Descritores em Ciências da Saúde (de Bireme - Centro Latino-Americano e do Caribe de Informação em Ciências da Saúde). Como a cor amarela do semáforo para carros, ou seja, um alerta para uma situação de risco e em decorrência, para medidas de segurança pertinentes. Entende-se por marcador, elemento qualificador que concretiza o conteúdo das dimensões da vulnerabilidade. Diferencia-se do termo indicador de saúde, este representado como uma medida de risco, calculado e representado matematicamente(33 Nichiata LY, Bertolozzi MR, Gryschek AL, Araújo NV, Padoveze MC, Ciosak SI, Takahashi RF. The potential of the concept of vulnerability in understanding transmissible diseases. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011 [cited 2018 Jul 18];45 Spec No 2:1769-73. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342011000800023. English, Portuguese.
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).

A dimensão individual parte dos aspectos próprios do modo de vida das pessoas, que podem contribuir para os seus potenciais de adoecimento. A dimensão social compreende o processo saúde-doença como um processo social e busca focar diretamente nos fatores contextuais que determinam a vulnerabilidade ao agravo. Na dimensão programática considera-se com as instituições traduzem a política de saúde, seja no sentido de reproduzir ou de minimizar a vulnerabilidade a um determinado agravo de saúde. Essas dimensões são, ainda que apresentadas em distintas categorias, indissociavelmente relacionadas entre si, e a sua categorização tem caráter didático para favorecer a apreensão do fenômeno que se pretende estudar. Contudo, na vida real, os aspectos da dimensão individual inter-relacionam-se com as dimensões social e programática dado que o indivíduo influencia o coletivo e é por este influenciado. A imagem figurativa do quebra cabeça "cubo mágico" tem sido utilizada em referência ao conceito de vulnerabilidade a fim de demonstrar esta implicação entre faces (dimensões) que compõem uma única entidade.

No Brasil, fez-se o debate sobre o conceito de vulnerabilidade, diferenciando-o do conceito de risco, ainda que ambos sejam relacionados. Na epidemiologia clássica, o conceito de risco é central e apresenta um caráter mais analítico e baseado em associações probabilísticas. Por sua vez, o conceito de vulnerabilidade possui um caráter mais sintético, é baseado na chance dos indivíduos referente a um grupo de aspectos individuais e coletivos em relação aos recursos disponíveis para a proteção, e permite capturar marcadores de inequidade social. A vulnerabilidade vem expandir a ideia do conceito de risco, na medida em que não se limita a identificar o perfil dos indivíduos afetados por um agravo, mas aprofunda na compreensão das razões que levam a sua ocorrência, e agrega também uma visão prospectiva de quais sejam os recursos que permitem o enfrentamento coletivo do agravo(11 Oviedo RAM, Czeresnia D. O conceito de vulnerabilidade e seu caráter biossocial. Interface Comun Saúde Educ [Internet]. 2015; [cited 2018 Jul 18];19(53):237-50. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/1807-57622014.0436
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). Entende-se que ao adotar a vulnerabilidade como marco conceitual atenta-se para seu caráter dialético, no sentido de que esse quadro de referência favorece a capacidade criadora, dos indivíduos e grupos, de superação das condições de vulnerabilidade por meio de processos participativos e emancipatórios.

Características das Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde

A designação "Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde" (IRAS) é uma progressão e ampliação do convencional conceito de "infecção hospitalar". Tradicionalmente, considera-se como infecção hospitalar qualquer infecção adquirida durante a hospitalização e que não estava presente ou em período de incubação por ocasião da admissão do usuário do serviço de saúde. Contudo, em sua nova concepção, o conceito de IRAS incorpora eventos infecciosos adquiridos também em decorrência da assistência extra-hospital.

A aquisição de IRAS no âmbito da hospitalização tem sido mais estudada em função da sua frequência, severidade e custos, e há abundante literatura com recomendações, bem como normativas de âmbito nacional e internacional. No entanto, com a diversificação dos possíveis locais onde a assistência à saúde é prestada, o hospital não se mantém como o único ambiente, no qual eventos adversos podem surgir em decorrência do cuidado realizado(44 Padoveze MC, Figueiredo RM. [The role of primary care in the prevention and control of healthcare associated infections]. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(6):1137-44. doi: 10.1590/S0080-623420140000700023. Portuguese.
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). Entre esses eventos adversos, a aquisição de infecção é uma possibilidade concreta. Essa ocorrência será mais provável à medida que aumentam os procedimentos com caráter invasivo e as populações com alta susceptibilidade devido a condições específicas dos indivíduos (por exemplo: extremos de base, doenças imunodepressoras, medicamentos imunodepressores; obesidade e desnutrição). Portanto, mudanças na característica da população atendida em unidades não hospitalares irão potencialmente determinar alterações na magnitude da incidência de IRAS também para essas unidades. Sendo assim, o uso da expressão IRAS não somente modifica uma nomenclatura tradicional, mas também implica uma tendência para uma visão mais abrangente do fenômeno.

As IRAS podem ter causas diversas produzidas por qualquer microrganismo, podendo gerar infecções de ordem leve, moderada ou severa, com manifestação em qualquer topografia corporal. São potencialmente passíveis de associação com qualquer tipo de procedimento realizado e em qualquer modalidade de atenção à saúde. Peculiarmente, trata-se de um fenômeno de duas vias: atinge tanto os usuários do sistema como o trabalhador de saúde. Como característica marcante do fenômeno, apresenta uma face dual: a intervenção é, ao mesmo tempo, solução e problema. Isso porque a própria assistência, ainda que visando a recuperar a saúde, é também a geradora potencial de eventos adversos, entre eles as IRAS. Além disso, no ambiente da assistência à saúde, ocorrem situações que favorecem a seleção e a disseminação de agentes de resistência a antimicrobianos e germicidas.

A compreensão sobre as IRAS passou por estágios evolutivos conceituais. Inicialmente, eram consideradas apenas como uma ocorrência de caráter sanitário na qual se enfatizava a auditoria sobre a higiene ambiental como forma de intervenção. Posteriormente, passaram a ser compreendidas no arcabouço epidemiológico clássico, com estudos de fatores de risco associados ao ambiente hospitalar. Recentemente, vêm sendo reconhecidas como problema de saúde pública, para o qual são feitas recomendações visando à sua prevenção. É importante destacar que já se reconhece que a magnitude desse agravo é muito maior em países em desenvolvimento, podendo apresentar taxas 20 vezes maiores quando comparadas às de países desenvolvidos. É fato que países desenvolvidos encontram-se mais estruturados no desenvolvimento de programas em âmbito governamental para a eliminação das IRAS(55 Allegranzi B, Bagheri Nejad S, Combescure C, Graafmans W, Attar H, Donaldson L, Pittet D. Burden of endemic health-care-associated infection in developing countries: systematic review and meta-analysis. Lancet. 2011;377(9761):228-41. doi: 10.1016/S0140-6736(10)61458-4.
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). O estabelecimento de programas de prevenção de IRAS passou a ser reconhecido mundialmente como uma prioridade para países em desenvolvimento, em especial após a trágica experiência com o vírus ebola na África e as recentes epidemias de coronavírus do Oriente Médio (MERS-CoV), sem ignorar também a última pandemia de influenza(66 Allegranzi B, Kilpatrick C, Storr J, Kelley E, Park BJ, Donaldson L; Global Infection Prevention and Control Network. Global infection prevention and control priorities 2018-22: a call for action. Lancet Glob Health. 2017;5(12):e1178-e1180. doi: 10.1016/S2214-109X(17)30427-8.
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).

No Brasil, a estrutura de prevenção nos serviços de saúde obteve avanços relevantes nas últimas duas décadas, porém ainda com fragilidades no que tange à sua estrutura(77 Padoveze MC, Fortaleza CM, Kiffer C, Barth AL, Carneiro IC, Giamberardino HI, Rodrigues JL, Santos Filho L, de Mello MJ, Pereira MS, Gontijo Filho P, Rocha M, de Medeiros EA, Pignatari AC. Structure for prevention of health care-associated infections in Brazilian hospitals: A countrywide study. Am J Infect Control. 2016;44(1):74-9. doi: 10.1016/j.ajic.2015.08.004.
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). Sistemas de vigilância epidemiológica em âmbito governamental foram implantados, porém ainda em fase de amadurecimento(88 Padoveze MC, Melo S, Bishop S, Poveda VB, Fortaleza CMCB. Public policies on healthcare-associated infections: a Brazil and UK case study. Rev Saúde Publica. 2017;51:119. doi: 10.11606/S1518-8787.2017051000315.
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). Não obstante, aproximadamente 1 em cada 10 hospitalizações irão sofrer a ocorrência de IRAS, segundo dados do último estudo de prevalência realizado no país(99 Fortaleza CMCB, Padoveze MC, Kiffer CRV, Barth AL, Carneiro ICDRS, Giamberardino HIG, Rodrigues JLN, Santos Filho L, de Mello MJG, Pereira MS, Gontijo Filho PP, Rocha M, Servolo de Medeiros EA, Pignatari ACC. Multi-state survey of healthcare-associated infections in acute care hospitals in Brazil. J Hosp Infect. 2017;96(2):139-144. doi: 10.1016/j.jhin.2017.03.024.
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).

As IRAS estão inseridas no contexto da emergência da resistência aos antimicrobianos. Nem todas as IRAS são causadas por cepas resistentes e nem todos os casos de resistência estão associados às IRAS, uma vez que a resistência também pode emergir de infecções adquiridas na comunidade. Entretanto, o uso frequente de antimicrobianos nos serviços de saúde exerce uma pressão ecológica que favorece a seleção de cepas resistentes. Soma-se a isso a facilidade de disseminação dessas cepas no ambiente hospitalar. Por esse motivo, a preocupação global com as IRAS aumentou nos últimos anos.

Outro elemento da peculiaridade das IRAS é que estas são um agravo no qual a culpabilização e o estigma não incidem sobre os usuários, mas sim sobre os profissionais e os serviços de saúde, que são percebidos na comunidade e até mesmo na literatura científica como "os culpados" pela sua ocorrência. No entanto, pouco se discute o contexto no qual ocorre a atuação desses profissionais, suas condições e carga de trabalho, as quais podem aumentar as chances de ocorrência de eventos adversos infecciosos. Assim sendo, um agravo com tal complexidade só pode ser plenamente compreendido por meio de ferramentas que possibilitem uma visão ampliada do fenômeno.

Lacunas de pesquisa: o conceito de vulnerabilidade aplicado às Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde

A epidemiologia tradicional tem sido a mola propulsora dos estudos das IRAS no cenário nacional e internacional. Com o advento de progressos para o estudo genético de microrganismos, a epidemiologia molecular transformou-se numa importante e útil ferramenta que aumenta a capacidade de compreensão do fenômeno. Mais recentemente tem-se agregado aos convencionais indicadores de estrutura e resultados a aplicação de indicadores de processo. Com isso, há maior potência para identificação de elementos associados a resultados indesejados, aumentando a eficiência das intervenções propostas. Não obstante o enorme valor de todos esses instrumentos, ainda não se desenvolveu uma ferramenta que isoladamente tenha o potencial de ampla visão, capaz de captar marcadores quantitativos e qualitativos do fenômeno nas suas dimensões individual, social e programática. Desse modo, acredita-se que a adição de novas ferramentas favorece a amplitude de análise.

Partindo-se dessa ideia de aprofundamento na análise das IRAS, busca-se identificar quais marcadores podem revelar a vulnerabilidade de indivíduos e populações a esse agravo. As análises de vulnerabilidade não excluem a necessidade de análises epidemiológicas de risco que possibilitem reconhecer a magnitude de um agravo e estabelecer associações probabilísticas das condições objetivas e mensuráveis que a ele predispõem. Entretanto, a identificação dessas variáveis, sua análise e consequentes propostas de intervenção, para que sejam eficientes, precisam incorporar o reconhecimento do contexto coletivo em que esse agravo se manifesta.

O compromisso com o Cuidar pressupõe uma expectativa de beneficência, sem qualquer maleficência. Sendo assim, as IRAS são produtos indesejados do Cuidado, sendo sua prevenção e seu controle preocupações a ele relativas. Na esfera do Cuidado, o plano individual de atenção das IRAS é indissociável de seu caráter coletivo.

O ponto de partida da avaliação da vulnerabilidade, na perspectiva da dimensão individual é a concepção do indivíduo em relação à síndrome. Nesse caso, o indivíduo, concebido como sujeito de direito, é tanto o usuário do serviço de saúde quanto o trabalhador.

Nas lacunas de pesquisas a serem desenvolvidas nesse campo, muito além da identificação dos marcadores biológicos associados às IRAS, pode ser questionado quanto o indivíduo que busca a assistência à saúde conhece os riscos implicados. Além disso, questiona-se quanto esse conhecimento está também incorporado pelos profissionais de saúde. Os usuários de serviços de saúde conhecem qual é o papel dos profissionais, dos governos e o seu próprio papel no processo de prevenção? São conhecidos os métodos de proteção, seu direito a esses métodos e o direito do usuário de questionar as práticas dos profissionais de saúde? Por exemplo, a vulnerabilidade individual de cada pessoa internada em situação de precauções específicas baseadas no modo de transmissão pode ser influenciada pelo conhecimento, percepção e engajamento do paciente em sua terapêutica? Por sua vez, os profissionais reconhecem que os usuários do sistema de saúde têm direito ao questionamento sobre as práticas assistenciais? É possível que haja influência do vínculo entre o profissional e o usuário do serviço de saúde sobre as taxas de adesão a medidas de prevenção de IRAS?

Na dimensão social, há que se investigar quanto aos padrões raciais, culturais, econômicos e geográficos, quais são os determinantes que interferem na visão de IRAS e na aceitação de suas medidas de proteção. Determinadas práticas e conceitos sociais podem favorecer a culpabilização exclusiva das instituições e profissionais de saúde quando se trata de IRAS. Por outro lado, há que se analisar quanto o arrefecimento da reação social mediante o fenômeno das IRAS estimula o descaso dos formuladores de políticas de saúde.

Também são matérias de investigação tantos outros marcadores da cadeia do cuidado, como a acessibilidade aos equipamentos de saúde. Por exemplo, a falha na assistência à saúde oportuna, a superlotação de unidades de atendimento (berçários, UTI, departamentos de hemodiálise) e o papel da carga de trabalho, com redução dos quadros de trabalhadores, podem produzir complicações que favorecem a aquisição de IRAS? Talvez existam implicações da intervenção tardia na doença, pois muitos agravos não deveriam sequer chegar a hospitalização nas condições de saúde que são sensíveis à atenção primária e, portanto, muitas internações desnecessárias poderiam ser prevenidas(44 Padoveze MC, Figueiredo RM. [The role of primary care in the prevention and control of healthcare associated infections]. Rev Esc Enferm USP. 2014;48(6):1137-44. doi: 10.1590/S0080-623420140000700023. Portuguese.
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). Quando necessárias, as internações deveriam ocorrer em tempo oportuno, evitando a realização de procedimentos sob condições de complicações já instaladas.

Pode-se questionar também qual o impacto da falha de acesso a insumos de qualidade no que tange à aquisição de IRAS. A carência de insumos adequados pode repercutir não só na assistência ao usuário do serviço de saúde, mas também na segurança e saúde do trabalhador? Há ainda profundas lacunas de conhecimento no que se refere às estratégias de participação dos trabalhadores nas decisões em relação à elaboração de procedimentos operacionais padrão (POP), bem como no que se refere aos processos de educação permanente.

Por fim, na sua dimensão programática, há que se identificar qual o grau e a qualidade do compromisso dos serviços e programas de prevenção no que tange à composição das equipes, orçamento destinado e alocação física de recursos e a organização dos serviços. Nessa dimensão, é essencial o manejo intersetorial, envolvendo a educação (para a formação e capacitação de profissionais). Além disso, é preciso reconhecer que a questão da resistência microbiana não se limita aos serviços de saúde; por conseguinte, é necessário que as abordagens desse problema incluam outras áreas, tais como agricultura, pecuária e veterinária. A integralidade também deve ser considerada no manejo programático de IRAS: a relação de referência e contrarreferência entre os níveis primário, secundário e terciário é fundamental. O conceito da integralidade deve perpassar todas as etapas do cuidado, incluindo desde a orientação dos usuários do sistema de saúde até a vigilância epidemiológica de IRAS que se manifestam após a hospitalização.

Em vista desses questionamentos, entende-se que há muitas lacunas a serem preenchidas no conhecimento do fenômeno das IRAS. Nesse sentido, o conceito de vulnerabilidade pode contribuir para o estabelecimento de um quadro de referência que permita uma ampla avaliação desse agravo e suas potenciais estratégias para sua prevenção. Espera-se obter, por meio desse quadro de referência, não um mero sistema de contagem de pontos, mas um tipo de avaliação numa perspectiva qualitativa e crítico-reflexiva.

Potencialidades do uso do conceito de vulnerabilidade para o manejo de Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde

As diferentes formas de enxergar o mundo determinam as formas como os povos manejam as suas potencialidades e fragilidades. Até o momento, os conceitos epidemiológicos convencionais não ajudaram a sanar completamente os problemas de saúde.

O conceito de vulnerabilidade favorece a ampliação da visão do fenômeno e permite olhar para o indivíduo inserido no contexto social e político em que se encontra. A vulnerabilidade permite identificar os potenciais de desgaste e fortalecimento e aumenta a possibilidade do enfrentamento, onde o indivíduo não é um agente passivo no processo. Por conseguinte, intervenções para prevenção de IRAS, quando abordadas na perspectiva de vulnerabilidade, podem diferenciar-se dos processos convencionais na medida em que não serão prescrições rígidas a serem aplicadas como pacotes de medidas no modelo "top-down".

A aplicação do conceito de vulnerabilidade nos estudos e nas práticas de prevenção de IRAS tem o potencial para induzir a produção de ações sociais específicas que favoreçam e promovam a equidade do acesso à saúde, que reduzam a estigmatização dos profissionais e serviços de saúde, e que garantam a interdisciplinaridade. É preciso desvelar a premissa de que prevenção de IRAS é um direito de cidadania, e que, portanto, há necessidade de permeabilidade à participação da sociedade para o diagnóstico da situação e enfrentamento das IRAS, reconhecendo a corresponsabilidade dos diferentes segmentos envolvidos no processo. No Quadro 1, apresenta-se uma síntese de potenciais marcadores de vulnerabilidade de indivíduos às IRAS, como proposta para estudos futuros.

Quadro 1
Síntese das dimensões e marcadores de vulnerabilidade de usuários e trabalhadores às Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS), São Paulo, Brasil, 2018

Em particular no Brasil, espera-se que os estudos desenvolvidos com base no conceito de vulnerabilidade estimulem a elaboração de políticas públicas concernentes ao enfrentamento das IRAS, nas quais estejam bem definidos os papéis dos serviços de saúde e das esferas de gestão governamental - municipal, estadual e federal. Essas políticas devem demonstrar-se sustentáveis e estar alinhadas aos princípios do Sistema Único de Saúde, tendo o Estado o dever de garanti-las.

Concluindo, o uso do conceito de vulnerabilidade no estudo e manejo de IRAS permite um novo olhar sobre um antigo problema, promovendo a equidade e integralidade das ações, estimulando a participação social, realocando a noção de risco para além do indivíduo, e reduzindo a estigmatização de profissionais e de serviços de saúde.

  • FINANCIAMENTO
    Integra o projeto "Avaliação da vulnerabilidade programática para prevenção de Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde nas Unidades Básicas de Saúde da Região do Butantã do Município de São Paulo". Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) - Processo 2010/16729-1.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Feb 2019

Histórico

  • Recebido
    01 Dez 2017
  • Aceito
    29 Jul 2018
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