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Sofrimentos e defesas no trabalho em um serviço de saúde mental

RESUMO

Objetivo:

conhecer o sofrimento e as estratégias de defesa dos trabalhadores que atuam em um CAPS AD III, sob a perspectiva do Teatro do Trabalho proposto por Dejours.

Método:

pesquisa qualitativa descritiva, do tipo estudo de caso, com trabalhadores do CAPS AD III, usando como referencial teórico a Psicodinâmica do Trabalho.

Resultados:

os profissionais que atuam no CAPS AD III identificam que o sofrimento no trabalho surge pela frustração entre o real e o prescrito; pela hegemonia das práticas orientadas pelo modelo biomédico; pela estigmatização e o preconceito com os usuários; e pelas limitações da Rede de Atenção à Saúde. Como estratégia de defesa individual, definiu-se a racionalização, e como estratégia coletiva, a de proteção.

Considerações finais:

o trabalhador utiliza estratégias de defesas para enfrentar o sofrimento e ressignificá-lo, caracterizando-se como modos de apreender, compreender e dar sentidos e novos olhares para o seu trabalho.

Descritores:
Saúde Mental; Saúde do Trabalhador; Adaptação Psicológica; Serviços de Saúde; Estresse Psicológico

ABSTRACT

Objective:

to know the suffering and the strategies of defense of CAPS AD III workers, from the perspective of the Work Theater proposed by Dejours.

Method:

a descriptive qualitative research, of the case study type, with CAPS AD III workers, using as theoretical framework the Psychodynamics of Work.

Results:

CAPS AD III professionals identify that the suffering in the work arises from the frustration between the real and the prescribed one; by the hegemony of practices guided by the biomedical model; stigmatization and prejudice with users; and the limitations of the Health Care Network (Rede de Atenção à Saúde). As an individual defense strategy, the rationalization was defined, and as a collective strategy, the protection strategy.

Final considerations:

worker uses strategies of defenses to face suffering and give a new meaning to it, characterizing themselves as ways of apprehending, understanding and giving meaning and new looks to their work.

Descriptors:
Mental Health; Occupational Health; Adaptation, Psychological; Health Services; Psychological Stress

RESUMEN

Objetivo:

conocer el sufrimiento y las estrategias de defensa de los trabajadores que actúan en un CAPS AD III, bajo la perspectiva del Teatro del Trabajo propuesto por Dejours.

Método:

investigación cualitativa descriptiva, del tipo estudio de caso, con trabajadores del CAPS AD III, usando como referencial teórico la Psicodinámica del Trabajo.

Resultados:

los profesionales que actúan allí identifican que el sufrimiento en el trabajo surge por la frustración entre lo real y lo prescrito; por la hegemonía de las prácticas orientadas por el modelo biomédico; por la estigmatización y el prejuicio con los usuarios; y por las limitaciones de la RAS. Como estrategia de defensa individual se definió la racionalización, y como estrategia colectiva, la de protección.

Consideraciones finales:

el trabajador se utiliza de estrategias de defensa para enfrentar el sufrimiento y resignificarlo, caracterizándose como modos de aprehender, comprender y dar sentidos y nuevas miradas para su trabajo.

Descriptores:
Salud Mental; Salud del Trabajador; Adaptación Psicológica; Servicios de Salud; Estrés Psicológico

INTRODUÇÃO

O sofrimento no trabalho, verificado pelas angústias, medos e inseguranças, configura-se como uma vivência de experiências dolorosas aos trabalhadores. Porém, a presença do sofrimento não implica uma patologia - não sendo contrário à saúde -, uma vez que o binômio prazer-sofrimento pode conviver nas situações de trabalho(11 Dejours C. Trabalho vivo: trabalho e emancipação (Tomo II). Brasília: Paralelo 15; 2012. 222 p.). Contudo, o sofrimento excessivo e constante pode trazer uma série de consequências negativas aos trabalhadores, como o adoecimento, que consequentemente gera a perda de suas capacidades laborais e, até mesmo, o afastamento das atividades profissionais(22 Demaegdt C, Rolo D, Dejours C. Psychopathologie et psychodynamique du travail. EMC - Pathologie professionnelle et de l'environnement. 2013;8(3):1-11. doi: 10.1016/S1877-7856(13)58377-2
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).

A Psicodinâmica do Trabalho, referencial teórico adotado para este estudo, preocupa-se com as relações do sujeito no coletivo, tendo como aspecto principal os processos defensivos e preservativos contra o sofrimento no trabalho, considerando a história singular do trabalhador e a história atual de seu trabalho(33 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez; 2015. 168 p.). Além disso, analisa as relações entre os trabalhadores, as vivências de sofrimento e de prazer no trabalho, percebendo o papel da subjetividade e das estratégias defensivas construídas pelos próprios trabalhadores no espaços em que atuam(33 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez; 2015. 168 p.-44 Dejours C, Abdoucheli E. Itinerário teórico em psicopatologia do trabalho. In: Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. 16ª reimp. São Paulo: Atlas; 2015. p. 119-45.).

Dejours expõe que o sofrimento repercute na vida do trabalhador de forma estruturada, podendo ser analisado pelos elementos que compõem um teatro do trabalho. Segundo o autor, o ambiente de trabalho é o teatro, com os seus personagens (coordenadores, gerentes, supervisor, colega de trabalho), seu enredo (a estrutura de poder e hierarquia, preconceitos, valores), o cenário (o macroambiente, o desemprego, a instabilidade, as incertezas); e, inclusive, os espectadores (família, amigos, usuários, adversários), que, afinal, aplaudirão ou não, em uma analogia com a vida real, o fruto de uma vida, aprovando-a ou não(33 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez; 2015. 168 p.-44 Dejours C, Abdoucheli E. Itinerário teórico em psicopatologia do trabalho. In: Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. 16ª reimp. São Paulo: Atlas; 2015. p. 119-45.).

Nos ambientes de trabalho, por vezes, o trabalhador sofre, mas também tem recursos e estratégias para transformar o sentimento doloroso – de forma criativa e madura – em satisfação laboral(55 Dejours C. Psicodinâmica do trabalho: casos clínicos. Porto Alegre: Dublinense; 2017. 144 p.). Para tanto, faz-se necessário ressignificar os elementos que geram sofrimento, e isso depende da qualidade da dinâmica do trabalho e das estratégias defensivas que o trabalhador utiliza(11 Dejours C. Trabalho vivo: trabalho e emancipação (Tomo II). Brasília: Paralelo 15; 2012. 222 p.). Nesses casos, a subjetividade do trabalhador deve ser analisada, evidenciando assim as formas de enfretamento do sofrimento individual e coletivo no trabalho, uma vez que a Psicodinâmica do Trabalho se preocupa com uma dinâmica abrangente, voltando-se para a organização do trabalho e as relações entre os trabalhadores(33 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez; 2015. 168 p.). A análise das estratégias de defesa possibilita a compreensão do domínio da normalidade sobre a doença mental em contextos de trabalho marcados por adversidades, revelando que os trabalhadores não ficam passivos, mas buscam recursos para lidar com o sofrimento e evitar a descompensação(11 Dejours C. Trabalho vivo: trabalho e emancipação (Tomo II). Brasília: Paralelo 15; 2012. 222 p.).

Trazendo para contexto da saúde mental, uma pesquisa realizada com trabalhadores de um CAPS AD, vários foram os relatos dos trabalhadores sobre o efeito desgastante ao acolher o usuário nesse local, assim como a frustração e o medo diante das crises dos usuários, repletas de ofensas e agressividade(66 Wandekoken KD, Dalbello-Araujo M, Borges LH. Efeitos danosos do processo de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Saúde Debate. 2017;41(112):285-97. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201711223
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). Esses relatos são possíveis geradores de sofrimento psíquico aos trabalhadores, conceito adotado por Dejours, visando uma melhor compreensão da dor e do sofrimento(44 Dejours C, Abdoucheli E. Itinerário teórico em psicopatologia do trabalho. In: Dejours C, Abdoucheli E, Jayet C. Psicodinâmica do trabalho: contribuições da escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. 16ª reimp. São Paulo: Atlas; 2015. p. 119-45.).

Diante do exposto, o presente estudo consiste em conhecer o sofrimento e as estratégias de defesas dos trabalhadores que atuam em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III, por meio dos elementos do Teatro do Trabalho, sob a perspectiva da Teoria da Psicodinâmica do Trabalho.

OBJETIVO

O objetivo do estudo consiste em conhecer o sofrimento e as estratégias de defesas dos trabalhadores que atuam em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III, sob a perspectiva do Teatro do Trabalho proposto por Dejours.

MÉTODOS

Aspectos éticos

A referida pesquisa seguiu os trâmites legais exigidos para pesquisas envolvendo seres humanos, de acordo com Resolução 466/12. Primeiramente, encaminhou-se à Secretaria Municipal de Saúde de Chapecó a solicitação de concordância e anuência. Em posse dessa autorização, foi encaminhado o projeto para o Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

Tipo de estudo e referencial teórico

Esta é uma pesquisa qualitativa descritiva, do tipo estudo de caso, e que tem como referencial teórico a Psicodinâmica do Trabalho. Trata-se de um recorte da pesquisa qualitativa “Prazer e Sofrimento dos Trabalhadores que Atuam em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas III”(77 Kolhs M. Prazer e sofrimento dos trabalhadores que atuam em um Centro de Atenção Psicossocial álcool e drogas III [Tese]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Porto Alegre. 2017.).

Cenário do estudo

A pesquisa foi desenvolvida no CAPS AD III do município de Chapecó, SC, inaugurado na rede de atenção psicossocial em 2009 e instituído em CAPS AD III em agosto de 2013. Trata-se de um serviço destinado a atender pessoas com problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas com funcionamento de 24 horas/dia. A estrutura física do CAPS AD III constitui-se em um espaço administrativo, espaço clínico e espaço de consultórios. Há 10 leitos de acolhimento/desintoxicação em que o usuário permanece no máximo por 14 dias, no período 30 dias, de acordo com o quadro clínico e a indicação da equipe. Entre as atividades desenvolvidas, destacam-se oficinas terapêuticas, educativas, de ajuda mútua, atendimentos/terapias individuais, acolhimento, visitas domiciliares, entre outras atividades estabelecidas aos usuários em atendimento nesse serviço, conforme o Plano Terapêutico Singular (PTS).

Fonte de dados

A equipe de trabalhadores do CAPS AD III é composta por 33 trabalhadores distribuídos entre o nível médio (auxiliar de enfermagem, copeira, recepcionista e vigilantes) e superior (médico clínico geral e psiquiatra, enfermeiro, psicólogos, terapeuta ocupacional, assistentes sociais, nutricionista, educador físico e pedagogo).

Para participar da pesquisa, consideraram-se os seguintes critérios de inclusão: ser trabalhador vinculado ao serviço, ter 18 anos ou mais e estar atuando no CAPS AD III há mais de seis meses no momento da coleta de dados. Os critérios de exclusão foram: trabalhadores que estivessem de férias ou de licença no momento da coleta de dados. Desse modo, os participantes foram 23 trabalhadores, dentre eles: enfermeiros, auxiliares de enfermagem, médicos, psicólogos, pedagogos, vigilantes, copeiras, terapeuta ocupacional, assistentes sociais e técnicos administrativos. Cada trabalhador foi identificado na pesquisa pela letra T (trabalhador) seguido de um número ordinal (T1, T2...).

Coleta e organização dos dados

Para a coleta das informações, foram realizadas entrevistas individuais, de acordo com a disponibilidade de cada entrevistado. Todas as entrevistas ocorreram no local de trabalho, em uma sala reservada. As datas e horários foram agendados diretamente com os participantes após o convite e esclarecimentos. As entrevistas foram guiadas por um instrumento semiestruturado, que teve como pergunta disparadora: “Fale sobre seu trabalho no CAPS AD III”. Para o registro, após a anuência do entrevistado, foi utilizado um gravador de áudio. Na sequência da coleta de informações, as entrevistas foram transcritas na íntegra. Optou-se pela técnica de entrevista individual devido às características e organização do serviço, e à distribuição dos trabalhadores em plantões, inviabilizando processos grupais de abordagem investigativa.

Análise dos dados

As informações obtidas foram analisadas por meio da análise de conteúdo, organizadas em três fases: pré-análise; exploração do material; tratamento dos resultados, inferência e interpretação(88 Bardin L. L'analyse de Contenu. Collection: Quadrige . PUF; 2013. pages 304.). A etapa de análise dos resultados é a fase em que ocorre a condensação e o destaque das informações, culminando nas interpretações inferenciais de forma reflexiva e crítica, articulando os objetivos do estudo com a base teórica adotada(88 Bardin L. L'analyse de Contenu. Collection: Quadrige . PUF; 2013. pages 304.). Neste estudo, a base teórica adotada foi a Psicodinâmica do Trabalho.

RESULTADOS

Os resultados deste estudo estão apresentados com base nos elementos que compõem o “Teatro do Trabalho”, a saber: os personagens (trabalhadores do CAPS AD III); o enredo (o processo de trabalho no CAPS AD III); os telespectadores (usuários e familiares) e o cenário (o macroambiente do CAPS AD III)(33 Dejours C. A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. 6ª ed. São Paulo: Cortez; 2015. 168 p.).

Os personagens: frustração entre o real e o prescrito no trabalho no CAPS AD III

O trabalho real no CAPS AD III, por diversos momentos, revela-se como frustrante ao trabalhador, gerando sentimento de fracasso, impotência e desânimo quando o resultado de seu trabalho não corresponde aos esforços e investimentos de cuidado junto aos usuários.

O resultado do nosso trabalho, o vai e volta dos usuários [recaída], me frustra. Não vejo o resultado positivo, a melhora para me animar, estimular [...] (T8)

Vejo que alguns colegas da equipe não são realizados [...] não compreendem o seu papel e muito menos o do serviço para com estes usuários [...] (T13)

As famílias não compreendem a doença/dependência [...] não ajudam o familiar/usuário a aderir o tratamento, por mais que nós orientamos [...] (T5)

Observa-se que o trabalhador mobiliza sua subjetividade e seu conhecimento técnico para contornar situações tensas de sofrimento, juntamente com o familiar e os usuários.

O enredo: modelo biomédico no trabalho no CAPS AD III

Apesar dos avanços promovidos pela Reforma Psiquiátrica, o modelo biomédico ainda é fortemente praticado no CAPS AD III. Esse modelo é pautado na tradicional compreensão do sofrimento mental, no poder do saber médico, que tem como base a prescrição medicamentosa, ou seja, a troca de uma droga por outra.

Vejo o serviço muito centrado na consulta médica, a terapêutica não pode e não deve ser centrada no médico. A dinâmica do CAPS AD III não é para isso, e sim na equipe em diferentes grupos, oficinas e no individual se necessário. (T19)

[...] a equipe centra o atendimento na consulta médica, nos acolhimentos. Quase todos os usuários são direcionados à consulta médica, sobrecarregando as agendas [...] a redução de danos não é uma prática da equipe. (T16)

Somos uma equipe multiprofissional e oferecemos várias formas de cuidado aos usuários, como grupos, oficinas, psicoterapia, entre outros, mas o usuário sempre pede pela consulta médica, pelo medicamento [...] (T17)

Percebe-se que a prática biomédica despotencializa o serviço e o trabalho interdisciplinar, gerando um sentimento de frustração nos trabalhadores. De certa forma, ocorre uma retroalimentação entre o modelo biomédico e a frustração da equipe na atuação interdisciplinar.

Os telespectadores: estigmatização e preconceito com os usuários

Os trabalhadores do CAPS AD III relatam a vivência cotidiana do preconceito e do estigma, uma vez que os usuários vivem marginalizados socialmente, impedindo e dificultando sua inclusão em diferentes espaços e setores.

Quando encaminhamos ou solicitamos algo a outros setores públicos da Prefeitura, percebo claramente que se barra no preconceito [...]. A sociedade tem muito preconceito com o usuário e o serviço. Denominam o serviço de tratamento para os bêbedos, vagabundos, degenerados [...]. Enfrentamos dificuldade até usuário quer voltar a estudar, mas a escola diz não ter mais vaga, quando sabemos que isso não é verdade, existe uma forte exclusão a esta população [...] (T13)

A sociedade não acredita, excluem os usuários, nós devemos acolher e acreditar numa nova possibilidade [...] (T21)

Além do vício, tem o problema social, a sociedade empurra para o vício, para as recaídas, alimenta o vício, ao mesmo tempo em que recrimina, descrimina e estigmatiza, essa hipocrisia me faz mal! (T18)

Percebe-se que o trabalhador do CAPS AD III sofre pelo preconceito que a sociedade tem com o usuário. Contudo, o desvio que ocorre entre o prescrito (o que é de direito do usuário) e o real (o preconceito) também existe entre os próprios trabalhadores do serviço.

A pouca compreensão dos colegas para com usuário me incomoda, a forma em que trata em que fala com usuário, comentários impróprios, preconceituosos, autoritários [...] (T12)

A falta de postura de ética [dos trabalhadores do CAPS] e o preconceito é algo que me incomoda. (T21)

A finalidade da assistência no CAPS AD III deve ser orientada pela reconstrução da vida do usuário para além do circuito saúde-doença. Trabalhar nesse serviço de saúde significa, também, resgatar a autoestima e promover a reinserção social dos usuários, fazendo o embate, nesse percurso, com o preconceito e estigma impostos aos dependentes de substâncias psicoativas.

O cenário: limitações da Rede de Atenção à Saúde (RAS)

As Redes de Atenção à Saúde são definidas como arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes densidades tecnológicas, que integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado. A operacionalização de uma rede de cuidados e o desenvolvimento de ações estendidas ao espaço social mais amplo têm encontrado impasses, que, conforme o relato dos trabalhadores do CAPS AD III, ocasionam angústia e sofrimento.

As equipes das UBS/ESFs se dizem não estar preparadas para atuar com famílias e muito menos com os usuários [...] isso é algo que angustia. (T16)

Não conseguimos dar alta pra os usuários porque a atenção primária diz não poder acompanhar. (T19)

Os trabalhadores das escolas, serviço social, da atenção básica em saúde, argumentam que não têm estrutura, nem equipe para continuar o tratamento na comunidade onde os usuários residem [...] (T2)

A inserção de práticas com usuários de substâncias psicoativas e família na atenção básica comprova a busca pela regionalização e redirecionamento do cuidado, na lógica de atenção integral e humanizada aos usuários, em articulação com os trabalhadores e serviços já inseridos nos territórios.

Estratégias de defesas do sofrimento no teatro de trabalho do CAPS AD III

Estratégias de defesas individuais: a racionalização

Como forma de enfrentar o desconhecido, o novo, alguns trabalhadores do serviço buscam, individualmente, o aprimoramento e aprendizado, de forma a se adaptarem às normas, à política e às demandas dos usuários. Os trabalhadores apontaram utilizar a estratégia de racionalização como aliadas para o alívio do seu sofrimento. Ao utilizar essas estratégias, “relaxam” do trabalho, compensando com atividades de lazer e outras habilidades que lhes proporcionem prazer.

Os primeiros meses de trabalho foi sofrido, desafiador por conta de entrar numa política nova, fui estudar, ler [...] hoje, se tenho dificuldade, continuo recorrendo à leitura [...] (T9)

Tive medo no início, mas fui me soltando, ouvindo, e vendo que o usuário é igual a qualquer outro, porém com demandas diferentes [...] hoje, quando fico inseguro, reflito sobre a situação [...] (T10)

É desgastante trabalhar com este público, ele sai daqui bem, volta muito recaído [...] mas penso “que bom que posso ajudar, estou do outro lado”. (T6)

O uso de estratégias de defesas individuais pelos trabalhadores do CAPS AD III constitui-se em mais uma alternativa que utilizam para enfrentar as vivências de sofrimento e ressignificá-lo. Trabalhadores do CAPS AD III utilizam a racionalização como defesa para compreender o sofrimento de seu trabalho, dando um sentido às suas experiências. O trabalhador atribui um valor social ao trabalho, buscando minimizar o impacto dos fatores estressores envolvidos em seu trabalho no CAPS AD III.

Estratégias de mobilização coletivas: a proteção

Os trabalhadores do CAPS AD III, frente às vivências de sofrimento, mesmo sendo individuais, associam-se, identificam-se, são empáticos com os colegas, apoiam-se como estratégia de proteção. As estratégias de mobilização coletivas de proteção estão relacionadas ao jeito de pensar, sentir e agir compensatórias usadas pelos trabalhadores(88 Bardin L. L'analyse de Contenu. Collection: Quadrige . PUF; 2013. pages 304.). Aparecem sob a forma de estratégia de defesa coletiva, levitação, eufeminação da angústia, do medo e da insegurança no trabalho(88 Bardin L. L'analyse de Contenu. Collection: Quadrige . PUF; 2013. pages 304.). Portanto, é por meio dessas estratégias que os trabalhadores do CAPS AD III manifestam modificar, transformar ou minimizar a percepção da realidade que os incomoda e os faz sofrer.

Me alivio nas trocas e conversas com outras colegas, no tomar um café na cozinha [...] (T14)

As relações com as colegas, discussão, trocas, desabafos são muito boas [...] estamos sempre em movimento para mudanças naquilo que entendemos não estar adequado ou que nos incomoda. (T11)

Quando temos situações tensas no trabalho, nós nos ajudamos [...], conversamos, refletimos sobre condutas, posturas [...], nos apoiamos, nos protegemos. (T12)

Outro dispositivo para o enfrentamento do sofrimento são as reuniões de equipe. Nesse momento, os trabalhadores do CAPS AD III expõem, debatem e pensam em meios de superar tal sentimento.

A reunião de equipe é um espaço livre, aonde podemos falar, sugerir, reclamar e nos organizar. Acho este espaço muito bom e proveitoso. (T6)

[...] podemos falar, discutir situações, pedir ajuda, refletir, estudamos juntos para melhor atender o usuário, e também para diminuir nossas angústias [...], entender e compartilhar em equipe que o usuário é um sujeito livre. (T19)

As reuniões de equipe no CAPS AD III caracterizam-se como um espaço em que o trabalhador possa se expressar, ouvir, fazer trocas, estabelecer laços de cooperação e estratégias de proteção com os outros colegas. Destaca-se que a equipe do serviço se organizou, desde 2013, para fechar sua porta de entrada para o atendimento externo, uma vez por semana, para que todos os trabalhadores participem da reunião.

DISCUSSÃO

Reconhece-se como fator de sofrimento a idealização que os trabalhadores têm sobre o trabalho, ou seja, acreditam que o trabalho ocorra somente do modo pelo qual foi prescrito, ou mesmo idealizado e, sentem-se angustiados quando percebem que não dão conta do real do trabalho. O trabalho no CAPS AD III exige muito mais do que conhecimento técnico/científico; o real do trabalho revela-se nas necessidades sociais do usuário como: comida, moradia, trabalho, lazer, relações afetivas, entre outras, situações em que o prescrito não corresponde ao real.

Diante desse cenário, é possível reconhecer o sofrimento do trabalhador do CAPS AD III frente à idealização (prescrito) e à frustração (real). Quando os trabalhadores se deparam com o hiato entre o prescrito e o real, experimentam a sensação de fracasso e vivenciam o sofrimento do não saber como fazer(22 Demaegdt C, Rolo D, Dejours C. Psychopathologie et psychodynamique du travail. EMC - Pathologie professionnelle et de l'environnement. 2013;8(3):1-11. doi: 10.1016/S1877-7856(13)58377-2
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). Inicialmente, adotam uma posição passiva, por vezes marcada pela raiva e pelo desânimo, mas para ultrapassar essas situações penosas necessitam agir, o que inclui a capacidade de tolerar o sofrimento e fazer novas tentativas, até encontrá-las ou criar uma solução(11 Dejours C. Trabalho vivo: trabalho e emancipação (Tomo II). Brasília: Paralelo 15; 2012. 222 p.-22 Demaegdt C, Rolo D, Dejours C. Psychopathologie et psychodynamique du travail. EMC - Pathologie professionnelle et de l'environnement. 2013;8(3):1-11. doi: 10.1016/S1877-7856(13)58377-2
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).

O sofrimento vivido pelos trabalhadores é invisível, ou seja, não é algo mensurável, e somente se torna visível e acessível pela fala no momento em que o trabalhador nomeia aquilo que sente(99 Mendes AM, Moraes RD, Merlo ARC. Trabalho & Sofrimento: práticas clínicas e políticas. Curitiba: Juruá; 2014.). Os autores dizem, também, que o sofrimento em si não deve ser entendido como uma patologia, mas como um sinal de alerta para que algum tipo de ação seja mobilizado. Trabalhar é continuar indefinidamente a buscar, a recomeçar e, sobretudo, encontrar soluções diante do real do trabalho(11 Dejours C. Trabalho vivo: trabalho e emancipação (Tomo II). Brasília: Paralelo 15; 2012. 222 p.).

As diretrizes da Reforma Psiquiátrica orientam que os CAPS devem se constituir em espaços para uma atenção diferenciada, em que o princípio da desinstitucionalização da assistência seja materializado a partir de uma prática clínica centrada no sujeito/usuário e em suas necessidades de cuidado. É necessário haver uma desconstrução do conceito de doença mental a partir do referencial biomédico. Além disso, deve haver a adoção de uma nova forma de perceber o sofrimento enquanto existência-sofrimento do sujeito em sua relação com o corpo social(1010 Amarante P. Saúde mental e atenção psicossocial. 4ª ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2015. 120 p.).

Participar de um CAPS AD III implica a construção dos próprios trabalhadores, a reformulação de paradigmas relacionados a antigas formas de atenção em Saúde Mental e uma nova forma de relacionamento com os usuários, mais próximo e sem os instrumentos de proteção e das punições dos serviços psiquiátricos tradicionais(1111 Uchida S, Sznelwar LI, Barros JO, Lancman S. O trabalhar em serviços de saúde mental: entre o sofrimento e a cooperação. Laboreal [Internet]. 2011[cited 2016 Oct 16];7(1):28-41. Available from: http://laboreal.up.pt/revista/artigo.php?id=48u56oTV65822353389453854:2
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).

Entretanto, no âmbito da Saúde Mental com especificidade para álcool e drogas, muitas vezes não será possível corresponder a essa tradição e expectativa de imediato(1212 Brasilia: Ministerio da Saude; Saúde Mental no SUS: cuidado em Liberdade, Defesa de Direitos e Rede de Atenção Psicossocial. Relatório de Gestão 2011-2015. Brasilia: Ministerio da Saude; 2016, 143 p.), sendo que o modelo biomédico ainda prevalece na atenção e assistência no CAPS AD III.

Para que os trabalhadores do CAPS AD III possibilitem a reinserção do usuário, a orientação é atuar no território (geográfico, político, econômico e cultural), de forma a desenvolver parcerias com os diversos recursos existentes na comunidade, possibilitando o trabalho de forma intersetorial. Os dispositivos existentes no território abrangência, além da Rede de Atenção à Saúde, são serviços que consistem nas secretarias de educação, de cultura, de ambiente, associações civis, instituições filantrópicas, empresas, parceiros, de forma geral, que possam contribuir para a inclusão social dos sujeitos usuários de substâncias psicoativas(1313 Ministério da Justiça e Cidadania (BR). Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. O uso de substâncias psicoativas no Brasil: módulo 1. - 10ª ed. - Brasília; 2016. 146 p.). Sendo assim, o trabalho no CAPS AD III requer ações intersetoriais, as quais se fundamentam na articulação de saberes, realização e avaliação de ações, a fim de obter um efeito de coesão nas situações complexas, visando o desenvolvimento social, de forma a superar o preconceito e, por consequência, a exclusão social a que os usuários de SPAs estão expostos(1414 Ministério da Saúde (BR). Portaria n. 130, de 26 de janeiro de 2012. Redefine o Centro de Atenção Psicossocial de Álcool e outras Drogas 24 h (CAPS AD III) e os respectivos incentivos financeiros [Internet]. Brasília: Ministério da Saúde; 2012 [cited 2014 May 24]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2012/prt0130_26_01_2012.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
-1515 Garcia L, Santana P, Pimentel P, Tykanori RT. A Política Nacional de Saúde Mental e a Organização da Rede de Atenção - SUPERA. 10ª ed. Brasília: Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas; 2016. (O uso de substâncias psicoativas no Brasil: módulo 1).).

Para isso, aponta-se a importância do matriciamento como estratégia em Saúde Mental, pois além de aumentar a resolubilidade, possibilita uma aproximação entre o CAPS e a ESF, ampliando o potencial desses serviços como agenciadores de novos modos de cuidado em Saúde Mental(1616 Lucchese R, Oliveira AGB, Conciani ME, Marcon SR. Saúde mental no Programa de Saúde da Família: caminhos e impasses de uma trajetória necessária. Cad Saúde Pública[Internet]. 2009[cited 2014 May 24];25(9):2033-42. available from: http://www.scielo.br/pdf/csp/v25n9/17.pdf
http://www.scielo.br/pdf/csp/v25n9/17.pd...
-1717 Dimenstein AKS, Monique M, Pimenta AL, Medeiros V, Bezerra E. O apoio matricial em unidades de saúde da família: experimentando inovações em saúde mental. Saúde Soc [Internet]. 2009[cited 2014 May 24];8(1):63-74. Available from: http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v18n1/07.pdf
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v18n1/07...
).

O sofrimento dos trabalhadores do CAPS AD III é reconhecido frente às limitações da RAS. Contudo, esses profissionais do CAPS AD III buscam encontrar alternativas em equipe para a reinserção do usuário na sociedade (escolas, trabalho, comunidade, laços familiares, etc.), dando-lhe autonomia e corresponsabilizando a família no cuidado. Diante dessa realidade, mobilizam seus recursos internos e colocam em ação sua criatividade; manifesta-se então, uma inteligência guiada pelo sofrimento (inteligência prática), pois é através do sofrimento que se institui da solução para aquilo que causa angústia(11 Dejours C. Trabalho vivo: trabalho e emancipação (Tomo II). Brasília: Paralelo 15; 2012. 222 p.-22 Demaegdt C, Rolo D, Dejours C. Psychopathologie et psychodynamique du travail. EMC - Pathologie professionnelle et de l'environnement. 2013;8(3):1-11. doi: 10.1016/S1877-7856(13)58377-2
https://doi.org/10.1016/S1877-7856(13)58...
).

Outro aspecto que gera sofrimento aos trabalhadores do CAPS AD III é o preconceito e o estigma que a sociedade têm em relação aos usuários desse serviço. Entende-se o preconceito como um ajuizamento prematuro e impróprio sobre o uso de drogas, ou seja, uma atitude negativa e inflexível, definida a algo ou alguém, construindo-se uma ideia sem prévios conhecimentos(1818 Bard ND, Antunes B, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB. Estigma e preconceito: vivência dos usuários de crack. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2016[cited 2014 May 24];24:1-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v24/pt_0104-1169-rlae-0852-2680.pdf
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). Já o estigma, evidencia algo que excede uma atitude de prejulgamento, como sinal de desprestígio, indigno e desonroso, uma marca na honra de alguém, que sugere contaminação(1919 Schilling FI, Myiashiro SRG. Como incluir? o debate sobre o preconceito e o estigma na atualidade. Rev Educ Pesqui [Internet]. 2008[cited 2014 May 24];34(2):243-54. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ep/v34n2/03.pdf
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). Evidencia-se que a sociedade estigmatiza os usuários de substâncias psicoativas quando os caracteriza como um sinal ou uma marca de “deteriorados”, portanto, menos valorizado do que os “normais”.

Desse modo, sob uma perspectiva de preconceito, deixa-se de considerar quem faz uso de substâncias psicoativas, em específico de álcool e drogas ilícitas, como uma “pessoa comum, reduzindo-a numa pessoa estragada e diminuída, ou seja, estigmatiza e excluí, especialmente quando o efeito do descrédito sobre ela é grande”(1818 Bard ND, Antunes B, Roos CM, Olschowsky A, Pinho LB. Estigma e preconceito: vivência dos usuários de crack. Rev Latino-Am Enfermagem [Internet]. 2016[cited 2014 May 24];24:1-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v24/pt_0104-1169-rlae-0852-2680.pdf
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).

Para transpor essa situação, os trabalhadores do CAPS AD III têm de estar abertos a mudanças, de forma a romper com os conceitos impostos pela sociedade da qual faz parte, em relação ao usuário de substâncias psicoativas. Por outro lado, alguns trabalhadores podem ter dificuldades em se adaptarem a esse cenário de trabalho por trazer consigo uma história de vida, que poderá emergir diante da singularidade de cada usuário e das adversidades que o trabalho nesse serviço traz. Essas adversidades podem ser vistas e processadas pelos trabalhadores de forma positiva e/ou negativa.

As estratégias de defesas do sofrimento, também chamadas de estratégias defensivas, podem ser definidas como recursos construídos pelos trabalhadores, de forma coletiva e individual. Essas estratégias têm como finalidade minimizar a percepção do sofrimento no trabalho e funcionam por meio da recusa da percepção daquilo que faz os trabalhadores sofrerem(2020 Moraes RD. Estratégias defensivas. In: Vieira FO, Mendes AM, Merlo ARC (Org.). Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. Curitiba: Juruá, 2013; p. 153-58.). A eufemização do sofrimento fornece ao psiquismo uma proteção que torna possível aos trabalhadores permanecerem no plano da normalidade, a fim de continuar trabalhando(2020 Moraes RD. Estratégias defensivas. In: Vieira FO, Mendes AM, Merlo ARC (Org.). Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. Curitiba: Juruá, 2013; p. 153-58.).

As estratégias defensivas utilizadas pelos trabalhadores do CAPS AD III estão balizadas pela racionalização como estratégia individual e pela proteção como coletiva. Ambas estratégias manifestam no trabalhador a sutileza, engenhosidade, diversidade e inventividade, fazendo com que o sofrimento seja suportado e/ou ressignificado(22 Demaegdt C, Rolo D, Dejours C. Psychopathologie et psychodynamique du travail. EMC - Pathologie professionnelle et de l'environnement. 2013;8(3):1-11. doi: 10.1016/S1877-7856(13)58377-2
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).

As estratégias de defesas individuais são mecanismos que os trabalhadores utilizam, muitas vezes de modo inconsciente, para negar seu próprio sofrimento e o sofrimento do outro no trabalho, ou para racionalizar o sofrimento e o custo humano no trabalho(2121 Kieling M, Monteiro J, Vieira FO, Mendes AM. Trabalho & Prazer: teoria, pesquisas e práticas. Curitiba: Juruá; 2015. 264 p.). Essas estratégias defensivas, mesmo que usadas ocasionalmente, são práticas sociais e culturais implantadas a partir das relações com os outros. As táticas individuais ganham força quando o coletivo de trabalho se apresenta frágil. Com o enfraquecimento do coletivo de trabalho, a estratégia individual de racionalização do sofrimento é cada vez mais requisitada, sendo um dispositivo de enfrentamento do sofrimento gerado pela dinâmica alienante das organizações do trabalho(2222 Anjos FBD, Mendes AM, Santos AV, Facas EP. Trabalho prescrito, real e estratégias de mediação do sofrimento de jornalistas de um órgão público. Rev Eletr Sistema Gestão [Internet]. 2011[cited 2017 Feb 18];6(4):562-82. Available from: http://www.revistasg.uff.br/index.php/sg/article/viewFile/V6N4A11/V6N4A11
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).

Por sua vez, a estratégia de mobilização coletiva está no modo dos trabalhadores se organizarem conjuntamente, quando há o objetivo comum de eliminar o custo negativo que o trabalho lhes impõe. Com isso, permitem-se chegar a um denominador comum, ou seja, um espaço público de discussão para que possam expressar coletivamente seu sofrimento(2222 Anjos FBD, Mendes AM, Santos AV, Facas EP. Trabalho prescrito, real e estratégias de mediação do sofrimento de jornalistas de um órgão público. Rev Eletr Sistema Gestão [Internet]. 2011[cited 2017 Feb 18];6(4):562-82. Available from: http://www.revistasg.uff.br/index.php/sg/article/viewFile/V6N4A11/V6N4A11
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). As relações do coletivo aparecem como centrais na defesa do sofrimento. São expressas na produção da afetividade e na resistência em sua organização. Isso ocorre porque se trabalha não somente para si, mas também pelos outros(2323 Ferreira MC. Chegar feliz e sair feliz do trabalho: aportes do reconhecimento no trabalho para uma ergonomia aplicada à qualidade de vida no trabalho. In: Mendes AM (Org.). Trabalho e saúde: o sujeito entre a emancipação e a servidão. Curitiba: Juruá; 2010. p. 40-53.), por isso a importância das estratégias de mobilização coletivas, visando à emancipação e liberdade dos trabalhadores(2424 Dashtipour P, Vidaillet B. Work as affective experience: the contribution of Christophe Dejours' 'psychodynamics of work'. Organ. 2017;24(1):18-35. doi: https://doi.org/10.1177/1350508416668191
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). Nesse sentido, destaca-se a importância da organização do trabalho, que, para ser benéfica e geradora de prazer aos trabalhadores, necessita de um ambiente que possibilite a liberdade, o reconhecimento e relações horizontais no trabalho(2525 Gonçalves AM, Vilela SC, Terra FS, Nogueira DA. Atitudes e o prazer/sofrimento no trabalho em saúde mental. Rev Bras Enferm [Internet]. 2016[cited 2017 Feb 18];69(2):266-74. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v69n2/0034-7167-reben-69-02-0266.pdf
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).

A premissa da Psicodinâmica do Trabalho de Dejours é a ideia de que, quando há fragilidade de equilíbrio subjetivo do trabalhador, esse indivíduo passa a ter posturas defensivas coletivas, uma vez que o grupo reforça os valores e representações viris dos sujeitos(2626 Deranty JP. Work as Transcendental Experience: Implications of Dejours' Psycho-dynamics for Contemporary Social Theory and Philosophy. Critical Horizons. 2010;11(2):181-220. doi: https://doi.org/10.1558/crit.v11i2.181
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). Dejours afirma que a cooperação eficaz implica uma atividade deôntica, ou seja, uma atividade coletiva de produção de regras de trabalho e acordos entre trabalhadores(2727 Dejours C. Le choix. Souffrir au travail n'est pas une fatalité, Paris: Bayard; 2015.). Dito de outra forma, a mesma lacuna que afeta o trabalho individual - entre o prescrito e o real - também afeta o trabalho coletivo. Nesse caso, a cooperação entre os trabalhadores, que inicialmente gira simplesmente em torno de questões técnicas, passa a ser também empática, desenvolvendo a confiança um no outro para compartilhar truques e segredos, que empregam para executar as tarefas e para proteção contra o sofrimento(2626 Deranty JP. Work as Transcendental Experience: Implications of Dejours' Psycho-dynamics for Contemporary Social Theory and Philosophy. Critical Horizons. 2010;11(2):181-220. doi: https://doi.org/10.1558/crit.v11i2.181
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).

Contudo, quando esse trabalhador se sentir com medo, desgastado, adoecido, inútil e impotente, esse estado afeta sua capacidade de agir e colaborar na produção do sentido de vida do outro. Tal condição de impotência se expressa nas relações interpessoais e intersubjetivas, comprovando a necessidade de pensar no cuidado para com o trabalhador, pois quando vivencia seu trabalho com prazer, desenvolve uma maior produção de vínculo; do contrário, quando está esgotado, tem dificuldades de sentir empatia diante do sofrimento do colega de trabalho(66 Wandekoken KD, Dalbello-Araujo M, Borges LH. Efeitos danosos do processo de trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas. Saúde Debate. 2017;41(112):285-97. doi: http://dx.doi.org/10.1590/0103-1104201711223
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).

Limitações do estudo

Cabe reconhecer que o estudo possui limites ao não incluir uma maior diversidade de CAPS AD III e de outras modalidades de CAPS na pesquisa. Portanto, os resultados não podem ser generalizáveis para outros serviços da rede intersetorial de cuidado. Além disso, admite-se que o uso do método de entrevistas individuais pode ter sido um fator limitante, uma vez que entrevistas no ambiente coletivo poderiam ter proporcionado a discussão e a reflexão dos trabalhadores, além de uma troca de saberes e estratégias de proteção às situações de sofrimento no trabalho.

Contribuições do estudo para a área da Enfermagem e Saúde Mental

A contribuição do estudo está em desvelar a Psicodinâmica do Trabalho no CAPS AD III, evidenciando que os trabalhadores, dentre eles os da Enfermagem, que atuam nesse serviço de atenção à Saúde Mental, também passam por momentos de sofrimento. Dessa forma, esse trabalhador que cuida, também precisa ser cuidado. Intui-se que o estudo contribui para (re)pensar ações protetivas, sob uma perspectiva voltada à subjetividade desses trabalhadores.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo mostra que os trabalhadores do CAPS AD III têm o sentimento de sofrimento desencadeado quando se frustram ao não ter um resultado esperado na assistência prestada aos seus pacientes; e quando percebem o quanto o real está distante do prescrito, e que o tratamento ainda é muito centrado no modelo biomédico, na medicalização, e não no trabalho preventivo e coletivo. Consternam-se com o preconceito e a estigmatização que os dependentes químicos sofrem pela sociedade em geral e, até mesmo, por outros profissionais de saúde. A realidade da falta do trabalho em rede prejudica os resultados da assistência prescrita, gerando sofrimento aos trabalhadores do CAPS AD III.

Por outro lado, os trabalhadores do CAPS AD III desenvolvem estratégias de defesas ao sofrimento. Pode-se destacar dos seus depoimentos, a racionalização do seu trabalho, em que em um processo individual, compreendem que os resultados daquilo que é prescrito demoram a se transformarem em algo real quando se trata de dependentes químicos. Além disso, lançam mão de estratégias de mobilização coletivas, como as de proteção, buscando formas de amenizar os medos, angústias, inseguranças e, também, soluções para os problemas vivenciados no serviço. As reuniões de equipe são o dispositivo para essa prática mais mencionada pelos trabalhadores.

Observa-se, pelos resultados do estudo, que os trabalhadores, ao lançar mão das estratégias de defesas, sejam elas individuais, coletivas ou ambas, buscam subverter as situações que geram o sofrimento, evidenciando também que há satisfação em trabalhar no CAPS AD III.

  • FOMENTO
    Fomento da CAPES em cooperação com a Dinter - UDESC/UFRGS.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    24 Abr 2018
  • Aceito
    18 Ago 2018
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