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A construção do processo que culminou num episódio de queimadura: relato da história de vida de pacientes queimadas

La construcción del proceso que resultó en un episódio de quemadura: narrativa de la história de vida de pacientes quemadas

The construction of the process resulting in a burn event: accounts of burned patients' life histories

Resumos

O presente estudo busca compreender os motivos que levam pessoas a optar pela queimadura como forma de autodestruição. Baseados nos depoimentos de duas pacientes, que apesar de apresentarem características distintas, têm em suas histórias de vida, pontos comuns, que podem ter influenciado na sua decisão. A identificação de perturbações emocionais ou psíquicas nessas pacientes, assinala a importância da presença de um profissional especializado em Saúde Mental na Unidade de Queimados, o qual, proporcione suporte à equipe multiprofissional para que esta dispense uma assistência mais adequada e proporcione ao paciente queimado o apoio necessário para sua recuperação física e mental.

Queimaduras; Pacientes; História; Vida


El presente estudio busca comprender los motivos que llevan a las personas a eligiren la quemadura como forma de auto-destrucción. Basados en las declaraciones de dos pacientes, que además de presentaren características distintas, tienen en sus histórias de vida, puntos comunes, que pueden tener influenciado en su decisión. La identificación de perturbaciones emocionales o psíquicas en esas pacientes, aseñala la importancia de la presencia de un profesional especializado en Salud Mental en la Unidad de Quemados, que proporcione soporte al equipo multiprofesional para que este ofrezca una asistencia más adecuada al paciente quemado y el apoyo necesário para su recuperación física y mental.

Queimaduras; Pacientes; Historia; Vida


This study aimed at understanding the reasons leading certain people to choose burning as a form of self-destruction. It was based on the accounts of two patients who, in spite of presenting distinct characteristics, portrayed common points in their life histories which may have influenced their decision. The identification of mental or psychic disorders in these patients shows the importance of the presence of a specialized professional in Mental Health in the Burns Unit, since he can provide support to the multiprofessional team and will enable the provision of more adequate care and the necessary support to the burned patient aiming at his physical and mental recovery.

Burs; Patients; History; Life


ARTIGO ORIGINAL

A construção do processo que culminou num episódio de queimadura: relato da história de vida de pacientes queimadas* * FERREIRA, LA. Construindo o processo que levou o paciente queimado à intercorrência da queimadura. Ribeirão Preto, 1997. 130p. Dissertação (Mestrado) - Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

The construction of the process resulting in a burn event: accounts of burned patients' life histories

La construcción del proceso que resultó en un episódio de quemadura: narrativa de la história de vida de pacientes quemadas

Luia Aparecida FerreiraI; Margarita Antonia Villar LuisII

IEnfermeira da Unidade de Queimados do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirao Preto da Universidade de São Paulo

IIProfessor Titular do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo; Pesquisador CNPq. (Orientador)

RESUMO

O presente estudo busca compreender os motivos que levam pessoas a optar pela queimadura como forma de autodestruição. Baseados nos depoimentos de duas pacientes, que apesar de apresentarem características distintas, têm em suas histórias de vida, pontos comuns, que podem ter influenciado na sua decisão. A identificação de perturbações emocionais ou psíquicas nessas pacientes, assinala a importância da presença de um profissional especializado em Saúde Mental na Unidade de Queimados, o qual, proporcione suporte à equipe multiprofissional para que esta dispense uma assistência mais adequada e proporcione ao paciente queimado o apoio necessário para sua recuperação física e mental.

Palavras-chave: Queimaduras. Pacientes. História. Vida.

ABSTRACT

This study aimed at understanding the reasons leading certain people to choose burning as a form of self-destruction. It was based on the accounts of two patients who, in spite of presenting distinct characteristics, portrayed common points in their life histories which may have influenced their decision. The identification of mental or psychic disorders in these patients shows the importance of the presence of a specialized professional in Mental Health in the Burns Unit, since he can provide support to the multiprofessional team and will enable the provision of more adequate care and the necessary support to the burned patient aiming at his physical and mental recovery.

Keywords: Burs. Patients. History. Life.

RESUMEN

El presente estudio busca comprender los motivos que llevan a las personas a eligiren la quemadura como forma de auto-destrucción. Basados en las declaraciones de dos pacientes, que además de presentaren características distintas, tienen en sus histórias de vida, puntos comunes, que pueden tener influenciado en su decisión. La identificación de perturbaciones emocionales o psíquicas en esas pacientes, aseñala la importancia de la presencia de un profesional especializado en Salud Mental en la Unidad de Quemados, que proporcione soporte al equipo multiprofesional para que este ofrezca una asistencia más adecuada al paciente quemado y el apoyo necesário para su recuperación física y mental.

Palabras -clave: Queimaduras. Pacientes. Historia. Vida.

INTRODUÇÃO

O trabalho, iniciado em 1986 na seção de Enfermagem de Queimados da Unidade de Emergência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (HCFMRP/ USP), suscitou uma série de questio-namentos à autora deste artigo. Percebia agudamente a interminável dor física dos pacientes, mas observava haver neles também um outro sofrimento subjacente, talvez mais forte ainda: os aspectos emocionais que induziram muitos deles a recorrer ao fogo como um meio para dar cabo da vida. Ao mesmo tempo, estava consciente da falta de preparo da equipe médica e de enfermagem para lidar com esses mesmos problemas emocionais. Como meio de se proteger do constrangimento que lhes causava a vista de corpos deformados e em chagas, muitos profissionais tratavam os pacientes com frio distanciamento, quando não com sarcasmo e desprezo. Notava ainda que a presença e a intervenção de um profissional da área da Saúde Mental faziam-se muito necessárias.

Em 1987 foi contratada uma médica psiquiátrica para dar suporte às equipes no enfrentamento destes problemas psicológicos. Uma vez por semana eram reali-zadas reuniões grupais com os pacientes, suas famílias e a equipe de trabalho, beneficiando a todos os envolvidos. Com o término dessa supervisão, emergiram novamente as mesmas dificuldades, o que se mantém até hoje.

Nos casos de queimadura por tentativa de suicídio, a intervenção da enfermagem nos pacientes queimados parece requerer uma assistência que leve também em conta os aspectos emocionais do indivíduo, uma vez que, durante o período de internação, tanto a equipe quanto o paciente enfrentarão juntos os problemas psicológicos decorrentes não só da queimadura em si como também do estado emocional anterior que induziu ao ato de se queimar.

OBJETIVO E FINALIDADE

Este trabalho tem como objetivo desvendar, atra-vés de depoimentos pessoais, as circunstâncias que envolvem o caminho percorrido pelo paciente queimado suicida, procurando compreender-lhe o processo interno que o levou até a queimadura. Com esse conhecimento, torna-se possível contribuir para uma assistência de enfermagem mais adequada que, no decorrer da inter-nação, leve em conta os aspectos psicológicos dos pacientes.

A EXPRESSÃO DO CONHECIMENTO SOBRE O TEMA

A experiência diária de observar a dor e o sofrimento de pacientes queimados, e especificamente daqueles que haviam tentado o suicídio, incentivou a autora a pesquisar os diversos trabalhos existentes que tratavam desta questão, a fim de identificar os pensamentos, sentimentos, desejos, anseios e motivos que levaram à queimadura.

Estudos (1) mostram que a maioria dos pacientes mencionava sentimentos de desgosto, tristeza, rejeição e medo de se olhar no espelho. Contraditoriamente, seus desejos e anseios evidenciavam a vontade de sobrevivência, revelada pela expectativa de sair da hospital, acabar de construir uma casa, comprar um carro.

Expondo a gravidade da incidência de suicídio por fogo, um levantamento realizado no prontuário do SAME (Serviço de Arquivo Médico e Estatística) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - USP do Campus mostrou que nos últimos dez anos, 82 casos de queimaduras que chegaram ao hospital foram provenientes de tentativa de autodestruição. Todavia, estes foram casos confirmados de tentativas de suicídio. Como não havia registros, não foi possível, entretanto, levantar o número dos casos não confirmados. Um cuidado maior na investigação das causas da queimadura poderia aumentar em muito esse número.

Como se vê, esta questão demanda atendimento específico, principalmente voltado às ações de enfermagem que venham possibilitar ao paciente não só apoio psicológico, mas também conhecimentos, informações e esclarecimentos, visando a desenvolver neles habilidades apropriadas para que aprendam a tomar conta de si mesmos sozinhos e venham a ter comportamentos menos destrutivos em relação à sua integridade pessoal e da coletividade.

Estudos envolvendo a temática da assistência a pacientes queimados, foram iniciados em Ribeirão Preto no ano de 1987 (2) e intensificados na década de noventa( 3- 6), abordaram vários aspectos do cuidado de enfermagem, propiciando assim, ao longo dos anos, um conhecimento cumulativo em relação à assistência de enfermagem bem como às características do paciente internado.

Na intenção de dar continuidade a esta série de estudos visando a desvendar aspectos da tentativa de suicídio ainda não suficientemente explorados, busca-se aprofundar conhecimentos, partindo do aspecto fisiopatológico da queimadura e avançando para a questão psíquica.

As Queimaduras

As queimaduras são acidentes eminentemente domésticos, ocorrendo quase sempre nas horas em que é mais intensa a atividade nas cozinhas. O aumento da densidade demográfica tem sido responsável pelo crescimento progressivo destas ocorrência (7).

Em relação à epidemiologia, as queimaduras são agressões ao corpo humano que, por suas seqüelas geram muito sofrimento tanto nos acidentados quanto em seus familiares.

No que tange à etiologia, os agentes que mais freqüentemente produzem queimaduras são as substâncias inflamáveis e os líquidos aquecidos.

No que se refere à classificação podemos considerar lesão de primeiro grau a que atinge a camada externa da pele e não provoca alterações clínicas significativas; de segundo grau a que atinge tanto a epiderme como parte da derme; a de terceiro grau acomete a totalidade das camadas da pele (epiderme e derme) e, em muitos casos, outros tecidos, como o celular subcutâneo, os músculos e o tecido ósseo.

A mortalidade varia em função de uma série de fatores, tais como a extensão e profundidade das feridas, idade dos pacientes e agente causador.

Em relação à fisiopatologia, as lesões produzidas pelo calor sobre a superfície de revestimento cutâneo ligam-se principalmente à intensidade e duração da atuação do agente e à morfologia da pele no local atingido. A fisiopatologia é caracterizada por dor, perda local de líquidos, destruição de tecidos e infecções (7).

O tratamento das queimaduras tem variado enormemente ao longo do tempo e até hoje não é muito compreendido pelos médicos em geral. No entanto, nos últimos anos tem havido um avanço nos conhecimentos e nas técnicas cirúrgicas, o que permitiu um aumento significativo da sobrevida dos pacientes, trazendo a necessidade de se ver a queimadura sob uma ótica interdisciplinar que abranja tanto a prevenção primária, o tratamento na fase aguda, os cuidados para limitar seqüelas funcionais e estéticas, quanto as repercussões psicossociais.

A recuperação do queimado deve ter início desde o momento em que o paciente chega ao médico ou serviço especializado e não raro prolonga-se por vários meses após a alta. O mais importante neste período é a demonstração de que o paciente pode viver independente. A meta é sempre a sua integração funcional, familiar, social e profissional (7).

As queimaduras não podem ser vistas como fortuitas, casuais ou acidentais. Muitas vezes elas um possuem um significado relevante e podem esconder múltiplos e dinâmicos determinantes. Assim, a abordagem para a sua prevenção e terapêutica necessita ser mais abrangente, passando pelo indivíduo, família e suas relações sociais (8).

O suicídio

O suicídio é considerado como "um ato consciente ' de aniquilação auto-induzida, ... uma enfermidade multidimensional que ocorre em um indivíduo com carência,..." e não "um ato aleatório ou sem finalidade", mas "representa a saída de um problema ou crise que está causando intenso sofrimento" (9).

O conceito de suicídio suscita várias interpretações, dependendo do ponto de vista em que é analisado. Dentro da perspectiva antropológica, o tema é abordado em dois níveis: o individual e o social. No nível individual, o suicídio é uma característica do ser humano que, podendo avaliar a finitude da vida, questiona a sua validade. Entretanto, isto acontece com um indivíduo dentro de um contexto social que reage ao ato praticado. De modo geral, as sociedades de todos os tempos e lugares condenam o ato suicida, reforçando a visão da vida como um bem.

Ao fazer uma retrospectiva histórica do suicídio, vemos que ele vem sendo coibido desde o início da civilização com diferentes maneiras de punição e tratamento do cadáver, ora negando-lhe sepultamento, ora banindo-o nos cemitérios para longe dos outros túmulos, ou ainda mesmo castigando-o com o enforcamento!

Modernamente, com o desenvolvimento da psicologia, há maior compreensão do que leva alguém a atentar contra a própria vida, com o conseqüente abrandamento dos rigores com que os suicidas eram tratados no passado.

No Brasil, é crime induzir, instigar ou auxiliar o ato suicida. A Lei diz: "Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça, é passível de pena de reclusão de dois a seis anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão, de um a três anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave". Mas o suicídio não é ilícito penal, ou seja, não há sanções ou perda de direitos para quem se suicidado (10).

Pensando o suicídio num enfoque de saúde pública, do ponto de vista médico, vários fatores devem ser avaliados para se determinar a propensão ao ato suicida. Segundo estudo (11), os transtornos depressivos correspondem a 80% das tentativas ou sua consumação. Acrescentem-se à depressão o alcoolismo, as dificuldades nas relações interpessoais e os problemas socio-econômicos.

Como sintoma, a doença depressiva é decorrente de outras patologias psiquiátricas, somáticas ou orgânicas. Caracteriza-se por lentidão de pensamento, pessimismo, perda de interesse, sentimento de culpa, diminuição de rendimento e outros sintomas aliados à evolução do caso específico, quadro clínico, fatores genéticos e a predominância de certos sintomas e sinais sobre outros a serem avaliados (11,12) O grande leque de possibilidades que leva um indivíduo a ter, ou não, uma depressão patológica é que aumenta a incidência de tentativa e acerto do ato suicida. Autor coloca que "não existe uma causa para o suicídio.

Trata-se de urn evento que ocorre como culminância de uma série de fatores que vão se acumulando na biografia do indivíduo como: ambientais, biológicos, psicológicos e outros"(12).

É conflitante para o profissional de saúde deparar-se com pessoas que desejam a morte como solução para os seus problemas existenciais. "Quando aparece uma pessoa que não quer viver, ou que aparenta isso"... "confundem-se no profissional todas as premissas de sua vocação e atuação" porque "médicos e pacientes têm objetivos diferentes" (12).

Para os profissionais que trabalham com pessoas que tentaram o suicídio, é extremamente frustrante perceber que todos os seus esforços, o custo hospitalar, os conhecimentos acumulados por anos de pesquisa para desenvolver técnicas apropriadas, tudo pode resultar num grande fracasso em face da determinação do paciente em morrer.

A experiência com paciente queimado por tentativa de suicídio

Dos pacientes que dão entrada na Seção de Enfermagem de Queimados, poucas são as ocorrências declaradas como suicídio ou homicídio. Na maioria das vezes conseguimos alguns dados a esse respeito no levantamento da história do paciente e no decorrer da internação e ou ainda na alta hospitalar. Com a convivência, os pacientes vão adquirindo confiança em alguns membros da equipe e acabam contando espontaneamente; outras vezes chamam apenas um dos elementos da equipe de enfermagem para desabafar seus sentimentos. Devido a diversas dificuldades de ordem burocrática, poucas vezes o enfermeiro pode solicitar a presença do psiquiatra do plantão de emergência.

Alguns pacientes, assim que iniciam o relato do que aconteceu, freqüentemente verbalizam que antes dessa ocorrência já haviam passado por tratamento psiquiátrico. Outros referem que têm alguns problemas desta natureza, automedicam-se ou então, mesmo estando cientes de suas dificuldades emocionais não fizeram tratamento. É comum verbalizarem sentimentos de tristeza e desânimo, insegurança frente aos revezes da vida, perda da auto-estima, da confiança em si mesmo, no cônjuge e nas outras pessoas. Com o passar do tempo, vão aparecendo situações em que se percebem intenso sofrimento, solidão, desvalorização da auto-imagem corporal que se instalam e trazem conseqüências negativas para o equilíbrio emocional do paciente.

A dor psicológica e a física, embora sejam de natureza diferente, se sobrepõem. A hora do banho, dos curativos e da fisioterapia constituem um sofrimento atroz. Não menor é a dor psicológica que pode ser induzida ou exacerbada pela solidão, sentimento de culpa e medo de rejeição.

Por outro lado, a equipe multidisciplinar experimenta um sentimento de impotência para enfrentar toda essa dor. Como não se sente preparada para cuidar dos pacientes, sofre uma pressão psicológica na qual se misturam ansiedade, preconceitos, impaciência e rejeição, fazendo com que se afaste deles. A interação entre a equipe e o paciente fica prejudicada, o que se verifica na maneira automática e fria de executar os procedimentos de enfermagem.

Assim, o enfermeiro enfrenta o desafio de desenvolver habilidades na avaliação física e emocional do paciente, na comunicação interpessoal e na capacidade de ajudá-lo a superar uma ampla faixa de problemas físicos e reações psicológicas. Cabe-lhe, também, aceitar o compromisso de respeitar a dignidade do doente de todas as camadas sociais e estabelecer a convivência com outros profissionais de saúde.

É necessário estabelecer a compreensão de que o suicida é uma pessoa que passa por um momento de perturbação mental, cujo ato de auto-agressão pode ser considerado como um sintoma qualquer fora da normalidade. Portanto, ao prestar-lhe uma assistência de enfermagem de uma forma que envolva também os aspectos psicológicos, acreditamos estar desenvolvendo um modelo assistencial mais individualizado, mais humano e que cause menos dor.

METODOLOGIA

Fundamento teórico metodológico

Para o desenvolvimento da pesquisa, optou-se pela abordagem qualitativa dos dados, cuja diretriz principal é a existência de uma relação dinâmica entre o mundo real e o sujeito, um vínculo indissolúvel entre o mundo objetivo e a subjetividade do sujeito. O sujeito-observador é parte integrante do processo de conhecimento e interpreta os fenômenos atribuindo-lhes um significado (13).

O fundamento teórico que norteou o estudo foram os pressupostos da Medicina Psicossomática (14). Tal direcionamento teórico originou-se da psicanálise, contudo não se limitou a essa base, uma vez que utiliza também conhecimentos da Teoria da Gestalt e da Fenomenologia. Este autor propõe uma visão holística para a assistência ao ser humano, na qual conhecimentos de anatomia, fisiologia, imunologia somam-se a uma análise profunda e ampla da individualidade, procurando compreender-lhe o foco estrutural de vida. A sua concepção não admite doenças psicogênicas de um lado e somatogênicas de outro, visto ser o homem um todo psicossomático e serem todas as doenças desta natureza.

Tal constatação levou à escolha do uso da história de vida, utilizando a entrevista, durante a qual o pesquisado narra de forma linear e individual os acontecimentos que considera significativos. A partir deste relato, o pesquisador poderá desvendar os relacionamentos coletivos do grupo de pertença deste entrevistado, possibilitando a avaliação de seus problemas dentro do contexto de sua vida (15).

A técnica

Optou-se pelo emprego da entrevista aberta, segundo modelo adaptado (14), definida como uma forma de colher informações baseadas no livre discurso do entrevistado. Pressupõe-se que o informante seja competente para comunicar com clareza a sua experiência, prestar informações fidedignas e manifestar o significado de seus atos no contexto em que se realizam, revelando tanto a historicidade dos atos, concepções e idéia (13)

Campo de estudo

A pesquisa foi feita na Seção de Enfermagem de Queimados do HCFMRP/USP, localizada no 4º andar da Unidadede Emergência, após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética do próprio Hospital.

População e amostra

A população em estudo foi composta por duas pacientes queimadas, uma por tentativa de suicídio confirmada no ato da internação e a outra, durante o tratamento hospitalar. Tinham um grau de escolaridade referente ao 1º. Grau, com idade de 46 e 31 anos, uma comerciante e outra doméstica. Ambas foram orientadas quanto à natureza do estudo e informadas sobre o direito de recusarem em participar da pesquisa a qualquer momento. Em seguida foi lido o termo de consentimento informado, solicitada a sua colaboração e assinatura do mesmo.

Instrumento de coleta de dados

O Instrumento usado para a coleta de dados foi o modelo adaptado da "História da Pessoa" (14). Foi levantada a biografia das pacientes, na qual se manifestam os indícios dos possíveis motivos que as levaram à tentativa de suicídio. As entrevistas foram realizadas na sala de curativos, com duração média de uma hora. Como apenas uma depoente permitiu o uso do gravador, foram transcritas ou complemen-tadas com a maior brevidade possível.

A história de vida das depoentes

Ao término da análise dos relatos das depoentes, estávamos à frente de dois retratos de história de vida, de conteúdos subjetivos, pobres em experiências positivas de sucesso e de relacionamentos, de satisfações pessoais e emocionais. Foi feito um estudo comparativo da vida das duas pacientes para que se pudesse estabelecer pontos em comum que viessem esclarecer o objeto de pesquisa deste trabalho: as circunstâncias que desencadearam os atos de tentativas de suicídio por queimaduras. Os fatos manifestos foram agrupados nos seguintes tópicos: o nascimento e a idade lúdica, a família nuclear, a experiência escolar, a adolescência e o amor, o casamento, a procura da morte. Após esta divisão, feita com fins didáticos, verificou-se, na verdade, não terem sido fatos isolados que desencadearam a vontade de morrer, mas o contexto geral de vida.

O nascimento e a idade lúdica

As pacientes relatam que nasceram de parto normal, em cidades do interior do Estado de São Paulo, uma delas na roça, com parteira, fato este que consideraram normal por serem estes os valores culturais do grupo a que pertenciam. Não houve relato de trauma neste período de vida.

O ser humano, ao nascer traz consigo três emoções básicas: o medo (angústia), o ódio (agressividade) e o amor (erotismo), os quais, juntos aos caracteres genéticos formam sua herança hereditária que darão suporte para o enfrentamento do mundo (14).

Assim, notamos que durante a infância das pacientes, a tipificação sexual, comportamentos, valores e atitudes consideradas apropriadas pelas depoentes não foram vinculadas ao papel feminino, mas ao masculino. Este fato foi importante na socialização das pacientes, pois elas brincavam com seus irmão mais velhos, já expondo as primeiras demonstrações de comportamentos agressivos de natureza física. As duas referem ter sido crianças espertas, que pareciam moleque, fazendo tudo o que eles faziam. Deixam transparecer que o universo masculino era mais emocionante e independente, postura muitas vezes castigada pelos pais na infância.

A família nuclear

Admite-se como certo que os acontecimentos do início da infância afetem o futuro ajustamento psicológico e social do indivíduo. Como é no seio da família que se dão as primeiras relações sociais, é também daí que vêm as primeiras influências que o indivíduo sofre.

As duas pacientes relatam dificuldades de relacionamento com a mãe. Uma delas, a quem chamaremos América, revela uma figura materna neutra, pouco participativa nos seus problemas, mas posteriormente dando apoio à filha quando esta começa a trabalhar e quando a incentiva a se reabilitar do uso abusivo do álcool. A outra, a quem chamaremos Bernadete, refere-se à mãe como uma pessoa rígida, apreciadora de ordem e de detalhes, cobrando estes requisitos da filha e não valorizando o potencial positivo dela. O mesmo não acontece com a figura do pai. Ambas sofrem muito com a sua perda. Para América significou o começo de uma vida de privações econômicas na infância, mas Bernadete sofre com a suspeita, nunca esclarecida, de que o pai tenha se suicidado. Há outro episódio semelhante em sua infância: a professora que se enforca no banheiro.

A experiência escolar

Depois da família, a escola é provavelmente a instituição social mais importante durante os anos de formação da criança. Cabe a ela participar na transformação de uma criança dependente e imatura em um membro responsável, auto-suficiente e em condições de contribuir para o bem estar de sua comunidade (16)

A iniciação escolar das duas pacientes foi diferente, igualando-se no resultado final. Bernadete entrou para a escola aos seis anos e, pelo seu relato, mostrou ter sido a princípio uma aluna participante. Com o passar dos anos tornou-se desinteressada, insatisfeita, criando atritos com os professores. Cursou até a 8ª série, abandonando os estudos para casar. América relata que sempre teve dificuldades para aprender, repetindo vários anos e não conseguindo terminar o 1º - Grau. Este fracasso é tão marcante na sua vida que, ao terminar a 5ª série, abandonou os estudos, convicta de que havia sido reprovada. Só dois anos mais tarde veio a saber que havia passado de ano. Bernadete revela que aprendia com facilidade, enquanto América demonstrava dificuldades no aprendizado. Talvez a primeira tenha sido mais estimulada, enquanto a segunda não tenha sido devidamente trabalhada pelos professores que lhe negaram um tratamento adequado em sala de aula ou não souberam lidar com as dificuldades emocionais precoces ou com as deficiências de aprendizado.

As duas pacientes não conseguiram formar uma imagem positiva delas mesmas no período escolar mas refletem uma grande insatisfação que desencadeou a desmotivação para a escola, levando ao fracasso e baixando o nível de aspiração de aprendizagem.

A adolescência e o amor

A adolescência é considerada um período crítico do desenvolvimento, quando as tensões são uma constante. Os adolescentes passam por uma série de dificuldades para a adaptação ao mundo, principalmente se houver uma desestrutura de comportamento. As pacientes do presente estudo despertaram para a adolescência numa situação de conflito pessoal com a família e com o meio em que viveram, principalmente com a escola.

Nos relatos da história de vida não há alusão a relacionamentos de amizades, mas apresentam relatos do despertar da sexualidade. Ambas se casaram ainda adolescentes, embora o sexo tenha tido conotações diferentes para elas. América fala sem culpas e espontaneidade sobre sua iniciação sexual; já Bernadete evidencia que a descoberta da sexualidade foi marcada por episódios dolorosos. Ambas apaixonaram-se e casaram-se neste período da vida.

América relata ter tido, antes de se casar, oportunidade de conhecer o sexo, de usar o seu corpo para valorizar o prazer. Acentua a satisfação com a sua forma física, principalmente com os seios. O seu namorado, depois marido, também a elogiava e demonstrava gostar de seus seios. Ela parece ter tido uma iniciação sexual sem traumas. Bernadete, ao contrário, passou por uma experiência sofrida. Fugiu com o namorado e mesmo não tendo tido relação sexual com ele, não pode casar de branco na igreja, como era seu sonho. Como de costume, nem a sociedade, nem a mãe, nem o padre acreditaram nela! Este fato marcou ainda mais sua vida e piorou o relacionamento com a mãe. A descrença dos outros leva-a a várias perdas nesta fase da vida: perda da dignidade, da possibilidade de realizar seu sonho de casar na igreja, o descrédito perante a família, o padre e os conhecidos da cidade onde morava.

As pacientes, ainda em plena adolescência, entram na vida adulta através do casamento, com muitos problemas irresolutos e muitas decepções, insucessos e relacionamentos mal resolvidos.

O casamento

O amor romântico da adolescência pode tornar-se uma experiência negativa quando não baseado na realidade. Um relacionamento amoroso mais profundo pode evitar a ambivalência de sentimentos e nem a relação mais harmoniosa pode evitar uma certa porção de hostilidades. As tensões destrutivas estão presentes no dia-a-dia dos relacionamentos afetivos e é necessário que haja uma grande dose de compreensão e vontade de superar estas tensões para conseguir viver uma vida a dois satisfatória".

Nem América, nem Bernadete tinham recursos internos que possibilitassem a superação destes conflitos. América parte para o casamento por estar grávida. Logo toma a responsabilidade da casa, no sentido amplo de provedora, pois o marido deixa de trabalhar e iniciam-se os desentendimentos. E nessa fase que começa a adoecer. Após um episódio de desmaio, automedica-se com psicotrópicos. Depois de uma péssima vida conjugal de catorze anos, separa-se do marido. Arranja outro companheiro com quem vive até hoje. Este segundo casamento também não lhe trouxe estabilidade emocional, visto que seu companheiro bebia. A intercorrência da queimadura se dá nesta fase.

Bernadete logo se decepciona com o companheiro que a trai e a agride fisicamente. Com a morte do pai sente-se mais desamparada ainda. A partir desta data, fica mais doente e por três vezes tenta o suicídio, a última com fogo.

A procura da morte

Após o estudo comparativo, levantando os pontos comuns e incomuns das duas histórias, podemos considerar que, de uma maneira abrangente, a agressividade, os relacionamentos afetivos conturbados e o despreparo para trabalhar as perdas formaram o triângulo desencadeante da tragédia: a tentativa de suicídio. Ambas buscam na morte por fogo a perda da própria imagem.

A doença é a expressão máxima da crise existencial de uma pessoa. A doença advém como um modo ruidoso de manifestar-se o que antes já havia sido elaborado (14)

Assim, o ateamento do fogo é uma maneira dramática que encontraram para fazer vir à tona o acúmulo de pressão que, por anos, havia se instalado dentro delas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No transcorrer deste trabalho, as histórias de vida, as experiências das sobreviventes de queimaduras revelaram um fato significativo: a dificuldade em elaborar as perdas durante a vida levou-as à autodestruição. Considera-se de suma importância destacar que as perdas ocorridas em suas vidas foram marcantes e destrutivas, já que não conseguiram elaborá-las construtivamente.

No decorrer de nossas vidas diariamente deparamo-nos com perdas. Elas são necessárias para o nosso amadurecimento, crescimento e desenvolvimento emocional e pessoal. No entanto, quando não são bem trabalhadas, levam o indivíduo a um desequilíbrio emocional, o que pode ser comprovado pelos depoimentos das duas pacientes.

Analisando os seus relatos orais, encontramos em ambos um ponto em comum: as perdas que aconteceram no decorrer de suas vidas. Foram muitas, e não eram assimiladas, pois as depoentes não tinham equilíbrio emocional e psicológico para enfrentá-las e elaborá-las? Criava-se, então, um acúmulo de perdas e, a cada novo acréscimo, sentiam-se mais fracas, mais debilitadas e impotentes para lutar contra elas.

Na tentativa de se libertarem da pressão interna produzida pelas constantes perdas, procuraram o aniquilamento através do fogo. Este é visto como um elemento purificador, que as libertaria e apagaria tudo em suas vidas, transformando tudo em cinzas. Não sabiam que estas cinzas seriam as seqüelas, a dor, as deformidades que se reverteriam em mais perdas, maiores e irreparáveis. Agora têm que lutar com a perda da auto-estima, da imagem corporal, da integridade física, da liberdade, da independência, do respeito do outro, da confiança em si e no outro. Enfim, tudo passa por sentimentos de auto-aceitação e aceitação de todos.

Considerando que toda perda envolve um processo doloroso, só aliviado a partir do momento em que é elaborado, foge ao nosso entendimento como se realizará nas duas depoentes a superação de tantos obstáculos. Talvez esteja aí um campo aberto para futuras pesquisas que descubram meios, estratégias ou métodos para auxiliar a superação de tantas dificuldades ocasionadas pela tentativa de suicídio por fogo.

Considera-se de primordial importância a existência de um profissional da área de Saúde Mental dentro da Unidade de Queimados para que ele ajude a equipe multiprofissional a trabalhar suas próprias perdas. Só a partir do momento em que os membros da equipe souberem reconhecer e elaborar suas deficiências emocionais, poderão compreender e aceitar melhor o paciente queimado por tentativa de suicídio, o que evidentemente levará a uma assistência mais adequada e humana.

  • (1) Ferreira LA, Bueno SMV. Paciente internado queimado e sua perspectiva de vida. In: Anais da 38 Ş Reunião Anual da SBPC; 1987; Brasília; Universidade Federal de Brasilia, 1987- 26p.
  • (2) Azevedo DO. Contribuição ao estudo da prevalência de infecção por pseudomas aeruginosa em pacientes queimados hospitalizados. Tese (Doutorado). Ribeirão Preto(SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP; 1987.
  • (3) Rossi LA. O processo de enfermagem em uma unidade de queimados: análise e reformulação fundamentadas na pedagogia de problematização. Dissertação (Mestrado)- Ribeirão Preto(SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP; 1992
  • (4) Dalri MCB. Perfil diagnóstico de pacientes queimados segundo o modelo conceitual de Horta e a taxonomia I revisada da NANDA. Dissertação (Mestrado). Ribeirão Preto(SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto-USP, 1993.
  • (5) Scherer ZA. Percepções e significados atribuídos pelos pacientes à vivência da queimadura: a importância do processo interativo paciente-enfermeiro de saúde mental- Dissertação (Mestrado) Ribeirão Preto(SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP; 1995.
  • (6) Moura MC. A sexualidade do portador de seqüela de queimadura: a busca (o encontro) do prazer. Dissertação (Mestrado. Ribeirão Preto(SP): Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da USP; 1996
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    FERREIRA, LA.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2002
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