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Déficits de autocuidado em mulheres com úlceras de perna e doença falciforme

RESUMO

Objetivo:

identificar os déficits de autocuidado em mulheres com úlceras de perna e doença falciforme.

Método:

abordagem qualitativa, descritiva, exploratória com 14 mulheres. A coleta foi realizada em dezembro de 2015 a janeiro de 2016, enquanto a análise foi sustentada pela Teoria Geral do Déficit de Autocuidado de Orem.

Resultados:

os requisitos de autocuidado não são plenamente atendidos. Foram identificados como universais: equilíbrio entre solidão e interação social, repouso e alimentação adequada; desenvolvimento: incapacidades para realizar o trabalho, mudanças abruptas de ambiente pelo internamento, privação educacional e evasão escolar; desvios de saúde: recidivas de úlceras, dor, alterações no aspecto da pele e alterações na marcha.

Conclusão:

o cuidado de enfermagem às mulheres com úlcera de perna e doença falciforme requer ações planejadas para o cuidado integral.

Descritores:
Enfermedad de Células Falciformes; Úlcera en la pierna; Autocuidado; Cuidado de Enfermería; Teoría de Enfermería

ABSTRACT

Objective:

to identify self-care deficits in women with leg ulcers and sickle cell disease.

Method:

a qualitative, descriptive, exploratory approach with 14 women. The collection was performed from December 2015 to January 2016, while the analysis was supported by Orem’s Self-Care Deficit Theory.

Results:

self-care requirements are not fully met. The following were identified as universal: balance between loneliness and social interaction, rest and proper nutrition; development: inability to perform work, abrupt changes in the environment due to hospitalization, educational deprivation and dropout; health deviations: ulcer recurrences, pain, changes in skin appearance and gait changes.

Conclusion:

nursing care for women with leg ulcers and sickle cell disease requires planned actions for comprehensive care.

Descriptors:
Sickle Cell Disease; Leg Ulcer; Self-Care; Nursing Care; Nursing Theory

RESUMEN

Objetivo:

para identificar déficits de autocuidado en mujeres con úlceras en las piernas y enfermedad de células falciformes.

Método:

abordaje cualitativo, descriptivo, exploratorio con 14 mujeres. La colección se realizó de diciembre de 2015 a enero de 2016, mientras que el análisis fue respaldado por la Teoría del Déficit de Autocuidado de Orem.

Resultados:

los requisitos de cuidado personal no se cumplen por completo. Los siguientes fueron identificados como universales: equilibrio entre soledad e interacción social, descanso y nutrición adecuada; desarrollo: incapacidad para realizar el trabajo, cambios abruptos en el entorno debido a internamiento, privación educativa y deserción; desviaciones de salud: recurrencias de úlceras, dolor, cambios en la apariencia de la piel y cambios en la marcha.

Conclusión:

el cuidado de enfermería para mujeres con úlceras en las piernas y enfermedad de células falciformes requiere acciones planificadas para el cuidado integral.

Descritores:
Enfermedad de Células Falciformes; Úlcera en la pierna; Autocuidado; Cuidado de Enfermería; Teoría de Enfermería

INTRODUÇÃO

A doença falciforme (DF) é hereditária, monogênica e muitas vezes incapacitante, sendo as úlceras de perna (UP) as manifestações cutâneas de maior gravidade e com significativa carga de morbidade, cuja prevalência é 22% (11 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Úlceras: prevenção e tratamento. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.). Assim, conhecer os requisitos para o autocuidado de mulheres com UP é prioritário tanto para as enfermeiras quanto para as mulheres acometidas.

A Teoria Geral de Enfermagem do Déficit de Autocuidado de Orem, que é formada por três teorias: a Teoria do Autocuidado (TAC), a Teoria do Déficit de Autocuidado (TDAC) e a Teoria do Sistema de Enfermagem (TSE) (22 Orem DE. Nursing concepts of pratice. 6. ed. Saint Louis (US): Mosby; 2001, 369 p.-33 Meneguessi G, Teixeira J, Jesus C, Pinho D, Kamada I, Reis P. Rehabilitation in spinal cord: reflection on the applicability of the Orem's self-care theory. Rev Enferm UFPE [Internet]. 2012[cited 2017 Jul 24];6(12):3006-12. Available from: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/2801
http://www.revista.ufpe.br/revistaenferm...
). Este trabalho está apoiado na TAC e TDAC.

A TAC se relaciona com a pessoa, sendo uma ação desempenhada para o próprio cuidado. Nesta teoria são apresentados os requisitos universais, de desenvolvimento e de desvio de saúde para compreender as demandas de autocuidado. A TDAC norteia as ações de enfermagem a partir do reconhecimento da incapacidade dos indivíduos para atividades de autocuidado, definindo quais intervenções de enfermagem serão necessárias (22 Orem DE. Nursing concepts of pratice. 6. ed. Saint Louis (US): Mosby; 2001, 369 p.,44 Vitor AF, Lopes MVO, Araujo TL. [Self-care deficit theory: analysis of importance and applicability in the nursing practice]. Esc Anna Nery [Internet] 2010[cited 2015 Nov 15];12(3):611-6. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v14n3/v14n3a25.pdf Portuguese
http://www.scielo.br/pdf/ean/v14n3/v14n3...
).

OBJETIVO

Identificar os déficits de autocuidado de mulheres com UP secundárias à DF.

MÉTODO

Aspectos éticos

Obedecendo aos aspectos éticos e legais da Resolução 466/12 do Conselho Nacional de Saúde, o estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia. Após a apresentação dos objetivos da pesquisa durante a consulta e a entrevista, garantia do anonimato, todas as participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Referencial teórico-metodológico e tipo de estudo

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa, de natureza exploratória-descritiva, que adotou como referencial teórico-metodológico a TDAC. Foram seguidos os três domínios do COREQ tipo de pesquisa e reflexibilidade, desenho do estudo e análises e achados (55 Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care [Internet]. 2007[cited 2017 Jul 20];19(6):349-57. Available from: https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042
https://doi.org/10.1093/intqhc/mzm042...
), respectivamente.

Cenário do estudo

O estudo foi realizado no hemocentro de referência no município de Salvador, Bahia. Essa unidade possui cadastradas aproximadamente 4.484 pessoas com DF e que buscam os cuidados de saúde. Estão inclusos indivíduos procedentes de Salvador e demais municípios que compõem o estado.

Participantes do estudo e fonte de dados

Participaram do estudo mulheres com UP secundária à DF. A amostra foi constituída por quatorze mulheres que procuraram o hemocentro de referência no período de maio/2015 a novembro/2015 por meio das consultas de enfermagem. As participantes foram selecionadas de forma intencional na sala de curativo, contatadas pessoalmente pela pesquisadora e convidadas a participar da pesquisa, após terem sido explicados os motivos e objetivos da mesma. As entrevistas foram realizadas em dezembro/2016.

Os critérios de inclusão foram: ter diagnóstico confirmado de DF, com UP secundárias à doença; fazer acompanhamento no hemocentro de referência do estado; possuir idade superior a 18 anos. Os critérios de exclusão foram: não ter UP e DF; não ser acompanhada pelo hemocentro; ter idade inferior a 18 anos.

Coleta e organização dos dados

Para uma aproximação com as mulheres foi realizada a observação não participante durante as atividades do projeto de extensão Práticas educativas em saúde: a enfermagem na promoção do autocuidado de pessoas com DF.

Para iniciar a coleta de dados, foram realizadas a observação sistemática, durante os curativos, e as consultas de enfermagem. Após essa etapa, foi agendado um novo encontro para a realização da entrevista, que foi constituída por perguntas que envolviam as práticas e vivências no autocuidado, dificuldades e rotina de cuidado da úlcera. Tais questões foram apoiadas por um diário de campo para a observação sistemática, com um roteiro para registro de expressões não verbais e temas que emergiam durante o encontro.

A consulta de enfermagem ocorreu em sala privativa, com duração de aproximadamente uma hora. Alguns dados objetivos foram anotados como: a) informações laboratoriais, histórico da doença familiar, informações relacionadas à vida social, saúde sexual e reprodutiva, atividade pertencente ao trabalho e sobre as UP; b) dados objetivos do exame físico (verificação de calendário vacinal e exames laboratoriais) e os dados subjetivos (informações mencionadas pelas participantes); c) avaliação da úlcera e investigação sobre o autocuidado e d) plano de cuidados.

Análise dos dados

Para análise dos dados, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo (66 Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2016, 288 p.), enquanto a TDAC de Orem foi utilizada para embasar a análise. Durante a consulta de enfermagem, entrevista e observação, os achados foram déficits para o autocuidado mais frequentes relacionados à dieta, sono dificultado, ausência de repouso, sociabilidade, dificuldade para o autocuidado, mobilidade prejudicada, escolaridade, recidiva, dor, infecção, integridade da pele e atenção à saúde.

RESULTADOS

Participaram da pesquisa 14 mulheres com idade entre 23 e 61 anos. Quanto à situação conjugal, 12 eram solteiras e 2 em união estável. O nível de escolaridade variava de não alfabetizada até ensino médio completo. No que diz respeito à ocupação das mulheres, 11 eram aposentadas, 2 recebiam BPC * * O Benefício de Prestação Continuada da Assistência Social – BPC é benefício de um salário mínimo individual, não vitalício e intransferível, instituído pela Constituição Federal de 1988. Para acessá-lo, não é necessário ter contribuído com a previdência social. Fonte: http://mds.gov.br/assuntos/assistencia-social/beneficios-assistenciais/bpc. e 1 não possuía trabalho formal. A renda familiar predominante foi entre 1 e 2 salários mínimos (13) e sem renda fixa (1). O tempo de existência da úlcera foi de 2 a 47 anos de lesão. A idade que surgiu a primeira ferida variou entre 21 e 60 anos.

Os requisitos de autocuidado é o somatório de necessidades de cuidados individuais ou coletivas e, quando não atendidos, geram déficits de autocuidado universais, de desenvolvimento e de desvio de saúde. A partir dos requisitos, foram traçados os déficits de autocuidado.

Déficits de Autocuidado

A seguir, serão apresentados os déficits de autocuidado mais frequentes encontrados nas mulheres que vivem com UP secundárias à DF. Os déficits encontrados foram então classificados conforme os requisitos de autocuidados universais, de desenvolvimento e de desvios de saúde, como proposto por Orem (22 Orem DE. Nursing concepts of pratice. 6. ed. Saint Louis (US): Mosby; 2001, 369 p.).

Observou-se que as mulheres que participaram da pesquisa apresentavam déficits de autocuidado relacionados à sociabilidade. Este déficit de sociabilidade prejudicada foi expressivo na vida de 10 participantes, já que a presença da úlcera proporciona incômodo e desconforto em situações sociais, ocasionando rupturas no convívio com amigos e familiares. O medo da exposição dos curativos resulta na diminuição das atividades sociais e cotidianas e consequente autoisolamento:

Já me deixou bastante triste, porque eu não podia sair, todo mundo saía [...] eu não podia ir [...] e aí eu ficava sempre presa dentro de casa com esse ferimento, sem poder sair pra canto nenhum, como minhas colegas tudo, casou e noivou e eu não pude ir no casamento de nenhuma delas porque não tinha como ir, por causa do ferimento. (E3)

[...] às vezes de ir na rua, porque tem... tinha essa ferida. Ainda tenho, né? [...] ir em um aniversário das minhas colegas mesmo, ir na casa da minha vizinha, assim, sabe? Aí, sempre receio! Sempre vergonha! E sempre... ficava em casa! (E8)

As mulheres relataram situações constrangedoras vivenciadas em público, que as afastaram de atividades antes comuns. Muitas vezes se escondem de colegas, temendo exporem seus problemas e uma possível rejeição. As ocasiões que as fazem sair de casa são as idas às consultas médicas e a realização de exames. O isolamento foi justificado pelas participantes pela vontade de ficarem sozinhas, devido às alterações no estado de saúde e na aparência física:

Eu parei de me divertir [...] só fico dentro de casa. Antes eu vivia minha vida bem, divertida. Viajava, curtia. [...] depois me desanimei. (E11)

Não vou pra lugar nenhum! Minhas colegas ligam me chamam, eu não vou. (E12)

Outro frequente e importante déficit encontrado foi relacionado à dieta. Essa carência foi denominada ingestão alimentar ineficaz e/ou insuficiente para a cicatrização das úlceras, pois os hábitos alimentares de 9 mulheres se caracterizam por refeições inadequadas ou insuficientes, tais como a ingestão diminuída de proteínas, frutas, verduras e o consumo de alimentos industrializados.

É por causa da ferida eu não como repolho, não como chuchu que minha mãe disse que é reimoso, e maxixe minha mãe acha que é reimoso. (E5)

Lá no hospital eu fiz uma dieta. Cheguei em casa, eu fiz outra. E essa dieta que eu fiz em casa, ela não me ajudou [...] Tipo comi coisas que não podia: fritura, fígado, besteira. Aí, ela foi lá e abriu [...] salgadinho, refrigerante, bolacha, pastel, coxinha. (E13)

A médica me mandou comer peixe [...] peixe e frango, galinha de granja. Aí peguei uns peixes e comprei né? [...] aí abriu toda, comeu a ferida toda. Mas não foi minha culpa não, foi ela quem mandou. (E6)

Outro déficit identificado foi ausência de repouso (3). Este déficit de autocuidado está relacionado aos requisitos referentes ao autocuidado universal. As narrativas apontam para a falta de repouso em virtude da realização de atividades laborais, pela preservação do trabalho doméstico. As participantes realizavam atividades de limpeza da casa, permanecendo por um tempo prolongado em pé, fazendo esforços progressivos no trabalho e caminhando muito, conforme a seguir:

Continuei fazendo as coisas dentro de casa: varrendo casa, limpando mijo de cachorro na garagem, e tudo; aí depois foi que me disseram [...] e também não podia fazer esforços [...] mas depois foi abrindo, abrindo, por devidos esforços e sem repouso [...] (E1)

Mas aí quando você começa a trabalhar, fazer esforço porque lá no trabalho que eu tava subia escada, era uma cobertura... aí você tinha que lavar lá em cima [...] Aí você não tem como fazer cuidado. (E5)

[...] toda segunda e terça, subindo uma ladeira, pegando ônibus cheio, muito em pé [...] (E7)

O déficit de estado crônico que afeta a mobilidade foi identificado nas narrativas de 12 mulheres. A condição foi prejudicial à individuação das mulheres, o que gera dificuldade para apoiar o pé, caminhar, correr e a realizar atividades. Essas restrições aparecem claramente nas falas:

[...] não posso correr, porque se eu correr eu posso cair, por causa da modificação do pé. (E3)

Às vezes, quando eu tô em pé mesmo, fico me batendo assim mesmo eu não consigo ficar em pé direito, porque a perna não apoia direito. (E7)

Outro déficit identificado foi ruptura do convívio social (7), devido às complicações da DF, associadas ao comprometimento que as úlceras proporcionaram e aos diversos períodos de hospitalização. Nas narrativas, as participantes revelam internamentos prolongados para tratamento. Uma participante, residente em zona rural, relata ter mudado de cidade por um longo período na busca de tratamento para a úlcera:

Eu fiquei três meses lá internada, por caso desse ferimento mesmo. (E3)

Fiquei quatro meses internada. (E14)

Eu já morei no hospital um ano, tu sabe, né? [...] aqui em Salvador, morei um ano. Morei em Santo Amaro um ano também, tudo tratando dessa ferida. (E6)

O déficit de baixa escolaridade que dificulta o autocuidado (7), foi identificado como um elemento complicador e que merece atenção. A baixa escolaridade dificulta o emprego de ações adequadas e eficazes para o autocuidado. Frequentemente, as mulheres abandonam os estudos e não chegam a ser alfabetizadas em razão das dificuldades impostas pela úlcera. Dessa maneira, o nível de escolaridade reduzido é um fator impeditivo à leitura do plano de cuidado e das prescrições dos profissionais de saúde.

[...] a í se você souber ler você tá ali, pegando, lendo, vendo o que é que você tem que fazer e o que não tem. Se você passar uma lista assim com tudo, alimentação, o que eu tenho que comer. Aí já...dois três dias, eu sei... Mas passou daquilo, já esqueci. Aí fica difícil! [...] o horário assim de tomar algum remédio, alguma coisa. A receita tava ali, mas só que eu não entendia. Às vezes não entendia o horário, essas coisas assim [...] por causa do esquecimento e não ter orientação para poder ficar lendo as receitas, olhando, orientando assim. (E5)

O déficit de autocuidado de recidivas das úlceras foi construído por ser uma manifestação que repercute em diversos aspectos da vida de 14 participantes. Seu reaparecimento pode estar associado à ausência de medidas preventivas tais como: hidratação da pele, manutenção da terapia compressiva após a cicatrização, alimentação adequada, repouso, nível de hemoglobina, uso de hidroxiureia e fatores ambientais.

A enxertia rejeitou, né? Que eu fiz três vezes. (E1)

Fechou o curativo, mas depois ela abriu, do nada... tanto que uma fechou, ficou um ano e seis meses, aí depois ela reabriu novamente. (E2)

Aí essa abriu, apareceu um carocinho; um carocinho com uma bolha. (E3)

Abriu porque fechou, mas acho que ficou um buraquinho. Aí encheu e começou a sair secreção. (E7)

Curava, depois quando chegava em casa, na roça, lá em um lugar que a gente morava, em uma outra cidade, numa roça, voltava tudo de novo, os porcos esmagavam, as galinhas. Aí voltava tudo [...] fecha e torna abrir. (E6)

A dor foi expressiva na rotina de 13 participantes. Dessa maneira, nomeamos: dor crônica, caracterizada por lesão tissular de início súbito e recorrente, com duração de horas, dias ou meses. Foram relatados episódios diários de dor decorrente da DF, mas principalmente no leito da úlcera:

Eu mesmo, com dor eu não como, aí fico emagrecendo ainda mais. Só venho comer, se a dor levar dois dias, só venho comer depois que passar a dor. Dói demais! A dor é tão forte, do ferimento [...] dá vontade assim, de fazer xixi, dá vontade de obrar de tanta dor [...] (E3)

É uma dor insuportável [...] fica assim latejando dentro, fica um negócio parece que tá arrancando tudo e fica queimando. (E11)

Quando eu sinto dor minha cor muda, meu olho muda, os meus lábios mudam também a cor. (E13)

As crises dolorosas se manifestam após quadros infecciosos. Isso posto, chegamos ao déficit de infecção (14). Além de as participantes apresentarem susceptibilidade à infecção por medidas de autocuidado inadequadas e pelo comportamento da DF, a presença da úlcera também intensifica as chances de contaminação.

Durante a investigação, foi observado o déficit de atenção à saúde. As mulheres (8) estavam com o cartão de vacina desatualizado, e desconheciam a importância da imunização para evitar possíveis quadros infecciosos. Foi mencionado pelas participantes a exposição da úlcera sem a utilização de um curativo oclusivo ou limpeza sem medidas assépticas como, por exemplo, o uso de luvas:

Aí vivia descoberto, como ela era pequena, deste tamanho assim as feridas, aí eu andava dentro do riacho, do rio, pescando, os peixes ficavam roendo, sentava bicho, mosca; aí nessa época eu não fazia curativo não. (E6)

No início eu lavava, sem luva, sem nada. [...] às vezes tirava meu curativo pra fazer, ai eu fazia sem luvas. (E9)

Mais da metade das participantes deste estudo (8) estavam com o cartão de vacinação desatualizado:

Eu não tomo muita vacina mais. Eu tomo vacina no posto quando manda tomar, quando tem a propaganda para tomar no posto, eu tomo. (E2)

Eu não olhei as datas e não me disseram que era de ano em ano. (E7)

Eu tomei uma vez uma vacina, foi até em uma época que estava dando bastante na ABADFAL, foi em 2011 [...] eu fiquei com o rosto todo inchado, os braços incharam [...] aí depois disso aí eu fiquei com medo de tomar vacina, aí não tomei mais, não fui lá mais. (E14)

Durante os atendimentos, foi observado que o aspecto da pele alterado nas participantes (12) levou ao déficit de integridade da pele afetada pelo fluxo sanguíneo diminuído nas extremidades. Cuidados com a pele para evitar o ressecamento e para proteger o aparecimento de novas úlceras são incorporados nos hábitos das participantes, como uma medida de promoção da integridade cutânea. Eis, a seguir, alguns relatos:

Qualquer ferimento, um arranhão, abre a ferida, às vezes do nada também, entendeu? A sensibilidade é muito pequena, qualquer coisa a gente já sente. [...] A pele está mais áspera, está um pouco mais sensível que antes. (E2)

A médica passou aquele óleo, o Dersani ela passou pra eu ficar usando [...] aí agora o Dersani também... mesmo eu passando, fica ressecado [...] fica com a pele muito fina, aí qualquer coisinha resseca demais, aí ela vai e abre em outro canto. (E5)

Outro déficit evidenciado devido à presença das úlceras, que causam um obstáculo importante para andar, foi de deambulação prejudicada e comprometimento da marcha (9). Nas narrativas, foi mencionada a limitação dos movimentos devido às mudanças na marcha, redução da capacidade de andar, subir escadas e correr, como se vê a seguir:

[...] e também para apoiar o pé. A gente apoia o pé com dificuldade. (E2)

[...] não posso correr, porque se eu correr eu posso cair, por causa da modificação do pé. (E3)

[...] às vezes, quando eu tô em pé mesmo, fico me batendo assim mesmo, eu não consigo ficar em pé direito, porque a perna não apoia direito. (E7)

Às vezes, eu me sinto um pouco incapaz. (E13)

[...] é uma aberração. (E14)

Os déficits identificados na pesquisa colaboram diretamente para o agravamento das úlceras, uma vez que cuidados imprescindíveis como alimentação, hidratação, bem como acesso aos serviços de saúde não estão estruturados em alguns municípios do estado. Portanto, trazem repercussões negativas, postergando o processo de cicatrização. Repercutindo para além das alterações físicas, na autoimagem, autoestima e para o convívio social das mulheres.

DISCUSSÃO

Neste estudo, os déficits de autocuidado foram categorizados a partir de um conjunto de demandas de autocuidado universais, de desenvolvimento e de desvio de saúde não atendidos, fatores que são essenciais para conduzir as ações da enfermeira. Assim, os principais déficits de autocuidado encontrados durante a investigação foram: universais (sociabilidade prejudicada, ausência de repouso e ingestão alimentar ineficaz e/ ou insuficiente para a cicatrização das úlceras); de desenvolvimento (estado crônico, o que afeta a mobilidade); de ruptura no convívio social; (baixa escolaridade, o que dificulta o autocuidado); de desvio de saúde (recidivas das úlceras, dor crônica, infecção, integridade da pele afetada pelo fluxo sanguíneo diminuído nas extremidades, deambulação prejudicada e comprometimento da marcha).

Déficits de Autocuidado Universais

Com relação ao déficit de sociabilidade prejudicada, as mulheres podem vivenciar mudanças no cotidiano imposta pela presença da úlcera, ocasionando isolamento e sofrimento. A úlcera limita as relações sociais em diferentes contextos, na convivência familiar, educacional e laboral. O êxito no convívio interpessoal será influenciado pelo nível de dependência, dor, odor, mobilidade, percepção sobre a autoimagem, autoestima e qualidade de vida (77 Silva MH, Jesus MCP, Oliveira DM, Merighi MAB. Unna's boot: experience of care of people with venous ulcers. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017[cited 2015 Nov 15];70(2):349-56. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0219
http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016...
-88 Santos W, Fuly P. Association analysis among odor, exudate and social isolation in patients with neoplastic wounds. Rev Enferm UFPE[Internet]. 2015[cited 2017 Jul 24];9(4):7497-500. Available from: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/7489
http://www.revista.ufpe.br/revistaenferm...
).

Outro fator que afeta a sociabilidade e o autoisolamento é o desconforto ocasionado pelos odores da úlcera, a exsudação excessiva e recorrente, que provocam sentimentos como estresse e angústia. O direcionamento de olhares de terceiros para as pernas das afetadas, mesmo com o uso de calças, gera mal-estar e leva as mulheres ao afastamento social e familiar, além da degradação da qualidade de vida (88 Santos W, Fuly P. Association analysis among odor, exudate and social isolation in patients with neoplastic wounds. Rev Enferm UFPE[Internet]. 2015[cited 2017 Jul 24];9(4):7497-500. Available from: http://www.revista.ufpe.br/revistaenfermagem/index.php/revista/article/view/7489
http://www.revista.ufpe.br/revistaenferm...
).

Quanto à alimentação, a maioria das mulheres do estudo estava sem acompanhamento nutricional, um fator indispensável para a presença de recidivas e para a cura. Também foi identificado um desconhecimento do tipo de alimentação adequada para a manutenção das necessidades corporais e para a cicatrização. Esses aspectos podem ser influenciados por questões de: condição socioeconômica; falta de acompanhamento com profissional nutricionista; episódios de dor prolongado que leva a inapetência; crenças e tabus sobre determinados tipos de alimentos e sua influência para as recidivas.

O equilíbrio nutricional influencia no processo de cicatrização, sendo fundamental desconstruir mitos e tabus alimentares socialmente construídos relacionados à úlcera. As participantes relatam não fazer ingestão de peixes, fígado, ovo e algumas verduras, por serem considerados prejudiciais à saúde (“reimosas”). O consumo diário de proteínas auxilia na epitelização, e a ingestão de vitamina A atua nos mecanismos de defesa. A ingestão de zinco, suplementos orais de proteínas, aminoácidos e minerais de forma moderada, pode contribuir para a cicatrização (99 Soriano JV, Pérez EP. Nutrition and chronic wounds. Technical Document Series GNEUPP nº 12 [Internet]. National Group for the Study and Advice on Pressure Ulcers and Chronic Wounds. Logroño. 2011[cited 2017 Feb 24]. Available from: http://gneaupp.info/wp-content/uploads/2014/12/nutricao-e-feridas-cronicas.pdf
http://gneaupp.info/wp-content/uploads/2...
). Ao considerar erroneamente que alimentos como frango, ovos e peixe são prejudiciais, as participantes ingerem alimentos em qualidade insuficiente de proteínas para as suas necessidades alimentares.

As carências nutricionais afetam a saúde da pele e são evidenciadas pela ingestão insuficiente de líquido e índice de massa corporal (IMC) menor que 20 Kg/m2 ou igual ou maior que 25 kg/m2, o que inibe a cura (99 Soriano JV, Pérez EP. Nutrition and chronic wounds. Technical Document Series GNEUPP nº 12 [Internet]. National Group for the Study and Advice on Pressure Ulcers and Chronic Wounds. Logroño. 2011[cited 2017 Feb 24]. Available from: http://gneaupp.info/wp-content/uploads/2014/12/nutricao-e-feridas-cronicas.pdf
http://gneaupp.info/wp-content/uploads/2...
).

O repouso foi considerado um déficit que requer atenção e cuidado durante todo o processo de adoecimento. É recomendado evitar ficar durante muito tempo em pé e elevar a perna de maneira que esteja superior à altura do quadril, pois favorece o retorno venoso (1010 Barbosa JAG, Campos LMN. Guidelines for treatment of venous ulcer. Enferm Glob [Internet]. 2010[cited 2016 Mar 02];20:1-2. Available from: http://scielo.isciii.es/scielo.php?pid=S1695-61412010000300022&script=sci_arttext&tlng=pt
http://scielo.isciii.es/scielo.php?pid=S...
).

A inexistência do repouso, sobretudo quando associada à ausência de outras medidas de cuidado, dificulta a cicatrização. Neste estudo, a falta de repouso foi influenciada como um importante marcador social e de gênero, por tratar-se de mulheres adultas que tendem a exercer autocobrança em termos de sua capacidade produtiva. Todas relataram que, uma vez iniciado o processo de cicatrização, voltavam para as tarefas domésticas, impedindo oportunidades para descanso.

Em relação à incapacidade para realização das atividades cotidianas, as mulheres destacaram limitações impostas pela DF e pela UP que interferem em suas atividades produtivas, em consequência da fadiga, dores e mal-estar.

A dificuldade de equilibrar-se é caracterizada por uma sensação angustiante e um importante complicador para as atividades diárias e para capacidade funcional, exacerbada pela presença da dor crônica. A alteração da mobilidade, diante da existência de uma úlcera, se traduz pelo isolamento social e a incapacidade de vestir roupas, andar, tomar banho de chuveiro com a preocupação em não molhar curativos. Outro fator prejudicial à mobilidade é o desconforto causado pelo edema, o exsudato e o medo de traumas que podem contribuir para o início de novas úlceras (1111 Malaquias SG, Bachion MM, Martins MA, Nunes CAB, Torres GV, Pereira LV. Impaired tissue integrity, related factors and defining characteristics in persons with vascular ulcers. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2014[cited 2017 Apr 04];23(2):434-42. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072014001090013
http://dx.doi.org/10.1590/0104-070720140...
).

Déficits de Autocuidado de Desenvolvimento

A internação frequente causa uma ruptura no convívio social, afastando as mulheres das atividades habituais. Um estudo Nigeriano (1212 Adegoke SA, Abioye-Kuteyi EA, Orji EO. The rate and cost of hospitalisation in children with sickle cell anaemia and its implications in a developing economy. Afr Health Sci [Internet]. 2014[cited 2016 Apr 22];14(2):475-80. Available from: http://dx.doi.org/10.4314/ahs.v14i2.27
http://dx.doi.org/10.4314/ahs.v14i2.27...
) mostrou que as pessoas com DF dispensam, anualmente, 1.056 dias para o cuidado à saúde. O tempo de permanência hospitalar variou de 1 a 52 dias. Outro estudo no Brasil (1313 Loureiro MM, Rozenfeld S. Epidemiology of sickle cell disease hospital admissions in Brazil. Rev Saúde Pública [Internet]. 2005[cited 2017 Jul 24];39(6):943-49. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102005000600012
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-89102005...
) aponta para um tempo de permanência de 5 dias. Esse dado pode estar relacionado às manifestações agudas como a crise dolorosa. No presente estudo, os resultados nos permitem concluir que as internações por UP, dada à condição crônica, foi superior a 120 dias e ultrapassou o tempo de permanência referida na literatura para DF.

O período de internamento impacta nas relações sociais e no processo de autonomia das mulheres. A convivência habitual com o grupo de familiares e amigos é interrompida abruptamente e necessita compor novos vínculos até a recuperação. Vale ressaltar que, mesmo com o longo período de hospitalização, muitas vezes as úlceras não atingem a total cicatrização, gerando frustração e perda de esperança.

A baixa escolaridade, que foi observada entre as participantes, é um aspecto que produz déficit de conhecimento para o autocuidado e para o cumprimento do plano terapêutico, que inclui o curativo, medidas de repouso e proteção da pele.

Devido às manifestações clínicas que exigem internação, as pessoas com DF apresentam inúmeras dificuldades para a continuidade dos estudos. É comum demonstrarem baixo nível de escolaridade, o que influencia para um diminuto no desempenho e frequência, perda de ano escolar e até abandono. A continuidade dos estudos se torna complexa. Pessoas com a DF podem apresentar até 50% a mais de faltas quando comparadas aos estudantes sem a doença (1414 Holanda ER, Collet N. The difficulties of educating children with chronic illness in the hospital context. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011[cited 2017 Apr 04];5(2):381-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/en_v45n2a11.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/en...
). As estratégias pedagógicas durante as hospitalizações (1414 Holanda ER, Collet N. The difficulties of educating children with chronic illness in the hospital context. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2011[cited 2017 Apr 04];5(2):381-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v45n2/en_v45n2a11.pdf
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) devem contemplar a flexibilidade e a individualidade em função das manifestações clínicas e tempo de duração das internações, devendo ultrapassar as metodologias tradicionais existentes e envolver estratégias avaliativas inovadoras.

Déficits de Autocuidado de Desvio de Saúde

As recidivas, muito frequentes no cotidiano de pessoas com UP, geralmente acontecem após um período de cicatrização. A prevenção depende do seguimento às recomendações de autocuidado, alimentação adequada e controle da doença. Diferentemente do perfil de pessoas com úlceras de outras etiologias, que são predominantes em idade superior a 60 anos, na DF, as úlceras acometem jovens em plena capacidade funcional, o que é um fator que dificulta a adesão às medidas preventivas.

A condição recorrente e o longo tempo para a cicatrização das úlceras impactam na vida social, econômica e na autonomia das mulheres. Quando não manuseadas corretamente, aproximadamente 30% das úlceras venosas cicatrizadas recorrem no primeiro ano e essa taxa sobe para 78% após dois anos (1515 Abbade LPF, Lastória S. Management of patients with venous ulcers. An Bras Dermatol [Internet]. 2006 [cited 2017 Mar 14];81(6):509-22. Available from: http://www.scielo.br/pdf/abd/v81n6/v81n06a02.pdf
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).

A dor foi um sintoma expressivo no relato das mulheres, que possuem experiências dolorosas agudas e crônicas desde a infância. O principal motivo para o surgimento desse desconforto é o resultante de episódios de vaso-oclusão, hipóxia tecidual e a infecção local. A dor, quando no leito da úlcera, pode ser caracterizada por infecção, presença de biofilme, necrose, aderência de coberturas ou estímulos nocivos na lesão. As narrativas mostraram que a experiência dolorosa resulta na redução e na dificuldade para se alimentar até sua estabilização, uso demasiado de medicamentos, mudança na aparência física e no estado geral, como a palidez intensa e a icterícia, consecutiva da anemia.

A dor pode ser expressa de forma aguda e crônica, seguida de febre, edema e calor na área, que poderá durar dias ou semanas. O evento é caracterizado pela intensa e contínua isquemia na microcirculação com a presença de componentes neuropáticos, ocasionando sensações como a queimação e dormência (1616 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Hospitalar e de Urgência. Doença falciforme: enfermagem nas urgências e emergências: a arte de cuidar. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.). Um estudo clínico com três pacientes em um centro especializado em DF nos Estados Unidos mostrou um aumento progressivo da dor em úlceras mesmo pequenas e um uso constante de opioides (1717 Minniti CP, Kato GJ. How we treat sickle cell patients with leg ulcers. Am J Hematol [Internet]. 2016[cited 2016 Apr 09];91(1):22-30. Available from: http://dx.doi.org/10.1002/ajh.24134
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). Episódios dolorosos podem ocorrer vigorosamente na área perilesional sete dias antes de sua recorrência.

A infecção é a causa mais comum de morbiletalidade na DF e pode acarretar a morte em até 12 horas (1616 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Hospitalar e de Urgência. Doença falciforme: enfermagem nas urgências e emergências: a arte de cuidar. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.). Desde muito cedo, as mulheres vivenciam processos infecciosos, tanto no leito da úlcera quanto em função da susceptibilidade causada pela DF, a exemplo do Streptococcus pneumoniae e Haemophilus influenzae. A osteomielite é também uma significativa causa de infecção que potencializa a dor e foi um fator relatado pelas participantes (11 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Especializada. Úlceras: prevenção e tratamento. Brasília: Ministério da Saúde; 2013.). Diante disso, percebemos a importância de realizar medidas assépticas ao fazer o curativo para prevenir novas infecções.

Sinais como aumento da dor, rubor, calor e febre podem ser sugestivos de infecção local ou sistêmica e exigem avaliação constante. Um estudo de revisão sobre as intervenções para o tratamento de UP em pessoas com DF mostrou que o processo de infecção ou de colonização têm como causadores mais comuns os microorganismos Staphylococcus aureus e Pseudomonas aeruginosa (1818 Carvajal AJM, Madden JMK, Zapata MJM. Interventions for treating leg ulcers in people with sickle cell disease. Cochrane Database Syst Rev [Internet]. 2014[cited 2017 Nov 09];12:CD008394. Available from: http://dx.doi.org/10.1002/14651858.CD008394.pub3
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).

O esquema vacinal deve seguir o calendário específico para pessoas sem doença crônica, incluindo a hepatite A, antipneumocócica 23, antimeningocócica e anti-haemophilus influenza. Além disso, deve ser observada a atualização da antitetânica, por conta da UP (1919 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de normas e procedimentos para vacinação. Brasília: Ministério da Saúde; 2014.).

Assim, é fundamental a conscientização sobre a imunização, orientação para o autocuidado e acompanhamento do cartão vacinal. Neste estudo, a maioria das participantes não reconhece a vacinação como um importante componente de autocuidado e de redução da mortalidade.

Em relação à pele, percebemos a integridade prejudicada, evidenciada pela presença do eczema em consequência do extravasamento de proteínas para o espaço subcutâneo, gerando hiperemia intensa, prurido e ressecamento. Outro fator que pode causar alteração na característica da pele é a alergia aos componentes das terapias para tratar a úlcera. A circulação alterada e ingestão nutricional insuficiente de líquidos também acarretam prejuízos à sua integridade.

A circulação ineficiente devido ao extravasamento de hemácias para o interstício causa a hiperpigmentação ou dermatite ocre. O fluxo sanguíneo diminuído e a baixa oxigenação pelas hemácias falcizadas torna difícil a perfusão tissular e inibe a cicatrização. A circulação prejudicada causa lesões nas camadas da pele provocando a úlcera. As alterações visíveis são a hiperemia, edema, diminuição dos pulsos nas extremidades, palidez à elevação das pernas, hemossiderose e hipotricose (1111 Malaquias SG, Bachion MM, Martins MA, Nunes CAB, Torres GV, Pereira LV. Impaired tissue integrity, related factors and defining characteristics in persons with vascular ulcers. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2014[cited 2017 Apr 04];23(2):434-42. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0104-07072014001090013
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).

A capacidade funcional em pessoas com úlceras crônicas se torna prejudicada e compromete a autonomia, qualidade de vida, bem-estar e geram dependência, além de ocasionar impacto para a autoestima e impedir a realização de ações cotidianas para manutenção da saúde e das necessidades básicas (77 Silva MH, Jesus MCP, Oliveira DM, Merighi MAB. Unna's boot: experience of care of people with venous ulcers. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017[cited 2015 Nov 15];70(2):349-56. Available from: http://dx.doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0219
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).

A rigidez articular influencia a locomoção, inibe o funcionamento e o retorno venoso e, consequentemente, retarda a cicatrização. A anquilose completa e permanente transforma o estado das usuárias para uma condição incurável ao limitar e incapacitar a ação dos músculos da panturrilha. Pessoas com úlcera demonstram uma redução da força muscular, capacidade funcional e amplitude de movimento, resultando nos piores níveis de qualidade de vida (2020 Lopes CR, Figueiredo M, Ávila AM, Soares LMBM, Dionisio VC. Evaluation of limitations of venous ulcers in legs. J Vasc Bras [Internet]. 2005[cited 2016 Apr 20];2013;12(1):5-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/jvb/v12n1/en_03.pdf
http://www.scielo.br/pdf/jvb/v12n1/en_03...
).

Essa condição reflete negativamente na autoestima e na autoimagem que as mulheres constroem. Conviver com a úlcera traz repercussões irreparáveis, apoiada na dificuldade de mobilidade, aceitação do corpo e da imagem corporal.

A discussão sobre as demandas de pessoas com UP e DF pode contribuir para o planejamento e para a execução das atividades das enfermeiras.

Nessa lógica, as participantes apresentam muitas necessidades e revelam déficits de autocuidado importantes. Isso requer atuação da enfermeira, desde o cuidado às úlceras aos aspectos sociais, econômicos, as vulnerabilidades e a reinserção ao convívio social e familiar.

Limitações do estudo

Perceberam-se algumas limitações relativas ao tempo de desenvolvimento do estudo; a inclusão de mais uma etapa na pesquisa, como uma oficina para as enfermeiras do serviço para subsidiar o cuidado às mulheres com UP e DF, sob uma perspectiva que ultrapasse o tecnicismo e contemple o cuidado integral, as questões de gênero e os impactos do racismo institucional para a qualidade de vida das entrevistadas.

Contribuições para a área da enfermagem, saúde ou políticas públicas

As enfermeiras estão ligadas diretamente ao cuidado e a promoção da saúde. Desse modo, reconhecer os déficits de autocuidado de mulheres com UP secundária à DF para direcionar a consulta de enfermagem se faz necessário. Além de viabilizar uma reflexão sobre as condutas no serviço e melhorias na assistência prestada, visando o cuidado integral, a ordenação e manutenção da rede de cuidados e as práticas preventivas. Assim, essas ações oportunizam preencher lacunas de pesquisas direcionadas à temática, com o objetivo de garantir a equidade, o acesso ao serviço de saúde e a integralidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O desenvolvimento de UP na DF é uma manifestação clínica, habitualmente observada, que gera incapacidade e compromete a saúde física, social e mental das pessoas. Os principais fatores de risco estão associados à vasculopatia, hipóxia, isquemia, aumento da viscosidade e obstrução vascular.

Com base na magnitude desse agravo, neste estudo, a utilização da TAC e do TDAC de Orem foi útil, posto que permite compreender quais tipos de intervenções de enfermagem devem ser dispensadas para garantir a autonomia e o próprio cuidado.

Os déficits mais relevantes nas mulheres com UP decorrente da DF estão relacionados à sociabilidade prejudicada; ingestão alimentar ineficaz e/ou insuficiente para a cicatrização das úlceras; estado crônico que afeta a mobilidade; recidivas das úlceras; dor crônica devido à vaso-oclusão e a isquemia além da integridade da pele afetada pelo fluxo sanguíneo diminuído nas extremidades e cartão de vacina desatualizado.

Foi percebido que o cuidado fragmentado interferiu para a recuperação dos déficits de autocuidado das mulheres. Além disso, a intervenção da enfermeira, restrita à realização do curativo e sem contemplar aspectos que vislumbrem o cuidado integral, é obstáculo a ser superado.

Espera-se que a identificação dos requisitos e déficits de AC venham auxiliar as enfermeiras e outros profissionais de saúde a modificar as ações de cuidado junto às pessoas com UP e DF, nos diversos níveis de atenção à saúde, com vistas a fortalecer a autonomia e a liberdade para o AC.

  • *
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2018
  • Aceito
    26 Ago 2018
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