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Representações sociais do sexo e gênero entre pessoas trans

RESUMO

Objetivo:

Analisar as representações sociais de sexo e gênero entre pessoas transexuais, por meio de suas histórias de vida.

Método:

Pesquisa qualitativa, multicêntrica e descritiva. Participaram 70 transexuais do Brasil e da Costa Rica. Os dados foram analisados segundo a técnica de Análise de Conteúdo.

Resultados:

identificadas duas representações complementares relacionadas ao sexo: “O sexo como imposição categórica natural lacrada e adquirida (irremediavelmente) ao nascer” e; “O sexo como elemento que rotula, condena e diferencia as pessoas”. Com relação ao gênero, observou-se uma única representação vinculada a “elaborações sintético-sociais associadas ao (necro/bio) poder, à cisnormatividade e à cultura”.

Considerações finais:

A antiga divisão absoluta do gênero como construção social e do sexo como dado natural deve ser questionada, a fim de analisar ambos os conceitos como uma díade interconexa. Adicionalmente, deve-se reconhecer que esta díade se apresenta como uma construção organizativa e cognitiva, mediada pelo ainda prevalente (necro/bio) poder cispatriarcal.

Descritores:
Enfermagem; Transexualidade; Identidade de Gênero; Representações sociais; Gênero; Sexo

ABSTRACT

Objective:

To analyze the social representations of sex and gender among transsexual people, through their life histories.

Method:

Qualitative, multicenter and descriptive research. The participants were 70 transsexuals from Brazil and Costa Rica. Data were analyzed according to the technique of Content Analysis.

Results:

Two complementary representations related to sex were identified: “Sex as a natural categorical imposition sealed and acquired (irremediably) at birth” and “Sex as an element that labels, condemns and differentiates people.” Regarding gender, a single representation was associated with “synthetic-social constructions associated with (necro/bio) power, cisnormativity and culture.”

Final considerations:

The former absolute division of gender as social construction and of sex as considered as natural must be questioned in order to analyze both concepts as an interconnected dyad. In addition, it should be recognized that this dyad presents itself as an organizational and cognitive construct, mediated by the still prevalent cispatriarchal (necro/bio) power.

Descriptors:
Nursing; Transsexuality; Gender Identity; Social representations; Gender; Sex

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las representaciones sociales del sexo y género entre personas transexuales, a través de sus historias de vida.

Método:

Investigación cualitativa, multicéntrica y descriptiva. Participaron 70 personas transexuales de Brasil y Costa Rica. Los datos fueron analizados según la técnica de Análisis de Contenido.

Resultados:

fueron identificadas dos representaciones complementarias relacionadas al sexo: “El sexo como imposición categórica natural sellada y adquirida (irremediablemente) al nacer” y; “El sexo como elemento que rotula, condena y diferencia a las personas”. Con respecto al género, se observó una única representación vinculada a “elaboraciones sintético-sociales asociadas al (necro/bio) poder, a la cisnormatividad y a la cultura”.

Consideraciones finales:

La antigua división del género como construcción social y del sexo como dato natural debe ser cuestionada, a fin de analizar ambos conceptos como una díada interconexa. Además, se debe reconocer que esta díada se presenta como una construcción organizativa y cognitiva, mediada por el todavía prevalente (necro/bio) poder cispatriarcal.

Descriptores:
Enfermería; Transexualidad; Identidad de género; Representaciones sociales; Género; Sexo

INTRODUÇÃO

O dispositivo da transexualidade é uma construção moderna, que permite questionar a cisheteronormatividade – conceito que faz referência a um conjunto de relações de poder que normaliza, regulamenta, idealiza e institucionaliza o gênero, sexo e a sexualidade em uma linha ilógica e estritamente horizontal(11 Warner M. The trouble with Normal: sex, politics, and ethics of queer life. New York: Free Press; 1999.) – e identifica alguns indivíduos que apresentam especificidades sob diversos marcos discursivos sociais, políticos e morais.

De fato, discutir transexualidade implica refletir sobre o real significado das instituições “sexo” e “gênero” para além das concepções biológicas/inatase plástico-culturais. Impõe pensar a respeito de vivências cotidianas nos âmbitos privado e público e das diversas e polissêmicas fronteiras sociopolíticas envolvidas.

Além disso, considerando que as figuras linguísticas do homem e da mulher têm existido em todas as expressões culturais conhecidas, é importante destacar que este interesse por pesquisar profundamente a radiografia dos sexos na academia médica (por parte da anatomia, biologia e das ciências psi) originou-se no ocidente, no fim do século XVI, período marcado pelo ocultamento forçoso do pensamento da sexualidade(22 Lucal B. What it means to be gendered me: life on the boundaries of a dichotomous gender system. Gender Soc[Internet]. 2014[cited 2016 Mar 30];13(1):781-97. Available from: http://www.li.suu.edu/library/circulation/Gurung/soc2370sgWhatItMeansToBeGenderedMeFall11
http://www.li.suu.edu/library/circulatio...
).

Autores como Laqueur defendem que a oposição dos sexos é uma concepção própria do Iluminismo, pois antigamente os corpos do homem e da mulher eram compreendidos como parte de uma estrutura única, com mera modificação de seus órgãos genitais (isomorfismo)(33 Laqueur T. Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud. Cambridge: Harvard University Press; 1994.). Em outras palavras, ambos os genitais eram vistos como núcleos análogos, ou seja, a diferença fundamental era que a mulher tinha os órgãos “invertidos”, logo, possuía a possibilidade de hospedar um novo ser(33 Laqueur T. Making Sex: Body and Gender from the Greeks to Freud. Cambridge: Harvard University Press; 1994.-44 Knudsen PPS. Gênero, psicanálise e Judith Butler: do transexualismo à política. [Tese] São Paulo: Universidade de São Paulo. Instituto de Psicologia; 2014.).

No entanto, e em oposição a esse pensamento, após o século XVII, os corpos deixaram de ser concebidos como pertencentes a uma única estrutura e começaram a “desvelar” diferenças (aparentemente irreconciliáveis) entre si (dimorfismo). Assim, esse novo paradigma (artificialmente concebido) foi claramente capaz de transformar o sexo em um parâmetro de diferenciação social obrigatória e, consequentemente, atribuiu àgenitália a capacidade de estabelecer (e justificar) relações de poder e (consequente) submissão(55 Harrison L. Gender relations and the production of difference in school-based sexuality and HIV/AIDS education in Australia. Gender Educ. 2000;12(5):19-25.).

Sob este aspecto, localizamos a concepção de que, por meio do sexo (e de sua derivada diferenciação com o gênero), poderiam ser exercidos o controle e o domínio das individualidades mediante restrição e punição de possibilidades cognitivas e comportamentais.

Visto pelo prisma dos conceitos tecno-artificiais criados com base em estruturas biológicas e mediados pelo (necro/bio) poder, desenhou-se, na aurora discursiva, o termo gênero e, tal como ocorre com qualquer corpo de ideias, este não surgiu no horizonte intelectual por geração espontânea. Várias correntes de pensamento confluíram neste processo para aportar diversos elementos: ideólogos da Revolução Sexual (Wilhem Reich e Herbert Marcuse), construtivistas sociais (Jacques Derrida e Michel Foucault), existencialistas (Simone de Beauvoir), feministas (Shulamith Firestone, Germaine Greer, Joan Scott), entre outros defensores da origem científica do termo gênero (John Money)(66 Iglesias A. Dos cuerpos, un alma. Buenos Aires: De los Cuatro Vientos; 2011.).

Na lógica primitiva, o gênero parece ter introduzido a distinção relativa à cultura, segundo a qual poderia ser concebido como uma categoria baseada nas definições socioculturais relacionadas às formas como os diferentes atores sociais devem ser, pensar e atuar nas esferas sociais que ocupam.

Nessa mesma linha de raciocínio, o gênero apareceu como um conceito construído criticamente sobre os papéis sexuais, ou seja, como uma categoria de relação prescritiva composta por múltiplos elementos com diversos significados, ainda que todos tenham em comum o fato de se referirem à especificidade de rasgos e características psicossociais vinculados à dicotomia/binariedade sexual.

Diante do cenário tempestivo acima descrito, o objetivo deste manuscrito é analisar as representações sociais de sexo e gênero entre sujeitos transexuais brasileiros e costarriquenhos, por meio de suas histórias de vida. Adicionalmente, a despeito deste intuito acadêmico, tentamos abrir espaço para dar voz a quem é submetido ao império da lei (cis)normativa, ao mesmo tempo em que almejamos criar estratégias de autoafirmação e de reinvenção dos conceitos vinculados a sexo, corpo, gênero e sexualidade dos/as participantes deste estudo.

Por fim, importante ressaltar que utilizamos “os/as” com muito pesar nesta pesquisa, pois são termos binários que invisibilizam outras identificações sexo-genéricas. Contudo, linguisticamente, ainda não dispomos de outras alternativas que permitam designar alguém sem fazer alusão a um binarismo sexual e genérico.

MÉTODO

Aspectos éticos

A observância dos princípios éticos nesta pesquisa teve fundamental importância no que se refere a respeitar os desejos dos/das participantes. O projeto foi submetido a avaliação do Comitê de Ética e Pesquisa com Seres Humanos (CEP) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de acordo com o preconizado na Portaria nº 466/2012 do Conselho Nacional Saúde que regulamenta as diretrizes e as normas das pesquisas com seres humanos em seus vários aspectos.

Após explicações, esclarecimentos e aceite dos/das participantes, solicitou-se que assinassem o Termo de Consentimento Livre Esclarecido traduzido nos dois idiomas. Para assegurar o anonimato, as entrevistas foram identificadas pelos termos trans-homem e transmulher, seguidos de um número arábico (de 1 a 35), correspondente à ordem de realização das entrevistas, do país de procedência e do ano de realização da entrevista.

Referencial teórico-metodológico

Utilizou-se a Teoria das Representações Sociais (RS) como referencial teórico. Esta teoria (ou paradigma teórico) mostra-se relevante nas pesquisas vinculadas às relações e interações que as pessoas estabelecem com o seu meio. Compreendeu-se, por representação social, a forma de conhecimento popular e de senso comum elaborada e compartilhada socialmente e que contribui para construção de uma realidade específica a um grupo particular.

Válido mencionar que as representações sociais estão estreitamente interconectadas às práticas e cognições sociais, uma vez quenãosãoapenas os atributos concretos de um determinado objeto ou realidade que definem a conduta individual ou grupal, mas, sobretudo, a representação que as pessoas têm de tais objetos ou situações(77 Moscovici S, Vignaux G. The Themata concept. In Guimelli C. (Ed.), Structures et Transformations des Représentations Sociales. Neuchâtel: Delachauxet Niestlé; 1994.).

Tipo de estudo

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de cunho sócio-histórico, vinculada àtese “Histórias de vida e representações sociais do sexo, corpo, gênero e sexualidade entre pessoas transexuais do Brasil, Canadá e Costa Rica”, a qual utilizou as Histórias de Vida completas como técnica processual para coleta de dados durante os anos de 2014 e 2015.

Procedimentos metodológicos

O roteiro de entrevista semiestruturado utilizado foi elaborado após leituras específicas sobre a temática e a realização de duas entrevistas-piloto em cada um dos países (Brasil e Costa Rica), a fim de avaliar o significado semântico e linguístico das perguntas nele contidas.

O instrumento continha, alémde questões abertas, uma seção relacionada com a técnica de desenho livre ao término da entrevista. Esta técnica consistiu em solicitar ao/à participante que desenhasse com marcadores coloridos o que lhe viesse à mente, imediatamente após a menção em voz alta de um estímulo indutor, com o intuito de identificar a objetivação própria das RS, por meio dos estímulos indutores “sexo” e “gênero”. Esses desenhos foram considerados para a realização da análise confirmatória dos elementos que compunham o núcleo central e os elementos periféricos da RS.

Cenário do estudo

Contou-se com a colaboração de duas organizações não governamentais: Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (ADEH), localizada em Florianópolis, capital do estado de Santa Catarina-Brasil, e Asociación de Apoyo a la Población Trans: (TRANSvida), situada na província de San José, capital da Costa Rica.

A seleção dos/das participantes ocorreu por meio da técnica de snowball que consiste na indicação, por parte dos/das participantes iniciais vinculados (as) às instituições anteriormente mencionadas, de novos/as colaboradores/as (pares) que pudessem contribuir com o objeto deste estudo, formando uma rede de indicações.

No caso do Brasil, a população estudada foi restrita a sujeitos que residiam nos três estados da Região Sul e que recebiam algum tipo de apoio por parte da ADEH. Para Costa Rica, foram incluídos na amostra indivíduos dos sete estados da nação, pois houve dificuldade para localizar pessoas interessadas em participar do estudo que residissem exclusivamente em San José, por receio de exposição no período diurno e porque a maioria das transmulheres realizava atividades de sexo-serviço ànoite (prostituição), o que dificultou a realização das entrevistas durante o dia ou no período da tarde.

Fonte de dados

A amostra foi composta de 70 pessoas transexuais de ambos os países, sendo 35 brasileiros e 35 costarriquenhos. Destes, 60 foram transmulheres (pessoas identificadas no nascimento como pertencentes ao “sexo” masculino e que se identificam com o gênero feminino) e 10 trans-homens (pessoas identificadas no nascimento como pertencentes ao “sexo” feminino e que se identificam com o gênero masculino). A escolha deu-se de forma intencional, de modo a incluir participantes de dois polos do continente americano (América Central e América do Sul), com dois idiomas característicos da região (espanhol e português).

Nesta pesquisa compreendemos como pessoa trans aquela que acredita não haver uma correspondência linear entre seu sexo biológico (e artificialmente imposto) e sua identidade de gênero e que, em alguns momentos, esse pensamento pode motivá-los a uma modificação do seu corpo mediante terapia hormonal e/ou cirúrgica ou para eventual mudança do nome/pronome social nos seus documentos legais.

Constituíram critérios de inclusão: participantes maiores de 18 anos, com cidadania legal de ambos os países, que se considerassem transexuais (tanto transmulheres quanto trans-homens), no início, meio ou final do processo de transição, ou que não desejassem realizar qualquer mudança física, mas reivindicassem a alteração do nome e pronome social, excluindo apenas pessoas intersexuais (com condições de ambiguidade genital de acordo com critérios anatômicos, histológicos e/ou citológicos).

Coleta e organização dos dados

A data e o lugar para a realização das entrevistas foram escolhidos a priori pelos (as) participantes. Com a autorização dos sujeitos, as falas foram gravadas e posteriormente transcritas/transcriadas para análise dos depoimentos. Adicionalmente, foram realizados três grupos focais com alguns/algumas participantes, a fim de avaliar/verificar se as análises preliminares das informações estavam sendo conduzidas apropriadamente pelo pesquisador principal e com o intuito de corroborar expressões culturais e semânticas possivelmente não totalmente compreendidas durante algumas entrevistas.

Análise dos dados

Quando direcionamos nossa atenção às RS de sexo e gênero das pessoas trans, seguimos o rigor requerido pela utilização do referencial teórico de Serge Moscovici quanto aos aspectos de captura da estrutura, conteúdos, mundos lexicais, unidades contextuais, thematas, themas, núcleos centrais e elementos periféricos de cada representação para, posteriormente, refletirmos, verificarmos e compreendermos, à luz da Análise de Conteúdo de Bardin(88 Bardin L. Análise de conteúdo. 3a ed. São Paulo: Edições 70; 2011.), aquilo que foi apresentado pelos participantes.

Complementarmente, verificamos – mediante uma abordagem pragmática baseada nos postulados de Moscovici e Vignaux(77 Moscovici S, Vignaux G. The Themata concept. In Guimelli C. (Ed.), Structures et Transformations des Représentations Sociales. Neuchâtel: Delachauxet Niestlé; 1994.) e na técnica de Análise de Conteúdo(77 Moscovici S, Vignaux G. The Themata concept. In Guimelli C. (Ed.), Structures et Transformations des Représentations Sociales. Neuchâtel: Delachauxet Niestlé; 1994.) – os elementos que compunham as RS identificadas nesta pesquisa.

Dessa maneira, uma vez detectada nos depoimentos dos/das participantes uma postura oriunda do senso comum, obtivemos o que posteriormente poderia ser considerado – de maneira contínua e flexível – a representação social.

Por outro lado, para análise das associações livres dos/as entrevistados/as, estas foram resumidas em uma matriz dividida em tópicos de acordo com os principais significados expressos em seus desenhos. Assim, a cada entrevistado(a) foi atribuído um código (trans-homem ou transmulher), seguido do país de origem e de um número arábico (BR: 1-35 + CR: 1-35 - N = 70), de modo que cada entrevista pudesse ser associada a um/uma entrevistado (a) durante o processo de análise.

Finalmente, após análise, foram identificadas duas representações complementares relacionadas ao sexo: “O sexo como imposição categórica natural lacrada e adquirida (irremediavelmente) ao nascer” e “O sexo como elemento que rotula, condena e diferencia as pessoas”. Com relação ao gênero, observou-se uma única representação vinculada a “elaborações sintético-sociais associadas ao (necro/bio) poder, à cisnormatividade e à cultura”.

RESULTADOS

Introduzindo-nos no debate acerca das RS e baseando-nos no conjunto dos resultados da análise prototípica, foi possível esboçar um campo representacional e apontar, com probabilidade razoável de acerto, os elementos centrais e periféricos das RS, bem como interpretar sua organização.

Ao iniciarmos a abordagem dessa análise semântica para caracterizar a representação do sexo, encontramos elementos associados aos conceitos: biologia, diferenciação biológica entre as pessoas, imposição natural, nascimento, algemas, condenação, pênis, vagina e domínio privado.

Após análise de classificação hierárquica descendente dos dados textuais provenientes das entrevistas, deparamo-nos com duas distintas, porém complementares, representações relacionadas ao sexo. A primeira se refere ao sexo como imposição categórica natural lacrada e adquirida (irremediavelmente) ao nascer, como expresso em alguns desenhos:

Figura 1
Técnica de desenho livre: sexo associado à palavra biologia

Da mesma forma, alguns depoimentos emergiram da análise de conteúdo das entrevistas e explicitam essa representação como imposição natural com elementos vinculados às palavras, nascimento, imposição, pênis e vagina.

Sexo como imposição natural

Quería luchar con eso que me fue impuesto desde mi nacimiento, siempre fui una mujer pero por desgracia los huevos y la picha (referindo-se aos testículos e ao pênis) ya vinieron conmigo en el “combo de nacimiento”, entonces comencé a buscar en internet como hacía para parar de producir testosterona, porque ya estaba harta y fue cuando decidí hacer la mayor locura de mi vida, compré un bisturí, jeringas de tuberculina y lidocaína en la farmacia y me puse a jugar de médica y un bello día decidí abrirme los huevos para sacarlos, solo que gracias a Dios en el momento que comenzó a sangrar esa “vara” y vi que no paraba, llamé a mi amiga para auxiliarme [...], pensé que iba a morir, vi hasta el túnel. (Transmulher 15, Costa Rica, 2015)

Sexo associado às palavras pênis e vagina

Eu pude perceber que eu não tinha o que uma menina tinha, que nós éramos diferentes, e que por causa daquele pintinho eu não podia ser a mulher que sempre acreditei ser [...] por causa daquela coisinha insignificante eu não conseguia ser aceita pelo meu pai nem pela minha família. (Transmulher 26, Brasil, 2014)

A segunda representação descreve o sexo/genitália como um elemento que rotula, condena e diferencia as pessoas para torná-las (im)produtivas diante da sociedade.

Sexo associado às palavras algemas e condenação

O que significa o pênis no meu corpo? Para mim, lamentavelmente, é uma “sentença de morte”, é uma maldição que faz parte do meu corpo, pra mim ele é um órgão maldito. (Transmulher 23, Brasil, 2014)

Me parece que ahora pensándolo mejor… todo lo que significa la picha (pênis) y la panocha (vagina) son una condena ¿por qué la panocha no puede tener el mismo valor que la picha? ¿Por qué no podemos vivir en un mundo donde esas reglas no existan y usted escoja ser lo que le plazca sin estar condenado a vivir con satanás? (referindo-se ao pênis). (Trans-homem 6, Costa Rica, 2015)

Isso (referindo-se à vagina) significa uma algema (silêncio), ela não te deixa ser quem você é. No início, eu me sentia como essa pessoa que os outros viam, como uma pessoa com três olhos, só que não era um olho o que me sobrava, era uma vagina [...]. (Trans-homem 5, Brasil, 2014)

Y hoy tampoco siento felicidad, estoy condenada a ser esto [...] yo nunca me sentí un hombre, siempre fui una mujer hecha y derecha, solo que mi mayor maldición fue haber nacido con aquello entre mis piernas. (Transmulher 30, Costa Rica, 2015)

Figura 2
Técnica de desenho livre: sexo associado às palavras algemas e condenação

Sob alógica da primeira representação social para este conceito, o núcleo central provável contém as palavras biologia e nascimento e, na segunda, condenação. Sucessivamente, na inter-relação sexo/gênero, o sexo parece ser uma variável que, embora atualmente passível de ser manipulada clinicamente a ponto de trans/formá-la no contrário, tem profundas raízes na estrutura biológica-genética e delimita o terreno do real onde o sujeito se (auto)descobre individualmente.

Ademais, observamos que as representações sociais deste conceito estiveram fundamentadas nos aspectos genitais e nas experiências de banhos ou privacidade durante a infância e pré-adolescência, momentos nos quais as/os participantes questionavam os motivos de terem nascido com tais estruturas biológicas ou (alguns/algumas delas/deles) sonhavam com o dia de possuir a estrutura fenotípica contrária.

Por outro lado, com relação àanálise interpretativa da representação do gênero, emergiram elementos vinculados aos conceitos de: categorias sociais, normativas, códigos de comportamento, poder, “caixinhas” e rótulos, produtos sintéticos, “dever ser”, ideais e expectativas, cultura, dominação.

Com relação à noção de representação de gênero, observamos apenas uma classe, logo, uma única representação, vinculada a elaborações sintético-sociais associadas à cisheteronormatividade e à cultura. Identificamos um eixo semântico central voltado para a dominação, regulação, códigos comportamentais e culturais, formas de atuar, brinquedos/brincadeiras, com múltiplos aspectos negativos canalizados por meio das palavras discriminação:nãoencaixar, rejeição, subordinação e aberração, como evidenciado em alguns desenhos e depoimentos.

Figura 3
Técnica de desenho livre:gênero associado àspalavras ‘caxinhas’ e rótulos

Gênero associado às palavras comportamento e ‘dever ser social’

E dessa forma foram alimentadas essas diferenças entre homens e mulheres, por parte da minha família e professores [...] Eu lembro disso muito forte na minha mãe. Muito forte mesmo porque realmente ela foi bem fechada assim, nessa questão de eu me comportar como um menino [...] Ela, por causa do que os vizinhos falavam, tentou se apoderar de mim [...] até as frustrações que ela teve depositou em mim e tentou me dominar com as ideias dela [...] E aí que tá! Eu sofri muito com isso [...] nas festas juninas, que é algo folclórico né, que em toda escola tem, em todo país a gente celebra isso [...] eu me lembro que eu nunca queria me vestir como menino caipira, me vestir como menino, fazer bigodinho, fazer costeleta. Eu queria colocar vestido rendado e dançar naquele grupo de meninas com parceiro menino, então eu ficava torcendo sempre que o grupo de meninos estivesse lotado para que eu pudesse me transvestir de menina, mas isso nunca aconteceu. (Transmulher 15, Brasil, 2014)

Eu comecei a perceber que era diferente desde que eu nasci [...] eu sempre soube que era uma mulher [...] devido aos brinquedos principalmente, porque eu sabia o que era brinquedo de menino ou de menina, eu brincava com brinquedo de menina e os meninos brincavam com brinquedo de menino, eu queria sempre queria ser a mãe nas brincadeiras, e os meninos não queriam ser [...]. (Transmulher 7, Brasil, 2014)

Cuando decidí asumirme como mujer, tenía 15 años que fue cuando les conté que no quería dejar más de estudiar porque estaba siendo atacada de tal forma en el colegio y que yo no merecía aquello [...] En ese entonces mi papá dejó de hablar conmigo y obligó a todos allá en la casa a hacer lo mismo [...] recuerdo que al inicio él me pegaba con tanta fuerza que llegaba “hasta perder el conocimiento” (frase utilizada para dizer que ficava quase inconsciente), porque según el yo podía ser enderezada a punta de faja y podría actuar como un macho [...]él siempre me decía: “Lo que usted necesita es faja y mano fuerte para convertirse en un hombre macho de pelo en el pecho. (Transmulher 14, Costa Rica, 2015)

Acrescentamos que alguns depoimentos evidenciaram a efetiva representação degênero associada àconstrução sociocultural. Ademais, alguns participantes, no momento em exploravam suas memórias e narravam suas histórias de vida, lembraram-se das estratégias utilizadas por diferentes instituições para implantar essas ideologias. Vejamos:

Gênero associado à palavra cultura

A minha vida inteira tem sido oprimida, no início porque eu sentia que eu gostava do que as meninas gostavam e, culturalmente, tu não podes. Porém, eu não demonstrava para todo mundo assim, porque digamos que, segundo a minha cultura, isso não era normal, tipo assim, eu não podia pedir para minha mãe: “Eu quero uma boneca!”. Ela me dava um carrinho, mas, nas férias, eu sempre ia para a casa das minhas primas que são todas quase da mesma idade que eu. (Transmulher 13, Brasil, 2014)

[...] Esa porquería para mí es una vara cultural, por ejemplo usted sabe que aquí en tiquicia hay reglas para todo [...] las personas creen en ellas y lo obligan a ser como los tatarabuelos le dijeron que usted tenía que ser. (Transmulher 10, Costa Rica, 2015).

Diante do exposto, fica claro que o gênero apresentou-se como uma instituição de poder e dominação político-cultural capaz de conduzir aos corpos a comportamentos padronizados, não permitindo (ou impossibilitando) a pluralidade ou a diversidade de manifestações do próprio ser ontológico.

Figura 4
Técnica de desenho livre:gênero associado ao poder

Para este conceito, compuseram o núcleo central as palavras “poder e norma” (ser normal/normatividade). Além disso, as representações sociais degênero vinculadas a poder, dominação e normatização estiveram ancoradas em algumas vivências de castigos físicos e psicológicos durante a infância e adolescência por parte dos familiares (pai, mãe, irmãos, tios-tias) e de outros atores sociais, tais como professores elíderes espirituais. Dessa forma, fica evidente, na representação do gênero, se tratar de um ideal regulador associado ao poder e à dominação que, para as/os participantes, não informava como são os homens ou as mulheres, senão como eles deveriam ser, atuar, pensar e se comportar.

Convergente a essa ideia e partindo da análise de conteúdo empreendida, os conceitos de sexo e gênero, nas distintas realidades, parecem estar vinculados à compreensão de serem tecnologias processuais que permitem hierarquizar ou categorizar os seres humanos em dois polos totalmente opostos, antagônicos e até mesmo irreconciliavelmente diferentes.

Particularmente, um dos pontos a ser ressaltado refere-se à capacidade inicial do sexo de definirgêneros e, analogamente, a inexorável e implacável capacidade dogênero de (re)criar novos sexos nas identidades trans.

Por fim, destacamos que a realização da análise representacional global dos conceitos de sexo e gênero nas duas realidades pesquisadas apenas foi possível em virtude dos respectivos processos de exclusão social, estigmatização e discriminação serem significativamente semelhantes em ambos os contextos.

São realidades reiteradas pelos relatos de (sobre)vivência e luta contra os discursos patriarcais e necropolíticos que insistem em reforçar a invisibilização das identidades ininteligíveis e que fogem a esse padrão cisgenérico hegemônico vigente.

DISCUSSÃO

As representações estruturais do sexo e do gênero sofrem transformações vinculadas às diversas circunstâncias vitais que produzem experiências subjetivas particulares e às concepções que o sujeito tem tanto do seu contexto cultural quanto do mundo. Assim, é possível observar que a diferenciação sexo-genérica constitui um fenômeno preeminente da vida simbólica e da cognição social no seio da nossa coletividade, capaz de ilustrar o necropoder que essas categorias linguísticas têm para determinar o que conhecemos sobre o mundo.

Esse dimorfismo categórico, por um lado, introduz as categorias taxonômicas homem/mulher, masculino/feminino e, por outro, expõe o fato (aparentemente) indeclinável da sua universalidade (não de conteúdo). Apoiadas nessas ancoragens epistemológicas, e diante da diversidade humana, essas representações genéricas e sexuais emergem como um conceito classificatório.

Consideramos, portanto, conveniente assinalar que, na construção das representações dos/das participantes desta pesquisa, interferiram tanto o relacionamento – no qual subjaz o (auto)reconhecimento que a pessoa estabelece com outros membros do seu claustro político-social –quanto a relação que seu grupo possui com as instâncias estruturais de bio/necropoder e saber.

Por extensão lógica, essas representações sociais (por vezes complexas ou ambíguas), enfrentam tensões que geram contradições e se manifestam de forma paradoxal. A cotidianidade vivenciada pelos/as participantes explicita o hiato existente entre a idealidade e a realidade, fazendo com que as prescrições sexuais e genéricas, com seus supostos implícitos, permaneçam vigentes.

Nesse ponto, a divisão entre sexo e gênero parece continuar prolongando a oposição entre o supostamente natural e o supostamente cultural (sendo que, de acordo com o elucidado na pesquisa, parece haver um pouco de artificialidade tecnológica no sexo e de naturalidade no gênero)(99 Lamus D. Raza y etnia, sexo y género: el significado de la diferencia y el poder. Reflex Pol[Internet]. 2012[cited 2016 Mar 30];14(27):68-84. Available from http://www.bdigital.unal.edu.co/39766/1/Race%20and%20ethnicity.pdf
http://www.bdigital.unal.edu.co/39766/1/...

10 Missé M, Coll-planas G (Eds.). El Género desordenado: críticas en torno a la patologización de la transexualidad. Barcelona: Editorial Egales; 2010.
-1111 Preciado PB. Manifiesto contra-sexual: prácticas subversivas de identidad sexual. Madrid: Pensamiento Opera Prima; 2012.).

Essa dicotomia não seria um problema caso não perpetuasse a oposição a ela subjacente: o biológico como um ente transformador (anulador ou até destruidor) de uma aparente ordem social. Nesse sentido, é válido analisar mais detalhadamente a divisão entre sexo e gênero, pois sob um olhar cuidadoso, os discursos continuam prolongando a oposição entre o masculino e o feminino como entes essencialmente antagônicos(1111 Preciado PB. Manifiesto contra-sexual: prácticas subversivas de identidad sexual. Madrid: Pensamiento Opera Prima; 2012.

12 Rubin G. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In Abelove H, Barale MA, Halperin DM (Eds.). The lesbian and gay studies reader. New York, NY: Routledge; 2013.
-1313 Shields SA. Gender: an intersectionality perspective. Sex Roles. 2013; 59: 301-11. Available from http://dx.doi.org/10.1007/s11199-008-9501-8
http://dx.doi.org/10.1007/s11199-008-950...
).

Permitimo-nos, então, com base na vasta experiência adquirida no trabalho de campo, criticar essa dicotomia entre o natural e o artificial (cultural), pois consideramos que a distinção entre natureza e cultura amplia a separação do nato e do adquirido, e as manifestações subjetivas permitiram-nos observar que essas asseverações (ou declarações) transcendem o suposto natural como transformador de uma ordem social e do social como ente transformador de uma suposta ordem natural.

Em consonância, o viés patriarcal aqui evidenciado é inegável, uma vez que analisando as transformações sofridas pela irrupção das instituições sexo-genéricas no campo sociolinguístico, verificamos que esses conceitos e suas consequentes ideias de feminilidade e masculinidade sofreram, no início da década de 1900, uma lamentável fetichização, pois nunca se consideraram as procedências dessa naturalização nem suas possíveis consequências(1414 Scott J. Gender: A useful category for historical analysis. Am Hist Rev. 1986; 91:1053-1075.).

Essa fetichização conduziu a uma eventual naturalização do sexo como dado irremediavelmente atribuído pelo campo biológico e do gênero, tal como uma instituição cultural obrigatoriamente aceitada. A separação entre sexo e gênero deixou, então, de ser um conceito de apoio que resguardava diferenças irreconciliáveis e permitia a abertura a novas pesquisas, impondo-se como um obstáculo devido à complexidade de sua inteligibilidade universal.

Dessa forma, sexo e gênero permanecem, ainda atualmente, vinculados irremediavelmente no discurso classificatório, apesar dos esforços para separar sua importância em cada sociedade. Portanto, postulamos, com base no pensamento de Scott (1986) e de Stolcke (2012), que a condição de ser transmulher ou trans-homem estaria ligada a uma lógica penetrante que domina e consolida o psiquismo individual, e que permite aos outros classificarem pessoas em grupos, de acordo com sua (in)consonância sexual(1515 Stolcke V. ¿Es el sexo para el género como la raza para la etnicidad? Mientras Tanto[Internet]. 2012[cited 2016 Mar 30];48:87-111. Available from: https://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/269230/mod_resource/content/0/Verena%20Stolcke.pdf.
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-1616 Butler J. Precarious life: the powers of mourning and violence. London. New York: Verso; 2004.).

Ao despeito disso, a transidentidade pode ser compreendida como um processo que se inicia no plano individual e se constrói de forma (in)voluntária, ao mesmo tempo em que é regulamentada por padrões supraindividuais, culturais, históricos, permanentes e quase imodificáveis. Poderíamos, então, articulá-la às práticas sociais, à idiossincrasia de cada região e aos valores que, uma vez adquiridos e assimilados pelo indivíduo, parecem ser irrenunciáveis.

Diante da complexidade que gera a definição e representação total das conotações gênero e sexo, encontramos, como uma possibilidade válida, nos aproximarmos dos pressupostos declarados por Judith Butler (2006), consoantes com a proposta de Scott (1986), mas que, com um estilo mais radical, desafiam as categorias de sexo, gênero e identidade, por tentarem separar, polarizar e (sobre)determinar aos sujeitos(1515 Stolcke V. ¿Es el sexo para el género como la raza para la etnicidad? Mientras Tanto[Internet]. 2012[cited 2016 Mar 30];48:87-111. Available from: https://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/269230/mod_resource/content/0/Verena%20Stolcke.pdf.
https://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfi...
,1717 Butler J. Undoing Gender. New York. London: Routledge; 2014.). Assim, retomamos seu conceito de performatividade e seu impacto na constituição do sujeito (apesar de Judith Butler ter sido duramente criticada por tomar esse conceito e reestruturá-lo com apoio das bases de filósofos como Althusser e Derrida).

Nesse ponto, Butler(1717 Butler J. Undoing Gender. New York. London: Routledge; 2014.-1818 Althusser L. Aparelhos Ideológicos de Estado. 3ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2003.) propõe que a identidade do indivíduo, assim como o gênero e o sexo, nada mais é do que uma atuação cognitiva permanente, isto é, um conjunto de normas e ações diversas e alheias, anteriores de si e repetidas constantemente.

Concomitantemente, concordamos com Althusser(1919 Ferré JV. ¿Corregir el cuerpo o cambiar el sistema? la transexualidad ante el orden de género. Sociol[Internet]. 2013[cited 2016 Mar 30];24(69):61-78. http://biblioteca.ues.edu.sv/revistas/10702483-4.pdf
http://biblioteca.ues.edu.sv/revistas/10...
), na afirmação de que o indivíduo é livre e responsável por seus atos, porém está sujeito a uma ideologia que age como uma autoridade superior e, assim, o destitui de toda liberdade, exceto a de aceitar sua (irremediável) submissão. Evidencia-se, portanto, que os indivíduos são um suporte das relações estruturais nas quais estão situados, ou seja, o sujeito age na mesma medida em que sofre a atuação do sistema(2020 Fausto-Sterling A. Sexing the Body: gender, politics, and the construction of sexuality. New York: Basic Books; 2013.-2121 Looy H, Bouma H. The nature of gender: gender identity in persons who are intersexed or transgendered. J Psychol Theol. 2015; 33:166-78.).

Os ecos dessa proposta política – e visibilizados nos depoimentos – referem-se à subversão discursiva por meio, já não da resistência violenta, mas da permanente transgressão das estruturas sociais. Avançando ainda mais, no que se refere ao discurso (bipolar e classificatório) da nossa sociedade, a repetição permanente de ritos discursivos e práticos que certificam a masculinidade ou feminilidade, baseados em uma genitália supostamente “natural”, e que permitem a intelecção (compreensão) do homem ou da mulher, requer a exclusão sistemática dos desejos, atrações, performances e práticas que escapem da cisnormatividade e da inteligibilidade dos gêneros.

Especificamente, possuir uma identidade que converse linearmente com o sexo e o gênero significa ouvir uma ordem que não provém de lugar algum, mas é ouvida em todas as partes. Retomando uma ideia acima apresentada, a sociedade atual torna necessário validar a imposição de uma postura cisnormativa por meio da rejeição (velada ou explícita) das formas representadas pelo espectro trans.

Nesse sentido, a única exortação que realizamos é a de considerar a possibilidade de intervir nesse status quo, que é o dispositivo social de bio/necropoder, controle e dominação – e simultaneamente desafiar a fonte dos conflitos dos sujeitos (discurso hegemônico), a qual poderia se converter no motor de uma mudança significativa.

Nas vivências relatadas nas histórias de vida dos/das participantes trans, antes de elaborar as representações sociais, ficou evidente que a sociedade os considera seres abjetos, não devido à suposta dissonância cognitiva que fazem da feminidade/masculinidade, mas por causa do seu discurso corporal e proxêmico, que se revela(va) desafiador dos parâmetros estabelecidos, tantas vezes repetidos, logo naturalizados.

Assinalamos também que a diversidade de representações (reféns da própria oposição/polaridade da lógica binária dos estereótipos que vão produzir modelos de comportamento excludentes) se reduz a uma construção definida por dualismos: masculino/feminino, atividade/passividade, assertividade/expressividade, igualdade/desigualdade, razão/emoção-paixão que, ao mascararem a heterogeneidade das categorias comportamentais e sua assimetria, compelem os sujeitos, levando-os ao hiperdesenvolvimento de habilidades e atitudes consideradas próprias do seu sexo, etnia e/ou classe(1616 Butler J. Precarious life: the powers of mourning and violence. London. New York: Verso; 2004.,2222 Preciado PB. Testo Yonqui. Madrid: Editora Espasa Calpe; 2008.).

Dessa forma, fundamentando-nos nos conceitos anteriores, articulamos as representações sexo-genéricas como o resultado inexorável de um processo evolutivo pelo qual se interiorizam as expectativas e normas comportamentais/sociais relativas ao dimorfismo e que fazem referência ao sentido psicológico do indivíduo de ser homem ou mulher com os comportamentos sociais e psicológicos que a sociedade designa como masculinos ou femininos. Esta mesma percepção foi apreendida já na primeira infância dos entrevistados e teve um valor significativo na (in) adaptação social por influência tanto dos modelos maternos e paternos como dos papéis sociais dos adultos próximos que a eles impuseram suas marcas cisheteropunitivas.

Faz-se necessário reconhecer que, ainda quando todos os conceitos relacionados com a diferença entre os sexos e os gêneros mantêm uma forte inter-relação, não permitem estabelecer inferências fixas, dado que o sexo não é uma essência (como demonstrado pela própria transexualidade), senão uma contingência tecno/biologicamente imposta, e o gênero não é uma energia estática, senão uma tecnologia construída socialmente (com uma pitada da natureza).

Como apontado anteriormente, afirmar que o sexo é uma categoria tecno/biologicamente imposta pode parecer contraditório e inclusive insustentável, pois uma definição de sexo que ignore a oposição tradicionalmente feita entre natureza e biologia pode parecer incoerente. Contudo, recorremos aos princípios “preciadinos”(1212 Rubin G. Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality. In Abelove H, Barale MA, Halperin DM (Eds.). The lesbian and gay studies reader. New York, NY: Routledge; 2013.), que consideram tecnologia e sexo categorias estratégicas no marco discursivo antropológico atual, no qual a categoria “homem” tem sido elaborada artificialmente em virtude de sua afinidade com os aparatos tecnológicos, enquanto a categoria “mulher” tem sido descrita plasticamente em função da aparente disponibilidade sexual passiva.

Especificamente, tendo apelado à noção do conceito tecno/biológico da genitália, cujo alcance aumenta significativamente, poderíamos introduzir nesta discussão o conceito de contrassexualidade delimitado por Paul B. Preciado(2222 Preciado PB. Testo Yonqui. Madrid: Editora Espasa Calpe; 2008.), que tenta questionar o debate entre o essencialismo e o construtivismo dos sexos e defende justapor ambos os paradigmas.

Concomitantemente, o autor amálgama as posturas construtivistas que defendem que as categorias homem e mulher não são naturais, sendo, para ele, ideias normativas culturalmente aceitas, construídas e sujeitas a modificações no tempo e nas culturas, assim como as posturas essencialistas que sustentam que a genitália encontra um refúgio em modelos biológicos segundo os quais a diferença entre o sexo e o gênero depende de estruturas físicas e psíquicas e de (in)variáveis que prevalecem muito além das diferenças culturais e históricas.

Para finalizar, sob estalógica paradigmática, observamos claramente nas representações trabalhadas que a identidade trans é uma tecnologia, e consideramos que os diferentes elementos binários (e ilogicamente antagônicos) na dialética do sistema sexo-gênero, denominados homem/mulher, masculino/feminino, não são senão máquinas, produtos, elementos, instrumentos, aparatos, truques, próteses, redes, aplicativos, memes, avatares, fluxos de energia criada artificialmente, chaves mecânicas, leis de comportamento e circulação, fronteiras e constrangimentos,lógicas ilógicas, que trabalham dentro de um marco necropolítico e social específico.

Limitações do estudo

De modo geral, o objetivo geral deste estudo foi cumprido, na medida em que assumimos ser um trabalho de cariz pioneiro. Contudo, parece pertinente mencionar algumas limitações passíveis de serem colmatadas em futuras pesquisas. As principais estiveram vinculadas à amostra circunscrita unicamente a dois países e à dificuldade de localizar trans-homens em proporção similar àde transmulheres. Igualmente, sendo esta uma realidade transversal a diversas áreas, parece pertinente a realização de estudos de cunho pluridisciplinar e multifatorial em conjunto com outros profissionais que possuem contato privilegiado com esta população.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou política pública

A compreensão das representações sociais do sexo e gênero que pairam no senso comum das pessoas autoidentifcadas dentro do espectro trans desvela a importância do conhecimento leigo para as sociedades contemporâneas e, mais especificamente, para os/as profissionais da saúde.

De fato, esta compreensão ajuda a desestabilizar e desestigmatizar o pensamento hegemônico-cisheteropatriarcal, que desenha as fronteiras do inteligível vs. o ininteligível, do abjeto vs. o “normal”, com o intuito de oferecer um cuidado politizado, integral, humanizado e universal a todas as pessoas que assim o demandem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo procuramos refletir, analisar e compreender as diferentes representações que as pessoas trans expressam, por meio de seus saberes e ações, com relação a tecnologias, dilemas e paradoxos sexo-genéricos (e sobre como esses aspectos operam na subjetividade desses sujeitos) na atual sociedade tecno-normalizadora.

O trânsito por tantos lugares e saberes nos faz perceber as linhas de força e tensões presentes na discussão das identidades trans e suas subjetividades. Percebemos que o tema é inesgotável, que não há soluções ou definições absolutas, nem verdades inequívocas com relação à construção discursiva e representativa do sexo e do gênero.

Ficou claro nas representações que, atualmente, o gênero e o sexo são construídos (política e artificialmente) de forma individual e coletiva, com o decorrer do tempo, com base emmúltiplas influências e assumindo algumas autodeterminações. O ser trans desenvolve suas próprias representações por meio das mensagens a ele enviadas culturalmente por seu contexto para que compulsoriamente as aceite.

Apesar dos avanços (ir)relativamente significativos no âmbito do reconhecimento e dos direitos para as populações trans, ainda não há uma análise reflexiva sobre o problema filosófico que subjaz à identidade e que se origina na diferença sexo-genérica, ainda menos, quando no discurso são multiplicados polissêmicos pressupostos, por exemplo, da aparente normalidade ou naturalidade de duas únicas possibilidades sexuais e genéricas – fato evidenciado nas duas realidades investigadas.

Nessa direção, gênero e sexo sãoconstruções sociais que permitem que as pessoas desempenhem um papel na sociedade que define lugares baseados em posições de bio/necropoder. Gênero e sexo não são espaços estáticos (e definitivos) de resistência, mas monumentos que se encontram em constante construção. Complementarmente, ambas as estruturas possuem a capacidade de modelação mediante anãoidentificação processual/linear. Nessa lógica, o gênero – e a identidade de gênero – possui a capacidade de moldar novos sexos e, simultaneamente, o sexo tem a habilidade de (re)criar novos gêneros.

Cumulativamente,gênero e sexo sãoidentidades (pré)formadas que se caracterizam por obrigar atuações reiterativas (e contínuas) com o intuito de moldar os corpos em função de uma determinada norma social. Neste estudo, ambos parecem se disfarçar como categorias que possuem rasgos biológicos e sociais utilizados para institucionalizar uma linguagem regrada, baseada em uma plasticidade genital.

A possível reconstrução do binarismo sexo-gênero significaria a total pluralização e flexibilização dessas identidades, fora de paradigmas estáticos e rígidos. Destacamos que a pluralidade de discursos aqui representada é o ponto mais significativo de uma luta semântica ativa entre dominados e dominadores, numa visão necropolítica, de frente com os valores normalizadores, reguladores, que prevalecem desde o início do século XIX. Além disso, consideramos que as produções do sistema sexo/gênero, assim como as instituições que permeiam ou determinam seu significado, devem ser refeitas e reinterpretadas.

Por fim, não consideramos que se trata de simplesmente (re)produzir um discurso prostituído e pouco instaurado de desfazer o gênero das situações, momentos, seres e espaços, mas sim de modificar as posições de enunciação com base no lugar de cada protagonista social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2016
  • Aceito
    08 Fev 2017
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