Acessibilidade / Reportar erro

A percepção da equipe de enfermagem em situação de morte: ritual do preparo do corpo "pós-morte"

The perception of the nursing professionals during the ritual of prepare of the bodies

Resumos

Este estudo objetiva avaliar a percepção (reações emocionais frente aos valores pessoais e sociais) dos funcionários da equipe de enfermagem e identificar o sentimento presente durante o preparo do corpo pós-morte, tendo em vista que os profissionais que lidam com estes acontecimentos no seu cotidiano são, muitas vezes, estigmatizados como pessoas "frias". Foram entrevistados 23 profissionais de enfermagem de uma Unidade de Terapia Intensiva, num Hospital Privado da cidade de São Paulo, em agosto de 1996. O questionário constou de dados de identificação e de perguntas abertas sobre os sentimentos, pensamentos e opinião acerca do preparo do corpo pós-morte. Os resultados apontam que as pessoas encontram-se tristes durante o preparo do corpo, afirmando haver diferença deste procedimento em relação aos demais. Associam o vínculo com o paciente e o tempo de experiência profissional com a intensidade e a presença de determinados sentimentos e emoções. O momento do preparo do corpo para a equipe de enfermagem não é desprovido de profissionalismo e emoções.

Morte; Enfermagem; Corpo


This paper intends verificated the significance of the patients' death in nursing professionals and the emotions during the prepare of his bodies. The dispositions were collected with 23 professionals at UTI service in a hospital of São Paulo city. The results shows some sad during the prepare of the body and the compreension that the time of the experience and the type of relationship make the different in this procedure.

Death; Nursing; Body


ARTIGOS ORIGINAIS

A percepção da equipe de enfermagem em situação de morte: ritual do preparo do corpo "pós-morte"

The perception of the nursing professionals during the ritual of prepare of the bodies

Maria Cecília RibeiroI; Solange BaraldiII; Maria Júlia Paes da SilvaIII

IEnfermeira graduada na Universidade de Mogi da Cruzes e Especialista em Unidade de Terapia Intensiva

IIEnfermeira graduada pela Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, mestranda pelo PROLAM

IIIProfessora Doutora do Departamento de Enfermagem Médico-Cirúrgico da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo

RESUMO

Este estudo objetiva avaliar a percepção (reações emocionais frente aos valores pessoais e sociais) dos funcionários da equipe de enfermagem e identificar o sentimento presente durante o preparo do corpo pós-morte, tendo em vista que os profissionais que lidam com estes acontecimentos no seu cotidiano são, muitas vezes, estigmatizados como pessoas "frias". Foram entrevistados 23 profissionais de enfermagem de uma Unidade de Terapia Intensiva, num Hospital Privado da cidade de São Paulo, em agosto de 1996. O questionário constou de dados de identificação e de perguntas abertas sobre os sentimentos, pensamentos e opinião acerca do preparo do corpo pós-morte. Os resultados apontam que as pessoas encontram-se tristes durante o preparo do corpo, afirmando haver diferença deste procedimento em relação aos demais. Associam o vínculo com o paciente e o tempo de experiência profissional com a intensidade e a presença de determinados sentimentos e emoções. O momento do preparo do corpo para a equipe de enfermagem não é desprovido de profissionalismo e emoções.

Unitermos: Morte. Enfermagem. Corpo.

ABSTRACT

This paper intends verificated the significance of the patients' death in nursing professionals and the emotions during the prepare of his bodies. The dispositions were collected with 23 professionals at UTI service in a hospital of São Paulo city. The results shows some sad during the prepare of the body and the compreension that the time of the experience and the type of relationship make the different in this procedure.

Uniterms: Death. Nursing. Body.

INTRODUÇÃO

"Primeira providência: preparar o defunto para o velório e tratar do funeral. O cuidado com o cadáver era da maior importância, uma das garantias de que a alma não ficaria por aqui penando. Cortavam-se cabelo, barba, unhas. O banho não podia tardar, sob pena de o cadáver enrijecer, dificultando a tarefa. Os nagôs acreditavam que a falta dessa cerimônia impedia o morto de encontrar seus ancestrais, tornando-o um espírito errante, um isekú. Tal como entre os iorubas, o defunto baiano devia estar limpo, bonito, cheiroso para o velório, esse último encontro com parentes e amigos vivos"

Reis, J.J., 114-115

Gostaríamos de descrever as impressões cotidianas dos profissionais de Enfermagem de uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), que enfrenta no cotidiano a ruptura sofrida pelo indivíduo sadio que tornou-se gravemente doente, executa procedimentos rotineiros de cuidado, inclusive com cadáveres, tendo em vista a atual institucionalização da morte para dentro dos hospitais, longe das pessoas, fazendo parte da rotina de trabalho apenas da equipe de saúde, portanto, de Enfermagem.

KOSIK (1985) considera que a cotidianidade e o modo de viver se transformam em um instinto, subconsciente e inconsciente, irrefletido mecanismo de ação e de vida, onde tudo está ao alcançe das mãos e as intenções de cada um são realizáveis. A morte, as doenças, o nascimento e as derrotas constituem os acontecimentos da vida de cada dia, porém a sociedade contemporânea tem refutado cada vez mais a doença e, especialmente, a morte, dando-lhe um caráter pejorativo.

A morte é vista como um fato despersonalizado e desagradável, se diz a morte e não o morrer como uma fase do processo de vida, assim como o nascer, o crescer, entre outros. Assim, torna-se um tabu discuti-la, e grande parte dos autores que a estudam corroboram com tal afirmação, principalmente por se pautarem na literatura de ARIES (1981), que estudou por duas décadas o referido tema na sociedade Ocidental Cristã, desde a Idade Média até nossos dias. Esse autor identificou que a morte é banida, ocultada e proibida nas preocupações do homem ocidental do nosso século, algo obsceno, um verdadeiro tabu.

ELIAS (1989) define a morte como um problema dos vivos, já que os mortos não tem problemas. O pensamento acerca do ato de morrer tem se modificado junto ao processo de transformação da sociedade e está diretamente atrelado ao estado de desenvolvimento de cada sociedade, suas especificidades, valores e ritos. O citado autor salienta que o ato de morrer foi, em outra época, um assunto muito mais público do que atualmente . Isto se dava pelas próprias características de organização da sociedade medieval, pois a morte era algo constante, pela presença de guerras e pestes que a assolavam constantemente. Além disto, as pessoas viviam mais aglomeradas pela própria dinâmica familiar e planta física das residências, tornando a morte e o nascimento acontecimentos mais cotidianos.

Na sociedade pré-mercantil, o agonizante possuia um status, poderes, direitos, uma identidade reconhecida, em suma, uma dignidade. A sociedade mercantil aboliu esses valores, o agonizante não passa de um homem que se encaminha gradualmente para a disfuncionalidade total (ZIEGLER, 1977).

A instrumentalidade tecnológica do hospital permite, geralmente, tratamentos mais eficazes do que os cuidados a domicílio, mas impõe ao moribundo, muitas vezes, uma agonia infinitamente mais penosa do que a vivida em casa, junto aos "familiares" (ZIEGLER, 1977). Caldwell apud ZIEGLER (1977), em seus estudos, concluiu que "a mais desejável das mortes, a morte instantânea, ocorre quase sempre entre os doentes tratados em casa e que não precisaram sofrer os degradantes cuidados intensivos dos hospitais. As angústias de uma doença prolongada foram-lhe poupadas, assim como as atribuições do final ".

Pensando na morte em seu aspecto biológico e racional, torna-se relativamente fácil diagnosticá-la como um acontecimento cotidiano, que completa o ciclo da vida nascer,crescer, envelhecer e morrer auxiliando na continuidade da espécie. Porém, quando ela acontece, não está desprovida de um contexto emocional, ao representar a quebra de um vínculo com alguém que se goste ou não, que não estará mais no cotidiano dos "viventes". É, além de tudo, um momento de síntese, onde se reflete à respeito dos vários aspectos da pessoa e da nossa vida.

O indivíduo é antes de tudo aquilo que o seu mundo é, isto é, pensa, age, sente como sujeito social, mesmo sem ter consciência plena dessa realidade. A condição da vida determina sua consciência e lhe fornece os elementos para interpretar a sua própria existência. Na medida em que o indivíduo se identifica inicialmente com seu ambiente mais próximo, aquele que ele pode manipular, a sua própria existência e sua compreensão se tornam para ele o distante, o menos conhecido (CARVALHO, 1994; HELLER,1972).

Na vida profissional, o deparar constante com situações estressantes e de “perda” de pacientes, proporciona aos profissionais de saúde, momentos de reflexões e capacidade de observação aguçada, ainda que assistematizadas. Essas reflexões são realizadas rotineiramente acerca do processo de identificação e imagens simbólicas dos indivíduos "saúdáveis" que assistem e participam da morte do "outro". As reações às perdas que os profissionais de saúde vão tendo ao longo da vida, em nivel físico, emocional, social e espiritual varia de pessoa para pessoa e depende das circunstâncias que rodeiam a morte: tipo de relação que existia entre ambos, qualidade dos mecanismos de defesa utilizados, entre outros (CALLANAN; KELLEY, 1994; SPÍNDOLA et al., 1994).

Apesar da morte fazer parte da rotina dessas profissões, o desejo é que sempre aconteça "no plantão do outro", e surgem várias reações para negar ou anular tal acontecimento, pelo silêncio e vazio do leito, que logo será preenchido novamente por outro paciente. Para alguns pacientes, a expectativa da equipe é que eles "descansem" logo, visto estarem sofrendo muito, e a enfermagem percebe cada pedaço que se deteriora num dia.

Pasternak apud CALLANAN; KELLEY (1994) afirma que os profissionais de saúde não falam da morte, especialmente os médicos, porque a morte é uma evidência do nosso limite, da nossa mortalidade enquanto condição humana.

Observamos, na prática diária, que é o vestiário o local onde concentram-se os comentários acerca dos pacientes que morrem inesperadamente e dos que a morte é uma situação esperada, por ser o ponto de encontro entre os membros dos turnos matutino, vespertino e noturno. Não podemos deixar de contar o caso relatado num desses encontros, em que um paciente idoso ficou por vários dias na UTI, consciente, não querendo ser sedado, pois preferia ficar acordado para ver seus familiares durante o horário de visita. Piorava a cada dia e a equipe vivênciava isto "bem de pertinho". No dia de sua morte, o comentário no vestiário era de que deram-lhe o banho no leito e ele "espreguiçou e morreu confortavelmente...".

Quando o moribundo internado numa unidade hospitalar morre, seu corpo é submetido ao preparo, que é uma mescla de ritual com seguimento de uma rotina e rigor técnico. Este preparo é realizado, em sua totalidade, pela equipe de Enfermagem.

No momento da morte não é comum o médico estar presente apesar de ser o responsável pela constatação formal e legal da morte. Ele faz o laudo diagnóstico e deixa o corpo aos cuidados da Enfermagem, na maioria das vezes, a primeira a presenciar o ocorrido (PIMENTEL et al.,1978).

Constatado o óbito através de parâmetros clínicos, o passo seguinte é o preparo do corpo e aviso aos familiares. O preparo do corpo segue a rotina estabelecida, normalmente de acordo com a cultura da sociedade.

A Enfermagem, geralmente, é a primeira a lidar e "sentir" a morte do paciente, já que este se torna dependente de seus cuidados, que vão desde os mais banais, como escovar os dentes, até os mais complexos, principalmente quando o paciente está em estágio terminal. O aproximar do estágio terminal é detectado pelas respostas emotivas, pelos odores, pelo acúmulo de secreções, pela coloração da pele e falência progressiva de órgãos importantes.

Durante esse preparo, as cortinas são cerradas, os biombos aparecem ao redor do leito, evitando mal estar ao paciente do lado, que muitas vezes percebe o ocorrido pela linguagem não verbal existente entre os profissionais, já que como um "toque de mágica" o leito se esvazia até a chegada de outro paciente. Esta postura de esconder o morto como algo "feio", advém da própria cultura de nossa sociedade, como descrito pelos estudiosos da área, e que, como conseqüência, se encontra também dentro da cultura hospitalar (PASTORE, 1995; PIMENTEL et al., 1978).

O sofrimento das pessoas que compõem a equipe de Enfermagem parece ser mascarado pelo cumprimento das rotinas. Este sofrimento decorrente do envolvimento emocional da equipe, são fatos vivenciados na unidade hospitalar e estão diretamente ligados aos valores pessoais, à história de vida e à patologia que acomete o paciente. Para ela a morte assumirá o papel de "descanso e alívio" do sofrimento ou ainda de "tragédia", diferentemente do que julga o senso comum de "frieza" sobre os fatos tristes que ocorrem no dia-a-dia do hospital, pois esses trabalhadores são "gente cuidando de gente" (HORTA, 1975). Trata-se de um cotidiano árduo e é preciso ter muita sensibilidade e vários mecanismos de defesa, como estuda a psicologia, para suportá-lo, e muitas vezes, podem ser erronêamente considerados "atos de frieza".

Não podemos esquecer que o profissional, como todo ser humano, tem suas tristezas, irritações, receio da morte, dentre outros sentimentos, devendo procurar, na medida do possível, tornar estas tensões mínimas, assegurando que suas respostas individuais não prejudiquem o paciente e seus familiares (PIMENTEL et al., 1978).

Levando em consideração o exposto, temos como objetivo nesse trabalho:

- Verificar a percepção do enfermeiro e auxiliar de enfermagem diante do ritual de preparo do corpo pós-morte.

CAMINHO METODOLÓGICO

Local do estudo - O campo escolhido para a coleta de dados foi um hospital particular da cidade de São Paulo, com 20 leitos de UTI.

População - Foram entrevistados 23 elementos da equipe de Enfermagem atuantes na UTI, que aceitaram participar da pesquisa e tiveram experiência no preparo do corpo pós-morte. Garantiu-se o anonimato às respostas. A escolha do local se deu também pelo fato de uma das autoras ser funcionária do local e estar preocupada com essa temática.

Coleta de dados - A coleta foi realizada em agosto de 1996, por uma das autoras, aplicando-se um questionário para os funcionários da equipe de Enfermagem de todos os turnos de forma equitativa (matutino, vespertino e noturno), após sorteio prévio (amostra aleatória). O questionário constou de dados de identificação (função, sexo, idade, religião e tempo de profissão) e de cinco perguntas abertas relacionadas ao significado do preparo do corpo pós-morte (Anexo I Anexo I ). Os respondentes devolveram o questionário no mesmo dia do turno de trabalho em que foi entregue.

Tratamento dos dados - Os dados foram categorizados à partir das respostas obtidas nas questões formuladas, e alguns deles trabalhados quantitativamente.

APRESENTAÇÃO DOS RESULTADOS

Foram entrevistados 23 membros da equipe de enfermagem que correspondem à 25% da população de funcionários da UTI. Desses 23, 13 (56, 5%) são enfermeiros e 10 (43,5%) auxiliares de enfermagem. Dez (76,9%) enfermeiros eram do sexo feminino e 3 (23,1%) masculino e nos auxiliares de enfermagem 5 (50%) eram mulheres e 5 (50%) homens.

A faixa etária predominante dos entrevistados variou de 21 à 30 anos, em 12 (52,2%) deles, entre 31 à 40 anos em 8 (34,8%), para as duas categorias profissionais. Os dados coletados não serão analisados relacionados à faixa etária e sexo, por não termos encontrado diferenças significativas.

Quanto ao item religião, detectamos que 17 (73,9%) afirmaram ter religião, sendo 8 (47,1%) praticantes, predominando a religião católica (13). Seis (26,1%) referiram não possuir religião, porém um deles afirmou crer em "Deus" e outro que acredita que o preparo do corpo pós-morte para a equipe de enfermagem, é preparar alguém para encontrar com "Deus ".

Desta maneira, percebemos que os princípios religiosos norteiam de alguma forma a atitude das pessoas do presente estudo, tornando-se um instrumento de “proteção” e explicação perante os acontecimentos difíceis, mesmo em situações profissionais, como já constatou MARTINS (1983).

Quando questionados sobre quantas vezes já haviam preparado um corpo, 10 (43,5%) afirmaram ter preparado mais de 50 vezes; 7 (30,4%) até 10 vezes e 6 (26,1%) de 11 a 50 vezes, ou seja, 16 (69,6%) dos profissionais de enfermagem já haviam preparado mais de 11 vezes um corpo pós-morte. Em relação ao tempo de exercício da profissão, 15 (65,2%) possuem de 5 a 10 anos de formado, 6 (26,1%) possuem até 5 anos, o que podemos considerar principiantes numa carreira profissional e 2 (8,7%) mais de 10 anos.

Quando questionados acerca do que é o preparo do corpo para a equipe de enfermagem, detectamos que os entrevistados reconhecem o preparo do corpo pós-morte como uma atribuição que faz parte do cotidiano, que é impossível fugir, mesmo quando verbalizado como sendo normal, pois é continuidade dos procedimentos de enfermagem. SPÍNDOLA et al. (1994) já encontraram esta sensação presente em seus estudos, quando entrevistaram profissionais de enfermagem que trabalham com pacientes aidéticos.

Percebemos que os profissionais da equipe de Enfermagem ficam envolvidos com os seus afazeres técnicos durante o preparo do corpo pós-morte, sendo tocados por sentimentos e emoções variados, onde o vínculo com o paciente e o tempo de atuação profissional foram indicados como elementos mediadores dessa emoção vivenciada. Exemplificando:

...são fatores que variam com a idade e o tempo de internação...

....depende do envolvimento que tivemos com o paciente...

A emoção presente no momento do preparo do corpo foi identificada como "triste", "deprimente", "impressionante", "fim de luta" e "sofrimento", "estressante e angustiante", "chato", "além de um mal necessário". Alguns reconhecem o mecanismo de defesa que necessitam ter nesses momentos, mesmo quando traduzidos em forma de frieza, piadas, que com o passar do tempo de profissão vão se sedimentando; dado que corrobora com os achados de SPÍNDOLA et al (1994), revelando a aparente insensibilidade dos profissionais, como um mecanismo de defesa para suportarem melhor seu cotidiano.

Em 5 profissionais principiantes, com menos de 5 anos de UTI , percebemos sentimentos relacionados à impotência frente à situação de morte (resposta à pergunta 3 do questionário). Este sentimento traduz-se tanto numa impotência pessoal frente à sua própria morte, como na perspectiva de que poderia ter feito melhor para dar conta desta tarefa. Ilustramos isso, através das frases:

...todo seu trabalho não resultou em melhora para o paciente

...é uma sensação de vazio por todo trabalho em função do paciente não ter resultado em sucesso

...a impressão é de batalha perdida

...é impotência frente à irreversibilidade do quadro

Em nenhum relato acerca do preparo do corpo detectou-se a sensação de atividade suja ou sem importância, ao contrário, consideraram como início de um ritual, o qual todos passaremos. ELIAS( 1989) considera que o contato mais estreito com moribundos traz a necessidade indomável de crer na própria morte, fato percebido em um dos entrevistados,através da fala:

(é...) uma reflexão de que estou vivo, este corpo não.

Os que consideraram como um procedimento normal e natural, complementaram que o sentimento mais presente para as pessoas que estão preparando o corpo pós-morte, é o de tristeza e identificação, por ser também o nosso fim.

Observamos que quando a fala traz o sentimento tristeza, é ,de uma certa forma, um sentimento mais “elaborado”, pois está isenta de impotência ou culpa pelo que poderia ter deixado de se fazer. Segundo Pasternak apud CALLANAN; KELLEY (1994), a Enfermagem tem uma convivência mais simples e mais honesta com a morte, e esta não é um fracasso profissional técnico, mas algo que faz parte de sua vida profissional. Podemos inferir, que o número de vezes que os participantes relataram ter preparado o corpo pós-morte, que variou de duas até duzentas vezes, demonstrou relação com o processo de amadurecimento dos sentimentos e proximidade de uma situação real de alguém que morre.

A impotência, piedade, medo, curiosidade para descobrir o desconhecido, perda, recordações particulares, sensações desagradáveis, estressantes e angústia foram expressões utilizadas em menor freqüência pelos entrevistados (menos de 20% cada uma delas), quando questionados sobre os sentimentos presentes nas pessoas que preparam o corpo pós-morte.

Nessa questão (3º ) , relacionaram o envolvimento com o paciente como um fator considerável na manifestação do sentimento presente nesse momento, reconhecendo mais incisivamente o processo de identificar-se com essa situação, dependendo do vinculo desenvolvido durante o processo de cuidar.

Quando direcionamos a questão para “o que é para você preparar o corpo pós-morte?”, apenas três descreveram que o preparo do corpo pós-morte é uma técnica como outra qualquer, que faz parte da rotina, sem menção de sentimentos, porém desvelam-se nas demais questões com respostas e citações de sentimentos. Observamos que esses mesmos três profissionais valorizam o respeito perante o preparo do corpo, e que esse respeito e outros sentimentos são intensificados novamente, de acordo com o vinculo com o paciente. Apenas uma outra funcionária referiu que após a morte o corpo não tem significado nenhum, “do pó e ao pó retornará”. Percebemos porém, que para a grande maioria desses profissionais, é um momento de reflexão: a morte é inerente à existência , tocar no ser humano pela última vez, deve ser um momento especial, de respeito, zelo e amor; dados que corroboram aos achados de SPÍNDOLA et al (1994), que já referiram ser o morrer um acontecimento que é percebido como um momento de reflexão, por lembrar a finitude humana. Um dos participantes afirma:

É tecnicamente incômodo. Religiosamente confuso. Pessoalmente ruim.

No que se refere à diferença entre o preparo do corpo e os demais procedimentos, 18 (83%) profissionais afirmaram que há diferença durante a realização dos procedimentos, uma vez que é o último procedimento realizado com o paciente e não existe expectativa de sobrevivência, alguns com a impressão de batalha vencida, onde todos chegaremos, enquanto que na realização dos outros procedimentos de enfermagem reside a briga pela vida. As respostas trazem a dialética entre a vida e a morte, acompanhados de tristeza e respeito ao ser humano. Dois profissionais deixaram essa questão em branco e três entrevistados que negam essa diferença, tratam o procedimento como "normal", um seguimento da assistência e que exige respeito. Exemplificando a diferença citada por eles:

Os procedimentos de enfermagem são para que os "vivos" adoecidos não morram, são feitos com mais delicadeza. Já o preparo do corpo é técnico, mais frio e sem expectativa.

Quanto aos tipos de pensamentos presentes durante este momento, os participantes perceberam ser uma situação real de morte do outro ser humano, que desperta inúmeras reflexões acercada vida do paciente : o que a pessoa deixou de viver; que coisas boas viveu; imagino o quanto a pessoa deveria ter sido amada e na falta que fará para seus entes queridos; mas sinto que seu plano na terra já está concluido; se de alguma forma poderá acompanhar tudo que acontece com seu corpo; se sofreu durante a "passagem"; arrisco a pensar que descansou de um grande sofrimento; e, reflexões de si mesmo, trazendo recordações pessoais e identificando-se com a proximidade deste momento. Não é perceptível uma sensação de impotência nos discursos, mas uma fragilidade frente a mortalidade que não estamos isentos, o desconhecido. Ilustrando:

...a gente não é nada nesta vida, que tem que se viver da melhor forma possível

...o quanto somos pequenos e frágeis

...que bom, estou viva

...pensando quando chegar minha vez

...poderia ser um parente meu

...lembro de pessoas intimas falecidas, se fiz tudo que estava ao meu alcance

Houve diferença na forma de responder entre homens e mulheres. Os homens, de uma maneira geral, descreveram as situações profissionais de forma mais objetiva, falando dos sentimentos numa segunda fase do instrumento de coleta de dados, a partir da quarta questão: o que é para você preparar o corpo, diferentemente das mulheres que relataram seus sentimentos já no início do instrumento. Podemos inferir que isso seja um reflexo de nossa cultura, onde os homens são"treinados " para não expressar sentimentos tão livremente quanto as mulheres.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse trabalho demonstrou que, para a população estudada, o enfrentamento com a morte não é desprovido de profissionalismo, sentimentos e emoções, já que o corpo mortal é o instrumento de trabalho destes profissionais. LIMA (1994) afirma que a enfermagem deve ser compreendida como arte e ciência das pessoas conviverem e cuidarem de outras, onde há o atendimento, na medida do possível, das necessidades bio-psico-socio-espirituais, mantendo-se o princípio ético de manter ou restaurar a dignidade do corpo em todos os âmbitos da vida.

Os resultados demonstraram que os profissionais encontram-se bastante tristes durante o preparo do corpo e associam o vínculo com o paciente e o tempo de experiência profissional com a intensidade e a presença de determinadas emoções. A sensação de impotência apareceu apenas nos profissionais com menos tempo de trabalho na UTI, sendo comum para a maioria a sensação de " fragilidade diante do inevitável" . Um dos entrevistados afirma:

Ninguém se torna bom só porquê morreu, assim como ninguém é mau só porquê preparou um corpo. (Auxiliar de Enfermagem )

ANEXO I: Instrumento de Coleta de Dados

Prezado Sr(a):

Gostaríamos que você respondesse à este questionário, que faz parte de um trabalho cujo objetivo é verificar a percepção do profissional de enfermagem com experiência no preparo do corpo pós-morte.

Ressaltamos que não é necessário identificar-se e que sua colaboração nos é de extrema importância!!

Obrigada!!

1. Perfil:

a) Função ........................................................................................................

b) Sexo: ( ) feminino ( ) masculino c) Idade: ...............................

d) Tem religião?: ( ) sim ( )não Qual? .........................................

e) Se tem, praticante? ( ) sim ( ) não

f) Quantas vezes (aproximadamente) você preparou um corpo pós-morte?.....................

g) Tempo de experiência na enfermagem: ................................................................

2. Como você acha que é o preparo do corpo pós-morte para o pessoal de enfermagem?

3. Que sentimento você imagina que seja o mais presente para as pessoas que estão preparando um corpo pós-morte?

4. E para você, o que é preparar o corpo pós-morte?

5. Existe alguma diferença quando você realiza o preparo do corpo em relação à outros procedimentos?

( ) Não, por quê?...............................................................................................

( ) Sim, qual?...................................................................................................

6. Que tipo de pensamentos surgem em você durante o preparo do corpo pós-morte?

  • ARIES, P. O homem diante da morte . Rio de Janeiro, Francisco AIves, 1981. v. 1.
  • CALLANAN, M.; KELLEY, P. Gestos finais .São Paulo, Nobel, 1994.
  • CARVALHO, M. do C.B. de Cotidiano: conhecimento e critica. São PauIo, Cortez, 1994.
  • ELIAS, N. La soledad de los moribundos. México, Fondo de Cultura Económica, 1989.
  • HELLER, A. O cotidiano e a história .Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1972.
  • HORTA, W. de A. Necessidades humanas básicas: considerações gerais. Enf. Novas Dimens., v.1, n.5, p.266-8, 1975.
  • KOSIK, K. Dialética do concreto: metafísica da vida cotidiana. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
  • LIMA, M. J. de. O que é enfermagem? São Paulo, Brasiliense, 1994.
  • MARTINS, J. de S. A morte e os mortos na sociedade brasileira. São Paulo, Hucitec, 1983.
  • PASTORE, K. UTI: o corredor da vida e da morte. Veja, n.19 p.72-9 ,1995.
  • PIMENTEL, M.A. et al. Amenizando a morte. Enf. Novas Dimens., v.4, n. 6, p.351-4, 1978.
  • REIS, J. J. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São PauIo, Companhia de Letras, 1991.
  • SPÍNDOLA, T. et al. A morte no hospital e seu significado para os profissionais. Rev.Bras.Enf., v.47, n.2, p.108-17, 1994.
  • ZIEGLER, J. Os vivos e a morte. Rio de Janeiro, Zahar, 1977.

Anexo I

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Mar 2010
  • Data do Fascículo
    Ago 1998
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: reeusp@usp.br