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Estratégias de resistência na construção das estratégias de enfrentamento: o complexo contexto de mulheres envolvidas em relações conjugais violentas

RESENHAS

Estratégias de resistência na construção das estratégias de enfrentamento: o complexo contexto de mulheres envolvidas em relações conjugais violentas

Simone Lolatto

Universidade Federal de Santa Catarina

Espacios de libertad: mujeres, violencia domestica y resistencia

FERRER, Diana Valle.

Buenos Aires: Espacio Editorial, 2011, 232p.

Esse livro é resultado de investigações da autora com 76 mulheres, sobreviventes de violência doméstica, que procuraram os serviços governamentais de Porto Rico apresentando mais de duas agressões no mesmo ano. Destas, nove tiveram entrevistas mais longas e aprofundadas, e três foram analisadas detalhadamente no livro por concentrarem a síntese e junção de muitas características comuns nos contextos de violências domésticas e conjugais. Apesar de não constar o período exato da pesquisa, há a indicação de informações acerca da metodologia em publicações anteriores. É importante ressaltar que Diana Valle Ferrer presidiu a Casa Protegida Julia de Burgos, o primeiro albergue (equivalente a casa abrigo) para mulheres sobreviventes de violência doméstica em Porto Rico, e é pesquisadora e doutora em Trabalho Social e Estudos das Mulheres e Gênero.

Subsidiando-se principalmente em Patricia Hill Collins e Marcela Lagarde, além de outras teóricas, como Glória Anzaldúa, Bell Hooks, Talpade Mohanty, Ann Russo e Lourdes Torres, entre outras,1 1 Ver: Black feminist thought: Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment, 1991, de Patricia Hill Collins; Los cautiverios de las mujeres: madres, esposas, monjas, putas, presas y locas, 2006, de Marcela Lagarde; Making Faces, Making Soul: Haciendo Caras, 1990, de Glória Anzaldúa; vários textos de Bell Hooks (1984, 1990 e 1994), e a obra Thrid world women and the politics of feminism, 1991, de Talpade Mohanty, Ann Russo e Lourdes Torres. que são utilizadas no decorrer do texto para dar-lhe sustentação, a autora explicita, já nas primeiras linhas, que adota a perspectiva feminista reconhecendo a

[...] opressão contra as mulheres a partir de uma perspectiva teórica sobre a intersecção entre os sistemas de opressão, de gênero, classe e raça e como se entrecruzam e confluem num contexto sócio-histórico específico e em cada mulher em particular [...] (p. 10).

Ferrer, no decurso de seu texto, se empenha em apresentar o longo processo de envolvimento e libertação das mulheres que sobrevivem a relações de violência doméstica e conjugal. Avalia a complexidade da dinâmica desses relacionamentos conjugais: histórias cujos enredos possuem várias etapas comuns entre elas, e enfatiza a importância de compreendermos melhor e valorizar as estratégias de enfrentamento que as mulheres adotam principalmente a partir do momento em que tomam consciência dos danos causados para si e suas crianças diante do contexto de violência e maus-tratos que vivem.

Espacios de libertad: mujeres, violência doméstica y resistência apresenta-se dividido em duas grandes partes, por quatro capítulos. Nos dois primeiros, a autora centra-se na fundamentação teórica e definições com as quais compartilha, estabelecendo um debate com autoras/es acerca da violência na família, sua prevalência e incidência a nível internacional, principalmente nos Estados Unidos e em Porto Rico. Dialoga também com as teorias feministas – radical, socialista, pós-moderna, afrocêntrica e de cor –, mostrando como cada uma dessas teorias reflete sobre a opressão contra as mulheres e a violência doméstica. Com base nesse diálogo teórico, analisa o envolvimento das mulheres em teias nas quais permanecem por anos numa complexa situação de violência com várias etapas e graus de maus-tratos.

Os capítulos III e IV contêm a explanação da pesquisa, as impressões, análises e contextualizações que Diana Valle Ferrer faz com uma riqueza de detalhes impressionante, dos quais facilmente emergem cenas que fazem brotar emoções junto ao/à leitor/a. Fica visível o envolvimento da autora durante os anos de estudos e trabalhos em espaços de atendimento a mulheres envolvidas em violência doméstica. Sobressai a problematização no processo pelo qual se instauram e se mantêm o poder e o controle através da violência, as estratégias utilizadas tanto no período de sedução como na fase de resistência ao poder e ao controle.

O ponto alto do livro é o terceiro capítulo, em que as histórias de Ramona, Dolores e Olívia são apresentadas e analisadas, cada qual em seu contexto, porém com quatro etapas comuns que se estabelecem nos relacionamentos conjugais:2 2 Em relação às etapas dos relacionamentos violentos, a autora trabalha com os seguintes textos: Mujeres maltradas: los mecanismos de la violenca en la pareja, de Marie-france Hirogoyen, 2006; Leaving abusive partners, de Catherine Kirkwood, 1997; e A process of entrampment in and recovery from an abusive relationship, de Kären Landendurger, 1989. 1) o início da relação ou o engate, 2) a lição, 3) a consolidação, e 4) o desapego ou o desengate. Ramona vem de uma família em que o pai era agressor de sua mãe e das crianças, viveu 18 anos numa relação violenta; numa "situação limite", ao fitar os olhos de uma das suas duas filhas, viu-se menina, pequena, e buscou alternativas para construir a saída diante da violência que se repetia na infância das filhas. Dolores, três filhos, estava envolvida numa relação violenta há 16 anos. Nunca sofreu violência na família de origem; no casamento, viveu violência física, sexual, econômica e psicológica. Diante de um contexto que julga ser o momento adequado, Dolores planeja o rompimento e vai viver com seus filhos num albergue. Com Olivia aparece, de forma significativamente forte, o peso da dívida pela "ajuda" no passado, num momento de debilidade dela ao findar o primeiro casamento, no qual também sofria violência doméstica. A falta de autonomia financeira influenciou tanto a permanência na relação violenta anterior quanto na atual. Desde o princípio, encontra-se numa posição de desigualdade no relacionamento. Tem uma filha do primeiro casamento e uma do atual. A filha mais velha sofre com ameaças e violência física; a mais nova, com superproteção e vigilância constante. Por sentir medo, pena, culpa e vergonha, Olívia ainda se mantém junto do agressor: o segundo marido, o segundo agressor; mas já começa a pensar a possibilidade de viver sem ele, porém, sente-se perdida e impotente.

Para análise das situações, Ferrer fundamenta-se em Michel Foucault, Marcela Lagarde, Michelle Fine3 3 Ver: Puerto Rican batterede woemen redefining gender, sexuality, culture, violence and resistance, de Michelle Fine et al., 2006; e The history of sexuality, v. 1, 1980, e Power/Knowledge: selected interviews & other writings 1972-1977, publicado em 1981, de Michel Foucault. e outras/os teóricas/os, ao trabalhar com as categorias de resistência, enfrentamento e poder. Para ela, o conceito de resistência é mais amplo do que o de enfrentamento:

A resistência ocorre no lugar em que ocorre o poder, ou seja na relação de casamento, na família ou na comunidade. Enquanto o enfretamento é a resposta a um incidente específico de violência, a resistência se exerce através de toda a relação de violência onde quer que se exerça o poder (p. 67).

Ferrer argumenta que as mulheres se transformam em fortalezas ao se verem envolvidas em relacionamentos afetivos-violentos: "a humilhação e degradação se convertem em coragem, a coragem as energiza. O medo e o desejo de sobrevivência as impulsiona. Planejam sua saída, seja de forma imediata ou esperando o momento apropriado para elas e seus filhos" (p. 105).

Já no capítulo IV, a novidade é a dedicação da autora ao sugerir às/aos profissionais que trabalham diretamente no atendimento das mulheres envolvidas em relações violentas dois modelos que visam facilitar um processo de empoderamento das mulheres, considerando "[...] as dimensões pessoais, interpessoais e sociopolíticas assim como manifestações de empoderamento que demonstram através de todo o processo de envolvimento" (p. 113). O primeiro modelo é para "entender e intervir com mulheres sobreviventes de violência até a prática do empoderamento" (p. 114), e o segundo é um modelo para o "processo de empoderamento recíproco: estratégias e técnicas" (p. 116), aliando sempre a esfera do particular no rumo do coletivo e tratando de esclarecer, com uma frequência cuidadosa, que o que é pessoal é também político, e as questões estruturantes de um sistema patriarcal determinam a constituição sociocultural de padrões/costumes que justificam os comportamentos "normais" ou "naturais" para homens e para mulheres. Ao aprofundar a análise desses dois modelos/matrizes para a intervenção profissional junto às mulheres sobreviventes de violências, Ferrer, ao tratar da categoria de empoderamento, subsidia-se na teoria do estresse e do enfrentamento, de Richard S. Lazarus e Susan Folkman, e nos conceitos de poder e resistência de Michel Foucault, assim como em definições de Margaret Schuler e Lorraine Gutiérrez.4 4 Ver: Stress, appraisal and coping, de Richard Lazarus e Susan Folkman, publicado em New York, em 1984, pela Springer Publishing Company; Um diálogo sobre el poder y otras conversaciones, de Foucault, publicado em 2001 pela Alianza Editoral S.A. de Madrid; Los drechos de las mujeres son derechos humanos, de Margaret Schuler, 1997, publicado em Bogotá pela Terceiro Mundo; e Working with women of color: na empowerment perspective, de Lorraine M. Gutiérrez, publicado em 1990, no volume 35, número 2, p. 149-153 da Social Work. Considera, ainda, que integram o contexto cotidiano das pessoas instituições como a família, a Igreja, o Estado, a escola, como potencializadoras de barreiras no processo de rompimento de relações violentas ou apoiadoras desse rompimento. Para tanto, a autora busca em Michèle Barrett e em Pierre Bourdieu5 5 Ver: Women´s oppression today: The marxist/feminist encounter, de Michèle Barrett, publicado em 1988, em Londres, pela Veso; e La dominación masculina, de Pierre Bourdieu, publicado em 2000, em Barcelona, pela Anagrama. a justificativa de que tais instituições, majoritariamente, contribuem para a manutenção social e cultural da opressão contra as mulheres e o domínio dos homens.

Para sua análise, a autora não descarta nenhuma das diversas teorias feministas (radical, socialista, pós-moderna, afrocêntrica e de cor), reconhecendo em cada uma contribuições significativas para a multiplicidade das opressões e discriminações que vivem as mulheres. Considera que, com essas teorias feministas, foi possível traçar estratégias de intervenção e transformações sociais, dos indivíduos, instituições e estruturas.

O livro de Diana Valle Ferrer ganha ineditismo ao abordar como questão-chave as estratégias de resistência e enfrentamento utilizadas pelas mulheres nessas situações de violência e o complexo processo que envolve a consolidação da violência, a tomada de consciência dos danos e o planejamento da saída/rompimento, que pode durar meses, ou até mesmo anos. Tais estratégias sempre estiveram presentes na vida das mulheres ao longo da história, argumenta a autora, com posturas questionadoras, transgressoras, ativas e propositivas, e, em relação à violência doméstica e conjugal, não tem sido diferente. No decorrer do texto, são apresentadas as estratégias que as mulheres envolvidas em situação de violência utilizam para resistir, enfrentar e romper relações danosas para elas e suas crianças. Tais mulheres tornam-se, segundo traz esse livro, sobreviventes de relações violentas, sobreviventes de uma sociedade opressora, que ainda as trata como objetos e propriedade. Muitas resistem, enfrentam, sobrevivem, porém há que lembrar das muitas que não sobreviveram!

A leitura desse livro é recomendada a estudantes, pesquisadoras/es, militantes e principalmente às/aos profissionais que trabalham nos serviços de atendimentos a mulheres que passam ou passaram por situações de violência conjugal, em razão de sua excelente reflexão teórica, contextualizadora e sugestões de intervenção profissional.

Notas

  • 1
    Ver:
    Black feminist thought: Knowledge, consciousness, and the politics of empowerment, 1991, de Patricia Hill Collins;
    Los cautiverios de las mujeres: madres, esposas, monjas, putas, presas y locas, 2006, de Marcela Lagarde;
    Making Faces, Making Soul: Haciendo Caras, 1990, de Glória Anzaldúa; vários textos de Bell Hooks (1984, 1990 e 1994), e a obra
    Thrid world women and the politics of feminism, 1991, de Talpade Mohanty, Ann Russo e Lourdes Torres.
  • 2
    Em relação às etapas dos relacionamentos violentos, a autora trabalha com os seguintes textos:
    Mujeres maltradas: los mecanismos de la violenca en la pareja, de Marie-france Hirogoyen, 2006;
    Leaving abusive partners, de Catherine Kirkwood, 1997; e
    A process of entrampment in and recovery from an abusive relationship, de Kären Landendurger, 1989.
  • 3
    Ver:
    Puerto Rican batterede woemen redefining gender, sexuality, culture, violence and resistance, de Michelle Fine et al., 2006; e
    The history of sexuality, v. 1, 1980, e
    Power/Knowledge: selected interviews & other writings 1972-1977, publicado em 1981, de Michel Foucault.
  • 4
    Ver:
    Stress, appraisal and coping, de Richard Lazarus e Susan Folkman, publicado em New York, em 1984, pela Springer Publishing Company;
    Um diálogo sobre el poder y otras conversaciones, de Foucault, publicado em 2001 pela Alianza Editoral S.A. de Madrid;
    Los drechos de las mujeres son derechos humanos, de Margaret Schuler, 1997, publicado em Bogotá pela Terceiro Mundo; e
    Working with women of color: na empowerment perspective, de Lorraine M. Gutiérrez, publicado em 1990, no volume 35, número 2, p. 149-153 da Social Work.
  • 5
    Ver:
    Women´s oppression today: The marxist/feminist encounter, de Michèle Barrett, publicado em 1988, em Londres, pela Veso; e
    La dominación masculina, de Pierre Bourdieu, publicado em 2000, em Barcelona, pela Anagrama.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jan 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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