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Uso socializado de álcool por adolescentes ofensores: um enfoque fundamentado nas necessidades humanas

Resumos

No presente artigo, nosso objetivo é visitar algumas considerações básicas sobre necessidades humanas na área da saúde, procurando afunilar a perspectiva no prisma específico da Enfermagem, e trazê-las ao centro da discussão sobre a saúde mental do adolescente ofensor usuário de álcool. Esta tarefa abrange uma discussão sobre necessidades específicas concebidas em ambiente grupal delinquente, uma crítica a políticas que priorizam a coerção sobre adolescentes ofensores e uma análise do papel que o enfermeiro pode desempenhar no âmbito da delinquência juvenil.

Adolescente; Delinquência juvenil; Transtornos relacionados ao uso de álcool; Serviços de saúde para adolescentes; Necessidades e Demandas de Serviços de Saúde; Enfermagem


This study examined some basic health care approaches toward human needs, with a particular focus on nursing. We aimed to incorporate these approaches into the discussion of the mental health of adolescent offenders who consume alcohol. We discuss specific needs of the delinquent group, critique policies that prioritize coercion of adolescent offenders, and the role that nurses could play in the sphere of juvenile delinquency.

Adolescent; Juvenile delinquency; Alcohol-related disorders; Adolescent health services; Health Services Needs and Demand; Nursing


El objetivo de este artículo es visitar algunas consideraciones básicas sobre las necesidades humanas en el área de la salud, procurando profundizar la perspectiva en el prisma específico de la Enfermería y traerlas al centro de la discusión sobre la salud mental del adolescente infractor usuario del alcohol. Esta tarea abarca un debate sobre las necesidades particulares concebidas en el ambiente del grupo delincuencial, una crítica a las políticas que dan prioridad a la coerción sobre los adolescentes infractores y un análisis del rol que puede desarrollar el enfermero en el ámbito de la delincuencia juvenil.

Adolescente; Delincuencia juvenil; Trastornos relacionados con alcohol; Servicios de salud para adolescentes; Necesidades y Demandas de Servicios de Salud; Enfermería


Introdução

Necessidades humanas representam um ponto crucial das discussões globais sobre desenvolvimento(11.Streeten P, Burki SJ, Hicks N, Stewart F. First things first. Oxford: Oxford University Press; 1982). Também são importantes para o desenvolvimento nacional os fundamentos internacionais dos sistemas de justiça juvenil(22.United Nations. United Nations Standard Minimum Rules for the Administration of Juvenile Justice ("The Beijing Rules") [Internet].1985 [cited 2012 Sept 11]. Available from: http://www.unodc.org/pdf/criminal_justice/UN_Standard_Minimum_Rules_for_the_Admin_of_Juvenile_Justice_Beijing_Rules.pdf
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). A delinquência juvenil, de modo especial quando abrange ofensas infligidas por adolescentes usuários de álcool e outras substâncias, é uma questão não apenas infracional, mas também – e primordialmente – uma questão de saúde, que pode refletir na integridade física e psíquica do ofensor, de sua família e da coletividade.

A conformação cultural de subgrupos sociais forma no indivíduo desejos que ele pode entender como sendo necessidades, passando a buscar sua satisfação, para alcançar sua realização enquanto membro do grupo, ainda que de forma violenta. Neste sentido, é certo que diversos são os fatores externos (tais como família, comunidade, cultura) que, inter-relacionados a fatores biológicos e outros elementos individuais, podem contribuir para uma predisposição à agressão(33.Organización Panamericana de la Salud; Organización Mundial de la Salud. Informe mundial sobre la violencia e la salud [Internet] Washington: OPAS/OMS; 2003 [citado 2012 set. 11]. Disponível em: http://www.paho.org/spanish/am/pub/violencia_2003.htm
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). Além destes, a influência do grupo é um dos fatores de risco apontados como principais na participação de adolescentes em condutas de uso de drogas e prática de atos infracionais(44.Martins MC, Pillon SC. A relação entre a iniciação do uso de drogas e o primeiro ato infracional entre os adolescentes em conflito com a lei. Cad de Saúde Pública. 2008; 24(5):1112-20). Pensando em carreiras criminosas inseridas no crime organizado, a delinquência, em certos casos, pode se apresentar como reflexo de um modo de vida pautado pelo abuso de substâncias psicoativas, embasando uma estrutura de autoafirmação, relações de poder e violência. Não se afirma, com isso, que o contexto microssocial seja isolado do contexto econômico e social mais amplo. Não isolados, porém bem caracterizados, por autoidentidade ou por uma postura oficial estigmatizadora, são os grupos que se imprimem como casos de polícia, mormente nas periferias dos grandes centros urbanos.

O papel da área da Saúde diante da violência alcançou um patamar de grande relevância, não mais se considerando serem responsáveis apenas instituições que visam julgamento ou repressão (instituições judiciárias, policiais, correcionais, militares), dado a abrangência e o potencial de atuação da saúde e dos profissionais da área na pesquisa e prevenção da violência, e na defesa de direitos, especialmente pela experiência no atendimento das vítimas da violência(33.Organización Panamericana de la Salud; Organización Mundial de la Salud. Informe mundial sobre la violencia e la salud [Internet] Washington: OPAS/OMS; 2003 [citado 2012 set. 11]. Disponível em: http://www.paho.org/spanish/am/pub/violencia_2003.htm
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).

Um passo adiante seria considerar, também, o papel da saúde perante o ofensor, como tal e, possivelmente, como vítima ao mesmo tempo. É importante, portanto, empreender uma discussão acerca de concepções sobre necessidade, em contribuição com as reflexões sobre como intervir junto aos adolescentes ofensores usuários de álcool ou drogas, com foco na saúde mental.

Nossa intenção é visitar algumas abordagens básicas sobre necessidades humanas na área da Saúde, procurando afunilar a perspectiva no prisma específico da Enfermagem, e trazê-las ao centro da discussão sobre a saúde mental do adolescente ofensor usuário de álcool. Esta tarefa abrange uma discussão sobre necessidades específicas concebidas em ambiente grupal delinquente, um alerta a políticas que priorizam a coerção sobre adolescentes ofensores e uma discussão sobre as possibilidades de atuação do enfermeiro no âmbito da delinquência juvenil.

Anote-se que, ao longo do artigo, há referências que estão, no original, em outros idiomas, e as citações literais estão sendo apresentadas em tradução livre.

Discussão

NECESSIDADES HUMANAS NA SAÚDE: VISÃO ADMINISTRATIVA

Ao procurarmos olhar o adolescente ofensor a partir de um ponto de vista voltado à promoção da saúde mental, teremos que enfrentar a questão das necessidades humanas de uma forma aplicada, pois são razoáveis as dúvidas como: quem define/determina o que são necessidades e quais são as necessidades que devem ser atendidas pelo Estado? ; o Estado pode impor às pessoas o recebimento daquilo que se determinou como adequado e suficiente para atender suas necessidades?; o Estado atende às necessidades humanas de forma suficiente e completa, de modo que as pessoas tenham uma vida plena? São perguntas que, no âmbito da delinquência juvenil, fazem muito sentido, especialmente quando a conduta desviante é duradoura e o contexto de criminalidade é organizado, fazendo com que emerja uma força grupal que desafia o ordenamento jurídico oficial estabelecido, de forma que, dentro do grupo delinquente, podem existir normas e comprometimentos que unem os participantes com laços mais firmes do que os laços que o direito global, baseado nos direitos humanos, procura incentivar.

Façamos um quadro básico sobre algumas concepções acerca das necessidades humanas no campo da saúde, para que nos habilitemos a ver a questão em perspectiva ampla. A finalidade desta exposição é colocar em contraste a concepção dos anseios, percebidos como necessidade, dos adolescentes envolvidos em comportamentos delinquentes e, de outro lado, algumas visões sobre necessidades que não abrangem o comportamento violento como meio para sua satisfação. Robinson e Elkan(55.Robinson J, Elkan R. Health needs assesment: theory and practice. New York: Churchill Livingstone; 1996) com a finalidade de embasar considerações sobre o processo de avaliação de necessidades em saúde apresentam um panorama de abordagens acerca de possíveis formas de se definir necessidade. Para essa finalidade, remetem a três conjuntos de abordagens. O primeiro, que Robinson e Elkan(55.Robinson J, Elkan R. Health needs assesment: theory and practice. New York: Churchill Livingstone; 1996) informam ser proposto por Jonathan Bradshaw, classifica as necessidades em normativas, sentidas, expressadas e comparativas. Necessidade normativa é aquela definida a partir de um padrão por alguém, o expert ou profissional ou administrador em situações determinadas, e está sujeita aos conhecimentos e valores de cada momento; a necessidade sentida, que não é um reflexo da necessidade real, equivale a querer e pode ocasionar situações em que as pessoas não saibam que têm uma necessidade ou pensem que têm alguma necessidade que, na realidade, não têm; a necessidade expressada é a necessidade sentida transformada em ação, ou o que economistas chamam de demanda por um serviço, a qual também não é reflexo de uma necessidade real; por fim, a necessidade comparativa é encontrada pelo estudo das características daqueles que já estão recebendo um serviço, de modo que estará em necessidade uma pessoa, se com características similares a outra, não está recebendo o mesmo serviço, definição que pode ser usada tanto para avaliar necessidades individuais como de grupos de pessoas.

Para o segundo conjunto de abordagens, continuando na mesma referência, Robinson e Elkan(55.Robinson J, Elkan R. Health needs assesment: theory and practice. New York: Churchill Livingstone; 1996) remetem a Len Doyal e Ian Gough, apresentando uma definição objetiva de necessidade, em contraposição a uma concepção apenas subjetiva e relativa, acreditando que há necessidades objetivas que são comuns a todos, sendo universais. Uma participação completa na sociedade é o objetivo definitivo de todos os seres humanos e, para isso, são duas as necessidades básicas a serem atendidas, a necessidade de saúde física, e a necessidade de autonomia, sendo estas direitos fundamentais de todos os seres humanos. Ao lado das necessidades básicas, há as necessidades intermediárias, igualmente universais e objetivas, ambos os tipos de necessidades podendo ser atendidos de formas amplamente variadas. A respeito de quem deve decidir se uma política está sendo eficaz, tanto para as necessidades básicas quanto para as intermediárias, a sugestão é que experts e pessoas comuns deveriam ser habilitados a confrontar umas às outras a fim de reconciliar diferenças nas suas abordagens.

Continuando na explanação de Robinson e Elkan(55.Robinson J, Elkan R. Health needs assesment: theory and practice. New York: Churchill Livingstone; 1996) o terceiro conjunto de abordagens é atribuído ao ponto de vista de economistas, que são relativistas que não acreditam haver necessidades objetivas, e que não acreditam que as pessoas tenham qualquer tipo de direito moral de ter suas necessidades satisfeitas, e descartam essas crenças como emotivas e de pouca ajuda, preferindo falar em 'carências', 'demandas' e 'preferências', embora admitindo falar-se em necessidades em contextos de serviços de saúde, porque, referindo-se ao pensamento de Gavin Mooney,

consumidores nem sempre têm informações completas a respeito de seu estado de saúde e a disponibilidade de serviços, de modo que um corpo de elite, tais como a profissão médica ou de enfermagem, algumas vezes é uma posição melhor que indivíduos decidirem o que são necessidades individuais.

Afirma-se que

[d]ado que recursos são escassos, economistas da saúde enfatizam que necessidades precisam ser categorizadas em ordem de prioridade, e escolhas difíceis feitas entre atender uma necessidade em vez de outra.

Concluem, dizendo que

a contribuição mais importante dos economistas para o debate das 'necessidades' é sua insistência em que necessidades custam dinheiro, e, portanto, os custos relativos da satisfação de diferentes necessidades devem ser investigados(55.Robinson J, Elkan R. Health needs assesment: theory and practice. New York: Churchill Livingstone; 1996).

Verificamos, nos três grupos de concepções, a existência de alguns pontos implícitos em comum, e que nos interessam especialmente neste artigo: o aspecto avaliativo a respeito de necessidades humanas consideradas no âmbito administrativo público, seja tal avaliação, tangente ao seu próprio conceito, seja atinente à eficácia das políticas respectivas; e o fato de tal avaliação refletir na atividade estatal de satisfação de necessidades. Porém, um dado que não pode ser negligenciado é o fato de que, ao se tratar de pessoas menores de 18 anos de idade, o Brasil(66.Brasil. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança [Internet]. Brasília; 1990 [citado 2012 set. 11]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm
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) adota formalmente a posição da Organização das Nações Unidas sobre direitos econômicos, sociais e culturais da criança quando determina a aplicação exaustiva de recursos para a implementação desses direitos, de modo que, independentemente da teoria adotada pela Administração Pública quanto à definição do que sejam necessidades, se estas forem necessidades de crianças e adolescentes, a discussão sobre os custos de sua satisfação fica mitigada.

Percebemos, também, uma alusão indireta à temática das necessidades artificiais, e as julgamos tão importantes quanto às necessidades de saúde que o Estado se propõe a atender, principalmente em virtude da fundamental relevância da compreensão da dinâmica das necessidades, para que o Estado possa atuar corretamente diante delas.

Como a Enfermagem poderia inserir-se no tema, e como esta questão poderia contribuir para a compreensão da delinquência juvenil associada ao uso de substâncias? Partimos, portanto, da premissa de que a Enfermagem pode ter um papel de grande importância frente às necessidades humanas. Considere-se, especialmente, a evolução da Enfermagem representada pela passagem de um modelo biomédico para um foco voltado à atenção ao ser humano enquanto ser multifacetado (biológico, psicológico, social e espiritual), e não à sua doença ou enfermidade(77.Amante LN, Rossetto AP, Schneider DG. Nursing care systematization at the Intensive Care Unit (ICU) based on Wanda Horta’s theory. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2009 [cited 2013 Apr 24];43(1):54-64. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v43n1/en_07.pdf
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). Aprofundaremos este debate a seguir.

NECESSIDADES COMPARTILHADAS E HOMEOSTASE

No Brasil, é bastante difundida a produção de Wanda de A. Horta, no tema das necessidades humanas no campo da Enfermagem. Considerando o aspecto interdisciplinar do tema que estamos abordando, destacamos uma posição mais delimitada aos nossos propósitos, com base nas observações de Cianciarullo(88.Cianciarullo TI. Necessidades humanas e saúde. In: Cianciarullo TI, Cornetta VK, organizadoras. Saúde, desenvolvimento e globalização. São Paulo: Ícone; 2002. p. 237-48), a qual poderíamos centrar numa questão social – posição esta vista de forma mais aprofundada por Potyara Pereira(99.Pereira PAP. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 6ª ed. São Paulo: Cortez; 2011). Portanto, em termos de necessidades humanas na Enfermagem, o direcionamento que Cianciarullo(88.Cianciarullo TI. Necessidades humanas e saúde. In: Cianciarullo TI, Cornetta VK, organizadoras. Saúde, desenvolvimento e globalização. São Paulo: Ícone; 2002. p. 237-48) atribui a Horta, a respeito de necessidades em sua relação com desequilíbrios homeodinâmicos, tem seu conhecimento suprido pelos comentários que adiante fazemos em torno do pensamento de outros autores(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985). Cianciarullo(88.Cianciarullo TI. Necessidades humanas e saúde. In: Cianciarullo TI, Cornetta VK, organizadoras. Saúde, desenvolvimento e globalização. São Paulo: Ícone; 2002. p. 237-48) também cita Potyara Pereira, destacando seu ponto de vista social e crítico contra a concepção de mínimos sociais, termo considerado em detrimento do básico, por meio de uma tendenciosa equiparação de significados, nos processos político-decisórios.

Na obra de Pereira(99.Pereira PAP. Necessidades humanas: subsídios à crítica dos mínimos sociais. 6ª ed. São Paulo: Cortez; 2011) sobre necessidades humanas, notamos um enfoque sobre a assistência social e é bem clara a vinculação da questão com a temática referente a ponderações convencionadas e normatizadas, preceitos éticos e de cidadania mundialmente acatados e declarados na Constituição brasileira vigente; além de vislumbrarmos uma certa dependência do manejo das necessidades em relação a situações de carência – o que vemos também no texto de Cianciarullo(88.Cianciarullo TI. Necessidades humanas e saúde. In: Cianciarullo TI, Cornetta VK, organizadoras. Saúde, desenvolvimento e globalização. São Paulo: Ícone; 2002. p. 237-48) e na visão dos economistas, que mencionamos. Sendo assim, a autora critica a ideia de mínimos sociais presente na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)(1111.Brasil. Lei 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências [Internet]. Brasília; 1993 [citado 2013 fev. 27]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8742.htm
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), destacando sua diferença frente ao conceito de necessidades básicas. Mínimo e básico são apresentados como representando conceitos distintos, onde o primeiro tem um sentido redutivo, e o segundo passa a noção de algo fundamental. Essa diferença terá, segundo a autora, consequências práticas, pois o mínimo leva à política de cortes assistenciais típica da mentalidade do liberalismo, enquanto a ideia de básico direciona as políticas à maior qualidade, abrangência e otimização dos serviços.

Numa perspectiva mais ampla, como a que expusemos, podemos admitir uma dificuldade de apreender o tema das necessidades humanas, especialmente quando falamos da saúde como direito social e, enquanto tal, objeto de trabalho do Estado. Mas, quando abordamos especificamente a saúde do adolescente ofensor usuário de álcool, temos um campo mais delimitado de análise, que identificamos como a situação de comportamento desviante socialmente relevante.

Em outras palavras, dentro do universo de atos juvenis desviantes, uma fração deles emerge como provocadores da ação estatal coercitiva, enquanto um número maior de atos desviantes é absorvido pela sociedade sem demandar uma reação oficial do Estado em sua faceta burocrática. O problema é que, nestas circunstâncias particulares, o comportamento desviante é declarado formalmente por meio de um boletim de ocorrência policial, o que empuxa um processo infracional que culmina num resultado sentencial, ou seja, de julgamento judicial. Consideramos isto um problema, porque nutrimos a convicção de que a delinquência juvenil, associada ao uso de substâncias, reflete uma questão no contexto da dinâmica das necessidades humanas, sendo, portanto, uma questão de saúde (protetiva, reabilitadora) que o Estado tem convertido em questão delaw enforcement (que, para o caso de sujeitos adolescentes, podemos considerar como sendo impositiva, punitiva, estigmatizadora).

Para sustentar nossas discussões, remetemos às noções básicas sobre a homeostase e sua relação com necessidades humanas, sob o ponto de vista da Enfermagem. Uma breve frase introdutória a respeito do que seria a determinação fundamental da tarefa correspondente à homeostase enquanto conceito básico para o processo de enfermagem sugerimos aqui, seja tomada em seu significado, como um princípio para a abordagem da temática das necessidades:

a determinação de que necessidades nós compartilhamos enquanto humanos e em que grau essas necessidades são atendidas(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985).

Como expõem Ellis e Nowlis(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985), do primeiro uso do termo homeostase em 1926 com W. B. Cannon até uma visão atualizada e mais ampla em 1970 por M. E. Rogers, há uma

mudança na perspectiva a partir de uma definição mais específica, fisiológica, de homeostase para uma mais inclusiva, de homeodinâmica,

a qual é aceita pelas autoras (embora prefiram usar o termo mais antigo), abrangendo a vida emocional – aliás, a vida emocional é incluída na explicação de homeostase como sendo a tendência de todo tecido vivo em recuperar-se e manter-se numa condição de balanço e equilíbrio, quando consideramos tecido vivo o conjunto cerebral como centro da vida emocional, de modo que fica declarada a aplicação da homeostase aos processos psicológicos.

Ao se reportarem às necessidades humanas Ellis e Nowlis(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985) remetem a autores clássicos como Abraham Maslow e Carl Rogers, destacando a categorização das necessidades humanas numa hierarquia (hierarchy of needs) pelo primeiro e a teoria da necessidade de funcionamento pleno (need for full functioning) pelo segundo. Explicitam as autoras que, para a enfermagem, a hierarquia proposta por Maslow é interessante de modo geral, mas o pensamento de Rogers aborda um tópico fundamental, que é o da sensibilidade e empatia de que os enfermeiros têm necessidade, para que consigam exercer de forma eficaz o seu ofício de prover cuidado à saúde. Elas procuram frisar que, em todo caso, o trato do paciente sempre estará embasado na sua segurança física e psicológica, o que envolveria práticas como boa organização do local de atendimento, honestidade, sigilo e ética.

No contexto da rica explanação sobre necessidades humanas no campo da atuação da Enfermagem, o ponto que mais imediatamente nos interessa destacar, para que possamos discutir o tema com foco na delinquência juvenil associada ao uso de substâncias, é o tópico das necessidades psicossociais, sobre a qual se afirma(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985) incluir a necessidade de identidade, boa saúde mental, e um sistema de valores e crenças, e continuam explicando que

para atender a estas necessidades requerem-se habilidades psicossociais por parte do enfermeiro, e tais habilidades estão entre as primeiras que você precisa adquirir para interagir efetivamente com seus colegas na equipe de cuidado à saúde e com seus pacientes/clientes.

Parece ser neste mesmo sentido que, com foco na Saúde da Família, um estudo(1212.Silva AMN, Mandú ENT. Abordagem de necessidades de saúde no encontro assistencial de trabalhadores e usuários na saúde da família. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2012 [citado 2013 fev. 27];21(4):739-47. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n4/03.pdf
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) destaca a importância da intersubjetividade no âmbito da abordagem das necessidades em saúde.

Destacam-se dentro das necessidades psicossociais, as seguintes: necessidade de comunicação, que abrange a compreensão da situação e a resposta às perguntas do paciente, e é atendida pelo papel didático – health-teaching role – que o enfermeiro desempenha, sendo de se observar, porém, que [u]m dos fatores básicos da didática em saúde é a receptividade do paciente e seu desejo de aprender; necessidade de pleno desenvolvimento ao longo do ciclo da vida, abrangendo aspectos físicos e psicológicos – [a] necessidade de progredir ao longo do contínuo da vida no equilíbrio homeostático é uma necessidade universal; necessidade de alcançar identidade social, cultural e étnica – vale transcrever:

Esta nos dá um sentido de pertencer. Possibilita-nos um elo com um passado significativo e nos permite sermos diferentes. Encoraja-nos um sentimento de ser parte de um grupo de pessoas que têm backgrounds similares. Sermos reconhecidos como tendo uma identidade particularmente social, cultural, ou étnica é um pré-requisito para compartilhar tal identidade com os outros de uma forma construtiva;

necessidade de saúde mental, valendo aqui, também, transcrever um trecho do que as autoras dizem, pela sua relevância para o tema:

Nas dependências do hospital, pequenos, mas significativos caminhos podem ser encontrados para sustentar a autoestima e ajudar a contrabalançar a ansiedade e a depressão. A manutenção da privacidade, a inclusão do paciente no processo de decisão, e o reconhecimento do paciente enquanto uma pessoa sensível, dotada de sentimentos, tudo isso pode ajudar a construir a autoestima do paciente. A própria maneira de oferecer atenção deveria dizer, ‘Você é uma pessoa importante e também é um paciente para mim;

necessidade de um sistema autodeterminado de valores e crenças, com vistas à afirmação da identidade, ao bem-estar e à vida; e necessidade de identidade sexual(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985).

O que lemos aqui a respeito do pensamento de Ellis e Nowlis(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985) é, evidentemente, conteúdo sério, científico, objetivo e ético. Não se pode negar, todavia, a beleza, o lirismo dos pormenores por detrás do (re)equilíbrio da homeostase. E nossa abordagem quanto ao uso socializado de substâncias, busca revelar que, olhando o adolescente ofensor sob o olhar empático da Enfermagem, aquele reequilíbrio é um horizonte possível e que o law enforcement tem grande poder frustrante neste tema.

ADOLESCENTES OFENSORES E CONSUMO SOCIALIZADO DE SUBSTÂNCIAS

Sem a intenção de sermos por demais simplistas, podemos dizer que os resultados catastróficos da Segunda Guerra Mundial e o surgimento da Organização das Nações Unidas (ONU), em sua missão de positivar internacionalmente a proposta de uma garantia mundial dos direitos humanos, representam marcos históricos que simbolizam toda uma luta física e intelectual que tem como ponto central o futuro da humanidade. A evolução humana culminou na consideração da humanidade como atributo inato da pessoa e imediatamente digno de defesa. Portanto, como se depreende do que vimos trabalhando neste artigo, especialmente com inspiração em Ellis e Nowlis(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985), o primeiro passo para a abordagem das necessidades humanas dos adolescentes ofensores seria ter em mente que há necessidades que compartilhamos enquanto humanos.

O atendimento a necessidades humanas compartilhadas deve independer da condição legal do indivíduo sujeito a esse provimento. Não importa a gravidade, nem mesmo a hediondez, de sua conduta, ao menos o ordenamento jurídico brasileiro não aceita nenhuma hipótese de reação estatal consubstanciada na privação em certas necessidades, desdobradas em satisfações como a nutrição e a higiene, o ambiente de respeito e dignidade e até mesmo as relações amorosas íntimas. Sem embargo, seria insuficiente prover ao adolescente ofensor uma atenção em saúde mental desprovida da apreciação das necessidades que ele entende suprir por meio de seus compromissos grupais. Igualmente, sugere-se mudar o olhar primário sobre a conduta juvenil delinquente, saindo da visão infracional (que vê a conduta ofensora como objeto de interesse do poder opressor estatal, resumido na reação policial/judicial limitadora de direitos), para considerar a visão da saúde mental baseada no reequilíbrio homeostático, a qual poderia servir para, ao menos, dois propósitos de compreensão: oferecer uma autocompreensão ao ofensor, para que entenda o quanto a sua conduta pode ser violenta e danosa para si mesmo e para sua família e comunidade, provendo-lhe a consciência de que o Estado reconhece a sua existência e liberdade, de modo que possa perceber que tem escolhas a fazer em prol de sua saúde; e, também, construir uma compreensão oficial profunda sobre a composição da sociedade em seus diversos aspectos – atividade esta que deveria envolver conhecimentos (e habilidades) de inteligência e ser realizada com autonomia política, requisitos que demonstram o quanto pode ser difícil, e provavelmente frustrante, a abordagem do assunto.

O propósito de compreender o adolescente ofensor usuário de álcool ou drogas envolve considerar a violência que a sociedade esconde, bem como os esforços que ele empreende para se autoafirmar em seu contexto. A maior parte da violência ocorre de fora da nossa percepção, em lugares reservados como o lar ou mesmo uma instituição de saúde, e as vítimas muitas vezes estão indefesas por serem jovens demais ou estarem doente(33.Organización Panamericana de la Salud; Organización Mundial de la Salud. Informe mundial sobre la violencia e la salud [Internet] Washington: OPAS/OMS; 2003 [citado 2012 set. 11]. Disponível em: http://www.paho.org/spanish/am/pub/violencia_2003.htm
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).

Grupos delinquentes são fortes formadores de convenções e criadores de supostos meios para satisfação de necessidades. Em um estudo, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)(33.Organización Panamericana de la Salud; Organización Mundial de la Salud. Informe mundial sobre la violencia e la salud [Internet] Washington: OPAS/OMS; 2003 [citado 2012 set. 11]. Disponível em: http://www.paho.org/spanish/am/pub/violencia_2003.htm
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) mostra-se preocupada com o fenômeno das gangues de jovens, concedendo a todas elas o atributo de responder à necessidade básica de pertencer a um grupo e criar sua própria identidade; além disso

[u]ma complexa interação de fatores leva os jovens a optarem pela vida nas gangues. Estas parecem proliferar nos lugares onde se desintegrou a ordem social estabelecida e onde não há formas alternativas de comportamento cultural compartilhado(33.Organización Panamericana de la Salud; Organización Mundial de la Salud. Informe mundial sobre la violencia e la salud [Internet] Washington: OPAS/OMS; 2003 [citado 2012 set. 11]. Disponível em: http://www.paho.org/spanish/am/pub/violencia_2003.htm
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).

O estudo aponta, ainda, outros fatores socioeconômicos, comunitários e interpessoais, que podem contribuir para a participação dos jovens nessas gangues:

a falta de oportunidades de mobilidade social ou econômica, dentro de uma sociedade que promove agressivamente o consumo; o declínio do cumprimento da lei e da ordem no plano local; a interrupção dos estudos, combinada com salários baixos pelo trabalho não qualificado; a falta de orientação, supervisão e apoio dos pais e outros membros da família; o castigo físico severo ou a vitimização no lar; o fato de ter companheiros que já fazem parte de uma gangue(33.Organización Panamericana de la Salud; Organización Mundial de la Salud. Informe mundial sobre la violencia e la salud [Internet] Washington: OPAS/OMS; 2003 [citado 2012 set. 11]. Disponível em: http://www.paho.org/spanish/am/pub/violencia_2003.htm
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).

Carências apontam necessidades, mas nem sempre as necessidades mais adequadas, e algumas vezes necessidades irreais, porém fortes o suficiente para levar o indivíduo à ação violenta.

Diante da precariedade de significação social da cultura contemporânea, o sujeito tenta encontrar novas formas de estabelecer laço social, buscando alguma amarra coletiva. A entrada numa gangue ou num circuito criminoso oferece, diante dessa carência simbólica, uma promessa de sentido social, como uma ilusão comunitária. O sujeito fica submetido aos ideais narcísicos impostos pela cultura local. Na verdade, o poder desses coletivos existe porque o sujeito atribui a eles esse poder, em função de sua carência simbólica, ou seja, diante de sua precária consistência subjetiva(1313.Guerra AMC, Moreira JO, Lima NL, Pompeo BDS, Soares CAN, Carvalho LMS, et al. Construindo idéias sobre a juventude envolvida com a criminalidade violenta. Estud Pesqui Psicol [Internet]. 2010[citado 2013 fev. 21];10(2). Disponível em: http://www.revispsi.uerj.br/v10n2/artigos/pdf/v10n2a10.pdf
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).

Deve-se, porém, pensar na adequação das necessidades com base na saúde e paz, e também dignidade, do ser humano globalmente considerado, tendo em vista o bem comum, o desenvolvimento e a harmonia entre as pessoas. Situações microcontextualizadas podem levar a acreditar-se ser adequada qualquer necessidade diretamente ligada à tentativa de resolver um conflito. Tendo em mente o fato de que há convenções representadas pelo direito posto, que formalizam anseios de proteção dos direitos humanos, sugere-se, com a devida cautela, considerar que sistemas marginais e ilegais podem representar o ambiente perfeito para os escopos que jovens acreditem ser a resposta de suas carências e realização de seus anseios. Poder-se-ia falar em algo como necessidades criminógenas, embora seja um conceito que demanda maior aprofundamento quando se fala em adolescentes. A tenuidade da distinção entre necessidades básicas e necessidades criadas no meio excluído e violento, deve-se ao fato de que algumas práticas passam a fazer parte do modo de vida habitual do adolescente marginalizado como por exemplo, o ato de usar drogas.

Alguns autores(1414.Corradi-Webster CM, Esper LH, Pillon SC. A enfermagem e a prevenção do uso indevido de drogas entre adolescentes. Acta Paul Enferm. 2009;22(3):331-4) encaram problemática similar, em um relato de experiência com jovens em situação de risco e vulnerabilidade social, com foco no uso indevido de substâncias psicoativas, afirmando ser preciso aceitar o desafio de trabalhar não apenas os aspectos negativos do uso de substâncias, mas também os positivos. Portanto, não é o caso de inserir, a priori, a questão do uso de substâncias como responsável pela conduta, mas de, primeiramente, compreendê-la, considerando que

o uso de drogas faz parte do contexto e da história da sociedade, utilizadas em rituais, em situações de festas, de lazer, contrapondo-se ou participando de outros aspectos da vida das sociedades(1515.Adorno RCF. Uso de álcool e drogas e contextos sociais da violência. SMAD Rev Eletr Saúde Mental Álcool Drog [Internet]. 2008[citado 2013 fev. 21];4(1). Disponível em: http://www.revistas.usp.br/smad/article/view/38662/41509
http://www.revistas.usp.br/smad/article/...
).

É dizer, é preciso que se realizem investigações para discernir diferentes sentidos sociais do uso das substâncias psicoativas.

A produção cultural relacionada a grupos delinquentes pode expressar o cotidiano, vontades, relações, valores, tal como se constata na literatura(1616.Ferreira RS, Aragão COM, Arruda A. "Boladão, pesadão, isso é Rio de Janeiro": notas sobre funks de torcida e de facção. Aletheia [Internet]. 2010 [citado 2013 fev. 21];(32):38-52. Disponível em: http://www.redalyc.org/pdf/1150/115020838004.pdf
http://www.redalyc.org/pdf/1150/11502083...
) quando descreve funks de torcidas de futebol e de facções criminosas, denotando que os seus conteúdos estão ligados a algum tipo de conflito (por exemplo, conflito com a polícia e outras facções), e expressam, muitas vezes, necessidades. Um estudo(1717.Rodriguez A, Ferreira RS, Arruda A. Representações sociais e território nas letras de funk proibido de facção. Psicol Rev (Belo Horizonte) [online]. 2011 [citado 2013 fev. 21];17(3):414-32. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v17n3/v17n3a06.pdf
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v17n3/...
) analisou 50 letras de funks de facção, identificando sete categorias de temas centrais nessas músicas: conflitos externos à facção (novamente, polícia ou outras facções), normas de conduta, afirmação da identidade da facção, afirmação da identidade guerreira, consumo e demonstração de poder, uso de drogas e dificuldades enfrentadas na vida do crime. Mas, não são simples canções, pois de fato há estruturas grupais que impõem normas, de forma paralela ao ordenamento jurídico positivo oficial legitimado com base nas leis formais vigentes. Pode-se falar até mesmo de um sistema de justiça do crime, consonante à ética e às leis do mundo do crime, cenário este que, com o tempo, se inseriu como parte do próprio contexto da comunidade respectiva, com normas mais abrangentes (não apenas limitadas aos participantes das condutas criminosas)(1818.Feltran GS. Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do homicídio nas periferias de São Paulo. Cad CRH [Internet]. 2010 [citado 2013 fev. 21];23(58). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v23n58/v23n58a05.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ccrh/v23n58/v23...
).

Temos observado em campo – isto é, durante a pesquisa de doutorado intitulada Uso de Álcool e Delinquência Juvenil na Cidade de Ribeirão Preto, em desenvolvimento junto ao Programa de Enfermagem Psiquiátrica, da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo – a presença significativa de alusões ao uso socializado da bebida alcóolica por adolescentes ofensores processados perante o Estado em razão de sua conduta. O uso socializado, neste caso, se revela pelo consumo habitual com amigos/colegas (e sem a presença de familiares), mediante aquisição onerosa (compra) muitas vezes direta não obstante a proibição legal de venda conforme a idade, em situação de lazer fora do lar. Ramificando tal consumo com os aspectos identificativos grupais da conduta delinquente, fazemos a mesma pergunta de Heim(1919.Heim J, Andrade AG. Efeitos do uso do álcool e das drogas ilícitas no comportamento de adolescentes de risco: uma revisão das publicações científicas entre 1997 e 2007. Rev Psiquiatr Clín [Internet]. 2008 [citado 2013 fev. 21];35 Supl.1:61-4. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rpc/v35s1/a13v35s1.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rpc/v35s1/a13v3...
):

o uso e/ou abuso de álcool e drogas ilícitas induzem ao comportamento criminoso ou, ao contrário, adolescentes com problemas de conduta têm maior probabilidade de utilizar droga, o que mantém e contribui para a escalada das atividades delinqüentes?

Nossa missão, neste artigo, não é responder à pergunta dessa autora, mas a colocamos para demonstrar que, por ser uma questão relevante, justificamos a ponderação sobre o papel da Enfermagem no trato público da delinquência juvenil associada ao uso de álcool.

DISCUSSÃO: O PAPEL DA ENFERMAGEM FRENTE ÀS NECESSIDADES DOS ADOLESCENTES

Podemos, certamente, ver o comportamento do adolescente ofensor usuário de álcool sob o prisma da necessidade. Com base neste ponto de vista, colocamos em foco de reflexão o papel que a Enfermagem Psiquiátrica pode desempenhar, com substanciosos ganhos sociais, no trato direto e prioritário em relação a tal sujeito. Este sujeito, integrado na prática delituosa e auto-identificado com o uso socializado de álcool, estaria se movendo com base em necessidades imediatas fisiológicas e psicossociais, típicas do grupo a que pertence, embora em prejuízo de sua saúde global e expressando um comportamento indesejado e supostamente perigoso para a sociedade. Essas necessidades poderiam ser chamadas de necessidades desviantes negativas, termo que sugerimos com inspiração no que um estudo entende como comportamento desviante indesejável(2020.Pfromm Netto S. Psicologia da adolescência. 6ª ed. Brasília: Pioneira; 1977). O principal caráter dessas necessidades desviantes negativas seria a destrutividade, influindo de forma negativa, por exemplo, no desenvolvimento normal (pleno e progressivo) ao longo do Ciclo da Vida (que é uma das necessidades psicossociais(1010.Ellis JR, Nowlis EA. Nursing: a human needs approach. 3rd ed. Boston: Houghton Mifflin; 1985). Portanto, nesse sentido, necessidades desviantes negativas seriam necessidades grupalmente criadas, intimamente ligadas a comportamentos desviantes negativos/indesejados e retroalimentadoras de um desequilíbrio homeostático, com caráter progressivamente destrutivo.

Assim, problematizamos a questão comportamental daquele adolescente (ofensor, usuário de álcool) em torno do seu desequilíbrio físico e psicossocial, e levantamos a hipótese de que os enfermeiros poderiam ser inseridos, em sua tarefa multifacetada, como recurso humano fundamental na recuperação da saúde global e, por conseguinte, no restabelecimento da homeostase naquele sujeito. Este ponto de vista implica, evidentemente, elevar ao primeiro plano o olhar sobre a saúde do adolescente e, neste passo, inserir este olhar prioritário no bojo prático atinente à responsabilidade do Estado, no lidar cotidiano com os adolescentes que apresentam comportamento desviante mais grave. Implica, ainda, a ampliação da abrangência e valorização da busca ativa, tão importante na seara do uso de substâncias(2121.Souza J, Kantorski LP, Luis MAV, Oliveira NF. Intervenções de saúde mental para dependentes de álcool e outras drogas: das políticas à prática cotidiana. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2012 [citado 2013 fev. 27];21(4):729-38. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n4/02.pdf
http://www.scielo.br/pdf/tce/v21n4/02.pd...
).

Aliás, a posição que estamos construindo neste artigo não é, de forma alguma, um pensamento novo, mas propomos um passo seguinte. A delinquência juvenil pode ser considerada como uma questão de saúde pública. Estamos convictos de que a Enfermagem se situa num ponto estratégico neste campo, embora reconheçamos uma incompreensão sobre a amplitude de seu papel dentro do tema, talvez moldado por fatos sociais pautados pela superficialidade da burocracia, juntamente com uma influência negativa do sensacionalismo midiático. Em termos legais e éticos, a Enfermagem já se encontra munida da autonomia e do papel sociopolítico para dar este passo. Seria, portanto, um avanço na discussão sobre necessidades, procurando demonstrar que há outras necessidades além daquelas que se consideram legítimas e aceitáveis, e que as respostas estatais à delinquência devem ter consciência da força desses laços paralelos, que se cristalizam nas culturas locais, talvez mais intensamente quanto maior a omissão estatal, embora pareça ser sistematicamente ignorado o funcionamento humano das relações, e quase somente a conduta externa é considerada nos trâmites da aplicação do poder de punir estatal. A reação estatal à delinquência juvenil, portanto, e dependendo de como é levada a efeito, pode ser estigmatizante e violadora de direitos humanos, ainda que, tecnicamente, não se permita falar em punição contra adolescentes, dado o sistema de proteção consubstanciado nas normas brasileiras.

Considerações Finais

Nosso alicerce é reflexão científica cumulativa e ponderada, bem como a experiência histórica global, que têm ensinado pacientemente ao mundo sobre o dever ser. Não negamos a existência de obstáculos de múltiplas formas e fontes, mas reafirmamos que cada vez mais se consolida a visão humanizante da Saúde Mental e esta, aos poucos, por meio do encontro dialogal entre disciplinas se insere nos mais diversos temas de interesse político.

Os enfermeiros deveriam ser considerados como elementos fundamentais de coordenação de esforços dentro de qualquer discussão em termos de políticas envolvendo adolescentes ofensores – frise-se: elementos de coordenação de esforços provenientes de várias áreas de formação, em especial as da Saúde e das Ciências Sociais.

Posicionamos a questão das necessidades humanas como centro e princípio desta visão, o que levaria a colocar em segundo plano a questão infracional, com a grande vantagem de destipificar o comportamento (não categorizá-lo mediante lei, e não restringi-lo em faixa etária), o que amplificará a visão do Estado sobre o comportamento desviante da pessoa menor de 18 anos. Assim, avançamos também em nosso papel de contribuir para as pesquisas e políticas comprometidas com o avanço do desenvolvimento nacional, apresentando uma forma mais atualizada e humana de olhar para o comportamento não saudável quando este se transforma em comportamento antissocial.

Olhar o comportamento desviante do adolescente sob o ponto de vista da saúde nos direciona a, inevitavelmente, propor um realinhamento estrutural do tema dentro da estrutura político-administrativa: deslocar o tema, cessando de tratá-lo (na prática) como matéria punitiva ou de segurança pública, e passando a inseri-lo dentro de estrutura da Seguridade Social (a qual abrange a Saúde, ao lado da Assistência Social e da Previdência Social), que tem por essência a garantia presente e futura de uma vida próspera em sociedade. O comportamento desviante do adolescente deve, portanto, ser colocado em foco enquanto matéria também referente ao seu futuro.

Apresentamos, assim, o norte, a porta de aplicabilidade política das concepções formuladas em torno da homeostase no adolescente ofensor. Ofensor porque praticou um ato ofensivo ao direito de alguém, mas em verdade um adolescente cidadão que anseia por uma atenção mais efetiva aos seus direitos. Informamos também o que esperamos para as próximas reflexões e estudos sobre comportamentos desviantes e uso de substâncias, com ênfase no papel da Enfermagem Psiquiátrica no centro de uma dinâmica interdisciplinar em pesquisas e políticas públicas voltadas à saúde mental da criança e do adolescente.

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  • Agradecimentos
    Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), pelo financiamento da pesquisa. Processo n. 2012/19418-2.
Correspondência: Carla Aparecida Arena Ventura, Campus Universitário - Av. dos Bandeirantes 3900 - Bairro Monte Alegre, CEP 14040-902 – Ribeirão Preto, SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Fev 2014

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2013
  • Aceito
    31 Out 2013
Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419 , 05403-000 São Paulo - SP/ Brasil, Tel./Fax: (55 11) 3061-7553, - São Paulo - SP - Brazil
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