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Vivendo com a depressão: histórias de vida de mulheres

Viviendo con la depresión: historias de vida de mujeres

Resumos

Este estudo teve como objetivo compreender e descrever histórias de vida de mulheres com depressão. A pesquisa tem uma abordagem qualitativa e a coleta de dados foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de São Paulo, por meio de entrevistas, utilizando-se como referencial metodológico a História Oral de Vida. Participaram do estudo seis colaboradoras. Vê-se que a depressão é uma doença vivenciada historicamente. Desse modo, o passado é narrado como sofrido, doloroso e pesado. No presente, a depressão assume todo o espaço e engloba a vida, de forma que ela se torna apenas pano de fundo. A probabilidade de um futuro possível é vislumbrada por algumas das colaboradoras. Assim, este estudo possibilitou compreender que as pessoas têm, nas suas histórias de vida, projetos e necessidades diferentes, e que o plano terapêutico e o cuidado prestado pelo enfermeiro devem ser dirigidos para atender as suas singularidades no mundo.

Mulheres; Depressão; Acontecimentos que mudam a vida; Saúde mental


En este estudio se tuvo como objetivo comprender y describir historias de vida de mujeres con depresión. La investigación tuvo un abordaje cualitativo y la recolección de datos se realizó en un Centro de Atención Psicosocial (CAPS) de la ciudad de Sao Paulo, a través de entrevistas utilizándose como referencial metodológico la Historia Oral de Vida. Participaron del estudio seis colaboradoras. La depresión es una dolencia vivenciada históricamente. El pasado es relatado como sufrido, doloroso y pesado. En el presente, la depresión asume todo el espacio y abarca la vida de forma que se vuelve apenas cortina de fondo. La probabilidad de un futuro posible es vislumbrada por algunas de las colaboradoras. Así, este estudio hizo posible comprender que las personas tienen, en sus historias de vida, proyectos y necesidades diferentes y que el plan terapéutico y el cuidado prestado por el enfermero deben ser dirigidos para atender sus singularidades en el mundo.

Mujeres; Depresión; Acontecimientos que cambian la vida; Salud mental


This work aimed at understanding and describing the life stories of women suffering from depression. A qualitative approach was used in the research and data collection was carried out at Centro de Atenção Psicossocial (CAPS - Psychosocial Attention Center) in Sao Paulo city by means of interviews using Oral Narratives as the methodological framework. Six collaborators participated in the study. It is observed that depression is a historically experienced disease. The past is reported as something distressful, painful and heavy. In the present, depression takes over and encompasses life, in a way that life itself becomes a mere background. The possibility of a possible future is foreseen by some collaborators. Thus, this study allowed for understanding that people's life stories, projects and needs are different, and the therapeutic project and the care provided by the nurse should meet those particular requirements.

Women; Depression; Life change events; Mental health


ARTIGO ORIGINAL

Vivendo com a depressão: histórias de vida de mulheres* * Extraído da dissertação "Depressão: experiência de pessoas que a vivenciam na Pós-modernidade", Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2005.

Viviendo con la depresión: historias de vida de mujeres

Cintia Adriana Vieira GonçalesI; Ana Lúcia MachadoII

IMestre em Enfermagem Psiquiátrica. Doutoranda em Enfermagem da Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo (EEUSP). Docente da Universidade do Vale do Paraíba. São José dos Campos, SP, Brasil. cintiavieira@usp.br

IIProfessora Associada do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiátrica da Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo (EEUSP). São Paulo, SP, Brasil. almachad@usp.br

Correspondência Correspondência: Cintia Adriana Vieira Gonçales Rua Professor Roberval Fróes, 44 - Jd. Esplanada II CEP 12242-460 - São José dos Campos, SP, Brasil

RESUMO

Este estudo teve como objetivo compreender e descrever histórias de vida de mulheres com depressão. A pesquisa tem uma abordagem qualitativa e a coleta de dados foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da cidade de São Paulo, por meio de entrevistas, utilizando-se como referencial metodológico a História Oral de Vida. Participaram do estudo seis colaboradoras. Vê-se que a depressão é uma doença vivenciada historicamente. Desse modo, o passado é narrado como sofrido, doloroso e pesado. No presente, a depressão assume todo o espaço e engloba a vida, de forma que ela se torna apenas pano de fundo. A probabilidade de um futuro possível é vislumbrada por algumas das colaboradoras. Assim, este estudo possibilitou compreender que as pessoas têm, nas suas histórias de vida, projetos e necessidades diferentes, e que o plano terapêutico e o cuidado prestado pelo enfermeiro devem ser dirigidos para atender as suas singularidades no mundo.

Descritores: Mulheres; Depressão; Acontecimentos que mudam a vida; Saúde mental.

RESUMEN

En este estudio se tuvo como objetivo comprender y describir historias de vida de mujeres con depresión. La investigación tuvo un abordaje cualitativo y la recolección de datos se realizó en un Centro de Atención Psicosocial (CAPS) de la ciudad de Sao Paulo, a través de entrevistas utilizándose como referencial metodológico la Historia Oral de Vida. Participaron del estudio seis colaboradoras. La depresión es una dolencia vivenciada históricamente. El pasado es relatado como sufrido, doloroso y pesado. En el presente, la depresión asume todo el espacio y abarca la vida de forma que se vuelve apenas cortina de fondo. La probabilidad de un futuro posible es vislumbrada por algunas de las colaboradoras. Así, este estudio hizo posible comprender que las personas tienen, en sus historias de vida, proyectos y necesidades diferentes y que el plan terapéutico y el cuidado prestado por el enfermero deben ser dirigidos para atender sus singularidades en el mundo.

Descriptores: Mujeres; Depresión; Acontecimientos que cambian la vida; Salud mental.

INTRODUÇÃO

A depressão é uma doença que preocupa estudiosos do mundo todo. As atuais estatísticas indicam que mais de 400 milhões de pessoas sofrem de depressão, o risco do homem sofrer da doença é 11%, ao passo que, na mulher pode chegar a 18,6%. A Organização Mundial de Saúde (OMS) prevê que, nos próximos 20 anos, a depressão sairá do quarto para o segundo lugar na lista de doenças dispendiosas e fatais e ficará atrás apenas das cardíacas(1).

A depressão tem sido registrada desde a antigüidade, e descrições do que, agora, chamamos de depressão podem ser encontradas em muitos textos antigos(2). Cerca de 400 a. C., Hipócrates usou o termo melancolia para essa perturbação mental. A palavra melancolia, etimologicamente, vem do grego melano chole que significa bílis negra. O termo depressão foi inicialmente usado em inglês para descrever o desânimo em 1660, e entrou para uso comum em meados do século XIX(3).

A depressão é, essencialmente, um transtorno episódico recorrente, e cada episódio, geralmente, dura de alguns meses a anos com um período normal interveniente. Em cerca de 20% dos casos, porém, a depressão segue um curso crônico e sem remissão (contínuo), em especial, quando não há tratamento adequado disponível.

Nota-se que um dos resultados trágicos desse distúrbio é o suicídio, assim, cerca de 15% a 20% das pessoas com depressão põem termo à vida cometendo suicídio(1).

A depressão atinge pessoas de ambos os sexos, em todas as faixas etárias, independente de posição sócio-econômica ou país de moradia(1).

Quase dois terços das pessoas com depressão não fazem tratamento e dos pacientes que procuram o clínico geral apenas 50% são diagnosticados corretamente. Em média, 50% dos que chegam à rede básica de saúde com sintomas de depressão, não recebem diagnóstico nem tratamento corretos(4).

O ser humano é complexo, ainda não há consenso entre os pesquisadores sobre a compreensão do por que uma pessoa sofre de apenas um episódio depressivo, enquanto outras apresentam várias recaídas, tomando antidepressivos para o resto da vida, e outras ainda cometem o suicídio.

Por isso, há necessidade de estudos como esse que buscam ouvir a pessoa que vivencia a doença, conhecer sua experiência de vida e o contexto em que está inserida.

Experiência da enfermidade é um termo que se refere aos meios, pelos quais as pessoas e grupos sociais respondem a um dado episódio de doença. A experiência da enfermidade é a relação entre o universo macroscópico dos significados estabelecidos pela sociedade e o universo microscópico das pessoas. A experiência em si desvela aspectos, tanto sociais como cognitivos, tanto pessoais como coletivos(5).

A rapidez necessária para atender a todos os pacientes que esperam na fila do Sistema Único de Saúde (SUS), o uso da tecnologia e o imediatismo de nossos tempos fazem-nos esquecer, muitas vezes, a singularidade da pessoa que está sendo atendida. A sua história de vida, por vezes, está presente na ficha de anamnese, mas o cuidado, geralmente, é realizado de forma homogênea, algo para o tempo presente. Ainda, questiona-se o porquê algumas pessoas apresentam melhoras e outras só têm pioras se, afinal, o tratamento dispensado é igual. E as pessoas são todas iguais? São diferentes? Ou são iguais e diferentes, dependendo do aspecto observado?

Um estudo com enfermeiros da rede básica, mostrou o nível de conhecimento teórico médio a respeito da depressão, mas existe falta de informação atualizada sobre as terapêuticas e falta de responsabilidade ao não assumir os pacientes, como sendo da rede básica, traduzindo ainda uma visão manicomial e uma assistência de enfermagem inadequada à pessoa com depressão(6).

Na atualidade, percebe-se que é melhor compreender a realidade que se coloca ao invés de se tentar medí-la, como um parâmetro racionalista(7). Daí, a importância de respeitar as diversas dimensões e tentar compreendê-las.

Assim, buscamos respostas para nossos questionamentos: como é a história de vida de pessoas com depressão, como é o seu passado, por quais experiências já passou?

Diante dessas questões, entendemos a importância deste estudo para obtenção de algumas respostas, pois conhecendo melhor a pessoa que vivencia a depressão, o profissional da área da saúde pode obter subsídios para efetuar um plano terapêutico singularizado. Algo que tenha ressonância na vida dessas pessoas.

O objetivo do presente estudo foi compreender e descrever histórias de vida de mulheres com depressão.

MÉTODO

Optou-se por utilizar a metodologia qualitativa, por se mostrar mais adequada para compreensão do caráter dinâmico das experiências vividas pelas pessoas. Acredita-se, também, que ela poderá dar uma visão mais ampla e clara do objeto estudado, considerando o objetivo proposto para este trabalho.

Desse modo, o racionalismo em sua pretensão científica é particularmente inapto para perceber e apreender o aspecto denso e simbólico da experiência vivida(7).

História Oral de Vida

Foi escolhido como referencial metodológico a História Oral, considerado valioso recurso para a elaboração de estudos referentes à experiência social de pessoas e grupos(8).

A história de vida é um instrumento privilegiado para se interpretar o processo social a partir das pessoas envolvidas, na medida em que se consideram as experiências subjetivas como dados importantes que falam além e através delas(9).

É um método muito utilizado na enfermagem e na saúde mental, pois pode ajudar a compreensão de contextos sócioculturais mais amplos da história e dos significados atribuídos a assuntos específicos por seus membros, no cotidiano. Trata-se de uma importante fonte de apreensão da história pessoal, inserida no social(10).

Após a realização da entrevista, o relato oral deve ser transformado em texto escrito para torná-la disponível ao público. Para tanto, as etapas de transcrição, textualização e transcriação foram seguidas(8).

O levantamento de dados foi realizado em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), localizado na região norte da cidade de São Paulo.

Colaboradores

Seguindo a denominação do referencial metodológico, as entrevistadas são chamadas de colaboradoras, pelo fato de serem participantes ativas na pesquisa realizada e não meras informantes(8).

Para responder ao objetivo desse estudo, foram levantados alguns critérios para seleção: pessoas com diagnóstico clínico de depressão que utilizam o CAPS para seu tratamento e com capacidade de narrar sua história de vida. Foram selecionadas seis mulheres, entre 21 e 47 anos de idade.

Coleta de Dados

A coleta de dados foi realizada por meio de entrevista semi-estruturada, com uma questão aberta: Conte-me como é a sua história de vida até esse momento. Ao término das entrevistas, foram realizados registros no diário de campo, no qual constam todas as observações, tanto do andamento do projeto como das entrevistas realizadas, assim como as observações da comunicação não-verbal que também integra os discursos(8).

Com o consentimento das colaboradoras, as entrevistas foram gravadas e, posteriormente, realizadas as etapas de transcrição, textualização, transcriação e conferência do texto final. Assim, o processo foi interessante, em razão das expressões faciais e gestos demonstrados, algumas ficaram surpresas ao lerem suas próprias histórias e algumas disseram que foi um momento de reflexão, que ajudou a entender essa fase da vida.

Considerações éticas

Esse estudo teve seu projeto (CEP nº 4112004) avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade de São Paulo. Todos os procedimentos metodológicos obedeceram aos padrões estabelecidos pela Resolução 196/96, que trata das Normas de Pesquisa Envolvendo Seres Humanos(11). As colaboradoras foram orientadas em relação ao objetivo do estudo e concordaram em assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Histórias de vida

Colaboradora 1

Alceste tem 44 anos, é paulista, casada, cinco filhos (dois solteiros, duas casadas e um falecido) e duas netas. Mora com o marido e os dois filhos solteiros. Cursou o ensino fundamental incompleto. Faz crochê, mas, atualmente, não trabalha. É católica.

TOM VITAL

Eu não entendo porque meu filho foi embora e a dor é demais. Eu quero ir buscar ele, mas não sei onde. Eu quero ir me encontrar com ele, mas eu fico dividida entre ele e meu filho caçula que ainda precisa de mim (Alceste).

Alceste foi indicada pela psicóloga, coordenadora de um grupo terapêutico. O convite foi feito pessoalmente, ela concordou em participar da pesquisa e recebeu-me bem, dizendo ser bom conversar. Na entrevista estava pálida, manteve-se cabisbaixa, tom de voz pausado e baixo. Chorou bastante ao falar do filho que faleceu há sete meses e mostrou uma foto dele que sempre leva na carteira.

Narra uma infância muito sofrida, em um sítio no interior de São Paulo. Sua mãe era muito submissa e seu pai sempre teve algum distúrbio mental. Era alcoolista, batia muito na mãe, tentou suicídio várias vezes e ficou internado em hospitais psiquiátricos. Suicidou-se um mês antes de seu filho morrer. Sua mãe também faleceu há 11 anos.

[...] eu perdi minha mãe e fiquei muito mal [...] e depois o meu pai se matou, o médico disse que ele estava em depressão profunda [...] passado um mês mais ou menos meu filho teve pneumonia... ficou internado na UTI (Alceste).

Em sua narrativa, conta a história de uma mãe sempre cuidando desse filho cuja doença os médicos dizem não haver cura desde que o menino tinha cinco anos. Foram 21 anos de vida direcionados ao cuidado desse filho, que faleceu com 26 anos de idade.

Eu chorava... cada ano que passava eu ficava com aquilo na cabeça: o meu filho não vai sobreviver (Alceste).

O núcleo da narrativa é o cuidado desse filho e o sofrimento em razão de sua perda. Seu projeto de vida o tempo todo foi esse, e após a morte do filho, não tem mais sentido continuar viva e não demonstra ter um objetivo de vida.

Colaboradora 2

Urânia tem 47 anos, é paulista, casada, tem três filhos e um neto. Mora com o marido e dois filhos. O filho mais velho é casado e mora com a esposa e um filho em uma casa no mesmo quintal. Tem ensino fundamental incompleto, é costureira e atualmente não trabalha. É evangélica.

TOM VITAL

Tudo mexe com a gente, os filhos casando, minha mãe e meu sogro que me ajudavam morreram, meu marido bebe demais, os amigos sumiram. E tudo isso foi juntando (Urânia).

Urânia foi indicada pela psicóloga que coordena um dos grupos terapêuticos, pois ela tinha recentemente recebido alta do grupo e estava com consultas individuais. Entrei em contato via-telefone, aceitou participar e a entrevista foi realizada no CAPS, após consulta com essa psicóloga.

No dia da entrevista, estava pálida, com olheiras, tremores nas mãos, manteve-se cabisbaixa, os olhos lacrimejaram, mas não chorou.

Apresentou uma narrativa clara cronologicamente, iniciando por contar um problema que teve na infância, pois não gostava de ser contrariada. Nesses momentos, ela se jogava ao chão, arrancava os cabelos, mordia-se, rasgava sua roupa e batia a cabeça na parede. Aos oito anos de idade, seus pais se separaram e ela disse ter sofrido muito. Segundo ela o pai era muito "mulherengo" e violento, tinha um revólver em casa e ameaçava sempre matar sua mãe. Após a separação, seu pai foi viver com outra mulher e também tinha outra amante. Foi baleado com o seu próprio revólver pela mulher, ao vê-lo com a amante, ficou na UTI e ela disse ter sofrido muito porque a amante não deixava ela ver o pai. Casou-se aos 20 anos, grávida, mas disse ter se arrependido um mês depois do casamento e está com ele até hoje apenas pelos filhos. Passaram vários momentos difíceis, ele teve amantes e tornou-se alcoolista.

Durante toda a narrativa, Urânia fala várias vezes que tudo vai juntando, que tudo mexe com ela. Como se os acontecimentos da vida fossem chegando de fora e lhe atingindo. Tive a impressão de que ela foi se deixando levar na vida e questiono-me qual seu projeto de vida? Onde ela deposita a sua singularidade e compreende a alteridade?

Colaboradora 3

Atê tem 21 anos, é paulista, solteira, não tem filhos, mora com o pai, a mãe e a irmã mais nova. Estudante universitária, hoje não trabalha. Não tem religião.

TOM VITAL

O que me dói é ter sido trouxa, ter abortado, ter acreditado nele. Fui uma tonta de cair na conversa fiada dele. Depois do aborto, ele me largou, fiquei sozinha. É assim, a gente aprende (Atê).

Atê foi indicada pela psicóloga coordenadora de um outro grupo de terapia, após o contato telefônico, aceitou a participação. A entrevista foi realizada antes do grupo. Ao ser convidada para participar do estudo, demonstrou muito interesse e receptividade. Sua narrativa desencadeou-se de uma forma clara. Referiu não estar se sentindo muito bem e estar ansiosa em razão da época de avaliações na faculdade. Em alguns momentos, as lágrimas vieram aos olhos, mas não chorou. Ao término da entrevista, abraçou-me e colocou-se à disposição para a realização de outras entrevistas, caso necessário.

Começou a narrativa, contanto sobre a infância, as dificuldades com o pai, que lhe deu um único presente na vida e sempre foi o ditador, tentando prendê-la em casa. Com 14 anos começou a namorar um ex-inimigo de infância e engravidou. O garoto disse que era para ela tirar o filho senão não ficaria com ela e ela abortou. Porém, ele terminou o namoro mesmo assim; e nesse momento, ela diz ter começado a sentir os sintomas da depressão.

Durante a narrativa, falou várias vezes que muda da água para o vinho, ou seja, dependendo das circunstâncias e dos namorados muda seu jeito de ser. Adolescência?

A marca que ficou foi a de ter sido enganada, acreditou no namorado que não cumpriu com o combinado, ficar com ela após o aborto. Diz ter aprendido muito com a situação e mostra-se armada para enfrentar o mundo, demonstrando ressentimento e culpabilização do outro.

O seu projeto de vida? Como ela situa sua singularidade no mundo? Na época da entrevista, estava cursando a graduação e namorando um rapaz que referiu ser seu futuro marido.

Colaboradora 4

Polímnia tem 23 anos, é paulista, solteira, não tem filhos, mora com o pai, a mãe e duas irmãs (é filha do meio). Estudante universitária, não trabalha atualmente. É espírita, Kardecista.

TOM VITAL

Sempre fui muito tímida, indecisa, dependente da minha família. Sinto que perdi muita coisa por ser assim e me sinto pra trás porque minha irmã mais nova entrou na faculdade antes de mim (Polímnia).

Polímnia foi indicada pela mesma psicóloga de Atê, pois freqüentam o mesmo grupo terapêutico. Entrei em contato telefônico, aceitou a participação, e a entrevista foi realizada depois da sessão do grupo. É descendente de japonês e mostrou-se tímida durante a entrevista, mantendo-se cabisbaixa, fala pausada, leve tremor dos lábios e das mãos. Ao relatar as crises depressivas, apresentou lágrimas nos olhos. Disse que sua história era difícil de contar pois era muito longa, mas foi a mais curta das seis.

Começou a narrativa a partir de sua vinda para o CAPS. Narra uma vida de inseguranças, dificuldades de relacionamento, dúvidas, sensação de perda, não aceitação de si mesma e tentativas de mudar seu jeito. Sensação de estar perdida no mundo, não se encaixando na estrutura familiar que estava mudando.

Relatou que sempre foi superprotegida pela família e, talvez, tenha se colocado dentro desse mundo familiar e tido dificuldades de sair. Quando as irmãs começaram a namorar, fazer faculdade e trabalhar ela se sentiu incomodada e percebeu que algo não estava bem. É filha do meio e disse, várias vezes, que a irmã mais nova um ano, passou a perna e começou a fazer faculdade antes dela. Talvez aí tenhamos também a questão cultural da hierarquia.

Na época da entrevista, estava cursando a graduação e disse estar contente por ter feito uma amizade na sala de aula.

Colaboradora 5

Hera tem 43 anos, é cearense, está separada, tem dois filhos (menino com 16 e menina com seis anos). Mora com os dois filhos. Cursa o ensino fundamental e está desempregada. É católica.

TOM VITAL

Minha vida sempre foi assim, sofrida. Criei meus filhos sozinha. Trabalhei de dia e de noite. Tenho vários motivos pra depressão. É tudo muito triste (Hera).

Hera foi indicada pela psicóloga do mesmo grupo de terapia da Alceste. Fiz contato pessoalmente após o grupo, aceitou a participação. No dia que estava marcada a entrevista, disse não estar se sentindo bem e a remarcou. A entrevista foi realizada no CAPS, após o grupo terapêutico. Apresentou uma narrativa dispersiva e pobre em detalhes. Durante a entrevista, movimentou-se bastante na cadeira, mexendo os braços, gesticulando e levando as mãos à cabeça várias vezes.

Sua narrativa foi marcada por frases como vida sofrida, infância sofrida, minha história de vida foi um fracasso, chega uma hora que a cabeça não agüenta, tudo isso vai juntando, tenho vários motivos pra depressão, tudo vai causando sofrimento.

Apresentou uma narrativa com muitos cortes, tentando resumir os acontecimentos, como se não valorizasse seus sentimentos.

Disse ter tido uma infância muito triste, muito pobre no Ceará. Sua mãe era muito submissa e seu pai, alcoolista, que batia sempre nela (mãe). Disse que nunca iria casar com homem alcoolista, porém veio para São Paulo com um primo do Ceará. Começaram a namorar, tiveram um filho e ele se tornou alcoolista. Ela separou-se dele e iniciou novo namoro, teve um segundo filho e esse namorado também tornou-se alcoolista.

Na época da entrevista, estava desempregada, disse que se separou desse último namorado, mas que às vezes ele a procurava. Ainda apresentava muitos sintomas da depressão.

Qual seu projeto de vida? Sobreviver às dificuldades que aparecem?

Colaboradora 6

Afrodite tem 36 anos, é paulista, casada pela segunda vez, tem dois filhos e uma neta. Mora com o marido, dois filhos (menina - 21 anos e menino - 10 meses) e uma neta (dez meses). Tem ensino fundamental incompleto, não trabalha atualmente.

TOM VITAL

É tudo tão triste, meu Deus! Como é que pode uma mãe viver desse jeito, sem um filho. Ter que enterrar um filho (Afrodite).

Afrodite foi indicada pelo psiquiatra que a atendia, foi feito contato telefônico e aceitou a participação. Disse que sempre é bom conversar sobre o que aconteceu. Marcou duas vezes e não foi, pediu desculpas e disse não ter ido porque cuida do filho e do neto, ambos com dez meses de idade. Foi marcada uma terceira vez, ela compareceu no horário e foi feita a entrevista no CAPS. Colaboradora, chorou bastante durante toda a entrevista, sobretudo nos momentos em que falou do filho falecido. Trouxe várias fotos desse filho e de toda a família para me mostrar.

Iniciei a entrevista pelos dados sóciodemográficos, ela olhou para o caderno, viu a questão sobre filhos e já iniciou a narrativa. O gravador já estava ligado, aguardei uma pequena pausa do relato e foi feita a questão norteadora da pesquisa. Ela continuou o relato.

Com um olhar muito triste, como se olhasse para longe, relatou o episódio da morte súbita do filho de 14 anos, quando jogava futebol, há sete meses. Chorou durante toda a entrevista. Disse que estava se recuperando de uma depressão pós-parto, quando ele faleceu. O foco da narrativa foi sua vida em família com esse filho. Conta como ele foi uma criança brilhante que viveu intensamente, e como eles foram felizes. Disse que ele faz falta para toda a família e que esperam o dia da morte para se reencontrarem com ele.

Narra uma infância muito sofrida, com dificuldades financeiras. Seu pai era alcoolista, batia nela, nas irmãs e na mãe. Começou a trabalhar ainda na adolescência e com 16 anos engravidou e casou. Separou-se desse homem por ele também ser alcoolista. Casou-se pela segunda vez, diz que ele a ama muito, mas não sente mais alegria desde que seu filho mais velho morreu.

Disse viver para o filho caçula, que se não fosse por ele, não estaria aqui, que o psiquiatra disse que ela deve viver pra ela, mas... Ela relata claramente que seu objetivo de vida é viver para a família e que luta muito para continuar vivendo sem o filho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos depoimentos, a presença da lembrança do passado, faz com que cada pessoa percorra o caminho de volta, que é só seu. Sendo único, também, o modo como relata sua história de vida, como a ordena, o que destaca e o que ignora, as palavras que escolhe; enfim, estas são características importantes que levam à compreensão de qualquer entrevista(12).

Procurei compreender e descrever as histórias de vida sob o ângulo das colaboradoras, da maneira como foram narradas, sem julgamento algum, respeitando a singularidade e a vivência de cada pessoa, com suas especificidades, partindo do pressuposto de que as pessoas vivenciam as experiências diferentemente, dentro de sua complexidade de ser humano que está no mundo.

Vimos que as colaboradoras vivenciam a depressão sob uma perspectiva histórica. Elas relembraram fatos marcantes que foram se acumulando e podem ter desencadeado a depressão.

A doença é vivida tão intensamente e de forma tão sofrida a ponto de ser a primeira coisa a ser narrada, quando iniciei a entrevista com a questão: conte-me como é a sua história de vida até esse momento. Neste sentido, vislumbrei uma vida pequenininha reduzida pela depressão que a englobou e tomou conta desse ser humano, cuja alegria não existe, há um grande vazio, um sofrimento, uma desesperança, uma sensação de perda, uma vontade de sumir e não voltar mais.

E há saída desse túnel escuro? Algumas colaboradoras já conseguem visualizar uma possível saída, um futuro, um vir-a-ser. O caminho que elas estão percorrendo, está atrelado ao percurso que fizeram no passado, mas é importante reconhecer que sempre pode ser um momento de mudança. Para isso, é preciso fazer escolhas e ao escolher, inevitavelmente, existe algo sendo deixado para trás.

As imagens desenvolvidas nas narrativas da doença dão forma ao sofrimento individual e apontam no sentido de uma determinada resolução(13). Ao narrar suas histórias, as colaboradoras foram refazendo seu percurso na vida, reviram fatos, dando significados para eles.

Estudos como este que visam a compreender como as pessoas constroem significados, como elas vivem a experiência do adoecer, afirmam a necessidade de escuta pelo enfermeiro, ajudando na construção de um plano terapêutico mais próximo das necessidades da pessoa atendida. Precisamos conhecer essas necessidades, saber quais são seus projetos, para que consigamos aproximar nosso cuidado desses projetos, quando possível.

Foi interessante notar as reações dessas mulheres ao lerem suas próprias histórias. Colocadas diante de sua própria narrativa de vida, puderam reviver fatos e analisar suas próprias vidas. Algumas mulheres agradeceram muito essa oportunidade.

Assim, faz-se necessário compreender que as pessoas não vivenciam a depressão de maneira uniforme, elas têm vida, projetos e necessidades diferentes e que o cuidado deve ser dirigido para atender à sua singularidade no mundo.

Recebido: 10/04/2007

Aprovado: 05/11/2007

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  • Correspondência:
    Cintia Adriana Vieira Gonçales
    Rua Professor Roberval Fróes, 44 - Jd. Esplanada II
    CEP 12242-460 - São José dos Campos, SP, Brasil
  • *
    Extraído da dissertação "Depressão: experiência de pessoas que a vivenciam na Pós-modernidade", Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, 2005.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Set 2008
    • Data do Fascículo
      Set 2008

    Histórico

    • Aceito
      05 Nov 2007
    • Recebido
      10 Abr 2007
    Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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