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Intervenção comunitária na educação em enfermagem: relato de experiência

RESUMO

Objetivo:

Relatar a implementação e resultados de projetos de intervenção comunitária utilizados como estratégia de ensino e desenvolvimento de pessoas e comunidades, na formação de enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde comunitária, no Centro de Formação de Saúde Multiperfil, Angola.

Método:

Relato de experiência da utilização de projetos de intervenção comunitária em enfermagem.

Resultados:

Os projetos de intervenção comunitária contribuíram para a aprendizagem dos estudantes e para a promoção da saúde, cidadania e empoderamento de pessoas e comunidades. A sua implementação está no quarto ano, e já foram desenvolvidos 16 projetos em 2 bairros distintos, sendo que este ano a intervenção abrangerá um terceiro.

Conclusões:

O ensino em enfermagem deve adotar estratégias que conduzam o estudante não só no caminho da autonomia profissional mas, sobretudo, na capacitação das pessoas e comunidades.

Descritores:
Enfermagem em Saúde Comunitária; Educação em Saúde; Empoderamento; Planejamento em Saúde Comunitária; Educação em Enfermagem

ABSTRACT

Objective:

To report the implementation and results of community intervention projects used as a strategy for teaching and developing people and communities in the training of community health nursing specialists at the Centro de Formação de Saúde Multiperfil (Multi-profile Health Training Center), Angola.

Method:

Report of experience of the use of community intervention projects in nursing.

Results:

Community intervention projects have contributed to the learning of students and to the promotion of health, citizenship and the empowerment of individuals and communities. Its implementation is in the fourth year, and 16 projects have already been developed in 2 distinct neighborhoods, and this year the intervention will cover a third.

Conclusions:

Nursing teaching should adopt strategies that lead the student not only in the path of professional autonomy, but, above all, in the empowerment of people and communities. Community intervention is undoubtedly important in this area.

Descriptors:
Community Health Nursing; Health Education; Empowerment; Community Health Planning; Education in Nursing

RESUMEN

Objetivo:

Informar de la implementación y resultados de proyectos de intervención comunitaria utilizados como estrategia de enseñanza y desarrollo de personas y comunidades, en la formación de enfermeros especialistas en enfermería de salud comunitaria, en el Centro de Formación de Salud Multiperfil, Angola.

Método:

Relato de experiencia de la utilización de proyectos de intervención comunitaria en enfermería.

Resultados:

Los proyectos de intervención comunitaria contribuyeron al aprendizaje de los estudiantes y a la promoción de salud, la ciudadanía y el empoderamiento de personas y comunidades. Su implementación está en el cuarto año, y ya se han desarrollado 16 proyectos en 2 barrios distintos, mientras que este año la intervención abarcará un tercero.

Conclusiones:

La enseñanza en enfermería debe adoptar estrategias que conduzcan al estudiante no sólo en el camino de la autonomía profesional, sino especialmente en la capacitación de las personas y comunidades. La intervención comunitaria es claramente importante en este ámbito.

Descriptores:
Enfermería en Salud Comunitaria; Educación en Salud; Empoderamiento; Planificación en Salud Comunitaria; Educación en Enfermería

INTRODUÇÃO

Angola apresenta uma população bastante jovem, tal como a maioria dos países em desenvolvimento, constituindo um desafio para o progresso do país. Verificam-se assimetrias nas comunidades devido à desigualdade de oportunidades em todo o território, que provoca movimentos migratórios internos para os centros urbanos e sobrecarga nos serviços públicos disponíveis. O governo de Angola fixou um conjunto de prioridades orientadas para a promoção do desenvolvimento humano, participativo e sustentável. É assim reconhecida a necessidade de reforçar o apoio às instituições de ensino e investigação em saúde, na avaliação da qualidade da formação de profissionais de saúde e na monitorização e avaliação do desempenho das equipes de saúde(11 Organização Mundial de Saúde - OMS. Estratégia de cooperação da OMS 2015-2019. Angola: Escritório Regional Africano; 2016.). Respondendo a esses desígnios, o Centro de Formação de Saúde Multiperfil, Luanda, Angola (CFS), desenvolve, desde 2014, o Curso de Pós-Licenciatura de Especialização em Enfermagem de Saúde Comunitária. Esse curso, com 2.900 horas, engloba uma componente de estágio de intervenção comunitária, onde é utilizada a metodologia do planejamento em saúde, para intervir diretamente na comunidade, empoderando-a, promovendo-lhe a cidadania e aumentando o seu bem-estar, em contexto.

É imperioso legitimar o papel do indivíduo, dos grupos e da comunidade na construção de ambientes propícios à saúde tanto individual como coletiva, e a sua intervenção social traduz-se claramente numa necessidade que é preciso promover e incentivar. É fundamental contribuir para a capacitação da pessoa, grupo e comunidade, no sentido de que estas não apenas reconheçam o direito de ter respostas às suas reais necessidades em saúde, mas também considerem a sua responsabilidade em participar e contribuir para a construção dessa mesma resposta. Cada cidadão deve ser capaz de reconhecer quanto o seu comportamento influencia a sua saúde, daqueles e daquilo que o rodeia.

O CFS, enquanto promotor da cidadania, enfatiza, na formação dos enfermeiros especialistas, a promoção da cidadania na comunidade, ou seja, contribui para cidadãos progressivamente autônomos, responsáveis e participantes no seu processo de saúde e de vida. O estudante, por meio da interação com a comunidade e pelo exercício da sua autonomia como profissional de saúde, passa a ser sujeito participativo, responsável pela busca da sua aprendizagem e crescimento humano, desenvolvidos no decorrer da sua formação acadêmica. Na construção do conhecimento prático, este mobiliza o pensamento crítico-reflexivo e criativo, de modo que os diferentes contextos com que esse profissional em formação se depara sejam oportunidades de aprendizagem e de reestruturação a cada momento, e esta é uma atividade continuada.

O enfermeiro especialista em enfermagem de saúde comunitária, pela sua proximidade com a comunidade, tem a possibilidade de colaborar de forma ativa na elaboração de projetos de saúde que promovam o exercício da cidadania e o empoderamento. A participação do enfermeiro (estudante) na comunidade, durante o estágio, pressupõe que este desenvolva a capacidade de refletir na/sobre a prática, a capacidade de escutar ativamente, bem como a habilidade para determinar as necessidades da população em cuidados de saúde (11 Organização Mundial de Saúde - OMS. Estratégia de cooperação da OMS 2015-2019. Angola: Escritório Regional Africano; 2016.-22 Leite RB, Pontes CS, Pavão JF. Cidadania para a saúde. o papel do cidadão na promoção da saúde. Lisboa: Universidade Católica Editora; 2015.). Implica, assim, promover a cidadania e o empoderamento por meio de projetos de intervenção comunitária.

Desse modo, o presente artigo visa apresentar relato sobre a experiência do CFS no âmbito da utilização de projetos de intervenção comunitária na educação em enfermagem, com vista ao empoderamento e cidadania e tendo como referencial a teoria das transições de Afaf Meleis e o modelo teórico de Nola Pender.

OBJETIVO

Relatar a implementação e resultados de projetos de intervenção comunitária utilizados como estratégia de ensino e na formação de enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde comunitária, no Centro de Formação de Saúde Multiperfil, Luanda, Angola.

RESULTADOS

Histórico da implementação dos projetos de intervenção comunitária

A população angolana permanece vulnerável a problemas de saúde, os quais criam uma sobrecarga nos órgãos prestadores desse serviço e dificultam o acesso a cuidados primários de saúde, de modo que isso torna prioritária a formação especializada de enfermeiros nesse domínio. A educação é um elemento fundamental para o desenvolvimento das nações, e o seu papel na formação de cidadãos é indubitável; contudo, é necessário um processo educativo consistente, que envolva vários sectores da sociedade, para que a cidadania seja construída e consolidada.

O CFS é, indiscutivelmente, um espaço onde a cidadania é desenvolvida. Este reconhece a importância das atitudes dos professores e a importância do ensino na formação dos estudantes; reconhece o estudante como cidadão; e percebe a cidadania como uma participação ativa na sociedade além dos direitos e deveres de cada um. O envolvimento do professor na construção da cidadania dos estudantes ocorre pela transmissão do conhecimento durante o período teórico e igualmente pelas práticas educativas planejadas e organizadas em contexto de estágio. Os professores identificam os projetos de intervenção comunitária como ferramenta fundamental no desenvolvimento do exercício da cidadania, permitindo alcançar melhores condições de saúde e vida da população.

Os projetos realizados em contexto de formação, permitem ao estudante de enfermagem de saúde comunitária contribuir para a capacitação, empoderamento e exercício de cidadania da saúde das pessoas, famílias, grupos e comunidades e colaborar na consecução dos objetivos do Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário de Angola (2012-2025), para além do desenvolvimento de outras competências preconizadas para essa área de especialidade e plasmadas no plano de estudos do curso, publicado no DR I Série nº 37 de 18 de março de 2015.

Estratégias e parcerias

Os estudantes (N = 16), 9 do sexo feminino e 7 do sexo masculino, com uma média de idade de 42,75 anos, implementaram projetos de intervenção comunitária nos anos letivos 2014-2016. Desse modo e decorrente dos pressupostos enunciados anteriormente, cada um deles desenvolveu a sua atuação nas áreas de intervenção emanadas pelo diagnóstico de saúde efetuado na comunidade Kapossoca ou pelas necessidades identificadas e consideradas como prioritárias no Plano Distrital de Desenvolvimento Sanitário da Samba, 2013-2017 (Quadro 1). Essas necessidades foram confirmadas nas visitas preparatórias realizadas à comunidade Kapossoca e Camuxiba, bem como pelos responsáveis dos bairros incluídos na intervenção. Os projetos desenvolvidos na comunidade consubstanciaram-se assim na promoção da saúde, da cidadania e do empoderamento comunitário e possibilitaram à escola (CFS) desenvolver-se como agente interventivo nesses domínios.

Quadro 1
Áreas e títulos dos projetos de intervenção comunitária desenvolvidos (2014-2016)

O empoderamento, ou seja, o processo de aquisição de conhecimentos e desenvolvimento de competências que leva ao acréscimo de poder e controle por parte do cidadão, permite a participação e tomada de decisão efetiva no exercício responsável da cidadania, ao desenvolver a autorresponsabilização sobre si e sua saúde, bem como responsabilizar-se pela comunidade em que se insere(22 Leite RB, Pontes CS, Pavão JF. Cidadania para a saúde. o papel do cidadão na promoção da saúde. Lisboa: Universidade Católica Editora; 2015.). Na realidade, o empoderamento tem por base a participação do cidadão por intermédio de estratégias que capacitem indivíduos e comunidades para tomar decisões e defender os seus direitos(22 Leite RB, Pontes CS, Pavão JF. Cidadania para a saúde. o papel do cidadão na promoção da saúde. Lisboa: Universidade Católica Editora; 2015.).

O trabalho desenvolvido com a comunidade teve a sua maior ênfase na área da promoção da saúde, plenamente justificada nas necessidades manifestas das comunidades. Na vertente da promoção da saúde, centrada essencialmente em ações educativas em saúde, seguiu-se o modelo teórico de promoção de saúde de Nola J. Pender(33 Pender NJ. Health Promotion Model Manual [Internet]. Michigan: University of Michigan; 2011[cited 2017 Apr 23]. Available from: https://deepblue.lib.umich.edu/bitstream/handle/2027.42/85350/HEALTH_PROMOTION_MANUAL_Rev_5-2011.pdf
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), dado que este fornece uma estrutura simples e clara, em que o enfermeiro pode realizar um cuidado de forma individual ou em grupo; permite planejar, intervir e avaliar as ações que levam à promoção da saúde; bem como relaciona três pontos principais: as características e experiências individuais, os sentimentos e conhecimentos sobre o comportamento que se quer alcançar e o comportamento de promoção da saúde desejável(33 Pender NJ. Health Promotion Model Manual [Internet]. Michigan: University of Michigan; 2011[cited 2017 Apr 23]. Available from: https://deepblue.lib.umich.edu/bitstream/handle/2027.42/85350/HEALTH_PROMOTION_MANUAL_Rev_5-2011.pdf
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).

Todos os projetos desenvolvidos seguiram o desenho metodológico do planejamento em saúde sugerido na obra de referência de Imperatori e Giraldes(44 Imperatori E, Giraldes MR. Metodologia do planeamento da saúde: manual para uso em serviços centrais, regionais e locais. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública; 1993.) e atenderam aos princípios éticos no que diz respeito à coleta e tratamento de dados, nomeadamente a confidencialidade, anonimato e consentimento livre e esclarecido.

Após o levantamento das necessidades da comunidade, definiram-se as prioridades de intervenção baseadas nos problemas de saúde que se revelaram de elevada magnitude, transcendência e vulnerabilidade e traçaram-se objetivos a atingir, indicadores e metas. As estratégias major para o desenvolvimento dos projetos de intervenção comunitária consistiram na promoção/educação para a saúde, formação em serviço dos profissionais de saúde parceiros dos projetos, realização de atividades de rastreio (avaliação da pressão arterial, avaliação da glicemia capilar, avaliação de dados antropométricos e pesquisa de plasmodium) e no estabelecimento de parcerias, com as entidades de saúde do local de implementação dos projetos, com a comissão de moradores e respectivo presidente, com instituições do bairro e do Instituto Nacional de Saúde Pública e de Luta contra a SIDA. Essas atividades iniciais fortaleceram a relação que se estabeleceu entre a escola e a comunidade.

Foram realizadas sessões grupais de educação para a saúde no período de implementação dos projetos e esclarecidas as dúvidas apresentadas pelos participantes no decorrer das sessões de educação para a saúde, com utilização de estratégia participativa, associada a vários recursos didáticos. Os termos técnicos foram descodificados para a linguagem popular. A experiência permitiu conhecer as peculiaridades dos grupos e planejar orientações compreensíveis e significativas para a população. Após a realização de cada sessão de educação para a saúde e formação em serviço, foram aplicados questionários de avaliação de conhecimentos, que permitiram atestar se as metas propostas tinham sido atingidas.

A preocupação com a atividade física e com os benefícios para a saúde que esta acarreta foi demonstrada pela realização de caminhada, de exercícios de ginástica e de um jogo de futebol entre uma equipe da comunidade e outra do bairro onde os projetos se desenvolveram. Para além dos benefícios para a saúde física, tais atividades proporcionaram a relação entre a comunidade e os estudantes.

O exercício da cidadania implica também consciência ecológica. Nesse sentido e no dia do ambiente, foi realizada uma campanha de limpeza do largo central do bairro - espaço esse fulcral para todas as atividades desenvolvidas nesse contexto - e uma plantação de árvores em vários locais, responsabilizando-se os moradores pelos cuidados às mesmas. Essa campanha, desenvolvida pelos estudantes em 2016, revelou-se como uma mais valia quanto ao estabelecimento de uma relação de confiança que se mostrou fundamental para a aproximação da escola com a comunidade. Posteriormente, foram levadas a cabo outras campanhas de limpeza noutros locais do bairro, assim como atividades de fumigação intra/extradomiciliares.

As atividades de rastreio foram realizadas em vários locais dos bairros Kapossoca em 2014 e Camuxiba em 2016, salientando-se as feiras de saúde realizadas, em cada um desses anos, com a colaboração dos vários parceiros dos projetos. As feiras centraram-se nas atividades de rastreio, educação para a saúde, entrega de produtos desinfetantes para água, entrega de preservativos e folhetos informativos relacionados com os temas dos diferentes projetos, bem como administração de vacinas de acordo com o plano nacional de vacinação de crianças e adultos.

As sessões de formação em serviço tiveram como principal objetivo capacitar os profissionais do Centro de Saúde para melhorar a qualidade dos cuidados prestados às pessoas e reforçar a procura de cuidados de saúde primários pela população.

A avaliação dos projetos baseou-se nos resultados dos questionários aplicados no final das sessões de educação para a saúde e formação em serviço. Os dados obtidos da avaliação dos questionários permitiram caracterizar a população que participou nas sessões, assim como determinar o nível de conhecimento após a sessão. Na análise dos resultados, usou-se a estatística descritiva por meio do programa estatístico SPSS, versão 21.

A repercussão dos projetos implementados

De acordo com a Carta de Ottawa(55 Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde. A promoção da saúde: a carta de Ottawa [Internet]. 1986[cited 2017 Apr 23]. Available from: http://www.iasaude.pt/index.php/informacao-documentacao/promocao-da-saude/152-carta-de-ottawa
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), existem cinco estratégias essenciais para o sucesso das intervenções na promoção da saúde: a construção de políticas públicas saudáveis, criação de contextos de apoio à saúde, fortalecimento da ação comunitária, desenvolvimento das competências pessoais e reorientação dos serviços de saúde. A promoção de saúde surge como um processo que visa criar condições para que as pessoas aumentem a sua capacidade de agir sobre os determinantes de saúde, conferindo-se aos indivíduos e à comunidade os meios para uma melhor gestão da sua própria saúde e desenvolvendo-se estratégias de envolvimento nos processos de tomada de decisão. A promoção e educação para a saúde reforça a democracia e autonomia tanto do profissional quanto do cliente, culminando num sentimento de maior satisfação e realização pessoal para ambos. Promover a saúde passa, pois, por ajudar as pessoas a desenvolver competências para fazer escolhas saudáveis através da educação e informação, para que possam exercer controle sobre a sua saúde e contextos(66 Silva S. Políticas e práticas de promoção de hábitos e estilos de vida saudáveis nas crianças e jovens do Concelho de Torres Vedras. Rev Port Saúde Pública [Internet]. 2013[cited 2017 Apr 23];31(1):84-94. Available from: http://www.scielo.mec.pt/pdf/rpsp/v31n1/v31n1a09.pdf
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). Considera-se o indivíduo como sujeito e agente da sua própria aprendizagem e responsável pelas suas opções. No processo de educação para a saúde, e com o objetivo de aumentar o nível de bem-estar e saúde da comunidade-alvo de intervenção, os estudantes estabeleceram uma relação de ajuda, onde utilizaram a escuta, disponibilidade e atenção ao Outro, o que permitiu criar um clima de confiança e respeito.

Concernente aos conhecimentos adquiridos nas sessões de educação para a saúde realizadas, verificou-se que a maioria dos participantes respondeu corretamente às questões colocadas nos questionários aplicados no final das sessões. O direito e o dever das populações em participar individual e coletivamente no planejamento e prestação dos seus cuidados de saúde assume particular importância depois da Conferência de Alma-Ata. A cidadania em saúde refere-se à capacidade de exercer, de modo informado e responsável, poder/influência sobre o seu estado de saúde e sobre o desenvolvimento do sistema e dos serviços de saúde(77 Gonçalves C, Ramos V. Cidadania e saúde um caminho a percorrer. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública; 2010.). Dar esse poder, sobretudo nos contextos de consolidação de paz, associa-se indubitavelmente à construção de capacidades e ao desenvolvimento da participação ativa dos cidadãos na vida da comunidade(88 Borges M, Maschietto H. Cidadania e empoderamento local em contextos de consolidação de paz. Rev Crit Cienc Sociais [Internet]. 2014[cited 2017 Apr 23];105:65-84. Available from: https://journals.openedition.org/rccs/pdf/5800
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). Assumir tal compromisso, enquanto estudante-enfermeiro, implica fornecer informação relevante para ajudar os indivíduos, família e comunidade a aumentar a instrução em saúde, adquirir controle sobre as decisões que afetam a sua saúde e promover a sua participação efetiva no processo de cuidados, de modo a obter ganhos em saúde(99 Martins P, Cotta R, Siqueira-Batista R, Mendes F, Frachescinni S, Priore S, et al. Democracia e empoderamento no contexto da promoção da saúde: possibilidades e desafios apresentados ao programa de saúde da família. Physis [Internet]. 2010[cited 2017 Apr 23];19(3):679-94. Available from: http://www.scielo.br/pdf/physis/v19n3/a07v19n3.pdf
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). A elaboração e implementação de projetos de intervenção comunitária constituíram-se como ferramentas contributivas da transformação da sociedade, que pretende cidadãos mais conscientes e participativos(22 Leite RB, Pontes CS, Pavão JF. Cidadania para a saúde. o papel do cidadão na promoção da saúde. Lisboa: Universidade Católica Editora; 2015.). Esses projetos, a iniciar agora com outra turma, surgem integrados no contexto de ensino-aprendizagem e permitem, ao estudante, transferir o conhecimento apreendido em contexto teórico para o contexto social, com o objetivo de contribuir para a promoção da cidadania junto da comunidade.

Os estudantes, ao implementarem projetos de intervenção, auxiliam no processo de transformação e na emancipação do cidadão, que é estimulado a refletir e aprender, de forma criativa, com base na interação relacional, tornando-se participante ativo no seu projeto de vida e, consequentemente, de saúde. Essa estratégia ensino-aprendizagem tem, desse modo, uma vertente educativa na promoção e prevenção da saúde, junto da comunidade que terá ao seu dispor um conjunto de informações sobre os comportamentos a adotar para uma vida mais saudável. Na realidade, o estudante, na relação que estabelece com o indivíduo, família e/ou comunidade, desenvolve a sua função de educador, capacitador e conselheiro, com a finalidade de facilitar positivamente o processo transicional vivenciado pela pessoa.

Verificou-se a participação frequente de pessoas de todos os setores dos bairros envolvidos nas atividades (mínimo de 15 pessoas numa sessão de educação para a saúde, no âmbito do projeto “Camuxiba sem malária”, e um máximo de 388 na feira de saúde). A participação dos cidadãos surge como uma atitude de cidadania ativa, sendo que estes reclamam uma assistência em saúde mais humanizada, com acesso à informação e participação na tomada de decisão. O aumento dos direitos do consumidor, os custos mais elevados dos cuidados de saúde e o aumento da consciência da falibilidade dos profissionais têm levado a que os cidadãos se envolvam de forma mais ativa no seu processo de saúde(22 Leite RB, Pontes CS, Pavão JF. Cidadania para a saúde. o papel do cidadão na promoção da saúde. Lisboa: Universidade Católica Editora; 2015.). A evolução dos valores na sociedade reconhece cada vez mais ao homem o seu livre-arbítrio e autodeterminação e apela para uma consciência de enfermagem mais humanizada, com o cuidado centrado no indivíduo, família e comunidade(77 Gonçalves C, Ramos V. Cidadania e saúde um caminho a percorrer. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública; 2010.). Os estudantes de enfermagem, hoje, consideram a pessoa como sendo responsável pelo seu próprio projeto de vida e saúde, colocando ao seu dispor todo um conjunto de conhecimentos e mestrias. No seu exercício de promoção da saúde, favoreceram pessoas e comunidades a ganhar controle sobre a sua própria saúde e contribuíram, assim, para desenvolvimento e empoderamento destas(1010 Apóstolo JL. Envelhecimento Saúde e Cidadania. Rev Enf Referência [Internet]. 2013[cited 2017 Apr 23];9:205-8. Available from: http://www.scielo.mec.pt/pdf/ref/vserIIIn9/serIIIn9a21.pdf
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).

Para a concretização dos projetos e como já foi referido anteriormente, os estudantes conseguiram: estabelecer parcerias com as entidades locais e de saúde que permitiram a integração dos estudantes no bairro e a divulgação dos projetos; proporcionar os locais para a realização das atividades; e facultar alguns recursos humanos, materiais e equipamentos necessários. As parcerias possibilitam capacitar as comunidades e empoderá-las, respeitando as diferenças(44 Imperatori E, Giraldes MR. Metodologia do planeamento da saúde: manual para uso em serviços centrais, regionais e locais. Lisboa: Escola Nacional de Saúde Pública; 1993.). Dessa maneira, trabalhou-se em equipe, o que requereu a capacidade de interagir com um grupo de pessoas, articulando ações para alcançar objetivos comuns, respeitando limites, valores, crenças e necessidades distintas.

A grande participação dos cidadãos (x = 70) observou-se nas sessões de educação para a saúde com metodologias ativas, associadas a atividades de rastreio e com distribuição de material didático. A educação em saúde surge como um pilar fundamental do desenvolvimento da cidadania, e a educação e a informação são alicerces importantes no empoderamento do cidadão, permitindo não apenas o poder, mas também a predisposição a hábitos participativos(22 Leite RB, Pontes CS, Pavão JF. Cidadania para a saúde. o papel do cidadão na promoção da saúde. Lisboa: Universidade Católica Editora; 2015.). É dever do cidadão informar-se, capacitar-se, respeitar e promover a sua própria saúde. Para que as atividades de educação para a saúde atinjam os objetivos pretendidos, é fundamental que as mensagens transmitidas sejam compreendidas e, posteriormente, o conhecimento adquirido seja atuado(33 Pender NJ. Health Promotion Model Manual [Internet]. Michigan: University of Michigan; 2011[cited 2017 Apr 23]. Available from: https://deepblue.lib.umich.edu/bitstream/handle/2027.42/85350/HEALTH_PROMOTION_MANUAL_Rev_5-2011.pdf
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). Tal exigiu por parte do estudante atenção na produção da informação, de modo a garantir uma comunicação aberta, transparente e acessível à população, considerando que existem fatores - como a comunicação, a confiança no enfermeiro, a possibilidade limitada de participação - que influenciam a participação no processo de cuidados e consequente exercício de cidadania.

A formação em serviço realizada, no âmbito do desenvolvimento dos projetos, contribuiu para a capacitação dos profissionais no que diz respeito à humanização dos cuidados de saúde. Intervir com a comunidade e valorizar o cuidado com a saúde implica a valorização dos direitos do cliente, respeito pela sua individualidade, dignidade, autonomia, subjetividade. Sendo a pessoa o centro da atenção dos cuidados, afirma-se que a humanização é um aspecto central em cidadania. Implica ouvir, respeitar e preservar a dignidade das pessoas, investir na qualidade da relação profissional-cliente, criando ambientes que propiciem essa relação. A ação coordenada em prol da saúde por meio de projetos direcionados para a comunidade implica o desenvolvimento de competências individuais, criação de ambientes favoráveis à saúde e reorientação dos serviços de saúde com foco na promoção da saúde e prevenção da doença, sendo fundamental que a comunidade possa compreender as vantagens do seu envolvimento em atividades de promoção da saúde(22 Leite RB, Pontes CS, Pavão JF. Cidadania para a saúde. o papel do cidadão na promoção da saúde. Lisboa: Universidade Católica Editora; 2015.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sendo a saúde, os valores e as concepções sobre a saúde traços culturais, muitos aspectos se conjugam para determinar a saúde dos indivíduos, das famílias e das comunidades. A realidade multicultural de Angola proporciona a existência de mitos e de práticas e comportamentos nem sempre saudáveis.

A formação dos enfermeiros especialistas no CFS insere-se num contexto de mudanças e desafios que se colocam à sociedade atual, em que é fundamental a aposta na qualidade e rigor da formação, mas também imperioso o respeito pela cultura. Nesse âmbito, perspectiva-se a participação da escola e dos estudantes em equipes multiprofissionais, potenciando sinergias capazes de ultrapassar dificuldades e construir projetos. O percurso formativo dos estudantes engloba períodos de teoria no CFS, onde é desperto o exercício da cidadania, e períodos de prática clínica, com estágios na comunidade, ao longo dos quais podem estender esse exercício à população com quem estabeleceram parceria. Os projetos de intervenção comunitária implementados permitiram a promoção da saúde, da cidadania e do empoderamento de pessoas e comunidades. A contribuição dos estudantes refletiu-se numa cidadania ativa da população por meio do aconselhamento e informação, prevenção de riscos, identificação precoce da doença e redução das complicações em pessoas com doença estabelecida.

Acrescentando à racionalidade cognitiva os sentimentos, a linguagem e a capacidade para desenvolver argumentos racionais sobre as ações, os estudantes enfermeiros desenvolveram comportamentos baseados na ética e na moral, permitindo uma atuação mais eficaz e eficiente e mais consciente das suas responsabilidades como cidadãos. Com esta abordagem pedagógica (projeto de intervenção comunitária), estimulou-se nos estudantes a capacidade de lidar com a complexidade e imprevisibilidade social e de saúde, na construção não apenas de uma sociedade informada, consciente, participativa e responsável pela sua saúde e da sua comunidade, mas também de cidadãos mais conscientes do poder da sua participação ativa, produtiva e consciente.

REFERENCES

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    17 Maio 2017
  • Aceito
    07 Jul 2017
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