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Desafios da enfermagem brasileira para a equidade e a sustentabilidade

O 71º Congresso Brasileiro de Enfermagem, sediado em Manaus, AM, abordou tópicos candentes relacionados ao propósito central - Enfermagem e os sentidos da Equidade - desde a Conferência Magna de Abertura, proferida pelo ilustre Professor Jaime Breilh, referência mundial na área de epidemiologia crítica, passando pelas diversas mesas redondas, simpósios, seminários, palestras e temas livres.

Em todo o mundo, observa-se interesse crescente em adotar práticas capazes de inovar e reformar sistemas de saúde para atender às necessidades de saúde dos grupos sociais dos territórios, que vêm se modificando em razão das mudanças demográficas, epidemiológicas e ecológicas-ambientais. Esforços de diferentes países em aprimorar os sistemas de saúde têm resultados bastante expressivos para aqueles que adotaram a Atenção Primária à Saúde (APS) como conceito e prática para a inclusão da quase totalidade da população.

Entendemos que quanto menos disparidades entre grupos sociais as sociedades, maior a reposta às ações de saúde. Porém, quanto maior o gap nas condições de vida cotidiana das populações, maiores são os desafios para formuladores e executores das políticas públicas em saúde. Isto ocorre porque a resposta às intervenções em saúde depende primordialmente da compreensão ou, para usar a palavra atualmente em voga, da adesão às propostas cuidativas ou terapêuticas(11 Egry EY, Fonseca RMGS, Oliveira MAC, Bertolozzi MR. Nursing in Collective Health: reinterpretation of objective reality by the praxis action. Rev Bras Enferm. 2018;71:710-5. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0677
https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0...
).

Por isso, em nosso entendimento, a saúde é totalmente dependente da qualidade de vida, que, por sua vez, é dependente da produção e da reprodução social dos grupos sociais de nosso território(11 Egry EY, Fonseca RMGS, Oliveira MAC, Bertolozzi MR. Nursing in Collective Health: reinterpretation of objective reality by the praxis action. Rev Bras Enferm. 2018;71:710-5. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0677
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).

A Agenda 2030, da qual nosso país é subscritor, contém um desafio imenso, mesmo se, ao olhar nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, nos ativermos somente àqueles diretamente relacionados à saúde. Podemos dizer que alguns grupos sociais conseguirão facilmente atingir muitos dos ODS, enquanto outros não têm a menor chance. Isto ocorre, porque a deterioração das condições de vida e, portanto, da saúde de nossa população, é tal que temos um contingente do tamanho da Bélgica de pessoas miseráveis, ou seja, abaixo da linha de pobreza, vivendo com menos de 145 reais mensais(22 Organização das Nações Unidas. Assembleia Geral das Nações Unidas. Transforming our world: the 2030 agenda for sustainable development. Draft for consultation [Internet]. ONU. 2015[cited 2020 Jan 30]. Available from: http://www.who.int/hrh/resources/glob-strat-hrh_workforce2030.pdf?ua=1
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).

Um grande desafio para o acolhimento das necessidades e o enfrentamento das vulnerabilidades está relacionado à força de trabalho em saúde. A escassez de profissionais e sua má distribuição geográfica constituem um grande problema, agravado pela formação insuficiente para provimento de cuidados de saúde com qualidade. Ademais, tudo isto deve de alguma maneira coadjuvar para garantir a sustentabilidade, ou seja, olhar de maneira profunda a Agenda 2030(22 Organização das Nações Unidas. Assembleia Geral das Nações Unidas. Transforming our world: the 2030 agenda for sustainable development. Draft for consultation [Internet]. ONU. 2015[cited 2020 Jan 30]. Available from: http://www.who.int/hrh/resources/glob-strat-hrh_workforce2030.pdf?ua=1
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-33 Nascimento AB, Egry EY. Os planos municipais de saúde e as potencialidades de reconhecimento das necessidades em saúde: estudo de quatro municípios brasileiros. Saúde Soc. 2017;26(4):1-11. doi: 10.1590/s0104-12902017170046
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).

Entretanto, a própria sustentabilidade, da forma como majoritariamente é compreendida, é sustentadora da iniquidade, da desigualdade, da atual situação de acúmulo da riqueza produzida por pouquíssimos, e, por isso mesmo, também é sustentadora do capitalismo neoliberal(33 Nascimento AB, Egry EY. Os planos municipais de saúde e as potencialidades de reconhecimento das necessidades em saúde: estudo de quatro municípios brasileiros. Saúde Soc. 2017;26(4):1-11. doi: 10.1590/s0104-12902017170046
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-44 Peduzzi M, Aguiar C, Lima AMV, Montanari PM, Leonello VM, Oliveira MR. Expansion of the interprofessional clinical practice of Primary Care nurses. Rev Bras Enferm. 2019;72(Sup1):114-21. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0759
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Ainda precisamos adensar e avançar, em primeiro lugar, no reconhecimento da pobreza como uma questão estrutural das sociedades, que, diariamente, “fabrica” e mantém a pobreza ao não compreender os processos de produção social que resultam em iniquidades tanto na inserção quanto na partilha dos bens socialmente produzidos. A ultra exploração do capital que ocorre de forma legal (mas não moral) no neoliberalismo que grassa no país não problematiza e, portanto, não consegue superar as desigualdades.

Se o setor saúde, incluída a enfermagem, olhar para as raízes da produção das desigualdades como algo estrutural e não como algo contingencial, poderia, de partida, construir e fazer valer os instrumentos para a superação. É preciso formar profissionais que compreendam a origem da fome, da pobreza e da má qualidade de vida que resultarão em má qualidade em termos de saúde. Não basta melhorar a clínica, é preciso investir na qualificação dos profissionais da enfermagem para melhorar a intervenção nos grupos sociais vulneráveis.

Corburn afirma que:

Mais pessoas vivem nas cidades do que em qualquer outro momento da história da humanidade e as desigualdades na saúde estão aumentando. As iniquidades em saúde são diferenças evitáveis nas condições sociais, ambientais e políticas que moldam a morbimortalidade e sobrecarregam desproporcionalmente os pobres, as minorias raciais, étnicas e religiosas e os migrantes. Ao vincular o local urbano e as iniquidades em saúde, a pesquisa e a ação colocam em relevo os desafios de alcançar a justiça ambiental urbana(55 Corburn J. Urban place and health equity: critical issues and practices. Int J Environ Res Public Health 2017, 14, 117; doi:10.3390/ijerph14020117
https://doi.org/10.3390/ijerph14020117...
).

Ademais, nunca é demais lembrar de algo que nos é tão caro, porque somos uma profissão formada por mulheres que, neste país e em muitos outros também, sofrem cotidianamente a subalternidade de gênero. Porém, nós preservamos também os estereótipos subalternizadores e, por isso mesmo, perpetuadores dessa condição, ao naturalizar a subalternidade, tanto de gênero, quanto de raça/etnia e geração, entre outros.

Não será fácil nestes tempos, mas é absolutamente necessário compreender de onde nasce a subalternidade, quais os mecanismos envolvidos em sua manutenção e também quais lutas foram vitoriosas na superação de algumas das condições de gênero.

Os enfermeiros e as enfermeiras, os estudantes e as estudantes de graduação, os pós-graduandos e as pós-graduandas, as técnicas e os técnicos de enfermagem, os gerentes e as gerentes, todos nós temos de aprender que este é um dado da realidade que não se conseguem enfrentar apenas estudando maneiras de elucidar a violência doméstica, se não compreendermos que somos seres humanos portadores dos mesmos direitos(66 Bryant-Lukosius D, Martin-Misener R. ICN Policy Brief. Advanced Practice Nursing: an essential component of country level human resources for health. ICN [Internet]. 2016[cited 2020 Jan 30]. Available from: http://www.icn.ch/images/stories/documents/pillars/sew/HRH/ICN_Policy_Brief_6.pdf
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).

Acreditamos que está havendo uma mudança de paradigma: os seres humanos e o planeta. Na formação inicial e na sucessiva qualificação profissional, temos de problematizar o impacto causado por nossas ações cuidativas, desde os insumos utilizados, e orientar para uso de energia renovável e de produtos biodegradáveis. Por exemplo, mencionando apenas as formas de descarte, já existem estudos sobre o lixo produzido em instalações de saúde.

Nossa formação deve ter essa consciência ecológica: por que nos tempos de hoje as instituições pedem teses e dissertações impressas? Alguém já analisou o impacto disto? Quanto “cobramos” de aquecimento global ao fazer eventos que mobilizam milhares de pessoas que utilizam o transporte aéreo, o mais agressivo de todos? De que fonte de energia vem nossa eletricidade, tão importante para a manutenção dos equipamentos tanto hospitalares, de unidades básicas ou de escolas? Vamos construir novos equipamentos de ensino e de prestação de cuidado de saúde sem pensar em soluções melhores para isso?

Convido os leitores e as leitoras deste periódico a refletir sobre as maneiras de mudar o rumo das coisas para nós, para a população e para o mundo:

  • Vamos revisitar nossos currículos de formação de forma a abrigar transversalmente os conceitos de equidade e de sustentabilidade?

  • Vamos revisitar nossos protocolos e regulamentos do cuidado para abrigar a partilha das decisões sobre o cuidado e também o meio ambiente?

  • Vamos olhar com maior densidade para os grupos sociais que assistimos ou cuidamos ao invés de generalizar pela média os problemas, as necessidades em saúde e as vulnerabilidades?

  • Vamos dar voz e desenvolver a consciência crítica dos diferentes sujeitos dos nossos processos cuidativos, o que inclui pacientes, clientes, usuários e suas famílias, os grupos sociais e as coletividades?

  • E ao revisitar, vamos criar planos de ação baseados na realidade objetiva tanto de nosso objeto do cuidado quanto dos estudantes em formação e dos trabalhadores, para que sejamos capazes de traçar novos horizontes de superação mais críticos e reflexivos?

Vamos colocar em ação as propostas de mudança radical de nossas práticas e políticas da enfermagem e da saúde rumo à equidade e à sustentabilidade?

REFERENCES

  • 1
    Egry EY, Fonseca RMGS, Oliveira MAC, Bertolozzi MR. Nursing in Collective Health: reinterpretation of objective reality by the praxis action. Rev Bras Enferm. 2018;71:710-5. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0677
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0677
  • 2
    Organização das Nações Unidas. Assembleia Geral das Nações Unidas. Transforming our world: the 2030 agenda for sustainable development. Draft for consultation [Internet]. ONU. 2015[cited 2020 Jan 30]. Available from: http://www.who.int/hrh/resources/glob-strat-hrh_workforce2030.pdf?ua=1
    » http://www.who.int/hrh/resources/glob-strat-hrh_workforce2030.pdf?ua=1
  • 3
    Nascimento AB, Egry EY. Os planos municipais de saúde e as potencialidades de reconhecimento das necessidades em saúde: estudo de quatro municípios brasileiros. Saúde Soc. 2017;26(4):1-11. doi: 10.1590/s0104-12902017170046
    » https://doi.org/10.1590/s0104-12902017170046
  • 4
    Peduzzi M, Aguiar C, Lima AMV, Montanari PM, Leonello VM, Oliveira MR. Expansion of the interprofessional clinical practice of Primary Care nurses. Rev Bras Enferm. 2019;72(Sup1):114-21. doi: 10.1590/0034-7167-2017-0759
    » https://doi.org/10.1590/0034-7167-2017-0759
  • 5
    Corburn J. Urban place and health equity: critical issues and practices. Int J Environ Res Public Health 2017, 14, 117; doi:10.3390/ijerph14020117
    » https://doi.org/10.3390/ijerph14020117
  • 6
    Bryant-Lukosius D, Martin-Misener R. ICN Policy Brief. Advanced Practice Nursing: an essential component of country level human resources for health. ICN [Internet]. 2016[cited 2020 Jan 30]. Available from: http://www.icn.ch/images/stories/documents/pillars/sew/HRH/ICN_Policy_Brief_6.pdf
    » http://www.icn.ch/images/stories/documents/pillars/sew/HRH/ICN_Policy_Brief_6.pdf

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Abr 2020
  • Data do Fascículo
    2020
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