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A fenomenologia de Merleau-Ponty nas investigações sobre o uso de medicamentos: construção de uma cascata metodológica

RESUMO

Merleau-Ponty foi inovador ao colocar o corpo e a percepção como pontos centrais em sua proposta filosófica. No âmbito saúde, o pensamento desse filósofo permite o acesso ao conhecimento oriundo da corporeidade por parte de pessoas com doenças crônicas. O objetivo deste trabalho é ampliar a compreensão dos fenômenos atrelados ao uso cotidiano de medicamentos, usados em regimes medicamentosos cada vez mais complexos, por meio do pensamento do filósofo. Para tanto, descrevemos os passos de uma pesquisa ancorada na fenomenologia de Merleau-Ponty e estruturada na forma de uma cascata que se inicia pela definição da fenomenologia como uma nova epistemologia, a existência como paradigma e o corpo como teoria. Ainda, como metodologia, propomos o uso das estruturas da existência, o tempo, o espaço, a relação com o outro e a sexualidade, conectadas por meio do arco intencional para se alcançar a compreensão do fenômeno do uso de medicamentos.

Doença Crônica; Uso de Medicamentos; Medicamentos de Uso Contínuo; Filosofia Médica; Pesquisa Qualitativa

ABSTRACT

Merleau-Ponty innovated when giving primacy to the body and perception in his philosophical proposal. Within the field of health, his thinking gives us access to the knowledge gained from the corporeality of individuals with chronic diseases. The objective of this study was to expand the understanding of phenomena associated with the daily use of medication, which includes increasingly complex drug regimes, through the lens of Merleau-Ponty. To this end, we described the research steps anchored in his phenomenological philosophy and structured them in the form of a cascade, beginning with the definition of phenomenology as a new form of epistemology, existence as a paradigm, and the body as a theory. Furthermore, the methodology included the use of existential structures, namely, time, space, relationships with others, and sexuality, connected through the intentional arc to reach an understanding of the phenomenon of medication use.

Chronic Disease; Drug Utilization; Drugs of Continuous Use; Philosophy Medical; Qualitative Research

RESUMEN

Merleau-Ponty fue innovador al colocar el cuerpo y la percepción como puntos centrales en su propuesta filosófica. En el marco salud, el pensamiento de ese filósofo permite el acceso al conocimiento proveniente de la corporeidad por parte de personas con enfermedades crónicas. El objetivo de este trabajo es ampliar la comprensión de los fenómenos vinculados con el uso cotidiano de fármacos, utilizados en regímenes cada vez más complejos, mediante el pensamiento del filósofo. Para eso, describimos los pasos de una investigación anclada en la fenomenología de Merleau-Ponty y estructurada en la forma de una cascada que se inicia por la definición de la fenomenología como una nueva epistemología, la existencia como paradigma y el cuerpo como teoría. Como metodología, proponemos asimismo el uso de las estructuras de la existencia, el tiempo, el espacio, la relación con el otro y la sexualidad, conectadas por medio del arco intencional para alcanzarse la comprensión del fenómeno del uso de medicamentos.

Enfermedad Crónica; Utilización de Medicamentos; Medicamentos de Uso Continuo; Filosofía Médica; Investigación Cualitativa

INTRODUÇÃO

O corpo, na filosofia ocidental, sempre foi negligenciado, e Merleau-Ponty foi inovador ao colocá-lo, da mesma forma que a percepção, como ponto central em sua proposta filosófica(11. Thomas SP. Through the lens of Merleau-Ponty: advancing the phenomenological approach to nursing research. Nurs Philos. 2005;6(1):63-76.). Merleau-Ponty considera o sujeito no mundo como corpo no mundo e afirma que “a existência se realiza por meio do corpo”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

A perturbação da relação entre o corpo e o mundo pode abalar profundamente a existência, e, nesse sentido, a doença e o “adoecer” nos fazem perceber nossos corpos de maneira diferentes(11. Thomas SP. Through the lens of Merleau-Ponty: advancing the phenomenological approach to nursing research. Nurs Philos. 2005;6(1):63-76.,33. Wilde MH. Embodied knowledge in chronic illness and injury. Nurs Inq. 2003;10(3):170-6.). Os acontecimentos do corpo, presentes na doença, “se tornam os acontecimentos da jornada diária”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). Assim, o pensamento desse filósofo permite o acesso a um tipo de conhecimento oriundo da corporeidade por parte de pessoas vivendo com doenças crônicas(33. Wilde MH. Embodied knowledge in chronic illness and injury. Nurs Inq. 2003;10(3):170-6.).

Na atualidade, o uso do medicamento tornou-se uma estratégia que se sobressai na busca da cura e/ou do controle de doenças, exigindo o gerenciamento de regimes medicamentosos cada vez mais complexos(44. Haslbeck JW, Schaeffer D. Routines in medication management: the perspective of people with chronic conditions. Chronic Illn. 2009;5(3):184-96. DOI: 10.1177/1742395309339873). Essa tecnologia é introduzida na vida dos sujeitos de forma sistemática e, frequentemente, de forma não democrática. Consequentemente, os pacientes necessitam reorganizar as suas rotinas diárias no sentido de incorporá-la.

Em nossa experiência no cuidado de pacientes em uso de medicamentos, testemunhamos, a partir da valoração da experiência subjetiva relacionada a seu uso(55. Shoemaker SJ, Ramalho de Oliveira D. Understanding the meaning of medications for patients: the medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91. DOI: 10.1007/s11096-007-9148-5), o seu impacto no dia a dia dos indivíduos. Dentre as várias questões que pairam na tomada de decisão por parte de nossos pacientes, destacam-se a indecisão em aderir ou não à terapia instituída, a quantidade a ser ingerida e a forma correta de usar os medicamentos prescritos. E essas decisões se baseiam no equilíbrio entre os benefícios e os riscos de se usar medicamentos na vida cotidiana(44. Haslbeck JW, Schaeffer D. Routines in medication management: the perspective of people with chronic conditions. Chronic Illn. 2009;5(3):184-96. DOI: 10.1177/1742395309339873,55. Shoemaker SJ, Ramalho de Oliveira D. Understanding the meaning of medications for patients: the medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91. DOI: 10.1007/s11096-007-9148-5

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12. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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-1414. Wong WKT, Ussher J. How do subjectively-constructed meanings ascribed to anti-HIV treatments affect treatment-adherent practice? Qual Health Res. 2008;18(4):458-68.).

Este estudo emergiu a partir da percepção de que a experiência vivenciada por aqueles que utilizam medicamentos de forma crônica pode ser compreendida a partir da filosofia de Merleau-Ponty, ancorada na corporeidade. Descrever esta experiência pode propiciar o desenvolvimento de teorias e intervenções capazes de auxiliar outros pacientes na mesma situação, contribuindo para a melhoria das práticas profissionais no contexto da saúde(11. Thomas SP. Through the lens of Merleau-Ponty: advancing the phenomenological approach to nursing research. Nurs Philos. 2005;6(1):63-76.,33. Wilde MH. Embodied knowledge in chronic illness and injury. Nurs Inq. 2003;10(3):170-6.,1616. Willis JW. History and context of paradigm development. In: Foundations of Qualitative Research: interpretive and critical approaches. Thousand Oaks: SAGE; 2007. p. 27-66.).

Entretanto, vários autores salientam que, na área da saúde, os trabalhos alicerçados na fenomenologia carecem de fundamentação em suas bases filosóficas, ocasionando ambiguidades entre os objetivos, a metodologia e os resultados(1515. Wilde MH. Why embodiment now? Adv Nurs Sci. 1999;22(2):25-38.-1616. Willis JW. History and context of paradigm development. In: Foundations of Qualitative Research: interpretive and critical approaches. Thousand Oaks: SAGE; 2007. p. 27-66.). Contudo, sistematizar os métodos de pesquisa no âmbito da fenomenologia torna-se um desafio, pois as informações encontram-se diluídas na literatura e muitas vezes não são convergentes. Em conjunto, esses fatores dificultam a operacionalização deste tipo de pesquisa.

Dessa forma, este artigo foi idealizado como um potencial instrumento norteador para pesquisadores que começam a trilhar os passos da pesquisa fenomenológica no âmbito da saúde. E optamos por seguir a sugestão de Daly(1717. Daly KJ. Qualitative methods for family studies & human development. Thousand Oaks: SAGE; 2007.) de desenvolver a pesquisa qualitativa a partir da construção da seguinte cascata: epistemologia, paradigma, teoria, metodologia, métodos e dados. Assim, além de descrever a pesquisa, buscamos também esclarecer os conceitos essenciais que perpassam a abordagem fenomenológica, tal como a compreende Merleau-Ponty.

AS BASES TEÓRICAS

A FENOMENOLOGIA COMO UMA NOVA ABORDAGEM EPISTEMOLÓGICA

A epistemologia, ou teoria do conhecimento, diz respeito à forma como o pesquisador chega ao conhecimento da realidade daquilo que deseja compreender e de como compreende a sua relação, como pesquisador, com o que está sendo pesquisado(1717. Daly KJ. Qualitative methods for family studies & human development. Thousand Oaks: SAGE; 2007.).

O empirismo afirma a existência objetiva da realidade, que é externa e independente do pesquisador, e se baseia no uso do método científico para descobrir a verdade sobre o mundo. Por outro lado, no idealismo, os objetos no mundo material são compreendidos apenas por meio do pensamento racional em vez da observação, e o conhecimento é construído por um processo de criar significado na mente do pesquisador. Assim, parte-se do pressuposto de que a realidade é construída e torna-se impossível separar o pesquisador do objeto pesquisado(1616. Willis JW. History and context of paradigm development. In: Foundations of Qualitative Research: interpretive and critical approaches. Thousand Oaks: SAGE; 2007. p. 27-66.-1717. Daly KJ. Qualitative methods for family studies & human development. Thousand Oaks: SAGE; 2007.).

A fenomenologia surgiu como uma proposta de superação do esquema sujeito-objeto, assim como da oposição realismo-idealismo, reinante até então. Merleau-Ponty(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.) afirma que “a aquisição mais importante da fenomenologia foi sem dúvida ter unido o extremo subjetivismo ao extremo objetivismo em sua noção do mundo ou da racionalidade”. Esta proposta pode ser compreendida como um modo de pensamento filosófico sobre os objetos que acreditamos experimentar no mundo e que se mostra a nós, ao buscarmos significado para aquilo que se mostra; isto é, o fato em si ou o fato de se mostrar não interessa aos fenomenólogos, e sim o sentido atribuído a esse fenômeno(1818. Matthews E. Compreender Merleau-Ponty. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.).

Uma abordagem fenomenológica proporciona uma explicação para a distinção entre a experiência imediata e pré-teórica do mundo da vida e a abordagem teórica e científica dessa experiência. Normalmente, nós nos engajamos em um diálogo pré-reflexivo com o mundo, que ocorre nas atividades do dia a dia. Nessa experiência pré-reflexiva, denominada atitude natural, nós e os outros aceitamos sem questionar o mundo como ele é percebido, o mundo da vida, pois não consideramos necessário analisar as situações que são vistas como óbvias(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.,1818. Matthews E. Compreender Merleau-Ponty. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.

19. Carel H. Phenomenology and its application in medicine. Theor Med Bioeth. 2011;32(1):33-46. DOI: 10.1007/s11017-010-9161-x
-2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.). Segundo Berger e Luckmann(2121. Berger PL, Luckman TA. Construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 35ª ed. Petrópolis: Vozes; 2013.) a atitude natural é a atitude da consciência do senso comum, que partilhamos com os outros nas rotinas normais, que na maioria das vezes são pré-reflexivas, produtos do hábito. Embora o mundo da vida não seja uma criação ou uma escolha do indivíduo, permeia sua experiência de vida(2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.). E Merleau-Ponty deseja dirigir nossa atenção para o significado desse contexto silencioso(1919. Carel H. Phenomenology and its application in medicine. Theor Med Bioeth. 2011;32(1):33-46. DOI: 10.1007/s11017-010-9161-x).

No âmbito das ciências da saúde, as pessoas que estão em processo de adoecimento possuem um conhecimento tácito, altos níveis de consciência corporal e habilidades para o automonitoramento, que não são discutidos de forma rotineira, pois pertencem ao mundo da vida(33. Wilde MH. Embodied knowledge in chronic illness and injury. Nurs Inq. 2003;10(3):170-6.,1919. Carel H. Phenomenology and its application in medicine. Theor Med Bioeth. 2011;32(1):33-46. DOI: 10.1007/s11017-010-9161-x). A análise fenomenológica pode nos auxiliar a compreender as diferenças entre a experiência imediata do adoecer e a doença emoldurada pelo saber científico, do corpo como experienciado pelo sujeito e enquanto objeto da investigação científica(2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.), e do processo de uso do medicamento, imerso nas rotinas do mundo da vida(44. Haslbeck JW, Schaeffer D. Routines in medication management: the perspective of people with chronic conditions. Chronic Illn. 2009;5(3):184-96. DOI: 10.1177/1742395309339873,1111. Sánchez LD. Medication experiences of Hispanic people living with HIV/AIDS. Inov Pharm [Internet]. 2010 [cited 2013 Nov 28];1(1). Available from: http://pubs.lib.umn.edu/innovations/vol1/iss1/6/
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).

A EXISTÊNCIA COMO PARADIGMA

Os paradigmas se referem às realizações científicas universalmente reconhecidas em um determinado tempo, ou ainda, à opinião coletiva de uma comunidade de cientistas acerca da forma como o a ciência deve ser conduzida, quais perguntas devem ser feitas e os métodos adequados para respondê-las(1717. Daly KJ. Qualitative methods for family studies & human development. Thousand Oaks: SAGE; 2007.).

De acordo com Merleau-Ponty(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.) somos seres humanos concretos vivendo em tempo e lugar específicos e que encontramos significado nos objetos em virtude da lida efetiva que temos com eles. Portanto, a essência não pode ser separada da existência, a compreensão de conceitos não pode ser separada da compreensão do mundo a que eles se referem(1818. Matthews E. Compreender Merleau-Ponty. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.,2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.). Portanto, a Filosofia da Existência, proposta por esse filósofo, abarca de forma original a corporeidade e a intersubjetividade, sendo fundamental o conhecimento acerca da existência humana(2323. Merleau-Ponty. The philosophy of existence. In: Stewart J. The debate between Sartre and Merleau-Ponty. Evaston: Northwestern University; 1998. p. 492-503.). A primeira se refere à forma como nos situamos no mundo por meio do nosso corpo(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). Já a intersubjetividade expõe a questão de seres humanos vivendo em conjunto em uma complexa relação denominada coletividade(2323. Merleau-Ponty. The philosophy of existence. In: Stewart J. The debate between Sartre and Merleau-Ponty. Evaston: Northwestern University; 1998. p. 492-503.), inclui o modo como o homem se relaciona com o mundo, e também os modos como o mundo se manifesta ao homem e determina as suas possibilidades(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

Dessa forma, aqueles que desejam realizar uma pesquisa com ancoragem na fenomenologia proposta por Merleau-Ponty precisam compreender que esta trata de seres humanos no mundo, envolvidos pela tradição, pela história e pelo mundo de outros seres(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.,2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.). Em síntese, “somos no mundo e não somente estamos no mundo”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

No contexto do uso de medicamentos, é importante observar que os pacientes apreendem a relação custo/benefício do tratamento a partir da própria experiência, mas também a partir do mundo da vida compartilhado com os outros seres humanos(1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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,1414. Wong WKT, Ussher J. How do subjectively-constructed meanings ascribed to anti-HIV treatments affect treatment-adherent practice? Qual Health Res. 2008;18(4):458-68.).

O CORPO COMO TEORIA

O próximo passo na construção de um trabalho qualitativo é a escolha da teoria, que é um sistema de ideias que norteia os pesquisadores na escolha dos métodos, na análise dos dados e na discussão dos resultados(1717. Daly KJ. Qualitative methods for family studies & human development. Thousand Oaks: SAGE; 2007.). A discussão das teorias na fase da descrição do fenômeno aumenta as possibilidades de compreensão deste, mas nos alerta que é o fenômeno que indica como e quando a teoria deve ser usada(2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.).

Segundo Merleau-Ponty(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.), vivemos como sujeitos encarnados que experienciam o mundo e suas estruturas essenciais (o tempo, o espaço, a relação com o outro e a sexualidade) por meio do nosso corpo vivido ou fenomenal(1515. Wilde MH. Why embodiment now? Adv Nurs Sci. 1999;22(2):25-38.). Como ser-no-mundo nós o compreendemos por meio do fluxo de experiências, as quais são ancoradas no corpo(2424. Stelter R. The transformation of body experience into language. J Phenomenol Psychol. 2000;31(1):63-77.). Nesse sentido, é essencial a distinção feita pelo autor entre o corpo objeto, o corpo físico e da ciência objetiva e o corpo vivido, responsável pela experiência(11. Thomas SP. Through the lens of Merleau-Ponty: advancing the phenomenological approach to nursing research. Nurs Philos. 2005;6(1):63-76.). Nós apreendemos e interagimos com o mundo por meio do nosso corpo vivido ou fenomenal, uma consciência incorporada, que simultaneamente se engaja e é engajada no mundo circundante e por esse motivo torna possível nossos projetos existenciais(2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.). Ser um sujeito encarnado significa ainda ser situado no mundo, sendo afetado pelas forças sociais, culturais, políticas e históricas(33. Wilde MH. Embodied knowledge in chronic illness and injury. Nurs Inq. 2003;10(3):170-6.,1515. Wilde MH. Why embodiment now? Adv Nurs Sci. 1999;22(2):25-38.). Assim: “o corpo é o veículo do ser no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos projetos e empenhar-se continuamente neles”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). Essa vivência encarnada exige uma nova forma de inserção e relacionamento com o mundo, que Merleau-Ponty irá denominar como percepção. Todo o conhecimento presente em nossa consciência passa previamente pela experiência perceptiva, que é uma experiência corporal(1919. Carel H. Phenomenology and its application in medicine. Theor Med Bioeth. 2011;32(1):33-46. DOI: 10.1007/s11017-010-9161-x). Matthews(1818. Matthews E. Compreender Merleau-Ponty. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.) foi pragmático ao afirmar que “percepção é o envolvimento direto pré-reflexivo, é um envolvimento prático com as coisas. Perceber algo não é apenas ter uma ideia a respeito, mas lidar com isso de alguma forma”.

O corpo saudável é transparente e essa é a marca da saúde e da função normal. Nós não nos detemos para considerar os processos que estão em curso em nosso corpo durante a existência e não percebemos a mutiplicidade de ações e a perícia necessária para executar atividades habituais, como tomar um banho e se vestir(1919. Carel H. Phenomenology and its application in medicine. Theor Med Bioeth. 2011;32(1):33-46. DOI: 10.1007/s11017-010-9161-x). Mas a facilidade com que realizamos essas atividades desaparece na doença, pois a habilidade para executá-las é perdida. E quando ficamos doentes nossa atenção é atraída para a parte que não está funcionando adequadamente. Esse é o estágio no qual é rompida a harmonia entre o corpo objeto e o corpo vivido, cujo significado excede em muito o da simples disfunção mecânica de um subsistema corporal, atingindo o nosso ser-no-mundo(2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.). É uma presença que modifica a vida, transformando a forma como experimentamos nosso corpo, reagimos e realizamos tarefas. Por esse motivo, “o adoecer é uma maneira dolorosa e violenta de revelar a natureza intimamente corporal de nosso ser”(1919. Carel H. Phenomenology and its application in medicine. Theor Med Bioeth. 2011;32(1):33-46. DOI: 10.1007/s11017-010-9161-x).

Os medicamentos podem provocar alterações corporais, tanto positivas quanto negativas. Dessa forma, os benefícios, como alívio de sintomas(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063,1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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), controle das doenças(55. Shoemaker SJ, Ramalho de Oliveira D. Understanding the meaning of medications for patients: the medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91. DOI: 10.1007/s11096-007-9148-5,1414. Wong WKT, Ussher J. How do subjectively-constructed meanings ascribed to anti-HIV treatments affect treatment-adherent practice? Qual Health Res. 2008;18(4):458-68.), normalização de substâncias endógenas deficientes(1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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) e os riscos, como reações adversas e o medo da dependência ou da tolerância(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063) são cuidadosamente avaliados a partir das alterações experienciadas no corpo(55. Shoemaker SJ, Ramalho de Oliveira D. Understanding the meaning of medications for patients: the medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91. DOI: 10.1007/s11096-007-9148-5). Assim, usar a corporeidade, como expresso por Merleau-Ponty, amplia nosso campo de compreensão dos fenômenos atrelados ao uso de medicamentos.

AS ESTRUTURAS ESSENCIAIS DA EXISTÊNCIA HUMANA

Ao promoverem alterações em nosso corpo físico e fenomenal, a doença e o medicamento promovem uma experiência alterada das estruturas essenciais da existência humana, a saber: o tempo, o espaço, a relação com o outro e a sexualidade.

O tempo é uma das principais estruturas da existência humana, e Merleau-Ponty(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.) afirma que “o tempo não é um objeto de nosso saber, mas uma dimensão de nosso ser”. Mas o filósofo não se refere ao tempo cronológico, mensurável, compartilhado, feito de momentos sucessivos e usado para estruturar e orientar a vida diária, e sim ao tempo fenomenológico(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.,1717. Daly KJ. Qualitative methods for family studies & human development. Thousand Oaks: SAGE; 2007.,2525. Todres L, Wheeler S. The complementarity of phenomenology, hermeneutics and existentialism as a philosophical perspective for nursing research. Int J Nurs Stud. 2001;38(1):1-8.).

Em sua concepção, nós experienciamos o tempo fenomenológico por meio de uma síntese de transição e por intuição de permanência, e explica: “o surgimento de um presente novo é a passagem de um futuro ao presente e do antigo presente ao passado, é com um só movimento que, de um extremo ao outro, o tempo põe a se mover”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.), existindo, dessa maneira, “um só fenômeno de escoamento”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). Assim, a temporalidade se refere à forma pela qual os tempos, passado, presente e futuro são coconstituídos. Segundo Merleau-Ponty(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.) estamos centrados no presente, de onde partem nossas decisões, que nunca são sem motivo e sempre podem ser postas em relação ao nosso passado. Somos nós quem encontramos em nossa concepção do passado e do presente uma razão para agir desta e não de outra maneira e devemos recorrer a toda a nossa experiência, que no presente se torna importante para a compreensão e a tomada de decisões(2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.). E nos alerta que, ao reabrirmos o passado, ele é para nós o que vemos agora, e talvez nós o tenhamos alterado. Igualmente, no futuro talvez nós não reconheceremos o presente em que vivemos.

Por fim, nós delimitamos fases ou etapas de nossa vida ao considerarmos como presente tudo o que tem uma relação de sentido com nossas ocupações do momento, reconhecendo a conexão entre tempo e sentido(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

Uma experiência verdadeiramente perturbadora é a transformação na forma como experienciamos o que é presente, passado e futuro. E várias são as alterações na experiência do tempo descritas pelos pacientes quando recebem a notícia de uma doença grave ou debilitante, como a presença de um presente estagnado, expandido, que comprime o passado e encurta o futuro, como referido por Toombs(2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.): “se essa novidade é verdade eu digo para mim mesma, .... estou ao mesmo tempo desorientada e reorientada. Eu sei que o passado é meu passado, mas agora parece à deriva, não mais a fase da minha vida precedendo de forma coerente meu presente e formando a base da minha passagem harmoniosa para o futuro. Se isso é verdade, eu penso, então o futuro pelo qual eu vivi e esperei e planejei está suspenso, talvez fechado para sempre”.

Assim, o tempo fenomenológico para as pessoas que vivem uma ruptura na saúde pode ser experienciado por meio: da falta de confiança acerca da saúde no futuro, de uma sensação de descontinuidade relacionada à lembrança da saúde passada e da revisão radical acerca da forma ótima de se utilizar o tempo(33. Wilde MH. Embodied knowledge in chronic illness and injury. Nurs Inq. 2003;10(3):170-6.,2626. Carel H. Phenomenology as a resource for patients. J Med Philos. 2012;37(2):96-113. DOI: 10.1093/jmp/jhs008). Esse processo é pautado nas formas temporais fundamentais − a inseparabilidade entre o presente, o passado e o futuro. Esse contexto permanece como cenário para a experiência do indivíduo, mesmo na presença de um presente parado ou estagnado e provoca no presente imediato um movimento caótico entre as outras formas temporais(2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.).

O uso de medicamentos é capaz de promover profundas mudanças na percepção do tempo, tanto cronológico como fenomenológico. É possível o desenvolvimento de uma nova percepção de tempo centrada no tratamento medicamentoso(55. Shoemaker SJ, Ramalho de Oliveira D. Understanding the meaning of medications for patients: the medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91. DOI: 10.1007/s11096-007-9148-5) que pode inclusive ser um processo dinâmico ao longo do tempo(1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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). Questões práticas, como a manutenção de um suprimento adequado de medicamentos entre as consultas e as idas à farmácia(66. Ellis RJB, Welch JL. Medication-taking behaviours in chronic kidney disease with multiple chronic conditions: a meta-ethnographic synthesis of qualitative. J Clin Nurs. 2017;26(5-6):586-98.), a organização dos horários de administração, que muitas vezes exigem alterações nas rotinas da vida(1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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), são exemplos de questões ligadas ao tempo cronológico. Entretanto, a experiência de congelamento do presente ao se aguardar o tempo adequado para a obtenção da máxima resposta a um tratamento(1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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), ou o surgimento de terapias menos agressivas(77. Ganzella M, Zago MMF. A experiência dos talassêmicos adultos ao tratamento. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 2011 [citado 2012 jan. 18];19(4): Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v19n4/pt_16.pdf
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) fazem parte da vivência do tempo fenomenológico. Ainda, o medicamento sinaliza a possibilidade de experienciar o futuro(1414. Wong WKT, Ussher J. How do subjectively-constructed meanings ascribed to anti-HIV treatments affect treatment-adherent practice? Qual Health Res. 2008;18(4):458-68.), mas também simboliza a passagem do tempo, como sinal de envelhecimento(55. Shoemaker SJ, Ramalho de Oliveira D. Understanding the meaning of medications for patients: the medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91. DOI: 10.1007/s11096-007-9148-5).

Ser-no-mundo também significa uma existência espacial e o corpo fenomenal é para nós o centro espacial e temporal em torno do qual todo o mundo se organiza, o meio no qual existimos(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.,2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.). Assim: “longe de meu corpo ser para mim apenas um fragmento de espaço, para mim não haveria espaço se eu não tivesse corpo”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

Nossa experiência do espaço está centralizada em nós mesmos, que se torna o referencial para o posicionamento de todos os outros objetos; é por meio do espaço orientado pelo corpo no mundo que temos a dimensão de em cima, em baixo, sobre ou sob(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). E o lugar fenomenal de nosso corpo é definido por sua tarefa e por sua situação(2525. Todres L, Wheeler S. The complementarity of phenomenology, hermeneutics and existentialism as a philosophical perspective for nursing research. Int J Nurs Stud. 2001;38(1):1-8.). Estamos sempre situando as experiências como perto ou longe de nós mesmos, não como uma distância mensurável, mas levando em conta o grau de importância que damos a elas(1717. Daly KJ. Qualitative methods for family studies & human development. Thousand Oaks: SAGE; 2007.-1818. Matthews E. Compreender Merleau-Ponty. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.). Segundo Merleau-Ponty(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.), nós habitamos um espaço de possibilidades e encontramos as coisas em termos das possibilidades que elas nos oferecem, e “o meu corpo está ali onde ele tem algo a fazer”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

Uma vez que o espaço circundante é intimamente ligado ao posicionamento do corpo, o surgimento de uma incapacidade que leve a alterações corporais inevitavelmente altera a experiência espacial. Toombs(2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.) descreve a multiplicidade de formas que experiencia o espaço e o tempo como portadora de esclerose múltipla quando perde a mobilidade e necessita usar uma cadeira de rodas.

Ainda para Merleau-Ponty o mundo percebido só é apreendido pela orientação, o espaço está no horizonte de todas as nossas percepções e “vivemos quando lançamos a âncora em algum ambiente que se propõe a nós”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

O uso de medicamentos pode limitar a possibilidade de vivenciar determinados espaços, como percebido pelos pacientes com doença mental acerca de um contrato verbal silencioso imposto pela sociedade para aceitá-los, caracterizando uma forma de controle(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063). A disponibilidade de acesso ao medicamento em determinadas regiões geográficas também pode limitar de forma objetiva a experiência do espaço(1111. Sánchez LD. Medication experiences of Hispanic people living with HIV/AIDS. Inov Pharm [Internet]. 2010 [cited 2013 Nov 28];1(1). Available from: http://pubs.lib.umn.edu/innovations/vol1/iss1/6/
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). Um dos entrevistados por Sánchez(1111. Sánchez LD. Medication experiences of Hispanic people living with HIV/AIDS. Inov Pharm [Internet]. 2010 [cited 2013 Nov 28];1(1). Available from: http://pubs.lib.umn.edu/innovations/vol1/iss1/6/
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) garante viver em uma gaiola de ouro devido à disponibilidade de medicamentos antirretrovirais, o que não seria possível em seu país de origem.

Sobre a nossa relação com o outro, de acordo com Merleau-Ponty precisamos redescobrir o mundo social como campo permanente ou dimensão de existência(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). Para Berger e Luckmann(2121. Berger PL, Luckman TA. Construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 35ª ed. Petrópolis: Vozes; 2013.) não podemos existir na vida cotidiana sem estar continuamente em interação e comunicação com os outros e a minha atitude natural com relação a este mundo corresponde à atitude natural dos outros.

Nesse sentido, os medicamentos, compreendidos como um símbolo construído a partir das relações com os outros, desvelam a doença ou sinalizam a incapacidade do indivíduo para lidar com os problemas sem o seu uso, da forma como a sociedade espera. Tais situações marcam os indivíduos como diferentes e podem ocasionar o estigma(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063,1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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). Dessa forma, são capazes de provocar um profundo impacto nas relações sociais, de trabalho e mesmo familiares(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063). As relações com o outro, mediadas pelo medicamento, também podem ser percebidas como coercitivas, quando o seu uso é imposto em troca da aceitação social(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063). Mas o outro pode também significar fonte de informação(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063,1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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,1414. Wong WKT, Ussher J. How do subjectively-constructed meanings ascribed to anti-HIV treatments affect treatment-adherent practice? Qual Health Res. 2008;18(4):458-68.) ou mesmo de suporte(88. Ingadottir B, Halldorsdottir S. To discipline a “dog”: the essential structure of mastering diabetes. Qual Health Res. 2008;18(5):606-18. DOI: 10.1177/1049732308316346), influenciando o comportamento em relação ao uso do medicamento.

Já a sexualidade para Merleau-Ponty se ramifica por toda a existência pessoal e pode ser concebida como necessidade existencial, no sentido de que faz parte da existência geral do ser humano, ou seja, indissociável desta. Ainda, “ela (a sexualidade) é o poder geral que o sujeito psicofísico tem de aderir a diferentes ambientes, de fixar-se por diferentes experiências, de adquirir estruturas de conduta. É a sexualidade que faz com que um homem tenha uma história”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.). Assim, pode ser compreendida como uma energia que pulsa e nos conduz a nos lançarmos nas situações da vida, a construirmos nossa história no mundo, e não deve ser confundida com um fator exclusivamente genital(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

Verbeek-Heida e Mathot(1212. Verbeek-Heida PM, Mathot EF. Better safe than sorry – why patients prefer to stop using selective serotonin reuptake inhibitor (SSRI) antidepressants but are afraid to do so: results of a qualitative study. Chronic Illn. 2006;2(2):133-42 DOI: 10.1179/174592006X111003
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) nos mostram que, para alguns indivíduos, se sentir bem funciona como justificativa para interromper o medicamento, mas, para outros, é a justificativa para mantê-lo. Da mesma maneira, Wong e Ussher(1414. Wong WKT, Ussher J. How do subjectively-constructed meanings ascribed to anti-HIV treatments affect treatment-adherent practice? Qual Health Res. 2008;18(4):458-68.) perceberam três formas pelas quais os pacientes contextualizam o tratamento em suas vidas: como um recurso que salva a vida, como um mal necessário ou como o último recurso. Assim, cada um constrói a sua história, tomando decisões racionais que visam manter o controle sobre sua vida(55. Shoemaker SJ, Ramalho de Oliveira D. Understanding the meaning of medications for patients: the medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91. DOI: 10.1007/s11096-007-9148-5), obtendo algum ganho terapêutico, mas minimizando os efeitos adversos(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063). Nesse sentido, a escuta corporal é uma parte importante desse processo, contribuindo para que os indivíduos encontrem uma situação confortável e segura a partir da tentativa e erro(88. Ingadottir B, Halldorsdottir S. To discipline a “dog”: the essential structure of mastering diabetes. Qual Health Res. 2008;18(5):606-18. DOI: 10.1177/1049732308316346).

Nesse ponto é relevante trazer à tona a discussão de Merleau-Ponty(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.) acerca da liberdade, que, segundo ele, não é absoluta. Para Matthews(1818. Matthews E. Compreender Merleau-Ponty. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.) a liberdade humana é “uma corriqueira tomada de decisões em um mundo que não escolhemos”; estamos sempre em situações concretas que impõem limites à nossa liberdade, principalmente nosso passado, que não determina nossos atos no presente, mas forma o contexto no qual estamos inseridos.

O uso do medicamento pode se inserir em um contexto de redução da liberdade. Os pacientes com HIV/AIDS relatam usar apenas medicamentos aprovados por seus médicos, devido ao medo de interações que possam afetar o efeito dos antirretrovirais(1010. Pound P, Britten N, Morgan M, Yardley L, Pope C, Daker-White G, et al. Resisting medicines: a synthesis of qualitative studies of medicine taking. Soc Sci Med. 2005; 61(1):133-55. DOI:10.1016/j.socscimed.2004.11.063). Por demandar um conhecimento muito específico, os médicos podem reduzir o empoderamento dos indivíduos, que se tornam dependentes destes e do sistema de saúde. Ainda, os profissionais assumem que os pacientes devem subordinar os outros interesses da vida, priorizando a adesão ao tratamento(1414. Wong WKT, Ussher J. How do subjectively-constructed meanings ascribed to anti-HIV treatments affect treatment-adherent practice? Qual Health Res. 2008;18(4):458-68.). Nesse sentido, segundo Shoemaker e Ramalho-de-Oliveira(55. Shoemaker SJ, Ramalho de Oliveira D. Understanding the meaning of medications for patients: the medication experience. Pharm World Sci. 2008;30(1):86-91. DOI: 10.1007/s11096-007-9148-5), tomar o medicamento de forma regular e como orientado posiciona o paciente como um agente passivo, e nesse sentido o medicamento pode ser um símbolo de dependência.

Merleau-Ponty usa o termo arco intencional para descrever a nossa relação com o mundo, conectando todas as estruturas essenciais da experiência vivida de uma maneira significativa, que é única para cada indivíduo(33. Wilde MH. Embodied knowledge in chronic illness and injury. Nurs Inq. 2003;10(3):170-6.,1515. Wilde MH. Why embodiment now? Adv Nurs Sci. 1999;22(2):25-38.). Dessa forma, produz uma síntese existencial, que é um meio de articulação significativa entre os variados setores da experiência. E, de acordo com Merleau-Ponty(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.), esse arco é rompido no processo de adoecer: “a vida da consciência – vida cognoscente, vida do desejo ou vida perceptiva – é sustentada por um “arco intencional” que projeta em torno de nós nosso passado, nosso futuro, nosso meio humano, nossa situação física, nossa situação ideológica, nossa situação moral, ou antes, que faz com que estejamos situados sob todos esses aspectos. É esse arco intencional que faz a unidade entre os sentidos, a unidade entre os sentidos e a inteligência, a unidade entre a sensibilidade e a motricidade. É ele que se distende na doença”(22. Merleau-Ponty, M. Fenomenologia da percepção. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2011.).

Os efeitos provocados pelo medicamento no corpo, nas relações sociais, na inserção em um determinado contexto, na possibilidade de viver o presente de forma fluida e na esperança no futuro se influenciam mutualmente, podendo também alterar esse arco intencional. E, nesse sentido, a utilização do referencial teórico de Merleau-Ponty pode ser um importante recurso para nos auxiliar a compreender o fenômeno relacionado ao uso cotidiano de medicamentos.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

SUJEITOS DA PESQUISA E COLETA DE DADOS

Na pesquisa fenomenológica, devemos selecionar os indivíduos com potencial para relatar a experiência em questão de forma mais rica, pertinente e diversa, ou seja, recomenda-se o uso da técnica de amostragem intencional pela seleção de casos que manifestam o fenômeno com maior intensidade(2727. Morrow SL. Quality and trustworthiness in qualitative research in counseling psychology. J Couns Psychol. 2005;52(2):250-60.-2828. Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007;19(6):349-57.).

Devemos ainda descrever o contexto no qual os dados foram coletados para auxiliar os leitores a compreenderem a forma como os sujeitos entraram no estudo, como forneceram o dado e a diversidade das perspectivas incluídas(2828. Tong A, Sainsbury P, Craig J. Consolidated criteria for reporting qualitative research (COREQ): a 32-item checklist for interviews and focus groups. Int J Qual Health Care. 2007;19(6):349-57.).

Não existe um método para a coleta de dados especificamente fenomenológico, mas as entrevistas são adequadas quando se deseja descrever as experiências e compreender os significados do mundo vivido na perspectiva dos entrevistados(2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.). Elas podem ser semiestruturadas, sendo o tópico guia construído com temas amplos e flexíveis, que permitam aos participantes falarem livremente sobre a experiência, inclusive acrescentando temas não previstos. Os dados devem ser coletados até o momento que ocorrer a sua saturação(1111. Sánchez LD. Medication experiences of Hispanic people living with HIV/AIDS. Inov Pharm [Internet]. 2010 [cited 2013 Nov 28];1(1). Available from: http://pubs.lib.umn.edu/innovations/vol1/iss1/6/
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,2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.,2727. Morrow SL. Quality and trustworthiness in qualitative research in counseling psychology. J Couns Psychol. 2005;52(2):250-60.).

Stelter(2424. Stelter R. The transformation of body experience into language. J Phenomenol Psychol. 2000;31(1):63-77.) nos chama a atenção para o fato de que o conhecimento pré-reflexivo não é diretamente comunicável, sendo necessário adotar uma abordagem indireta. Nesse sentido, é importante ter abertura para detectar “o que está na beira de ser chamado à existência pela primeira vez”(2424. Stelter R. The transformation of body experience into language. J Phenomenol Psychol. 2000;31(1):63-77.). Assim, devemos também buscar o conhecimento exposto por meio daquilo que não é falado, explorar as questões que são assumidas, consideradas implícitas, e que muitas vezes fazem parte do senso comum. Stelter ressalta que o fenômeno se manifesta muitas vezes não por pensamentos ou palavras, mas como “um único (muitas vezes intrigante e muito complexo) sentimento corporal”(2424. Stelter R. The transformation of body experience into language. J Phenomenol Psychol. 2000;31(1):63-77.). A observação é, nesse sentido, uma importante fonte de dados, mas Queiroz et al.(2929. Queiroz DT, Vall J, Souza AMA, Vieira NFC. Observação participante na pesquisa qualitativa: conceitos e aplicações na área da saúde. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2007 [citado 2015 set. 08];15(2):276-83. Disponível em: http://www.facenf.uerj.br/v15n2/v15n2a19.pdf
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) nos alertam que ela se torna científica quando passa por um processo de sistematização, planejamento e controle. Dessa forma, todos os aspectos subjetivos que não podem ser apreendidos pela entrevista podem ser registrados em um diário de campo e entremeados às falas dos participantes durante a transcrição da entrevista.

O diário de campo pode ser usado com o objetivo de promover a reflexividade ou autorreflexão, propiciando a atenção e a reflexão sobre o impacto da nossa própria história e da ligação com certos tipos de conhecimentos na forma como vemos a história dos participantes; permite também que os leitores avaliem essa influência na construção do trabalho(2727. Morrow SL. Quality and trustworthiness in qualitative research in counseling psychology. J Couns Psychol. 2005;52(2):250-60.).

ANÁLISE DOS DADOS

A análise de dados na pesquisa fenomenológica se dá por meio de alguns passos: a descrição detalhada do fenômeno, a realização da redução fenomenológica, a busca pela estrutura essencial do fenômeno, ou seja, a compreensão deste e a sua comunicação de forma evocativa(2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.,2929. Queiroz DT, Vall J, Souza AMA, Vieira NFC. Observação participante na pesquisa qualitativa: conceitos e aplicações na área da saúde. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2007 [citado 2015 set. 08];15(2):276-83. Disponível em: http://www.facenf.uerj.br/v15n2/v15n2a19.pdf
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).

A descrição se inicia com a transcrição das entrevistas. Durante esta fase, a imersão nos dados é considerada essencial e se dá por meio da leitura repetida das transcrições, da escuta atenta das gravações e da revisão dos dados de campo. Essas incursões diferentes levam o investigador a compreender o conjunto de dados e como as partes se inter-relacionam(1111. Sánchez LD. Medication experiences of Hispanic people living with HIV/AIDS. Inov Pharm [Internet]. 2010 [cited 2013 Nov 28];1(1). Available from: http://pubs.lib.umn.edu/innovations/vol1/iss1/6/
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).

O próximo passo é a análise temática. Esta se inicia com a análise do todo ou abordagem holística, lendo e relendo o texto como um todo de forma aberta e atenta, com o objetivo de identificar o sentido do texto, seguida pela análise das partes ou abordagem seletiva, buscando as frases ou afirmações que são essenciais para descrever o fenômeno avaliado. Por fim, quando o pesquisador identificar que o texto está repleto de significados e temas, ele avalia novamente o texto como um todo, mas agora com um entendimento maior do que o tinha no início do processo(2020. Dahlberg K, Drew N, Nyström M. Reflective lifeworld research. Lund: Studentlitteratur; 2001.,2929. Queiroz DT, Vall J, Souza AMA, Vieira NFC. Observação participante na pesquisa qualitativa: conceitos e aplicações na área da saúde. Rev Enferm UERJ [Internet]. 2007 [citado 2015 set. 08];15(2):276-83. Disponível em: http://www.facenf.uerj.br/v15n2/v15n2a19.pdf
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).

Para fugir da atitude natural e conseguir atingir a essência dos fenômenos, que não nos são claros no primeiro momento, é preciso executar a redução fenomenológica(1414. Wong WKT, Ussher J. How do subjectively-constructed meanings ascribed to anti-HIV treatments affect treatment-adherent practice? Qual Health Res. 2008;18(4):458-68.,1717. Daly KJ. Qualitative methods for family studies & human development. Thousand Oaks: SAGE; 2007.). Também denominada epoche ou bracketing, significa colocar entre parênteses os fatos em si, as crenças, os pressupostos ou as teorias acerca do fenômeno, considerando a experiência em si, apreendendo o sentido ou a essência do fenômeno(1818. Matthews E. Compreender Merleau-Ponty. 2ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.). Para Toombs(2222. Toombs SK. Handbook of phenomenology and medicine. Dordrecht: Springer; 2001.) a redução é um método para o exercício da reflexão radical sobre a experiência, uma vez que permite esclarecer e tornar explícitos os pressupostos teóricos, sociais, culturais e profissionais que influenciam nosso entendimento e interpretação do fenômeno experienciado. Enfim, nos permite mudar o foco da nossa atenção do objeto experienciado para os seus modos de aparição(2626. Carel H. Phenomenology as a resource for patients. J Med Philos. 2012;37(2):96-113. DOI: 10.1093/jmp/jhs008).

Na busca pela essência do fenômeno, outro aspecto metodológico importante, e que pode ser usado para alcançarmos a redução, é o uso da variação imaginativa, descrita como uma experimentação mental na qual o pesquisador altera intencionalmente, por meio de sua imaginação, diferentes aspectos da experiência, retirando ou adicionando aspectos ao fenômeno. Assim, imaginam-se todas as variações que o fenômeno poderia sofrer chegando àquilo que não poderia ser suprimido sem a destruição do próprio fenômeno(3030. Corrêa AK. Fenomenologia: uma alternativa para pesquisa em enfermagem. Rev Latino Am Enfermagem [Internet]. 1997 [citado 2014 set. 16];5(1):83-8. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rlae/v5n1/v5n1a10.pdf
http://www.scielo.br/pdf/rlae/v5n1/v5n1a...
).

Segundo Stelter(2424. Stelter R. The transformation of body experience into language. J Phenomenol Psychol. 2000;31(1):63-77.), para entender o significado do comportamento humano é fundamental compreender a experiência corporal, pré-conceitual e pré-reflexiva do sujeito em relação a um contexto específico e vai além, dizendo que a questão essencial é desenvolver uma estratégia que possa capturar essa dimensão experiencial. Nesse sentido, Wilde(1515. Wilde MH. Why embodiment now? Adv Nurs Sci. 1999;22(2):25-38.) aponta como o conceito de arco intencional pode ser aplicado à análise fenomenológica no contexto da saúde. E com isso nos estimula a questionar como o arco intencional pode ser afetado pela forma como os pacientes experienciam o uso cotidiano de medicamentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O uso da abordagem fenomenológica nas pesquisas exige um conhecimento de seus fundamentos filosóficos e a construção de uma cascata metodológica nos auxilia a conduzir de forma coerente os estudos com essa abordagem.

A fenomenologia de Merleau-Ponty, por estar alicerçada no corpo, é de grande utilidade para a investigação do uso cotidiano de medicamentos, uma vez que estes são capazes de gerar profundas mudanças corporais. E a análise das estruturas essenciais da existência e de sua conexão por meio do arco intencional também se mostra uma estratégia útil para a compreensão desse fenômeno.

Esperamos que essa abordagem metodológica possa auxiliar os pesquisadores em seu caminho, contribuindo para a geração de novos conhecimentos na área da saúde, especialmente em relação ao uso de medicamentos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2017
  • Aceito
    28 Set 2017
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