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A visão dos trabalhadores da Atenção Básica acerca da presença de estudantes de enfermagem

Visión de los trabajadores de atención básica acerca de la presencia de estudiantes de enfermería

Resumos

Essa investigação qualitativa objetivou analisar a visão dos trabalhadores de uma Unidade Básica de Saúde quanto à presença no serviço de estudantes de graduação em enfermagem. Dezoito trabalhadores foram sujeitos de entrevistas semi-estruturadas, analisadas após transcrição. Na análise de conteúdo identificamos dois temas: A lentificação e a vivificação do serviço e O (des)preparo para aprender e ensinar. Os resultados apontam para um processo de parceria ensino-serviço ainda em construção, em que os trabalhadores sentem-se aprendendo, mas também desvalorizados. Com a presença dos estudantes, a dinâmica do trabalho é modificada, tornando-se mais lenta. Ao mesmo tempo, a presença estudantil interroga as formas hegemônicas de atender rapidamente. Evidencia-se expectativa de colaboração nas ações, havendo preferência pelos estudantes dos últimos anos que executam procedimentos e não requerem acompanhamento constante. Concluimos que a aproximação entre universidade e serviços da Atenção Básica expõe tensões que, se analisadas coletivamente, podem engendrar novas formas de cuidar, ensinar e aprender.

Atenção Primária à Saúde; Enfermagem em saúde comunitária; Educação em Enfermagem; Programas de Graduação em Enfermagem


Investigación cualitativa que objetivó analizar la visión de trabajadores de una Unidad Básica de Salud en relación a presencia de estudiantes de enfermería. Dieciocho trabajadores fueron sometidos a entrevistas semiestructuradas, analizadas después de su transcripción. El análisis de contenido temático identificó dos temas: Desaceleración y vivificación del servicio y La falta de preparación para aprender y enseñar. Los resultados apuntan a un proceso de alianza enseñanza-servicio todavía en construcción, donde trabajadores se sienten aprendiendo, pero también desvalorizados. La dinámica laboral es modificada por presencia de estudiantes, desacelerándose. Al mismo tiempo, presencia estudiantil incita formas hegemónicas de atender rápidamente. Se evidencia expectativa de colaboración en acciones, prefiriéndose a estudiantes de los últimos años que llevan a cabo procedimientos y no requieren supervisión permanente. Se concluye en que la aproximación entre universidad y servicios de atención primaria expone tensiones que, analizadas en conjunto, pueden determinar nuevas formas de cuidar, enseñar y aprender.

Atención Primaria de Salud; Enfermería en salud comunitária; Educación en Enfermería; Programas de Graduación en Enfermería


This qualitative research aimed to analyze the view of the workers at a basic health unit on the presence of nursing students at the service. Eighteen workers participated in semi-structured interviews, analyzed after transcription. In the content analysis, we identified two themes: The slowing and quickening of service and The (un)preparedness to learn and teach. The results point to a process of teaching-service partnership still under construction, in which workers feel as though they are learning, but also feel devalued. The presence of the students changes the work dynamics, slowing it. At the same time, the presence of the students questions the hegemonic ways of rapid assistance. An expectation of collaboration in actions is evidenced, there being a preference for students in the last years of undergraduate courses, who perform procedures and do not require constant accompanying. We conclude that the approach between university and primary healthcare services exposes tensions which, collectively analyzed, can engender new ways of caring, teaching and learning.

Primary Health Care; Community health nursing; Education, Nursing; Diploma Programs


INTRODUÇÃO

A enfermagem é uma prática social constituída social e historicamente( 11. Almeida MCP, Rocha SMM. O trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997. ). Com essa perspectiva teórica, consideramos que seus agentes podem vir a se constituir um grupo-sujeito( 22. Guattari F. Revolução molecular: pulsações políticas do desejo. 3ª ed. São Paulo: Brasiliense; 1987. ) para implementação de práticas de cuidado que materializem a defesa radical da vida( 33. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000. ) e da saúde como direito de cidadania.

A formação dos trabalhadores de saúde desempenha o papel de importante catalisador de processos de mudanças ou de manutenção das práticas desenvolvidas. Pode naturalizar e legitimar modos de pensar e agir como a prevalência do saber acadêmico sobre o saber popular, a hierarquia e a fragmentação entre saberes e fazeres( 44. Feuerwerker L. Estratégias de mudança da formação dos profissionais. Olho Mágico. 2002;9(1):16-8. ). Mas, pode também agenciar mudanças fomentando reflexões e a produção de projetos coletivos( 33. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000. ) de cuidado. Nesse processo de implementação de novas formas de ensinar e aprender, é importante que os estudantes de graduação em enfermagem vivenciem, o mais precocemente possível, a prática nos serviços de saúde( 55. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Parecer CNE/CES n. 1.133, de 7 de agosto de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição {Internet}. Brasília; 2001 {citado 2010 mar 23}. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/ces1133.pdf
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- 66. Paranhos VD, Mendes MMR. Currículo por competência e metodologia ativa: percepção de estudantes de enfermagem. Rev Latino Am Enferm. 2010;18(1):109-15. ).

A mobilização de atores sociais para as mudanças das práticas de saúde e do ensino de saúde no país levou à formulação de Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN)( 55. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Parecer CNE/CES n. 1.133, de 7 de agosto de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição {Internet}. Brasília; 2001 {citado 2010 mar 23}. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/ces1133.pdf
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) para os cursos da área, dentre eles, a Enfermagem. Para as DCN do Curso de Graduação em Enfermagem, a formação do enfermeiro deve ter ênfase no Sistema Único de Saúde (SUS) e na Atenção Básica em Saúde, assegurando uma assistência que atenda às necessidades sociais, considerando a humanização e a qualidade do atendimento norteada pelo princípio da integralidade( 55. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Parecer CNE/CES n. 1.133, de 7 de agosto de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição {Internet}. Brasília; 2001 {citado 2010 mar 23}. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/ces1133.pdf
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).

Assim, espaços historicamente não frequentados por estudantes e docentes passam a compor cenários de aprendizagem, buscando romper a lógica dos serviços-escola, espaço geralmente hospitalar e especializado, considerado como modelo para o estabelecimento de parcerias que permitam a vivência da rede de saúde tal como essa se apresenta para se repensar tanto as práticas de ensino como as de cuidado individual e coletivo( 66. Paranhos VD, Mendes MMR. Currículo por competência e metodologia ativa: percepção de estudantes de enfermagem. Rev Latino Am Enferm. 2010;18(1):109-15. ).

Esse arranjo busca também interrogar a separação entre teoria e prática e entre o saber científico e saber popular. Nos espaços de trabalho das universidades e dos serviços de saúde há saberes e conhecimentos que norteiam as práticas e as relações( 77. Pereira WR, Tavares CMM. Factors associated to pressure ulcers in patients at Adult Intensive Care Units. Rev Esc Enferm USP {Internet}. 2010 {cited 2012 Feb 22};44(4): 1077-84. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v44n4/en_31.pdf
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), que se conjugam, modificam-se e produzem-se mutuamente.

Nessa nova perspectiva, a aproximação das universidades aos serviços de saúde, especialmente da Atenção Básica em Saúde, vem produzindo tensões que necessitam ser reconhecidas e analisadas para gerar aprendizados para todos os envolvidos: trabalhadores, docentes, estudantes e gestores do ensino e da saúde. É na micropolítica do trabalho em saúde( 88. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002. ) que esses processos revelam-se e ocultam-se, compondo uma trama que pode engendrar tanto a reprodução de práticas instituídas, como a germinação de novas formas de saber/fazer que se direcionam para aprendizados coletivos, solidários e inéditos.

São também nesses microespaços que se desenvolvem relações de poder que fazem com que se estabeleçam relações hierárquicas entre os trabalhadores e também desses para com os usuários( 33. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000. - 44. Feuerwerker L. Estratégias de mudança da formação dos profissionais. Olho Mágico. 2002;9(1):16-8. ). Essas relações de poder fragilizam o desenvolvimento do trabalho em equipe e da interprofissionalidade( 99. Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saúde Pública. 2001;35(1):103-9.

10. Peduzzi M, Carvalho BG, Mandu ENT, Souza GC, Silva JAM. Trabalho em equipe na perspectiva da gerência de serviços de saúde: instrumentos para a construção da prática interprofissional. Physis Rev Saúde Coletiva. 2011;21(2):629-46.
- 1111. Aguilar da Silva RH, Scapin LT, Batista NA. Avaliação da formação interprofissional no ensino superior em saúde: aspectos da colaboração e do trabalho em equipe. Avaliação (Campinas) {Internet}. 2011 {citado 2011 mar. 23};16(1):165-84. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/aval/v16n1/v16n1a09.pdf
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).

A problemática dessa investigação aborda a tensão produzida nesses microespaços sob a ótica de trabalhadores de serviços de saúde da Atenção Básica ao acompanharem estudantes de enfermagem.

Estudos sobre as mudanças na formação de enfermeiros baseadas nas atuais DCN apontam como desafios a superação da fragmentação das práticas, as dificuldades para formação de profissionais críticos-reflexivos( 66. Paranhos VD, Mendes MMR. Currículo por competência e metodologia ativa: percepção de estudantes de enfermagem. Rev Latino Am Enferm. 2010;18(1):109-15. , 1212. Nosow V, Püschel VAA. The teaching of attitudinal content in higher education of nursing. Rev Esc Enferm USP {Internet}. 2009 {cited 2011 Mar 17};43(spe2):1232-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43nspe2/en_a15v43s2.pdf
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- 1313. Niemeyer F, Silva K, Kruse MHL. Diretrizes curriculares de enfermagem: governando corpos de enfermeiras. Texto Contexto Enferm. 2010;19(4):767-73. ), mas pouco exploram as tensões que estão presentes no acompanhamento de estudantes sob a ótica dos trabalhadores de saúde da Atenção Básica. Assim, este estudo se justifica, pois vem contribuir para essa perspectiva, tendo como questão norteadora: - Qual a visão dos trabalhadores em relação à presença dos estudantes de graduação em enfermagem na unidade básica de saúde?

A presente investigação tem por objetivo analisar a visão dos trabalhadores de uma unidade básica de saúde quanto à presença de estudantes de enfermagem.

MÉTODO

Essa pesquisa de abordagem qualitativa e caráter descritivo foi realizada em uma Unidade Básica de Saúde escolhida conforme os seguintes critérios: 1) pertencer ao Distrito Oeste da cidade de Ribeirão Preto, SP, pactuado pelo Gestor local, para realização de atividades de assistência, pesquisa e formação da Universidade de São Paulo de Ribeirão Preto; 2) estar inserida no Programa de Educação pelo Trabalho - PET Saúde( 1414. Brasil. Ministério da Saúde; Ministério da Educação. Portaria Interministerial n. 421, de 3 de março de 2010. Institui o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET Saúde) e dá outras providências {Internet}. Brasília; 2010 {citado 2011 out. 23}. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/portaria_interministerial_n_421.pdf
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), programa que visa a qualificação da formação de profissionais de saúde para o SUS, através da educação pelo trabalho, com a construção de projetos coletivos que contemplem a interdisciplinaridade, presença multiprofissional e integração ensino-serviço; 3) tratar-se de UBS que não possua equipe de Saúde da Família, por ser a forma mais predominante de organização da atenção básica no município, e 4) concordar em participar do estudo.

Após apresentação do projeto para as equipes de três UBSs que respondiam aos critérios de inclusão, houve sorteio, pois todas se dispuseram a participar do estudo. Após os esclarecimentos que se fizeram necessários, os sujeitos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, manifestando sua adesão voluntária. O projeto seguiu as recomendações éticas sendo aprovado pelo Comitê de Ética da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto sob protocolo número 1118/2010.

Os sujeitos da pesquisa foram 18 trabalhadores da UBS que se relacionavam com estudantes de enfermagem em seus horários de trabalho. Foram indicados pela gerência da unidade que os apontou como participantes da formação de enfermeiros, sendo seis agentes comunitários de saúde, nove auxiliares de enfermagem, um técnico de enfermagem e duas enfermeiras. Não houve recusa e os trabalhadores foram abordados na própria unidade de saúde podendo indicar sua disponibilidade de horário e local de preferência para a entrevista.

Foi feito levantamento em documentos de acesso público na World Wide Web das disciplinas que realizavam atividades na rede de Atenção Básica( 1515. Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Projeto Político Pedagógico dos Cursos de Graduação em Enfermagem da EERP. Ribeirão Preto; 2010. ), confirmando junto à gerência quais disciplinas envolviam a UBS. Em seguida, realizamos as entrevistas semi-estruturadas, no período de maio a junho de 2010, tendo como norte os objetivos da investigação.

As entrevistas foram gravadas, transcritas e analisadas segundo a análise de conteúdo( 1616. Bardin L. Análise de conteúdo. 3ª ed. Lisboa: Edições 70; 2004. ) na modalidade temática( 1717. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 11ª ed. São Paulo: Hucitec; 2008. ), que busca descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação, na qual a presença e a frequência possuem significados para o objeto analisado. Para a sua realização são necessárias três etapas importantes: 1ª) Pré-análise: leitura flutuante, constituição do corpus e formulação e reformulação de hipóteses e objetivos, 2ª) Exploração do material e 3ª) Tratamento dos resultados obtidos e interpretação( 1616. Bardin L. Análise de conteúdo. 3ª ed. Lisboa: Edições 70; 2004. ).

O referencial de análise que sustentou a interpretação dos dados foi o processo de trabalho em saúde( 11. Almeida MCP, Rocha SMM. O trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997. , 88. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002. ), aspectos do trabalho em equipe( 99. Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saúde Pública. 2001;35(1):103-9. - 1010. Peduzzi M, Carvalho BG, Mandu ENT, Souza GC, Silva JAM. Trabalho em equipe na perspectiva da gerência de serviços de saúde: instrumentos para a construção da prática interprofissional. Physis Rev Saúde Coletiva. 2011;21(2):629-46. ) e as diretrizes para a formação de trabalhadores de saúde e enfermeiros( 44. Feuerwerker L. Estratégias de mudança da formação dos profissionais. Olho Mágico. 2002;9(1):16-8. - 55. Brasil. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Parecer CNE/CES n. 1.133, de 7 de agosto de 2001. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais dos Cursos de Graduação em Enfermagem, Medicina e Nutrição {Internet}. Brasília; 2001 {citado 2010 mar 23}. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/dmdocuments/ces1133.pdf
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).

Os sujeitos foram identificados no texto conforme a categoria profissional através das siglas ACS para agentes comunitários de saúde, AE para auxiliares de enfermagem, TE para técnicos de enfermagem e E para enfermeiros, seguido de número sequencial.

A UBS recebe estudantes de enfermagem de dois cursos vinculados à Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (EERP-USP)( 1515. Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Projeto Político Pedagógico dos Cursos de Graduação em Enfermagem da EERP. Ribeirão Preto; 2010. ), Bacharelado em Enfermagem, que tem duração de quatro anos, e Bacharelado e Licenciatura em Enfermagem, com duração de cinco anos. Recebe ainda estudantes vinculados ao PET Saúde da EERP-USP e do curso de odontologia da Universidade São Paulo.

Nessa UBS ocorrem atividades de cinco disciplinas, sendo do curso de Bacharelado: Integralidade do Cuidado II e Estágio Supervisionado Curricular da Atenção Básica (ECSAB); e do curso Bacharelado e Licenciatura as disciplinas: Cuidado Integral em Saúde I e II (CIS I e CIS II) e o Estágio Curricular Supervisionado na Atenção Básica.

As disciplinas Integralidade II e CIS II são ministradas no 2º ano nos dois cursos, com carga horária de 150 e 240 horas, respectivamente, e preveem o desenvolvimento de cuidados individuais e coletivos as famílias em seu ciclo vital( 1515. Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto. Projeto Político Pedagógico dos Cursos de Graduação em Enfermagem da EERP. Ribeirão Preto; 2010. ).

A disciplina do Curso de Bacharelado é semestral, com imersões três dias por semana, pela manhã; e a do Curso de Licenciatura é anual, com imersões quinzenais, no período da tarde. As atividades realizadas pelos estudantes são de observação e execução de cuidados e procedimentos compatíveis com seu grau de competência e autonomia, sob supervisão de docente e de enfermeiro da EERP-USP que tem função de apoiar as atividades práticas. É neste momento que os estudantes têm contato mais direto com os auxiliares, técnicos de enfermagem e enfermeiros, acompanhando atendimentos na pré-consulta, pós-consulta, consulta de enfermagem, teste do pezinho, medicação, imunização, curativo, visitas domiciliárias, entre outras. Os docentes acompanham dez estudantes nas imersões e são distintos nos dois cursos.

O Estágio Curricular Supervisionado da Atenção Básica (ECSAB) para o Bacharelado prevê 360 horas de carga horária em campo e o da Licenciatura prevê 210 horas. No ECSAB há participação direta do enfermeiro da UBS na supervisão do estudante. A unidade recebe de um a dois estudantes de cada curso estagiando nos dois semestres.

Na disciplina CIS I do curso de Licenciatura estão previstas ações como: territorialização, conhecimento e articulação com os equipamentos sociais, aproximação aos princípios e diretrizes do SUS e da atenção primária à saúde, aproximação e seguimento de famílias. O contato dos estudantes iniciantes é mais frequente com os ACS e esporadicamente com os enfermeiros e auxiliares de enfermegem. Na UBS fazem a imersão dez estudantes acompanhados por um docente, no período da tarde, quinzenalmente. Essa é uma disciplina anual com carga horária de 180 horas.

A presença dos estudantes na UBS é maior no 1º semestre e a distribuição das disciplinas segue a lógica do calendário escolar, com um pico de utilização em um dos dias da semana (terça-feiras).

RESULTADOS

A análise das entrevistas levou à identificação de dois temas: A lentificação e vivificação do serviço e O (des)preparo para aprender e ensinar.

A lentificação e vivificação do serviço

A visão e expectativas que os trabalhadores da unidade têm dos estudantes decorre da organização do processo de trabalho da UBS estudada e o modelo de atenção hegemônico que realizam. Também decorre da organização do trabalho de ensino da universidade e do modo como se articulam historicamente formação e serviços. Nesse tema foram considerados os aspectos de que a presença dos estudantes provoca lentidão no atendimento ao mesmo tempo em que ajuda no serviço. Emerge o sentimento de desvalorização do trabalho e também a possibilidade de vivificação do serviço através da juventude, das novas ideias e da reflexão sobre a diferença:

(...) Quando o posto tá muito cheio, eles ajudam bastante, no comecinho é uma aposta: você tem que ajudar. Só que na hora que você precisa, aí tem a resposta, aí a pessoa te ajuda também, na medicação quando a gente ta atrasado lá e o aluno tá bom (...) Só os segundo ano que tumultuam um pouquinho, não vou mentir pra você não (AE 6). (...) acontece dos funcionários folgarem e aí chega aluno e eles falam: Eh, que beleza! vou ficar na boa e deixar pros alunos. Deixa pra eles que nós já trabalhamos demais, agora eles, que estão começando. (...) Tem funcionário que dá uma folgada quando tem aluno, sabe, dá uma escapada e deixa os alunos ralando (AE 3). (...) a maioria dos alunos do 4º ano que passaram por nós, a gente ficou satisfeita em tê-los aqui, eles acabam até assumindo, com a minha supervisão, assumindo os cuidados. Então, eu acho assim, não traz problemas, tá, pelo contrário, eles acabam ajudando, porque eles já tão no 4º ano, eles já têm práticas de algumas coisas, de algumas técnicas, então muitas vezes a gente até precisa de ajuda e eles acabam ajudando a gente (...) (E2). (...) Eu não gosto não. Eu prefiro que fique um e que observe, principalmente os mais recentes do segundo ano (TE1).

São exemplos de valorização e desvalorização do trabalho:

(...) particularmente eu gosto. Eu acho que com elas parece que o meu trabalho é mais valorizado nas ruas (...) Nós somos só o endereço pra eles (ACS6).

Destacamos que os trabalhadores podem vivenciar a formação dos graduandos a partir de um dado referencial do como deve ser um enfermeiro:

(...) a gente já fez até um comentário, a gente tem contato com aluno e fala assim: Essa vai ser enfermeira mesmo de por a mão na massa. E tem umas que a gente fala: Essa vai ser enfermeira pra mandar... Essa aí você pode trabalhar que você não vai ficar sozinha numa unidade nunca; e tem umas que você sabe que vai deixar o serviço rolar e vai só ficar na salinha dela, é ate feio falar isso (TE1).

A presença de estudantes expõe a forma habitual de atender em que a escuta e a reflexão muitas vezes não estão presentes, interrogando os modos de trabalhar e abrindo possibilidades de experimentar novos arranjos de cuidar:

(...) Só peço para eles terem paciência com a gente, porque tem hora que o paciente tira a gente do sério (...) mas às vezes tem gente que não tem muita paciência, né? Aí o paciente tá xingando e a gente tem que dar atenção para a pessoa que tá do seu lado (...) Então quem tá de frente com o paciente o dia inteirinho é muito difícil não ter uma hora que você se estressa (...) (AE 6). (...) uma outra paciente também, ela é cadeirante, ela se recusava, as alunas foram lá, propuseram até tá trazendo na consulta, ela veio. Eu agora to levando as medicações pra ela, (...) e as alunas vão lá sempre, então eu acho assim, uma experiência positiva, nunca negativa, pelo menos nessa parte (ACS4). (...) sabe, então eu acho que aluno não me incomoda não, ao contrário, (...) eu gosto deles porque a juventude é sempre bom (AE 7). (...) tem muita coisa boa que eles fazem.É que a vida da gente aqui é tão corrida que às vezes a gente não vê, mas têm muito palpite que eles dão. Ah! isso ficaria melhor assim. Eles têm mais assim tempo pra pensar ou vem de outro posto, às vezes outra pessoa fala, então eles trazem às vezes alguma ideia (...) (AE 6).

Outro aspecto a destacar é a construção de vínculos entre trabalhadores e estudantes que pode produzir um dado sofrimento, pois os estudantes passam e vão embora:

(...) E troca e conversa, então isso eu acho que é bom. Só que aí, de repente, né, eles tem que ir. Só que tem muitas que eu trabalhei que eu não perdi vínculo, perdi vínculo daqui dentro do trabalho, mas de vez enquanto elas me ligam, eu também ligo pra elas. Ficou uma amizade (ACS 1).

O (des)preparo para aprender e ensinar

Nesse tema apresentamos a visão sobre o processo de ensinar e aprender presente nas falas dos trabalhadores entrevistados que sugere um preparo prévio do estudante e o compromisso com os usuários. Também aponta para uma concepção de ensinar/aprender que se faz através de passagem de informação, trocas e hierarquias entre trabalhadores e estudantes, estudantes e docentes e docentes e trabalhadores:

(...)... é muito importante essa presença deles aqui com a gente, porque tanto a gente passa experiência, como a gente também ganha muita experiência (ACS1). (...) eu já tive paciente que desistiu da visita deles, por conta deles não estarem preparados, as outras vezes eles marcam e não aparecem para fazer visita ao paciente (ACS5). (...) Só falam que vão chegar os alunos que vão ficar de tal em tal tempo e que vão vir aqui pra aprender e ajudar agente. E é isso que eles falam, nada mais. (...) Alguns professores até chegam na gente e apresentam os grupos de alunos, se apresenta, já ocorreu muito disso aqui. Os professores também, mas em nível de chefia, tanto aqui como lá, a chefia nunca falou: Oh! vão chegar uns alunos. Quem apresentava era os professores que traziam os alunos, só alguns, outros não, chegavam com os alunos lá, você via gente estranha de repente, que estava lá igual funcionário (AE 3). (...) às vezes na maneira simples que eu faço, eles na maneira do estudo deles, eles podem casar, melhorar. (...) então eu acolho tudo o que eles me falam. (ACS2). (...) eles têm que seguir, a gente não a gente seguir eles, foi colocado isso e na verdade aqui acontece ao contrário: parece que a gente como se eles fossem os que se impõem, nós seguimos eles, mas nós conhecemos as famílias (ACS6). (...) A gente tem às vezes alguma dúvida que a gente tem a gente pergunta e elas respondem pra gente. Igual ontem, tivemos uma aula e uma aluna estava também, ela passou muitas coisas também e é muito bom porque a gente fica no dia-a-dia na rotina, né, pra gente é tudo rotina (AE5).

Há uma expectativa dos trabalhadores em contribuir para o aprendizado do estudante, esperando um retorno sobre isso e também reconhecimento do seu trabalho:

(...) o que eu tenho de experiência, pra mim foi muito bom, porque elas me trouxeram um retorno até que razoável, sabe, por elas estarem aprendendo (ACS 4). (...) eles estão interessados só com nossos casos, não em nós, no nosso cotidiano, não, (...) A preocupação do estudante é com o professor deles. Então a resposta que tem que dar é aos professores deles (ACS 6).

As entrevistas apontaram a presença dos estudantes como oportunidade de atualização:

(...) Tem coisas que eu pergunto se é isso pra eles, sobre o perímetro cefálico, (...) até teve uma vez que teve uma dúvida a Enfermeira (nome) falou que era de um jeito, ai teve outra monitora falou que que era de outro, aí pesquisaram lá e chegaram a um acordo. (...) Tira muitas dúvidas, eu tiro muita dúvida também das coisas ( AE 9). (...) É, a gente até aprende com eles, né, porque eu sou Auxiliar de Enfermagem então a minha formação não é uma formação técnica igual da Enfermagem. Tem muitos termos, muitas coisas que às vezes eu to comentando com eles e aí eu pergunto - Como que é mesmo que vocês falam? os termos mais científicos, então eu acabo aprendendo com eles, entendeu? (AE 7).

DISCUSSÃO

Os resultados mostram a diversidade de disciplinas que realizam práticas na Unidade Básica estudada, elas estão localizadas em momentos específicos da graduação, possuem objetivos de aprendizagem distintos e preveem a formação de profissionais com perfil profissiográfico( 1818. Anastasiou LGC. Metodologia de ensino na Universidade Brasileira: elementos de uma trajetória. In: Castanho ME, Castanho S, organizadores. Temas e textos em metodologia do ensino superior. Campinas: Papirus; 2001. p. 57-70. ) diferente, pois o curso de Bacharelado e Licenciatura pretende a formação de enfermeiros hábeis para o ensino profissional, além do cuidado de enfermagem.

Nas falas dos trabalhadores entrevistados são identificadas diferenças entre os estudantes do quarto e segundo ano do curso, os estudantes do primeiro e quinto ano da licenciatura não aparecem diretamente nas falas, embora tenha havido referência a estudantes desse ano através do nome da mesma. A fala do AE 6: vai ajudando ver a pressão colocar o soro, não tem nada negativo, só positivo, só os segundo ano que tumultuam um pouquinho, não vou mentir pra você não, aponta além da diferença dos anos a expectativa de realização das tarefas.

A análise das entrevistas mostra que as categorias profissionais veem de ângulos diferentes o acompanhamento dos estudantes, que é produzido nesse contato fragmentado, fruto do processo de trabalho em saúde desenvolvido pela divisão técnica e social do trabalho( 11. Almeida MCP, Rocha SMM. O trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997. ) e também do processo de trabalho acadêmico que ainda não conseguiu superar a fragmentação. Esse aspecto reforça relações de poder que, segundo o referencial do processo de trabalho em saúde( 11. Almeida MCP, Rocha SMM. O trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997. ), atualiza a disputa entre classes sociais no cotidiano dos serviços.

Para os auxiliares e técnicos de enfermagem, a expectativa de atuação dos futuros enfermeiros é de que sejam capazes de desenvolver trabalho compartilhado. Assim, a fala de TE1: Essa vai ser enfermeira mesmo de por a mão na massa (...) tem umas que você sabe que vai deixar o serviço rolar e vai só ficar na salinha dela ilustra essa perspectiva, que se fosse explicitada e discutida com a equipe, docentes e estudantes contribuiria de maneira significativa para o aprendizado de todos. Mas, é até feio falar isso, consideração que pode anunciar um modo de funcionamento que veta a possibilidade de explicitação de tensões e assim, nega a possibilidade de repensar o trabalho e a emergência de novos jeitos de se relacionar, cuidar e aprender.

O trabalho compartilhado com o enfermeiro indica revisão nas relações de poder e essa é uma caracteristica que pode ser aprendida e trabalhada desde a formação, mas diz respeito a aspectos mais amplos, constituídos histórica e socialmente, legitimados pela divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual( 11. Almeida MCP, Rocha SMM. O trabalho de enfermagem. São Paulo: Cortez; 1997. ).

Em estudo sobre o trabalho em equipe na saúde( 99. Peduzzi M. Equipe multiprofissional de saúde: conceito e tipologia. Rev Saúde Pública. 2001;35(1):103-9. ), a ação comunicativa é uma possibilidade de avançar da equipe agrupamento para a equipe interação, assim a comunicação pode constituir objeto de ensinar e aprender, capaz de desnaturalizar relações assimétricas entre trabalhadores.

Para as ACS que lidam mais com estudantes dos primeiros anos, emerge claramente a expectativa de reconhecimento de seu trabalho, pois ao mesmo tempo em que percebem a valorização de seu trabalho nas ruas, se percebem como objeto no processo de formação: Nós somos só o endereço pra eles.

Ainda no tema A lentificação e vivificação do serviço vimos que os trabalhadores assinalam que o serviço fica mais lento com os estudantes. Na UBS predomina a concepção de que rapidez é sinônimo de eficiência e podemos fazer uma analogia do esvaziamento da unidade com as enchentes e vazantes das marés, havendo um esforço conjunto dos trabalhadores para que a unidade esvazie-se. Esse movimento acontece em fluxos nos inícios dos períodos da manhã e da tarde. Nesse processo, os objetivos da assistência deslocam-se da produção de cuidados para a produção de procedimentos( 88. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. São Paulo: Hucitec; 2002. ), instalando-se a rapidez como imperativo.

O modelo de atenção que se configura no serviço de saúde e que se deseja superar com novos arranjos assistenciais e de formação ainda está centrado nos atendimentos individuais, fragmentados e divididos entre as categorias profissionais.

A interprofissionalidade do ensino na saúde( 1111. Aguilar da Silva RH, Scapin LT, Batista NA. Avaliação da formação interprofissional no ensino superior em saúde: aspectos da colaboração e do trabalho em equipe. Avaliação (Campinas) {Internet}. 2011 {citado 2011 mar. 23};16(1):165-84. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/aval/v16n1/v16n1a09.pdf
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) é uma proposta que aponta como possibilidade o aprendizado conjunto dos profissionais das várias profissões da saúde na modalidade de trabalho cooperativo e em equipe( 1010. Peduzzi M, Carvalho BG, Mandu ENT, Souza GC, Silva JAM. Trabalho em equipe na perspectiva da gerência de serviços de saúde: instrumentos para a construção da prática interprofissional. Physis Rev Saúde Coletiva. 2011;21(2):629-46. ). O fato de outros trabalhadores da UBS, tais como médicos, dentistas, escriturários e farmacêuticos, não participarem da formação de enfermeiros, indica os poucos avanços na superação da fragmentação da formação entre as profissões e no desenvolvimento interprofissional. Não houve a inclusão desses sujeitos na pesquisa por estabelecerem contatos pontuais com os estudantes de enfermagem, expressando diretamente a atual organização do processo de trabalho na saúde, que fixa em etapas estanques os trabalhadores, hierarquizando e compartimentando as práticas; e do processo de formação, que guarda relação com a lógica flexneriana presente na universidade, dividido em departamentos, áreas, saberes disciplinares, mesmo em um currículo que se anuncia integrado.

Em que pese a especificidade de cada profissão e a necessidade de aprendizagens específicas, a integralidade, o trabalho em equipe e a construção de redes de cuidados são necessários para o cuidado integral e se fazem por meio da articulação entre trabalhadores e práticas.

A divisão técnica e social do trabalho, naturalizada no modo capitalista de produção, apresenta-se no cotidiano do serviço através da predominância do valor de troca( 33. Campos GWS. Um método para análise e co-gestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000. ), que constitui uma ciranda de expectativas da presença dos estudantes e da Universidade no serviço. Uma dessas expectativas é a de que os estudantes façam o trabalho: segundo AE 3 tem funcionário que dá uma folgada quando tem aluno sabe, dá uma escapada e deixa os alunos ralando, o que pode explicar a dificuldade com os estudantes dos anos iniciais que não possuem preparo suficiente para assumir atendimentos. Mesmo para estudantes dos últimos anos, esse tipo de relação trabalhador/estudante pouco contribui para a troca e adiscussão dos aspectos da atenção e da gestão do trabalho.

Outra forma de expressão da divisão técnica e social do trabalho e da lógica do valor de troca nas relações, expressa-se na política indutora do Ministério da Saúde no PET Saúde( 1414. Brasil. Ministério da Saúde; Ministério da Educação. Portaria Interministerial n. 421, de 3 de março de 2010. Institui o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET Saúde) e dá outras providências {Internet}. Brasília; 2010 {citado 2011 out. 23}. Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/portaria_interministerial_n_421.pdf
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) quando estabelece que somente trabalhadores de nível universitário podem atuar como preceptores, recebendo bolsa para acompanhar estudantes; fato que desmotiva e desresponsabiliza os demais trabalhadores com o processo de formação, além de reafirmar o conhecimento técnico-científico como referência, não reconhecendo outros saberes relevantes para a formação de trabalhadores.

Contudo, a presença dos estudantes vivifica o cotidiano da UBS à medida que provoca explicitação de outras formas de cuidar, de outros conhecimentos possíveis, trazendo à tona a tensão produzida pela diferença. Foram elencados diferentes modos de atender que são considerados como oportunidade de atualização pelos trabalhadores, diferentes modos de abordar as famílias e de organizar o trabalho. É interessante a expressão: eles tem mais tempo pra pensar que denota um trabalho acrítico e esvaziado pela rotina e a ausência de espaços e tempos para a reflexão. O novo, o olhar externo, a juventude parecem arejar e trazer mais vida para o trabalho, com seus conflitos e tensões que o fazem desafiador e pulsante.

A proximidade entre trabalhador e estudantes pode propiciar a construção de vínculos positivos, em que ambos experienciam relações mais horizontalizadas de troca e de solidariedade. Por outro lado, a frequente chegada e partida de estudantes, intermediada pela saudade daquele que passou e deixou marcas, pode produzir evitação do apego e naturalização do uso do outro: deixa os alunos ralando.

No segundo tema, o (des)preparo para ensinar e aprender, expressam-se com força as concepções de ensinar e aprender dos trabalhadores e ainda a visão sobre a formação desse profissional enfermeiro. A concepção de ensino como passagem de informação é bastante arraigada, assim como a hierarquia entre os saberes e seus possuidores. Por outro lado, o acompanhamento de estudantes possibilita vivenciar a mudança de posição: o aluno também ensina, quem ensina também aprende, explícita nas falas de AE5 e do ACS1: tivemos uma aula uma aluna tava também, ela passou muitas coisas também e é muito bom porque a gente fica no dia-a-dia na rotina (...) porque tanto a gente passa experiência, como a gente também ganha muita experiência.

Outra questão que se apresenta é a respeito do preparo do estudante que pode ser entendido com relação aos aspectos técnicos. Nesse quesito já vimos que há preferência pelos estudantes dos últimos anos e certa impaciência com os estudantes iniciantes, e ainda com relação a um preparo para as relações como compromisso e responsabilização. Parece ser aesse preparo que a ACS5 está se referindo quando conta que: eu já tive paciente que desistiu da visita deles e explica a desistência da família pela expectativa frustrada de uma visita combinada que não se cumpriu.

O compromisso com as famílias, a responsabilidade com aquilo que foi acordado pelos estudantes são conteúdos atitudinais que precisam ser trabalhados na formação do enfermeiro( 1212. Nosow V, Püschel VAA. The teaching of attitudinal content in higher education of nursing. Rev Esc Enferm USP {Internet}. 2009 {cited 2011 Mar 17};43(spe2):1232-7. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43nspe2/en_a15v43s2.pdf
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), especialmente na visão dos ACS. Esse também é o desafio da formação, mas será que o ACS consegue falar dessas dificuldades a docentes e estudantes?

As relações dos estudantes com as famílias atravessam o trabalho dos ACS, que podem em muito contribuir para a qualificação dos estudantes, docentes e trabalhadores, se forem escutadas enquanto portadoras de um valioso conhecimento e fortalecidas para ocupar um espaço de fala na formação dos enfermeiros.

Na visão de uma das agentes (ACS6) os estudantes estão preocupados com o professor, o que expressa a relação ainda vigente que, embora vários trabalhadores participem do processo de ensinar-aprender, é o professor quem avalia e atribui a nota ao estudante. Um desafio importante para outras práticas de cuidado e de ensino: construir processo democráticos de avaliação e reflexão entre todos os envolvidos nas cenas de aprender-cuidar-ensinar, o que certamente está relacionado à revisão na rede de poderes.

O processo de introdução dos estudantes na UBS deve ser repensado, pois reproduz a divisão técnica e social do trabalho, sendo o gerente e os enfermeiros os que têm acesso às discussões sobre a formação e a presença dos estudantes. Os demais são apenas informados: Só falam que vão chegar os alunos que vão ficar de tal em tal tempo.

A discussão coletiva desses aspectos pode atualizar novas visões menos hierarquizadas, possibilitando o deslocamento da disputa entre quem segue quem expressa na fala: eles têm que seguir a gente, não a gente seguir eles. Para a produção coletiva de cuidados norteada por uma lógica de inclusão, solidariedade e aprendizagem, o fragmento ilustra o quão necessária se faz a revisão de perspectivas para a saúde e para a formação de trabalhadores.

No cenário observa-se que há aberturas nessa direção quando explicitam a expectativa de ser de fato partícipe desse processo de formação e não apenas arquivo de casos: elas me trouxeram um retorno até que razoável sabe, por elas estarem aprendendo.

CONCLUSÃO

Como contribuições, esse estudo aponta tensões ao conhecer e analisar a visão dos trabalhadores de saúde quanto à presença de estudantes de enfermagem em serviço de Atenção Básica. Esse processo é resultante da aproximação da universidade e da formação de enfermeiros nos espaços da Atenção Básica que eram menos frequentes até a implementação das DCN. Esse processo é vivenciado atualmente em vários pontos do país por trabalhadores da rede de Atenção Básica, gestores, professores, estudantes e usuários.

Os achados são singulares e não tem a pretensão de generalizações, posto que é uma investigação qualitativa. Mesmo assim, indicam aspectos práticos gerais, como necessidades de investimentos no diálogo academia/serviço, revisão e negociação de expectativas de atuação entre os trabalhadores, docentes, estudantes, usuários e gestores, revisão de aspectos dos programas de incentivo à integração ensino-serviço, como as bolsas do PET-Saúde somente para trabalhadores de nível universitário, entre outros.

Suas limitações consistem no fato de que outros sujeitos desse processo devem ser escutados, como usuários, estudantes, professores e gestores dos serviços de saúde.

Ao analisar a visão dos trabalhadores de uma UBS sobre a presença dos estudantes de graduação em Enfermagem, vimos que há uma multiplicidade de visões que variam conforme a categoria profissional, o lugar ocupado na divisão técnica e social do trabalho e o momento da graduação cursado pelo estudante. Predominam visões de que os estudantes ajudam no trabalho, atualizam os conhecimentos dos trabalhadores, embora tornem o atendimento maislento. Constatou-se que a presença de estudantes interroga a forma de atender em que prevalece pouca escuta, fragmentação e centralização em procedimentos.

Há predomínio de concepções de ensinar-aprender como passagem de informações com hierarquia entre os saberes e agentes desse processo. Os estudantes são vistos como massa homogênea, apenas se distingue o quarto e o segundo anos, mas não se diferenciam suas necessidades de aprendizagem, pois a UBS recebe estudantes de enfermagem de dois cursos e em etapas da graduação distintas. Esse processo pode estar relacionado ao próprio processo de formação desses trabalhadores com predomínio de um ensino disciplinar, fragmentado e hierarquizado, embora com avanços, como a imersão precoce em serviços de saúde.

Consideramos que espaços coletivos de discussão nos serviços de saúde com todos os agentes envolvidos podem engendrar novas formas de aprender-ensinar-cuidar-formar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 2013
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