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O sentido do cuidado à criança hospitalizada: vivências de profissionais de enfermagem

RESUMO

Objetivo:

Compreender o sentido do cuidado à criança hospitalizada para os profissionais de enfermagem de uma unidade pediátrica.

Método:

Estudo fenomenológico, fundamentado na fenomenologia existencial de Martin Heidegger. Foram entrevistados dez profissionais de enfermagem com a questão norteadora: “O que é cuidado à criança hospitalizada para você? Conte-me, em detalhes, sua experiência em cuidar da criança hospitalizada.”

Resultados:

O sentido do cuidado à criança hospitalizada se dá entre a ocupação e as diversas formas de preocupação. Ocupando-se/preocupando-se nos modos de ser da cotidianidade, os profissionais tendem à impropriedade em busca da mediania e do nivelamento de todas as possibilidades de ser. Porém, quando extrapolam a tranquilização e o ficar preso em si mesmo, atingem a empatia, o respeito e a indulgência.

Considerações finais:

É necessário repensar o ensino e a prática do cuidado, para que seja oferecido um cuidado autêntico à criança e à sua família no contexto da hospitalização.

Descritores:
Enfermagem Pediátrica; Cuidado da Criança; Criança Hospitalizada; Profissionais de Enfermagem; Pesquisa Qualitativa

ABSTRACT

Objective:

to understand the meaning of the care of hospitalized children for the nursing professionals of a pediatric unit.

Method:

phenomenological study, based on the existential phenomenology of Martin Heidegger. Ten nursing professionals were interviewed with the guiding question: “What is the care of hospitalized children for you? Tell me, in detail, your experience with taking care of hospitalized children.”

Results:

the meaning of the care of hospitalized children materializes between the profession and the various ways of preoccupation. By engaging in/worrying about the ways of being of everyday life, the professionals tend to improperness when trying to mediate and level all possibilities of being. However, when they extrapolate reassurance and do not get caught up in themselves, they achieve empathy, respect, and indulgence.

Final Considerations:

it is necessary to reassess the teaching and practice of care, so that authentic care is offered to children and their families in the context of hospitalization.

Descriptors:
Pediatric Nursing; Child Care; Child, Hospitalized; Nurse Practitioners; Qualitative Research

RESUMEN

Objetivo:

comprender el significado del cuidado del niño hospitalizado para los profesionales de enfermería de una unidad pediátrica.

Método:

estudio fenomenológico, con base en la fenomenología existencial de Martin Heidegger. Se entrevistaron diez profesionales de enfermería a partir de la siguiente cuestión orientadora: “¿Qué es para usted el cuidado del niño hospitalizado? Cuénteme con detalles su experiencia en cuidar de un niño hospitalizado”.

Resultados:

el significado del cuidado del niño hospitalizado se relaciona con la ocupación y las diversas formas de preocuparse. Al ocuparse/ preocuparse en los modos de ser de la cotidianidad, los profesionales tienden a la impropiedad en busca de la medianía y de la nivelación de todas las posibilidades de ser. Pero cuando extrapolan la tranquilidad y el ensimismamiento, alcanzan la empatía, el respeto y la indulgencia.

Consideraciones Finales:

es necesario repensar la enseñanza y la práctica del cuidado, para que se ofrezca un cuidado auténtico al niño y a su familia en el contexto de hospitalización.

Descriptores:
Enfermaría Pediátrica; Cuidado del Niño; Niño Hospitalizado; Enfermeras Practicantes; Investigación Cualitativa

INTRODUÇÃO

O cuidado sempre esteve presente na história do ser humano, a fim de preservar a espécie, sendo também compreendido como uma forma de viver, de ser e de se expressar. Ele é considerado a essência da enfermagem (11 Waldow VR. Enfermagem: a pràtica do cuidado sob o ponto de vista filosófico. Investig Enferm. Imagen Desarr. 2015;17(1):13-25. doi: 10.11144/Javeriana.IE17-1.epdc
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), devendo ser construído na, com e para as relações intersubjetivas, entre as pessoas que cuidam e que são cuidadas, no intuito de proteger, promover e preservar a humanidade daquele que recebe o cuidado (22 Cestari VRF, Moreira TMM, Pessoa VLMP, Florêncio RS, Silva MRF, Torres RAM. The essence of care in health vulnerability: a Heideggerian construction. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017;70(5):1112-6. [Thematic Edition "Good practices and fundamentals of Nursing work in the construction of a democratic society"] doi: 10.1590/0034-7167-2016-0570
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-33 Ayres JRCM. Caution: work, interaction and knowledge in health practices. Rev Baiana Enferm. 2017;31(1):e21847. doi: 10.18471/rbe.v31i1.21847
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).

Os primeiros registros de cuidados de enfermagem prestados à criança são de 1860. As primeiras hospitalizações infantis buscavam, além de curar as doenças, prevenir a transmissão de infecções; portanto, mantinham as crianças em isolamento, separadas de suas famílias (44 Miranda AR, Oliveira AR, Toia LM, Stucchi HKO. A evolução dos modelos de assistência de enfermagem à criança hospitalizada nos últimos trinta anos: do modelo centrado na doença ao modelo centrado na criança e família Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba [Internet]. 2015 [cited 2015 Feb 20];17(1):5-9. Available from: http://revistas.pucsp.br/index.php/RFCMS/article/view/12890
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).

A compreensão de que a família é fundamental, de que exerce forte influência sobre a saúde da criança e de que o isolamento social é um fator de risco para essa população, surgiu somente na década de 1960 (44 Miranda AR, Oliveira AR, Toia LM, Stucchi HKO. A evolução dos modelos de assistência de enfermagem à criança hospitalizada nos últimos trinta anos: do modelo centrado na doença ao modelo centrado na criança e família Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba [Internet]. 2015 [cited 2015 Feb 20];17(1):5-9. Available from: http://revistas.pucsp.br/index.php/RFCMS/article/view/12890
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). No Brasil, somente em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, as crianças passaram a ter o direito legal de serem acompanhadas por um responsável durante o processo de hospitalização (55 Presidência da República (BR). Lei nº 8069, de 13 de julho de 1990: dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências [Internet]. Diário Oficial da União, 13 jul. 1990. Brasília; 1990 [cited 2016 Aug 30]. Available from: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm
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).

Atualmente, por serem inegáveis os benefícios do cuidado centrado no paciente e na família, defende-se a construção de um cuidado com base na assistência integral, em parceria com a família, compreendendo-a enquanto unidade de cuidado, isto é, que necessita, de igual forma, ser cuidada (44 Miranda AR, Oliveira AR, Toia LM, Stucchi HKO. A evolução dos modelos de assistência de enfermagem à criança hospitalizada nos últimos trinta anos: do modelo centrado na doença ao modelo centrado na criança e família Rev Fac Ciênc Méd Sorocaba [Internet]. 2015 [cited 2015 Feb 20];17(1):5-9. Available from: http://revistas.pucsp.br/index.php/RFCMS/article/view/12890
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,66 Pacheco STA, Rodrigues BMRD, Dionísio MCR, Machado ACC, Coutinho KAA, Gomes APR. Family-centered care: applications by nursing in the context of the hospitalized child [Internet]. Rev Enferm UERJ. 2013 [cited 2016 May 19];21(1):106-12. Available from: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/6443
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
-77 Tallon MM, Kendall GE, Snider PD. Rethinking family-centered care for the child and family in hospital. J Clin Nurs. 2015;24(9-10):1426-35. doi: 10.1111/jocn.12799
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).

Entretanto, apesar disso, a equipe de enfermagem por vezes ainda tem reconhecido o cuidado, principalmente, como a execução de procedimentos, centrado nas ações técnicas, seguindo o modelo biomédico e com foco apenas e/ou sobretudo na criança, sem considerar a família como parte desse cuidado (88 Macedo IF, Souza TV, Oliveira ICS, Cibreiros AS, Morais RCM, Vieira RFC. Nursing team's conceptions about the families of hospitalized children. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017;70(5):904-11. [Thematic Edition "Good practices and fundamentals of Nursing work in the construction of a democratic society"] doi: 10.1590/0034-7167-2016-0233
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).

Partindo-se, portanto, da premissa de que o cuidado é a essência da enfermagem e de que seu real sentido nem sempre é bem compreendido e exercido pelos profissionais de enfermagem, acredita-se que aprofundar a discussão dessa temática, a partir do olhar fenomenológico, poderá trazer elementos importantes para ampliar as possibilidades de reflexão e de abordagem dessa problemática no âmbito da assistência, do ensino e da pesquisa em saúde.

OBJETIVO

Compreender o sentido do cuidado à criança hospitalizada para os profissionais de enfermagem de uma unidade pediátrica.

MÉTODO

Aspectos éticos

O estudo foi aprovado pela Diretoria de Enfermagem do Serviço de Enfermagem Pediátrica do hospital onde o estudo foi realizado; e pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). A assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi solicitada, no dia da entrevista, àqueles que aceitaram participar do estudo. Aos participantes foram assegurados o sigilo e o anonimato, sendo seus nomes substituídos por nomes de flores.

Durante o desenvolvimento da pesquisa, foram respeitados os aspectos éticos para pesquisas envolvendo seres humanos preconizados pela resolução CNS/MS nº 466/12, da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) (99 Ministério da Saúde (BR). Resolução nº 466/12. Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e revoga as Resoluções CNS nos. 196/96, 303/2000 e 404/2008 [Internet]. Brasília; 2012 [cited 2016 Aug 30]. Available from: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/cns/2013/res0466_12_12_2012.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
).

Referencial teórico

Como referencial teórico, adotou-se conceitos essenciais da obra “Ser e Tempo”, de Martin Heidegger * * O referencial teórico exposto no método deste artigo é proveniente exclusivamente da obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger, referência de número 10. Optou-se por utilizar apenas a referência primária e não interpretações de outros autores sobre essa obra. . Sua busca incessante pelo sentido do ser culminou na diferenciação entre ente e Dasein. Por “ente” compreende-se tudo o que é real no mundo, o que somos cada vez nós mesmos. Já o Dasein é o único ente que possui a possibilidade-de-ser do perguntar/questionar — o ser humano (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

O Dasein se entende a si mesmo a partir de sua existência, que é a possibilidade de ser si mesmo ou não, podendo, entre essas possibilidades, escolher se ganhar ou se perder, agindo então na propriedade ou na impropriedade. Outra questão inerente ao Dasein é ser-em-um-mundo. Heidegger afirma que há uma multiplicidade de formas de ser-em-um-mundo, sendo algumas delas, como o produzir algo e o executar algo, um modo-de-ser do ocupar-se. Assim, a ocupação está relacionada ao ente e à usabilidade de instrumentos (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

Por outro lado, ser-no-mundo implica que o Dasein habite um mundo que é compartilhado, devendo ser-com outros; e, com esse outro, o Dasein não deve se ocupar, e sim se preocupar. Atuando no modo da preocupação, o Dasein pode atuar em seus modos negativos ou positivos (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

Os modos negativos da preocupação podem ir da deficiência à indiferença, sendo exemplos dessa forma de preocupação: o ser sozinho, o subsistir com o outro, o não estar nem aí para o outro. Heidegger lembra que o Dasein só será com o outro ao transpor a indiferença e atingir a empatia, que é um modo de ser-com-outro entendedor, que possibilita e constitui as relações (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

Com relação aos modos positivos, existe a preocupação antecipativa-libertatória, que ajuda o outro a obter transparência em sua preocupação, se tornando livre para ela; e a preocupação substitutiva dominadora, na qual o ser se incumbe pelo outro daquilo que ele deve se ocupar, fazendo com que ele se torne dependente e dominado (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

Outro ponto importante na relação do Dasein com o outro é que, nesse ser-com-outro, o Dasein acaba por se dissolver no modo-de-ser dos outros. Passa a fazer tudo como a-gente faz, a gostar do que a-gente gosta, mantendo todos numa mesma mediania. O modo-de-ser do a-gente ocorre na cotidianidade, sendo o falatório, a curiosidade e a ambiguidade fenômenos que fazem parte desse modo-de-ser (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

No falatório, o Dasein se expressa sem compreender o que diz e sem pretender que de fato o ouvinte participe. Ao ouvir, ouve somente mais ou menos. Dessa forma, a comunicação não ocorre pelo caminho da apropriação, e sim da difusão e da repetição.

A curiosidade, por sua vez, está intimamente ligada à visão/percepção. Nela, o Dasein não se ocupa de ver e entender, mas preocupa-se apenas em saber para se ter sabido. Juntos, o falatório e a curiosidade dão origem à ambiguidade, a qual cuida para que tudo o que a gente suspeitou ou falou, e que de fato se realizou, se torne algo desinteressante (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

Absorvido pelo mundo, sendo conduzido pelo falatório, curiosidade e ambiguidade, o Dasein decai no mundo, sendo os caracteres essenciais do decair: a tentação, a tranquilização, o estranhamento e o ficar preso em sim mesmo. Ser-no-mundo é por si só tentador, e a pretensão do tudo ter visto e do tudo ter entendido mantém o Dasein na decadência e lhe traz tranquilidade. Porém, o se comparar com tudo e o tudo entender leva o Dasein ao estranhamento e a uma extrema análise de si mesmo, fazendo com que ele, em sua mobilidade própria, fique preso em si mesmo (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

Tipo de estudo

Trata-se de um estudo fenomenológico. Enquanto movimento filosófico, a Fenomenologia pretende descrever o fenômeno tal qual ele aparece, reconhecendo a essência do ser, da vida e das relações (1111 Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Centauro; 2005.).

Procedimentos metodológicos

Considerando que o discurso é o modo de o sujeito colocar sua experiência rigorosamente como ela está acontecendo, o recurso metodológico utilizado para acessar o mundo dos profissionais de enfermagem foi a entrevista — a qual se trata de um encontro social que visa des-ocultar a visão tida por uma pessoa sobre determinada situação, de forma a possibilitar a obtenção de informações relevantes do mundo do outro, por meio de descrições que devem ser as mais detalhadas possíveis. É uma forma de acessar a verdade do existir do entrevistado, mediante uma linguagem na qual se somam seus pensamentos e suas ideias, pois sua fala nada mais é que seu pensamento (1111 Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Centauro; 2005.-1212 Paula CC, Padoin SMM, Terra MG, Souza IEO, Cabral IE. Modos de condução da entrevista em pesquisa fenomenológica: relato de experiência. Rev Bras Enferm. 2014;67(3):468-72. doi: 10.5935/0034-7167.20140063
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).

As entrevistas foram realizadas tendo a seguinte questão norteadora: “O que é cuidado à criança hospitalizada para você? Conte-me, em detalhes, sua experiência em cuidar da criança hospitalizada.”

Cenário do estudo

O estudo foi realizado em uma unidade de internação pediátrica de um Serviço de Enfermagem Pediátrica de um hospital público, de ensino, localizado no interior do estado de São Paulo, que atende crianças com doenças agudas e crônicas, em condições clínicas e/ou cirúrgicas, bem como suas famílias.

Fonte de dados

Participaram dez profissionais de enfermagem, sendo cinco enfermeiros (E) e cinco técnicos de enfermagem (TE). Três deles desenvolvem suas atividades no período da manhã, quatro no período da tarde e três no período noturno. Os entrevistados possuíam idade entre 24 e 52 anos, tempo de formação entre 3 e 26 anos, e o tempo de trabalho na unidade variou de 6 meses a 26 anos. O acesso aos participantes deu-se em duas fases. A primeira envolveu a escolha por conveniência (1313 Lakatos EM, Marconi MA. Técnicas de pesquisa. 8ª ed. São Paulo: Atlas; 2017.), e a segunda, o efeito bola de neve (1414 Vinuto J. A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto [Internet]. Temáticas. 2014 [cited 2017 Nov 23];22(44):203-20. Available from: https://www.ifch.unicamp.br/ojs/index.php/tematicas/article/view/2144
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). Dessa forma, a princípio foram convidados a participar os profissionais que a pesquisadora acreditou terem muito a contribuir com a pesquisa, sendo os demais convidados por indicação do profissional entrevistado anteriormente – e, também, em razão do desejo em participar da pesquisa, da disponibilidade de horário e do turno em que trabalhava, de modo a garantir profissionais de todos os horários.

A intencionalidade na escolha dos participantes vai além dos critérios de inclusão e exclusão, expressão inadequada para a pesquisa fenomenológica, pois a entrevista fenomenológica é um encontro social e existencial, o qual exige de ambos, pesquisador e participante, um posicionamento que obriga um a reconhecer a realidade do outro como sendo diferente da sua. Portanto, incluir um participante na pesquisa extrapola critérios rígidos/fechados, pois é necessária a compreensão empática deste outro que está diante de mim (1313 Lakatos EM, Marconi MA. Técnicas de pesquisa. 8ª ed. São Paulo: Atlas; 2017.).

Coleta e organização dos dados

As entrevistas ocorreram no 2º semestre de 2015. Com anuência dos participantes, foram gravadas e posteriormente transcritas na íntegra, sendo encerradas quando a saturação teórica foi atingida, ou seja, quando os discursos obtidos se mostraram suficientemente consistentes para desvelar o fenômeno em estudo (1515 Frank JR. I can not get no saturation: a simulation and guidelines for sample sizes in qualitative research. PLoS One. 2017;12(7):e0181689. doi: 10.1371/journal.pone.0181689
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).

Referencial metodológico e análise dos dados

Após obtenção dos discursos, buscou-se apreender a essência do fenômeno. Primeiramente, foram utilizadas as orientações de Martins & Bicudo (1111 Martins J, Bicudo MAV. A pesquisa qualitativa em psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Centauro; 2005.). Portanto, foi realizada leitura global do conteúdo total de todas as descrições dos sujeitos, seguida de uma releitura atentiva dos discursos até que fossem identificadas as informações significativas contidas neles, também nomeadas como unidades de significados.

A partir das unidades de significados, buscaram-se convergências e divergências entre elas, organizando-as em um texto único, sem dividi-lo por categorias temáticas, isto é, realizando-se uma síntese descritiva que abarcasse todos os resultados. A partir dessa síntese, elaborou-se um diálogo entre os discursos e as ideias heideggerianas (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.), incorporando as afirmações significativas atribuídas pelos sujeitos às suas experiências.

RESULTADOS

Ao buscar dar sentido ao cuidado de enfermagem oferecido às crianças hospitalizadas pelos profissionais de enfermagem, pode-se afirmar que o cerne do fenômeno transitou ora relacionado à ocupação, ora à preocupação. Os profissionais mostraram atuar no modo da ocupação ao enfatizarem os instrumentos, deixando o ser-criança em segundo plano:

É... mas eu acho que é isso. Cuidado com a higiene, punção, é higiene, é atenção de ficar verificando [...] os respiradores. Demanda bastante, a nebulização... tenda, esses detalhes tudo você tem que ficar atento o tempo todo. (Copo de Leite - TE)

Outro profissional também coloca que o número de crianças sob seu cuidado não permite o cuidar autêntico, sendo possível “cuidar” das crianças somente nos momentos em que há necessidade de realizar algum procedimento, de utilizar algum instrumento:

Porque, querendo ou não, como tem muita criança, aí às vezes você tem que fazer vários procedimentos, você acaba entrando lá pra cuidar da criança só no... “cuidar” [entrevistada faz sinal de entre aspas com a mão quando diz cuidar] na hora de fazer um exame, na hora de puncionar uma veia. (Amarilis - E)

No entanto, o cuidado, para Gérbera, deve ir além do físico, no modo da preocupação:

Então, para mim, o cuidado, o cuidado com a criança hospitalizada requer uma compreensão maior do que simplesmente ter aquele corpinho para cuidar. Nós temos que ver além disso. (Gérbera - E)

Os profissionais demonstraram atuar principalmente nos modos positivos da preocupação ao compreenderem a criança como um ser único que demanda cuidados diferenciados e que possui peculiaridades, como outras formas de comunicação:

Porque a gente sai um pouco só daquele técnico, a gente tem que aprender a brincar, a falar, a escutar, lidar com o choro, lidar com a dor dessa criança... (Íris - E)

Essa preocupação também foi demonstrada quando os profissionais verbalizaram respeitar as peculiaridades, individualidades e vontades da criança, apreendendo o processo de hospitalização como uma situação difícil para ela:

[...] eu brinco com a criança, eu trago no pátio, e se a criança não quer comer, eu tento fazer com que ela coma, contando história, cantando música... O pessoal até acha meio assim, mas eu acho que com a criança você tem que lidar assim, entendeu? Você tem que ser meio criança também para poder lidar com eles E eu acho que é isso que é importante. Então eu procuro assim entrar na deles. Se não quer comer lá dentro, ah, vamos lá fora. Não quer comer isso? Não. Ah, então vamos ver se tem outra coisa. Sempre tentando inovar, e contando história... brincando para ver se eles aceitam melhor o tratamento. Porque é difícil pra eles também. (Lírio - TE)

Reconheceram também que a hospitalização gera medo nas crianças, cabendo a eles minimizarem esses medos de forma a não causar mais danos e traumas:

Porque a criança não entende por que está ali. Eles sentem, como eu falei, eles sentem muito medo. Então acho que tentar minimizar da melhor forma possível esses medos, porque mais pra frente pode causar danos. Eles ficam supertraumatizados [...] na verdade, cada situação é uma situação, mas é ter esse cuidado sabe? De chegar de uma forma carinhosa, chegar com cuidado, é tentar fazer algumas coisas para promover algum conforto. (Amarílis - E)

Os modos positivos da preocupação também foram evidenciados quando os profissionais incluíram a família como alguém que necessita de cuidado, colocando-se no lugar do outro:

Ah, assim, é você prestar uma assistência adequada para a criança. Não só à criança como à mãe também... Se colocando sempre no lugar do paciente, do acompanhante. (Violeta - TE)

Assim, é possível perceber que a equipe de enfermagem flutuou entre os modos positivos da preocupação. Eles atuaram no modo da preocupação antecipativa/libertatória quando utilizaram da empatia, tentando conhecer as crianças e as famílias, às vezes no intuito de conhecer até o que há por trás delas:

É... então, eu acho que o cuidado, ele está relacionado com a observação, com o ouvir, com o estar à disposição. (Margarida - E)

Porém, apesar de haver essa trinca para a abertura — como estando disposto a ouvir e conhecer o outro —, essa busca por “conhecimento”, por vezes, se mostrou mais como uma fechadura, cuja finalidade é encontrar justificativas para o adoecimento da criança:

[...] é, muitas vezes o que a gente está vendo ali na clínica da criança, tem relação com o que aconteceu lá em casa. Muitas vezes, uma ingestão de bateria, uma ingestão de, de um produto tóxico, você acaba vendo algumas vezes uma desestrutura familiar, um descuido. (Margarida - E)

Ainda atuando na forma antecipativa-libertatória, os profissionais mostraram tentativas de compartilhar o cuidado com a criança:

Então assim, a gente tem que conversar... O que ela pode decidir, ela pode ajudar na decisão [...] a gente pode em alguns momentos trazer ela para o cuidado dela também. Para ser mais fácil para gente e para ser mais fácil para ela aceitar. (Íris - E)

Entretanto, foi possível perceber que, por vezes, essas tentativas ocorreram somente no intuito de persuadir a criança a aceitar o procedimento que seria realizado, na tentativa de dominá-la:

[...] por que você tenta explicar, você tenta trazer a criança para junto e ela não quer. E, ao mesmo tempo, você tem que ir e fazer. Então tem horas que o profissional também tem que ter um pulso um pouquinho mais firme e mostrar o que precisa. (Íris - E)

Com relação à família, a equipe de enfermagem verbalizou considerá-la como parte do cuidado à criança:

Bom, o que eu compreendo de cuidado à criança hospitalizada... é ... é bem complexo, e amplo, porque envolve o contexto social, que é a família. (Rosa - TE)

Na relação com a família, a equipe de enfermagem também mostrou flutuar entre os modos positivos da preocupação. A pre-ocupação, em seu modo antecipativo-libertatório, emerge quando o profissional considera o saber da família como importante na construção do cuidado à criança:

As mães, querendo ou não, como elas acompanham, são elas que cuidam dos filhos, a gente tem que dar uma atenção especial... porque elas conhecem as crianças, elas sabem quando a criança está diferente ou não, e nem sempre a gente conhece o padrão da criança. (Íris - E)

Essa preocupação também ocorre quando o profissional tenta explicar à família o que está sendo realizado para o cuidado da criança:

[...] a orientação mesmo aos cuidados não só com ela, mas com a mãe também, explicando o que está acontecendo... Não chegar de surpresa e fazendo os procedimentos, sempre estar, na medida do possível e da idade da criança, estar sempre adaptando à realidade também da criança. (Estrelícia - E)

Concomitantemente, atua no modo substitutivo-dominador, quando afirma que o cuidado à família está vinculado à importância de garantir que ela execute cuidados a fim de ajudar a equipe de enfermagem:

E principalmente estar orientando a mãe para que o tratamento... tenha uma adesão ao tratamento. Porque não adianta nada a gente estar lutando para poder fazer uma coisa assim, por exemplo, é uma dermatite de fralda, e a mãe vai lá e não... resolve não trocar a fralda. (Estrelícia - E)

Os profissionais de enfermagem demostraram atuar também nos modos negativos da preocupação, por exemplo, ao rotularem as crianças e realizarem um cuidado já predeterminado para sua doença:

[...] a gente tem que dar atenção constante. É constante a atenção no... ah... punção venosa. Os sinais... a gente tem é... as especialidades... os cardiopatas, os nefropatas, e aí você tem que dar atenção à especialidade. Tem uns que necessitam... seja mais, mais rápido no atendimento... Demanda mais atenção do que outros. As doenças respiratórias também demandam bastante atenção. (Copo de Leite - TE)

Outra questão alarmante que emergiu foi quando o profissional mostrou se preocupar mais com suas necessidades pessoais do que com as necessidades da criança e da família:

[...] para ver assim o macro como é que está, para depois eu ir definindo o que eu vou fazer primeiro, qual que eu vou atender primeiro, o que eu tenho que fazer para que eu possa agilizar para facilitar meu trabalho. (Copo de Leite - TE)

As necessidades da criança e de sua família são, por vezes, negligenciadas ao privilegiar-se a instituição:

Porque até quando a gente passa plantão: “Nossa, por que a criança está assim? Ah, não sei.” Então nem está olhando a criança direito. Mas, eu sinto dificuldade no trabalho de agora de ter mais esse cuidado. Porque é muita coisa burocrática, papelada... (Amarílis - E)

Ao realizar a rotina conforme o pré-estabelecido pela instituição ou pelos colegas, tendo a “burocracia” e a “papelada” em destaque, a equipe de enfermagem mostrou “se perder” no a-gente:

Mas eu acho que é... ainda é uma coisa bem falha na enfermagem, o cuidado assim... Acho que todos acabam sendo um pouco técnicos. Fazendo o que tem que fazer e pronto! Eu acho isso no geral. Não só os enfermeiros, mas os próprios técnicos de enfermagem. Faz o que tem que fazer, cumpre o que tem que cumprir e acabou! A nossa rotina tem sido muito assim... Eu acho que faz falta um cuidado mais... um cuidado de verdade. Não só um cumprimento de regras e procedimentos. (Amarílis - E)

Porém, ainda que atuando no modo-de-ser da cotidianidade, conseguiram, por vezes, perceber suas falhas e desejaram melhorar:

Eu acho que podia ser melhor. Sinceramente. Porque a gente às vezes fica em uma, quando a gente fica em duas [se referindo ao número de enfermeiros que ficam responsáveis por cada posto de enfermagem] até dá para você ter uma, ver melhor a criança, mas às vezes, a gente está em só uma enfermeira, tem muita criança, acontece alguma intercorrência, acaba nem vendo o rostinho dela. Você entra “ah, tá tudo bem!”, mas você não vai lá, conversa com a mãe, vê como é que está, olha bem a criança... Só bate olho. Então eu acho que podia ser melhor. [...] ah, eu espero que cada vez mais, melhore. Mas... A gente vai um dia de cada vez. Tentando ser melhor. (Amarílis - E)

Ao desejarem algo melhor, a equipe aponta caminhos para alcançar esse objetivo:

Ah, eu acredito que, para um bom cuidado a gente é... O profissional, ele tem que estar atento às modificações que o COFEN estabelece, tanto as doenças que aparecem... E apesar de, no momento, eu não estar fazendo isso, eu tenho certeza que o estudo contínuo de doenças, de situações, de diagnósticos, estar a par de novos protocolos, eu acho que tudo isso influencia. (Margarida - E)

DISCUSSÃO

Diante dos resultados, fica explícito que o cuidar se dá entre o mundo da ocupação e as diversas formas de preocupação, estando os profissionais envolvidos no a-gente e guiados, sobretudo, pelo falatório, decaídos enquanto seres-no-mundo.

No trato da ocupação, cabe ao Dasein se haver com instrumentos — algo para, um objeto que terá sua usabilidade dependendo do manejo que cada Dasein dele fará (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.), sendo que os profissionais de enfermagem, enquanto seres-no-mundo que cuidam da criança hospitalizada, interagem com diversos instrumentos para realizar o seu trabalho/ocupação.

Porém, por meio dos discursos dos profissionais, foi possível perceber que, por vezes, esses instrumentos foram demasiadamente valorizados durante o processo de trabalho, tendo o profissional se ocupado mais de seu uso, do que com a própria criança. Essa forte tendência em valorizar os aspectos técnicos e mecânicos da assistência prestada à criança hospitalizada também foi verificada em outro estudo desenvolvido com profissionais de enfermagem de uma unidade pediátrica (88 Macedo IF, Souza TV, Oliveira ICS, Cibreiros AS, Morais RCM, Vieira RFC. Nursing team's conceptions about the families of hospitalized children. Rev Bras Enferm [Internet]. 2017;70(5):904-11. [Thematic Edition "Good practices and fundamentals of Nursing work in the construction of a democratic society"] doi: 10.1590/0034-7167-2016-0233
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).

Ações terapêuticas, intervenções, procedimentos e técnicas constituem uma vasta lista de “tarefas” denominadas, tradicionalmente, de cuidados de enfermagem, porém realizar procedimentos em um corpo pode não ser cuidado, mas apenas um ato mecânico. O cuidado é diferente. Trata-se de uma ação moral e enobrecedora quando realizada em um ser humano e, preferencialmente, para e com o ser, sujeito do cuidado, englobando envolvimento e comprometimento (11 Waldow VR. Enfermagem: a pràtica do cuidado sob o ponto de vista filosófico. Investig Enferm. Imagen Desarr. 2015;17(1):13-25. doi: 10.11144/Javeriana.IE17-1.epdc
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).

Heidegger lembra que o Dasein, ao se deparar com um outro ente, que se comporta como ser-com, não deve com ele se ocupar, mas, sim, se preocupar (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.). No presente estudo, os profissionais de enfermagem mostraram se preocupar com a criança, uma vez que a compreende como um ser único que demanda cuidados diferenciados, os quais devem ir além do físico, reconhecendo suas particularidades, como o choro, o medo e a necessidade de brincar.

Essa preocupação-com a criança também fica explícita quando os profissionais consideram o processo de hospitalização como algo doloroso e traumatizante para a criança, no qual referem ser necessário encontrar maneiras de minimizar os estressores. Na literatura, o acolhimento, a interação e a comunicação foram apontados como fundamentais para que o sofrimento e a ansiedade fossem minimizados durante o processo de hospitalização (1616 Rodrigues BMRD, Pacheco STA, Dias MO, Cabral JL, Luz GR, Silva TF. Ethical perspective in care in pediatric nursing: view of nurses [Internet]. Rev Enferm UERJ. 2013 [cited 2016 Mar 23];21(2):743-7. Available from: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/12038/9426
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).

A família também foi percebida como parte do cuidado que deve ser realizado pela equipe de enfermagem. Eles afirmaram que, durante o processo de hospitalização, é importante ter alguém que conhece a criança, o que corrobora outro estudo no qual os profissionais entrevistados também perceberam a presença do familiar como importante para a recuperação da criança (1717 Silva JL, Santos EGO, Rocha CCT, Valença CN, Jr OGB. Organization of Nursing work regarding the integration of family care for hospitalized children. Rev Rene. 2015;16(2):226-32. doi: 10.15253/2175-6783.2015000200012
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).

Ainda com relação a preocupação, Heidegger afirma que a empatia é a única forma do Dasein se manter em seus modos positivos e que somente quando há a aproximação do outro, até o que há por trás dele, a fim de haver um conhecimento mútuo, é que se torna possível a constituição de uma relação com o outro (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

Outras pesquisas da área de enfermagem pediátrica também defendem que a comunicação deve ser utilizada como uma ferramenta de interação entre a criança, família e equipe, permitindo a formação de vínculo e um maior entendimento das especificidades e necessidades que cada criança e família possuem (1818 Andrade RC, Marques AR, Leite ACAB, Martimiano RR, Santos BD, Pan R, et al. The needs of parents of hospitalized children: evidence for care. Rev Eletr Enf. 2015;17(2):379-94. doi: 10.5216/ree.v17i2.30041
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19 Ribeiro JP, Gomes GC, Thofehrn MB, Mota MS, Cardoso LS, Cecagno S. Criança hospitalizada: perspectivas para o cuidado compartilhado entre enfermagem e família. Rev Enferm UFSM. 2017;7(3):350-62. doi: 10.5902/2179769226333
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-2020 Silva TP, Silva IR, Leite JL. Interactions in the management of nursing care to hospitalized children with chronic conditions: showing intervention conditions. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e1980015. Doi: 10.1590/0104-07072016001980015
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).

Pôde-se perceber, entretanto, que houve flutuação nos discursos dos profissionais com relação ao cuidado prestado à criança e à família. É um abrir-se e fechar-se a todo instante. Heidegger lembra que essa flutuação entre os modos positivos da preocupação-com sempre existe na relação do ser-com o outro: ora o ser-com atua no modo antecipativo-libertatório, ora no modo substitutivo-dominador (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.). No entanto, é preciso atenção para não se manter, demasiadamente, no modo substitutivo-dominador.

Em relação às crianças, apesar de, na maioria das vezes, o cuidado se dar na forma de substituição, por se acreditar que o processo de crescimento e desenvolvimento em andamento assim o justifica, houve tentativas de compartilhar o cuidado com a criança; porém, foi possível apreender também, que, por vezes, essas tentativas ocorreram somente no intuito de persuadi-la a aceitar o procedimento que seria realizado, na tentativa de dominá-la.

A criança pode e deve ser estimulada a participar dos cuidados realizados, por isso é fundamental que os profissionais tenham o conhecimento das etapas do desenvolvimento infantil, para que a informação seja adaptada de acordo com a capacidade de compreensão de cada criança, bem como para que seja possível saber quanto esperar de cooperação. Incluir a criança nas decisões revela respeito e consideração, além de reduzir a angústia e o medo inerente a esse momento (1616 Rodrigues BMRD, Pacheco STA, Dias MO, Cabral JL, Luz GR, Silva TF. Ethical perspective in care in pediatric nursing: view of nurses [Internet]. Rev Enferm UERJ. 2013 [cited 2016 Mar 23];21(2):743-7. Available from: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/enfermagemuerj/article/view/12038/9426
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).

Já com a família não foi diferente: a equipe de enfermagem mostrou preocupação, em seus modos positivos, quando tentou explicar o que estava sendo realizado para o cuidado da criança, embora o objetivo dessa preocupação se fundasse no modo substitutivo-dominador, ao afirmar que o cuidado à família está vinculado à importância de garantir que esta execute cuidados, a fim de ajudar a equipe de enfermagem.

A delegação de alguns cuidados à família também foi relatada em outros estudos (1717 Silva JL, Santos EGO, Rocha CCT, Valença CN, Jr OGB. Organization of Nursing work regarding the integration of family care for hospitalized children. Rev Rene. 2015;16(2):226-32. doi: 10.15253/2175-6783.2015000200012
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,2121 Silva TP, Silva MM, Valadares GV, Silva IR, Leite JL. Nursing care management for children hospitalized with chronic conditions. Rev Bras Enferm. 2015;68(4):556-63. doi: 10.1590/0034-7167.2015680410i
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), porém defende-se que, para ela poder exercer o papel de cuidadora da criança em um ambiente hospitalar, é necessário que a equipe de enfermagem a oriente e a auxilie nesse processo (1717 Silva JL, Santos EGO, Rocha CCT, Valença CN, Jr OGB. Organization of Nursing work regarding the integration of family care for hospitalized children. Rev Rene. 2015;16(2):226-32. doi: 10.15253/2175-6783.2015000200012
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,2222 Gomes GC, Leite FLLM, Souza NZ, Xavier DM, Cunha JC, Pasini D. Strategies used by the family to care for the child in the hospital. Rev Eletr Enf. 2014;16(2):434-42. doi: 10.5216/ree.v16i2.20989
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).

Além dos modos positivos, emergiram também os modos negativos da preocupação-com, os quais ocorrem quando o profissional de enfermagem cuida das doenças, não percebendo o outro — criança e família. Rotular as crianças por meio do nome de suas doenças e tratá-las de acordo com o que se tem pré-estabelecido para cada uma delas, em vez de considerar a individualidade, é um forte exemplo de como o cuidado pode se dar na impropriedade.

Os profissionais, portanto, descrevem suas atuações no modo da impropriedade e se deixam levar pelo falatório, quando colocam suas necessidades pessoais e da instituição à frente das necessidades da criança e da família. Assim, ao se perder na publicidade e no modo-de-ser do a-gente, o cuidado prestado se dá na forma de decadência. O decair, por sua vez, empurra o profissional de enfermagem para a tranquilização, mantendo-o na mediania de ser a-gente e perpetuando o falatório criado pela instituição, pelos outros e por eles mesmos, sem refletir sobre o que se faz e o como se faz (1010 Heidegger M. Ser e tempo. Campinas: Editora Unicamp; Petrópolis: Editora Vozes; 2012.).

No entanto, como o Dasein existe em um ir e vir, o profissional se estranha em alguns momentos, o que o impele a sair da tentação tranquilizante, percebendo falhas e apontando possibilidades, ainda que tecnicistas, como a busca por conhecimento teórico para melhorar a prática cotidiana. Esse aspecto também foi revelado por profissionais de outra unidade pediátrica ao verbalizarem limitações na prática de cuidados; eles apontaram somente o conhecimento técnico-científico como necessário para a melhoria do cuidado à criança (2323 Silva TP, Silva IR, Lins SMSB, Leite JL. Percepções do cuidado de enfermagem à criança hospitalizada em condição crônica. Rev Enferm UFSM. 2015;5(2):339-48. doi: 10.5902/2179769213406
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).

Fatores como a comunicação, a empatia, a confiança, a liderança, a realização profissional e o conhecimento acumulado da experiência de trabalho são descritos na literatura como condições facilitadoras das relações de cuidado. Salienta-se também a necessidade de o enfermeiro desenvolver competências relacionais, cognitivas, subjetivas, pessoais e éticas (2020 Silva TP, Silva IR, Leite JL. Interactions in the management of nursing care to hospitalized children with chronic conditions: showing intervention conditions. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e1980015. Doi: 10.1590/0104-07072016001980015
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).

Limitações do estudo

Este estudo limitou-se a compreender o sentido do cuidado à criança hospitalizada para os profissionais de enfermagem de uma unidade pediátrica, a partir dos seus próprios discursos. Contudo, o cuidado à criança hospitalizada é compartilhado por outros profissionais de saúde que possuem, por vezes, compreensões distintas do processo de trabalho da enfermagem. Assim, novas investigações que incluam os demais profissionais de saúde podem colaborar para o avanço na prestação de cuidados que, de fato, apreendam criança e família nas suas singularidades.

Contribuições para a área de enfermagem

Ao buscar compreender o sentido do cuidado de enfermagem ao paciente pediátrico, percebe-se a necessidade de rever a abordagem dessa temática no âmbito acadêmico e profissional, a fim de melhorar o cuidado oferecido ao paciente pediátrico e sua família durante o processo de internação.

Assim, acredita-se que a realização deste estudo possa instigar os profissionais de enfermagem a refletirem sobre o cuidado à criança hospitalizada, inclusive com foco no seu próprio cuidado, de modo a propiciar mudanças necessárias, além de reforçar os aspectos positivos do cuidado oferecido no cotidiano da hospitalização infantil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sob o olhar fenomenológico de Martin Heidegger, foi possível apreender o sentido de ser-no-mundo enquanto profissional de enfermagem que cuida da criança hospitalizada. Esse sentido revelou que existir como ente é existir em usabilidade, subsistindo, mas com trincas que possibilitam o emergir da utilizabilidade, o que permite vislumbrar o ser.

Ocupando-se/preocupando-se nos modos de ser da cotidianidade, os profissionais de enfermagem mostraram tender à impropriedade, em busca da mediania e do nivelamento de todas as possibilidades de ser, em fechadura, mas também em abertura, quando extrapolaram a tranquilização e o ficar preso em si mesmos para atingirem, ainda que por instantes, a empatia, o respeito e a indulgência.

Haja vista que o cuidar é considerado a essência da enfermagem, torna-se necessário a revisão e a ampliação da abordagem dessa temática na formação dos profissionais de enfermagem, tanto no nível técnico quanto no nível superior, sendo de igual importância a adoção de uma filosofia/modelo de cuidado à criança que, para além de uma normatização, sirva de referência aos profissionais de enfermagem.

  • *
    O referencial teórico exposto no método deste artigo é proveniente exclusivamente da obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger, referência de número 10. Optou-se por utilizar apenas a referência primária e não interpretações de outros autores sobre essa obra.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    Dez 2019

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2018
  • Aceito
    04 Mar 2019
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