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O cuidado inclusivo de enfermagem ao portador da Síndrome de Down sob o olhar de Paterson e Zderad

Cuidado inclusivo de enfermería al portador del Síndrome de Down bajo la mirada de Paterson y Zderad

Inclusive nursing care for individuals suffering from Down's Syndrome under Paterson and Zderad´s view

O cuidado inclusivo de enfermagem ao portador da Síndrome de Down sob o olhar de Paterson e Zderad

Inclusive nursing care for individuals suffering from Down's Syndrome under Paterson and Zderad´s view

Cuidado inclusivo de enfermería al portador del Síndrome de Down bajo la mirada de Paterson y Zderad

Mônica Deorsola Xavier NegriI; Liliana Maria LabroniciII; Ivete Palmira Sanson ZagonelIII

IEnfermeira, Mestranda do Curso de Mestrado em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná

IIEnfermeira, Professora Adjunta do Departamento de Enfermagem da UFPR, Doutora em Enfermagem pela UFSC

IIIEnfermeira, Professora Adjunta da Pós-Graduação de Enfermagem da UFPR, Coordenadora do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Cuidado Humano de Enfermagem (NEPECHE/UFPR). E-mail do autor:ivetesanzag@hotmail.com

RESUMO

Trata-se de um estudo reflexivo que apresenta a abordagem do cuidado inclusivo de enfermagem ao portador da Síndrome de Down sob o olhar de alguns pressupostos da teoria de Paterson e Zderad. Objetiva desvelar a teoria humanística de Paterson e Zderad evidenciando alguns de seus pressupostos aplicados à pessoa portadora da Síndrome de Down e projetar a participação do enfermeiro neste cuidado inclusivo, através de uma prática consciente relacionada à teoria humanística. Ao cuidar do ser portador de Síndrome de Down utilizando o referencial da teoria humanística é possível reconhecer cada ser, enquanto existência singular em sua situação e assim entender seu significadoe compreendê-lo.

Descritores: Teoria Humanista de Enfermagem; Síndrome de Down; Inclusão

ABSTRACT

This is a thought-provoking study approaching inclusive nursing care rendered to individuals suffering from Down's syndrome in light of some assumptions made in Paterson and Zderad's theory. Its aim is to uncover Paterson and Zderad's humanistic theory, by emphasizing some of its assumptions as applied to individuals suffering from Down's syndrome, and by outlining the participation of nurses in inclusive care of such cases, through a conscious practice related to the humanistic theory. By providing individuals suffering from Down's syndrome with health care based on the humanistic theory referential, it is possible to reckon each human being as a unique existent being, therefore understanding his/her meaning.

Descriptors: humanistic theory of nursing; down's syndrome; inclusion

RESUMEN

Se trata de un estudio reflexivo, que presenta el cuidado inclusivo de enfermería al portador de Síndrome de Down, basado en los presupuestos de la teoría de Paterson y Zderad. Tiene como objetivo desvelar la teoría humanística de Paterson y Zderad, cuyos presupuestos se pueden aplicar al portador de la Síndrome y proyecta la participación del enfermero en este cuidado inclusivo, a través de una práctica consciente que está relacionada a la teoría humanística. Al cuidar del ser portador de la Síndrome de Down, utilizando el referencial de la teoría humanística, es posible reconocer a cada ser, encuanto existencia singular y entender su significado y comprenderlo.

Descriptores: teoría humanística de enfermería; síndrome de Down, inclusión

1 Introdução

Sabendo-se que o enfermeiro na prática profissional, desenvolve suas atividades através de consultas de enfermagem em ambulatórios, domicílios, centros de saúde, maternidades e instituições hospitalares. Participa do processo educativo em escolas, universidades e empresas, é preconizado que este profissional utilize-se desses diferentes espaços para a efetiva implementação do cuidado inclusivo de Enfermagem com abordagem humanística aos clientes diferenciados(1).

A tentativa de expressar o conhecimento pela prática do cuidado de enfermagem abre possibilidades para escolhas; e, nesse caso, a escolha de cuidar do indivíduo portador da Síndrome de Down, com necessidades especiais, aplicada aos diferentes campos de atuação, suscita o desejo da descoberta, do desocultamento mediante a compreensão e o diálogo vivido. Assim, percebe-se que, muito além do quadro sindrômico clínico em si, o conhecimento dos conceitos de cidadania deste indivíduo e sua construção social, passam a ser da co-responsabilidade do enfermeiro, que irá atuar dialogicamente na utilização de seu potencial para alcançar um estar melhor de acordo com Paterson e Zderad(2).

A teoria humanista de Enfermagem(2) foi escolhida para este estudo, pois compreende os fundamentos e significados humanos da enfermagem e direciona o seu desenvolvimento através da exploração de sua relação com o contexto humano, oferecendo uma visão mais ampla deste potencial. Neste sentido, consideramos ser de extrema importância a necessidade do profissional enfermeiro preparar-se para aprofundar estudos, atualizar diferentes situações, tornando-se competente, teórica e metodologicamente, a fim de alcançar seu objeto de ação - o cuidado.

A condição do portador da Síndrome de Down impõe restrições ao desenvolvimento físico e à capacidade intelectual do indivíduo, restrições essas que, até hoje, não foram cientificamente delimitadas(3). É com base nesta afirmação que os esforços conjuntos voltados para o estar melhor são fundamentais. Esforços que se iniciam a partir do nascimento da criança portadora da Síndrome de Down, no reconhecimento e atendimento de suas necessidades físicas mediante a assistência adequada no momento do parto e certificação da integridade de seus aparelhos e sistemas. A necessidade de um roteiro de exames posteriores de acuidade de órgãos e sentidos irá diferenciar na pronta intervenção, em última instância, os possíveis aspectos de um comprometimento futuro.

Para fins desse estudo reflexivo, temos como objetivos: desvelar a teoria humanística(2) de Paterson e Zderad, evidenciando alguns de seus pressupostos aplicados à pessoa portadora da Síndrome de Down e projetar a participação do enfermeiro no cuidado inclusivo, mediante uma prática consciente relacionada à teoria humanística. Assim, inicia-se pelo conhecimento do mundo vivido do ser portador da Síndrome, para então delinear as conexões com a teoria humanística(2).

2 O vir-a-ser do indivíduo portador da Síndrome de Down

A contribuição deste ítem está relacionada à atualização e ao reconhecimento pelo enfermeiro, do potencial humano que é nato ao portador de Síndrome de Down e que deve ser outorgado, valorizado e estimulado para que este possa se constituir em alavanca para sua inclusão em nossa sociedade. A Síndrome de Down é condição genética caracterizada por um conjunto de sinais e sintomas que configuram um determinado quadro clínico(4). Foi identificada em 1866 quando um médico inglês John Langdon Down verificou, entre uma população de crianças portadoras de retardo mental, algumas que se diferenciavam das demais por vários aspectos físicos. Apenas na década de 50, o cientista francês Jerome Lejeune descobriu que, nessas pessoas, o total de cromossomos era de 47 e não 46. Anos mais tarde, novas pesquisas identificariam que o cromossomo extra pertencia ao par 21.

O enfermeiro, comparando e sintetizando as múltiplas realidades conhecidas, chega a uma visão ampliada, que permite um diálogo entre as realidades e diferenças, e utiliza os ricos fundamentos teóricos de educação e prática para colocar determinada situação em perspectiva(5). Ele pode atuar como ponte para a conscientização da família que convive com a criança portadora da Síndrome de Down(6).

A criança, produto de sua herança genética, sua cultura e seu ambiente influenciado por pessoas e eventos, ao nascer está apta a aprender como qualquer outra criança. Contudo, os pais precisam ter o conhecimento de que seu desenvolvimento ocorrerá de forma mais lenta, havendo atraso em algumas áreas, como no caso da psicomotricidade, em função da fraqueza muscular. Neste sentido é importante que eles tomem conhecimento sobre os recursos de saúde e estimulação existentes na comunidade que poderão utilizar para uma assistência multiprofissional.

Tão ou mais importante que o cuidado ao indivíduo portador da Síndrome de Down, é o momento da abordagem com os pais sobre o diagnóstico dessa criança, visto que são os primeiros a propiciar experiências de crescimento que visam à autonomia paulatina. Porém, como mediar este momento para que, mesmo permanecendo aspectos mobilizadores de algo que não esperavam, nem podiam supor, como a desilusão, a culpa, e até mesmo a vergonha, possam superar e dar início aos sentimentos de acolhimento, engajamento e esperança?

Relacionar a teoria humanística(2) ao aprofundamento da condição da pessoa portadora da Síndrome de Down não foi por acaso. A teoria parte de princípios básicos que incluem atuação com enriquecimento recíproco enfermeiro/cliente, ação intencional transcendente à benevolência, à crença na força inata do ser humano e à liberdade para a tomada de decisão consciente em suas próprias vidas. Esses princípios deveriam ser a base de todo um relacionamento, quer com pais, família, comunidade ou profissionais, na trajetória das pessoas com necessidades especiais, os portadores da Síndrome de Down.

Os primeiros movimentos familiares _ principalmente o de pais _ em prol de crianças com necessidades especiais,começaram a se formar nos anos cinqüenta, agrupando pequenos núcleos de pais que desejavam fazer alguma coisa para comprovar o valor de seus filhos até então esquecidos(7). A falta de informação aliada à informação que trazia consigo noções apenas de dependência, alheamento da comunidade e fortalecimento do estereótipo, eram um entrave para a participação do portador da Síndrome de Down como membro da sociedade. Na medida em que as associações de pais foram ganhando força, auxiliados também pela comunidade e por profissionais que acreditavam na visão futura de fraternidade, em que a diversidade do ser humano teria que ser aceita e respeitada, os próprios portadores da Síndrome passaram a expressar suas aspirações mais íntimas: o desejo de serem reconhecidos como pessoas.

Até 1973(3), não se tinha informação da auto-expressão da pessoa com deficiência mental. As associações de pais, famílias e principalmente os profissionais que atuavam nas organizações institucionalizadas é que determinavam sua linha de ação: o que comer, o que vestir, onde se divertir, como se manter ocupada. Os principais grupos chamados People First começaram a surgir em diversos países, Estados Unidos, Canadá, Suécia e hoje têm grande significado na Nova Zelândia, país no qual pessoas com deficiência mental têm status igual ao de outros cidadãos.

Cabe à sociedade eliminar as barreiras físicas, programáticas e de atitudes, para que as pessoas com necessidades especiais possam ter acesso aos serviços, lugares, informações e bens necessários ao seu desenvolvimento pessoal, social, educacional e profissional. No Brasil, ainda há um longo percurso para alcançar este estágio; mas o importante é o perseguir na busca de uma educação em escolas regulares onde o ensino de qualidade seja para todos; que os professores sejam autores de sua prática aperfeiçoada, oportunizando o reconhecimento e valorização da diversidade como elemento enriquecedor do processo de ensino-aprendizagem, incorporando novos conceitos às instituições de educação especial e suas modalidades excludentes. Na busca também de oportunidades de trabalho, não mais em oficinas abrigadas sem direito à remuneração ou perspectivas de autonomia, mas seguindo a tendência mundial de se investir na autonomia, capacitação e oferta de empregos em todos os ramos de atividade. O acesso ao lazer, esporte e à cultura no desempenho de seu papel social também devem ser incorporados.

Assim

[...] apesar dos meus pais me sustentarem eu também trabalho, [...] tenho um emprego, ganho um salário. É tão triste saber o caso de gente que tem Síndrome de Down e ficam em casa, eles ficam sem fazer nada; acho que nem existem como cidadãos. Eu achei boa essa parte que eu escrevi, por que eu sei que tem pessoas que são preconceituosas, elas não querem mostrar o filho para o mundo(8:300).

Também exercemos nossa posição de self advocacy

[...] trabalhar para mim é um prazer. Já fui secretária, telefonista, organizei arquivos e trabalhei no xerox. Eu chegava cedo no trabalho porque tinha a responsabilidade de abrir a sala [...] Na minha vida tenho muitas emoções e grandes alegrias, no entanto, o caminho não é fácil. As pedras que encontro neste caminho são difíceis, só consigo vencer porque nunca estive só; minha família sempre unida, com paciência e compreensão, muito amor e carinho me ajudam a conquistar os meus objetivos(9:218).

3 A teoria de enfermagem humanística de Paterson e Zderad

As teóricas foram enfermeiras pesquisadoras voltadas para as áreas de Saúde Pública e Saúde Mental(10). Josephine Paterson e Loretta Zderad desenvolveram a teoria durante a docência, em um curso de Enfermagem Humanística. O livro Humanistc Nursing foi publicado em 1976 em meio a uma discussão da sociedade sobre a forma e o conteúdo da existência humana, cujas bases foram apontadas pela fenomenologia e pelo existencialismo.

Assim, percebe-se no desenvolvimento da teoria de Enfermagem humanística que as autoras utilizam-se dos conceitos da fenomenologia e do existencialismo. Para elucidar o conceito de fenomenologia, Aranha(11) relata que enquanto movimento da filosofia surgiu no final do século XIX com Franz Brentano, cujas principais idéias foram desenvolvidas por seu aluno, Edmund Husserl, a partir de sua percepção do que denomina de Insuficiência das Ciências Humanas. Neste referencial o fenômeno é aquilo que surge para uma consciência, tudo aquilo que se mostra, se desvela como resultado de uma interrogação. A palavra fenomenologia vem do grego phainomenon que significa discurso esclarecedor a respeito daquilo que se mostra ao sujeito interrogador; também do verbo phainesthai que significa mostrar-se, desvelar-se. Deste modo a fenomenologia procura elucidar a essência do fenômeno como ele se mostra, buscando sua compreensão. Compreensão e desvelamento nunca serão totais, pois sempre surgirão novos velamentos a partir de novas inquietações do investigador.

O existencialismo, na teoria de Paterson e Zderad, emerge de Kierkegaard, filósofo dinamarquês. O qual delineia o conceito a partir da crença de que não há ordem no universo, e não há adjetivos certos ou errados.

Enumeramos proposições que devem ser inferidas do pensamento existencial à teoria que identifica o indivíduo como ser com capacidade de auto percepção, tendo liberdade e responsabilidade, lutando para encontrar sua própria identidade, ao mesmo tempo estando em relação aos outros, efetivamente envolvidos numa busca de sentido para a vida(5). Chauí(12) cita seu pensamento referente aos indivíduos "serem livres para criar sua própria vida de acordo com as escolhas que fizerem"(12:361), e devendo ser responsáveis por suas ações. É desta perspectiva filosófica que se deriva o encontro existencial do enfermeiro, no mundo do atendimento à saúde pela compreensão nos termos pessoalmente relevantes.

A Enfermagem, como ciência passa a ser, para as teóricas o desenvolvimento de experiências vividas pelo enfermeiro e pelo enfermo; é o ato de cuidar, o incremento à humanidade na situação em que se encontram. As teóricas advogam ainda um componente crítico, que é a comunidade. Partem da valorização da singularidade, do ser único, rico em experiências diversas e celeiro humano para trocas, que vivendo em comunidade, e sofrendo influência da mesma se desenvolve, possibilitando o vir-a-ser.

4 Delineando os conceitos que compõem o marco

O marco conceitual

apresenta-se como sendo uma construção mental, logicamente organizada, que serve para dirigir o processo da investigação, orientando o plano da pesquisa e a discussão de seus resultados. Essa construção mental poderá ser feita a partir da teoria (marco teórico), a partir da organização do conhecimento existente, documentado pela revisão da literatura (referencial teórico) e o que se conhece a respeito do assunto(13:210).

Enfatizamos que toda teoria é derivada do marco conceitual, pois para construí-la, inevitavelmente, inicia-se com um marco conceitual, descrevendo crenças e valores, definindo os conceitos chave (os mais abstratos) para, a partir daí, desenvolver a teoria(14). Complementando, um conceito pode ser descrito como sendo "uma imagem mental de alguma coisa, uma pessoa ou um objeto"(15:22). É uma idéia na mente de alguém, formada por uma generalização de experiências concretas específicas, que através de palavras diferenciam uma coisa de outra.

Os conceitos defendidos pelas teóricas Paterson e Zderad incluem o ser humano, a saúde, a enfermagem e o diálogo como aqueles mais significativos para retratar suas idéias essenciais. Além dos quatro primeiros acrescentamos outros três relacionados com o tema, entendendo que depois de sua conceitualização, acentua-se a reflexão sobre nosso papel enquanto agentes equiparadores de oportunidades. Passamos, então, a explicitá-los à luz da teoria adotada neste estudo. Complementando-os com nossa vivência prática e a revisão de literatura referente.

4.1 Seres humanos

São vistos a partir de uma estrutura existencial de vir-a-ser através de escolhas, com capacidade de abertura para opções, com valor e como manifestação única de seu passado, presente e futuro(5). Paterson e Zderad(2) relatam que a enfermagem humanística perpassa pelo potencial de humanidade, implicando em um ser humano ajudar ao outro. O ser humano em questão é a antítese do que as duas teóricas tendem a enfocar neste conceito. O ser humano portador da Síndrome de Down na maioria das vezes é tomado como sendo dependente, incapaz de tomar decisões e iniciativas quanto ao rumo do seu existir, normalmente vê-se desprovido de participar das questões decorrentes da sociedade na qual está inserido. Para este ser humano, normalmente, é reservado um lugar abrigado, seja no seio da família, na escola especial ou na oficina, com a justificativa de prepará-lo indefinidamente para ingressar no mundo normal. Foi pensando nesses seres humanos que aprofundeamos a forma humanística de atuar e passamos a socializá-la neste estudo.

4.2 Saúde

Não está atrelada apenas à ausência de doença, mas a um meio de equilíbrio de um bem-estar para um estar-melhor. Ela é valorizada como necessária à sobrevivência, mas há situações em que não pode ser considerada como um objetivo plenamente alcançável(10); mesmo assim, a Enfermagem deverá prover cuidados de modo que seu propósito avance além do bem-estar (estado de estabilidade) para um estar-melhor (processo de tornar-se, tudo o que é humanamente possível em sua situação particular). Paterson e Zderad(2) entendem que o interesse da Enfermagem centra-se unicamente no bem-estar de uma pessoa em seu existir mais pleno, ajudando-o a ser o mais humano possível no momento particular de sua vida.

Estabelecendo o que seria ser saudável, enfocando a pessoa com Síndrome de Down, poderíamos estender esta questão para toda a população. Quantos de nós convivemos bem com certa dificuldade, seja ela de fundo alérgico ou reumático? Apesar de alguns fatores genéticos poderem comprometer a saúde da pessoa com Síndrome de Down, como por exemplo uma cardiopatia grave, ela normalmente é saudável, hígida. A importância de refletirmos sobre esse conceito está na necessidade de zelar quanto ao termo doença genética, principalmente porque para o leigo, doença tem outro sentido. No imaginário popular conota a idéia de contágio, sugerindo que: quem tem Síndrome de Down não é saudável, porque é doente. Neste contexto os desdobramentos negativos interferem no processo de inclusão, quando é negada uma oportunidade de emprego ou matrícula em escola regular com base nesta justificativa(3).

4.3 Enfermagem

Inserida no contexto humano, zelando pelo potencial humano e ao mesmo tempo nutrindo-se deste investimento. George(5) denomina esta ação como sendo um encontro; não fortuito, mas um encontro intencional, visto que existe um chamado e uma resposta. Resume que a ação do enfermeiro é uma resposta de cuidado para outra pessoa numa situação de necessidade, com o objetivo de aumentar as possibilidades de escolhas responsáveis no seu processo de vir-a-ser(10).

Durante 10 anos tivemos a oportunidade de conviver com pessoas com Síndrome de Down, na ótica do cuidado e da percepção cotidiana dos progressos, entraves e demandas exigidas nesta relação e pude vivenciar plenamente este encontro, o qual considero um aprendizado e mesmo um privilégio de não ter sido marcado, agendado, mas aceito e revestido de busca pela informação, capacitação, e entendimento do quanto limitados somos na percepção real do outro. Desejamos o outro pronto, curável, mas esquecemos que o valor maior está na superação dos desafios daquele que vai ajudá-lo.

4.4 Diálogo Vivido

Paterson e Zderad(2) advertem o quanto a influência das noções preconceituosas, rótulos e categorizações, contamina o que é significativo e afeta o desenvolvimento do conhecimento. Neste diálogo vivo, vivido, há uma abordagem intersubjetiva na qual enfermeiro e paciente estão presentes nesta experiência existencial que inclui intimidade e mutualidade. O significado deste ato para o enfermeiro e para o cliente pode ser diferente, e pode agir inclusive como catalisador potencial para realizar mudanças no diálogo. O enfermeiro e o portador da Síndrome de Down enquanto produtos de suas escolhas e de sua própria história encontram-se com um propósito. A diferença, na perspectiva do encontro dialógico, é o modo de ser de cada um na situação compartilhada. Para que o diálogo seja genuíno, é necessário haver abertura, receptividade, disposição e acessibilidade.

4.5 Cidadania

É o exercício dos direitos individuais e coletivos, e um acesso igualitário aos bens e serviços de uma comunidade, pressupondo uma emancipação. Esta possibilidade não deve ser excluída para o portador da Síndrome de Down, visto que devem assumir junto ao Estado, sua quota-parte de responsabilidade, como membros ativos da sociedade, mas também de exigência quanto ao respeito e às garantias dos direitos que lhes são devidos. Esse auto conceito não se faz sem a crença em suas possibilidades e a mediação de informações quanto ao seu potencial; ele é construído desde o seu nascimento.

4.6 Construção social

É uma conquista progressiva na expectativa de que "todos os cidadãos serão responsáveis pela qualidade de vida do seu semelhante, por mais diferente que ele seja ou pareça ser"(3:21).

4.7 Cuidado inclusivo

É o processo pelo qual a sociedade/profissional se adapta para poder incluir em seus sistemas sociais/profissionais, pessoas com necessidades especiais e, simultaneamente estas se preparam para assumir seus papéis na sociedade(16). A inclusão social inter-relaciona-se ao cuidado, pois constitui um processo bilateral no qual as pessoas, ainda excluídas, e a sociedade/cuidadores buscam em parceria equacionar problemas, decidir sobre soluções e efetivar a equiparação de oportunidades para todos. O cuidado inclusivo é interativo, pois se fundamenta na valorização da liberdade, da sensibilidade, do diálogo, possibilita pelo profundo conhecimento técnico-científico o vir-a-ser; auxilia a participação do outro no processo de cuidar, fortalece o caráter humano e solidário em cada ação desempenhada em busca de um novo sentido à vida; atua em uma relação entre iguais, de cooperação, de reciprocidade, de amplitude de oportunidades, de fortalecimento de vínculos mediante o diálogo vivido no encontro do cuidador com o ser cuidado. Ele manifesta-se não apenas pelas ações visíveis do enfermeiro, mas por ações que denotem presença, um olhar, um toque, o tom de voz, o que implica em reciprocidade e compromisso.

5 Pressupostos

Enfocando alguns dos pressupostos da teoria humanística de enfermagem de Paterson e Zderad explicitamos aqueles que consideramos inter-relacionados à temática em discussão: a enfermagem humanística inclui mais que uma benevolente relação sujeito-objeto, competente tecnicamente, guiada por um enfermeiro em benefício de alguém; cada situação de enfermagem reciprocamente evoca e afeta a expressão e as manifestações das capacidades existenciais dos seres humanos e sua condição; os seres humanos têm uma força inata que os mobiliza para reconhecer suas próprias visões e visões de outros; seres humanos são livres e se espera que se envolvam em seu próprio cuidado e nas decisões sobre sua vida.

6 Cuidado inclusivo do enfermeiro a partir do diálogo vivido

Para que o profissional enfermeiro possa descortinar aos pais uma outra visão que vai além daquela imposta pela genética, faz-se necessário uma postura positiva, de abertura e receptividade. Este agir consciente e intencional propicia situações de encontro e interação com os pais durante todas as etapas preventivas e terapêuticas preparando-os para o vir-a-ser.

A expressão vir-a-ser, trata de um processo para a aquisição do viver da melhor forma possível, galgando o domínio da autonomia, da escolha e da responsabilidade perante o seu existir no mundo. Esta noção ativa de direito à cidadania, não se edifica de um momento para o outro na pessoa do portador da Síndrome de Down; é o resultado de um caminhar que envolve a auto-estima, o autoconhecimento, a informação, a habilidade, a socialização, o interesse e a autodeterminação, e culminará também com a percepção de que não precisará ser considerada cliente a vida toda, quer por pedagogos, fonoaudiólogos, psicomotricistas, enfermeiros, médicos, fisioterapeutas ou outros.

Na área de enfermagem um cuidado realizado junto e com a família que tem filhos com Síndrome de Down pode acarretar um impacto significativo. Os estudos e as experiências nesse campo parecem se encontrar em fase inicial dentro da categoria, porém o conhecimento levantado se configura em indicação para se constituir em instrumentos para o planejamento e implementação do cuidado de Enfermagem(6). Finalizamos demarcando duas questões importantes: o despreparo pode ser contornado pela aquisição de conhecimentos; mas, e o des-cuidado? Como pode ser trabalhado? Esse fato precisa ser refletido, posto que é o cuidado que possibilita a auto-realização, e é através dele que os seres humanos vivem o verdadeiro significado de sua própria existência(6).

Dois conceitos estão aliados à essência da enfermagem: respeito e cuidado. O respeito no seu sentido mais amplo ao ser do outro, a solidariedade embutida no ato de aceitação e valorização. O cuidado, no sentido de envolvimento, e engajamento; em quê? Na busca diária que configura o desejo de cidadania para todos, e não apenas para alguns, no posicionamento consciente e no agente formador de opinião para alterar e transformar a realidade em sonho.

7 Considerações finais

A fronteira entre a deficiência e a saúde não está tanto na presença ou ausência de uma doença invalidante, mas, igualmente para na realização ou não de si mesmo. Provavelmente a passagem de uma tendência ao isolamento social e de um respeito meramente formal e paternalista às dinâmicas de abertura, de socialização e inclusão, poderão acontecer apenas quando cada um reconhecer em seus próprios limites uma parte de si, e ao fazê-lo, verá com uma luz nova os limites e potencialidades do outro. Nesse sentido, Paterson e Zderad(2) explicitam que para encontrar o significado da enfermagem é necessário ir "à coisa mesma", ao fenômeno da Enfermagem em seu acontecer cotidiano.

É importante ressaltar que a enfermagem humanística defendida pelas teóricas não abandona os avanços tecnológicos de Enfermagem, mas aumenta seu valor ao considerar seu uso na perspectiva do desenvolvimento do potencial humano. As autoras complementam dizendo que cada situação de Enfermagem evoca e influi reciprocamente na expressão e manifestações da capacidade dos seres humanos para a existência e sua condição nela.

Ao cuidar do ser portador de Síndrome de Down utilizando o referencial da teoria humanística é possível reconhecer cada ser enquanto existência singular em sua situação, e assim, entender seu significado e alcançar a compreensão. A compreensão engloba ao mesmo tempo a aceitação e o reconhecimento das limitações humanas, ampliando o horizonte do potencial de cada ser.

Paterson e Zderad(2) enfatizam que o interesse da enfermagem não se centra unicamente no bem-estar de uma pessoa, mas em seu existir mais pleno, ajudando-a a ser mais humana possível em um momento particular de sua vida". As autoras conceituam a enfermagem como um fenômeno de transação humana contendo todos os potenciais e limitações humanas. Cada vez que se realiza o ato de cuidar os seres humanos se relacionam em uma situação compartilhada, na qual cada um participa de acordo com o seu modo de ser. Nessa transação subjetiva, o enfermeiro e o ser portador da Síndrome de Down são interdependentes. As ações de cuidado, inseridas na perspectiva humanística, vão além do fazer determinados procedimentos técnicos; envolvem o estar-com e o estar-aí, os quais implicam na presença ativa do enfermeiro. O estar-com requer atenção no ser cuidado, estar atento a uma abertura da situação compartilhada, bem como comunicar essa disponibilidade, pois é um compromisso existencial dirigido ao acréscimo e desenvolvimento do potencial humano.

Para concluir, utilizamos as palavras das teóricas que afirmam:

é importante considerar a enfermagem humanística como uma meta, pela qual vale a pena lutar ou como uma atitude que fortalece a perseverança individual necessária para alcançar uma meta difícil, ou mais fundamentalmente, como um valor importante que enriquece a prática de Enfermagem(2:35).

É com admiração e um certo orgulho que pudemos refletir sobre a base de pensamento e as idéias tão atuais e justas destas duas enfermeiras teóricas que, ao determinarem que os seres humanos são realmente livres, eles devem ser envolvidos nos cuidados e nas decisões. Neste sentido pensamos que o nosso fazer Enfermagem seja uma contribuição contínua na construção deste caminho para a inclusão, lado a lado com os portadores da Síndrome de Down e outros tantos que de outro modo estariam sozinhos, seguindo em outras direções.

Data de Recebimento: 30/11/2003

Data de Aprovação: 30/03/2004

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jul 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2003

Histórico

  • Aceito
    30 Mar 2004
  • Recebido
    30 Nov 2003
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