Acessibilidade / Reportar erro

A necessidade da subversão: a teoria queer na educação

RESENHAS

A necessidade da subversão: a teoria queer na educação

Justina Franchi Gallina

Universidade Federal de Santa Catarina

Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer.

LOURO, Guacira Lopes.

Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 96 p.

Numa época em que as diferentes formas de manifestação da sexualidade têm se tornado alvo de várias pesquisas e trabalhos acadêmicos, Guacira Lopes Louro demonstra irreverência ao realizar em seu livro Um corpo estranho articulações sobre a teoria queer1 1 A terminologia queer, hoje entendida como uma ação afirmativa das diversas formas de exercer a sexualidade, começou a ser utilizada no final da década de 1960, nos Estados Unidos, como uma forma pejorativa de diferenciar e discriminar gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros. Ver mais em Francine MASIELO, 2000. e suas possibilidades de aplicação, principalmente no campo da educação.

Nesse texto a autora ressalta que a escolha de seu objeto de estudo é ao mesmo tempo uma opção política e teórica. Segundo Louro, os preceitos antinormatizadores da teoria queer incitam-na a trabalhar com suas idéias, desconstruções e enunciados, testando-os nos diversos campos de saberes. Com isso, emerge uma nova forma de pensar os sujeitos fora dos limites impostos por determinada cultura, em um dado momento.

Para esclarecer suas posturas, Louro utiliza-se de uma estrutura de quatro artigos, os quais podem ser lidos em conjunto ou separadamente, pois a ordem não interfere no conteúdo geral da obra. Mesmo assim, há uma temática comum que perpassa todos os textos: a crítica ao caráter imutável, a-histórico e binário do ato de nomear os corpos, que identifica o sexo como algo anterior à cultura.

O primeiro texto intitula-se "Viajantes pós-modernos" e trata da constituição de sujeitos cambiantes, fragmentados e não-unificados na pós-modernidade. A autora recorre ao recurso metafórico dos road movies para designar a viagem que fazemos entre as várias possibilidades de identidades, destacando que algumas pessoas podem decidir ficar na fronteira, nos entre-lugares das culturas ou das posições-de-sujeito. Mesmo que as fronteiras sejam bem definidas, há sempre aqueles/as que rompem as regras e transgridem esses limites. Esses 'transgressores', por sua vez, acabam sendo o alvo preferencial das pedagogias corretivas e normalizadoras, para os quais a sociedade reserva penas, sanções e exclusões. Esse é o preço que se paga por não reiterar constantemente a ordem pedagógica da relação 'direta' do corpo relacionado ao gênero e à identidade sexual 'correspondente'.

Ao realizar esse percurso, a autora destaca que transpor as barreiras da matriz heterossexual talvez não seja uma livre escolha desses sujeitos à deriva, uma vez que "eles podem se ver movidos para tal por muitas razões, podem atribuir a esse deslocamento distintos significados" (p. 17-18). Essas pessoas são os viajantes pós-modernos, aqueles/as que recusam a fixidez das limitações das fronteiras e assumem a posição entre identidades, administrando e extraindo prazer mais do processo de viajar que propriamente da chegada a determinado lugar.

Apesar do esforço na caracterização dessas identidades flutuantes, a teoria queer não se pretende instauradora de um novo projeto de sujeito. Essas possibilidades apenas evidenciam o caráter cultural e não-fixo de todas as identidades e sugerem a multiplicação das formas de gênero e sexualidade. Como adverte a autora, "Não se trata, pois, de tomar sua figura como exemplo ou modelo, mas de entendê-la como desestabilizadora de certezas e provocadora de novas percepções" (p. 24).

O segundo texto se dedica a apontar algumas possibilidades para "Uma política pós-identitária para a educação", ou seja, uma pedagogia queer que não esteja baseada nos esquemas binários de gênero e sexualidade. Os modelos normalizadores aplicados à educação mostram-se inoperantes em relação aos 'novos' sujeitos, com suas 'novas' demandas e práticas. A autora indica que não é mais possível trabalhar nas escolas com currículos que denominam esses sujeitos como desviantes que precisam ser sistematicamente corrigidos. Para esclarecer essa 'invenção' de quem estaria dentro ou fora das sexualidades legitimadas, Louro retorna ao século XIX para demonstrar que a heterossexualidade compulsória e a homossexualidade são criações daquele século.

Mesmo com o surgimento de grupos gays e lésbicos de afirmação da identidade homossexual, as posições-de-sujeito permanecem com restrições em relação aos seus contornos e limites. Assim, também essas identidades sexuais passaram a ser questionadas por não abarcarem toda a complexidade e pluralidade das possíveis formas de manifestação da sexualidade. Com isso há uma mudança nos movimentos sexuais e de gênero que exige igualmente uma transformação nas teorias que deles se ocupavam. Surge então a teoria queer, hoje utilizada como forma política de manifestação afirmativa da homossexualidade por parte de alguns movimentos que questionam, acima de tudo, a heteronormatividade compulsória da sociedade.

Para falar dessa construção discursiva da sexualidade, a autora discorre sobre alguns autores a partir dos quais os fundamentos da teoria queer foram articulados, entre eles Michel Foucault, Jacques Derrida e Judith Butler. Para desenvolver uma política pós-identitária para a educação, Louro utiliza-se particularmente dos pressupostos da teoria da desconstrução proposta por Derrida, elegendo esse procedimento metodológico como forma de desestabilizar os binarismos conceituais e lingüísticos imbricados em nossa cultura (homem/mulher, heterossexualidade/homossexualidade, etc.). Essa desconstrução permite que, ao serem fragmentados, cada um desses pólos mantenha vestígios um do outro, sendo interdependentes e não opostos. E é nessa desconstrução da oposição heterossexualidade/homossexualidade que se fundamenta a proposta dos/as teóricos/as queers. Seu 'objeto' de estudo pode ser entendido essencialmente como os sujeitos abjetos, ou seja, aqueles que escapam das normas regulatórias estabelecidas por uma sociedade. A importância desses sujeitos reside no fato de que eles demarcam as fronteiras para os corpos que 'materializam' a 'norma', para os corpos que realmente 'importam'.2 2 Judith BUTLER, 2003.

Como afirma Louro, "Numa ótica desconstrutiva, seria demonstrada a mútua implicação/constituição dos opostos e se passaria a questionar os processos pelos quais uma forma de sexualidade (a heterossexualidade) acabou por se tornar a norma, ou, mais do que isso, passou a ser concebida como 'natural'" (p. 46). Nesse sentido, a teoria queer se propõe não só a pensar a ambigüidade e a fluidez das identidades sexuais e de gênero, mas também a redefinir todas as relações de poder/saber inerentes às nossas sociedades. Numa pedagogia e num currículo queer a diferença passa a ser constitutiva do próprio sujeito. Aplicada à educação, a teoria queer minaria a díade que opõe o conhecimento à ignorância, concebendo essa última como um efeito e não uma ausência de conhecimento (p. 50).

Em seu terceiro texto, "'Estranhar' o currículo", a autora torna-se um pouco repetitiva ao reafirmar excessivamente questões como a instituição da "heterossexualidade e do heterossexual [...] como a posição e o sujeito centrais da cultura ocidental moderna" (p. 56). Nesse capítulo interessa saber a maneira como essa posição se estabeleceu como norma e como expressão 'natural' dos prazeres e desejos sexuais, e entender como as oposições binárias implicadas nesse regime se inserem na produção do saber/poder. Vale ressaltar que a partir dos campos teóricos nos quais se fundamenta a teoria queer (pós-estruturalismo francês e pós-modernismo) não há textos propositivos/prescritivos, não há uma orientação 'correta' de como proceder para alcançar outros alvos do conhecimento. E essa é a intenção de uma política pós-identitária: desconstruir todos os tipos de binarismos, compreendendo que eles são contingenciais.

O deslizamento da teoria queer do âmbito da sexualidade para outros campos como a educação indica que, além de desconstrucionista, essa teoria se pretende subversiva no sentido de extrapolar as formas usuais de leitura dos textos, discursos e corpos. No entanto, essa subversão "'reside no momento mesmo de não inteligibilidade', ou seja, naquele 'ponto' a partir do qual não se consegue explicar ou pensar" (p. 61). Para isso, deve-se abandonar as regras de sensatez criadas e reforçadas pela ordem, articulando o pensamento fora de uma ótica segura, conhecida e material o que constitui uma das dificuldades da aplicação dessa teoria.

Ao propor um estranhamento do currículo, a autora o pensa construído a partir de uma perspectiva queer, ou seja, uma forma de trabalhá-lo contra o normalizante. Sendo o currículo generificado, ele reforça que determinado sexo indique determinado gênero e este gênero induza a desejos específicos. Assim, não há lugar no currículo convencionalmente trabalhado para a idéia de multiplicidade/pluralidade de sexualidade e/ou gênero, pois ainda hoje a maioria das pessoas não admite a possibilidade de ser associada com formas não-hegemônicas de sexualidade. Essa é uma das grandes dificuldades apontadas pela autora ao pontuar que tornar queer o currículo implique trabalhar com conhecimentos aos quais tem-se resistência em serem desenvolvidos, ou porque ousam questionar o 'normal', ou porque implicam adotar uma posição desconfortável dentro de uma ótica culturalmente estabelecida.

Especificamente em relação à educação, quando a autora chama a atenção para a instituição escolar e para os currículos como legitimadores das posições-de-sujeito em uma determinada cultura, ela está destacando que a escola é um dos aparelhos mais eficientes no controle da sexualidade e dos corpos. Ainda hoje, mesmo sabendo que existem várias formas de vivenciar o gênero e a sexualidade, os educadores e as educadoras norteiam suas ações com base em um padrão para o qual há um único modo 'normal' de masculinidade e feminilidade e uma única forma 'sadia' de desejo sexual (o heterossexual). Sair desse esquema, segundo Louro, é transgredir, desconsertar e desestabilizar os pares estratégia necessária para consolidação de uma política desconstrucionista para a educação.

No último texto, "Marcas do corpo, marcas de poder", a autora realiza uma reflexão sobre como os sujeitos são classificados e hierarquizados de acordo com a aparência de seus corpos (entendidos também como marcas de raça, gênero, etnia, geração...). Essas características dos corpos, significadas no interior de uma cultura, diferenciam sujeitos e se constituem também em marcas de poder. Então o corpo se torna causa e justificativa das diferenças, principalmente na díade masculino/feminino. Para essa legitimação, um fator relevante foram os discursos produzidos pela ciência no final do século XVIII (em consonância com os da igreja e da moral), pois tornaram-se fundamentais nesse processo que instituiu as diferenças entre os sujeitos e suas práticas sexuais.

Apesar da circularidade de idéias, Um corpo estranho questiona, de forma desafiadora, as estruturas normatizadoras de nossa cultura, sobretudo as 'verdades' sobre sexo, gênero e sexualidade, freqüentemente reiteradas de forma 'natural' em nossa sociedade. Louro trabalha no sentido de estimular, em matéria de identidade, o impensado e o ambíguo ao invés do conhecido e do assegurado. Propõe, assim, uma subversão da noção de identidade fixa, una e estável, destacando que as marcas de gênero e sexualidade prevalecentes no interior de uma cultura são invenções sociais, contingenciais e, portanto, cambiáveis.

Notas

Referências bibliográficas

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

MASIELO, Francine. "Conhecimento suplementar: Queering no eixo norte/sul". Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 2, p. 49-61, 2000.

  • 1
    A terminologia
    queer, hoje entendida como uma ação afirmativa das diversas formas de exercer a sexualidade, começou a ser utilizada no final da década de 1960, nos Estados Unidos, como uma forma pejorativa de diferenciar e discriminar gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transgêneros. Ver mais em Francine MASIELO, 2000.
  • 2
    Judith BUTLER, 2003.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br