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Papéis sociais das mulheres em memórias de Ruth Escobar e Leonor Xavier

Roles sociales de las mujeres en memorias de Ruth Escobar y Leonor Xavier

Resumo:

O debate de gênero consta nas vidas e nas obras de Ruth Escobar e Leonor Xavier, portuguesas que renovaram seus olhares aos papéis sociais das mulheres após emigrarem para o Brasil, no século XX. Ruth Escobar (1935-2017) instalou-se aos 16 anos, com a mãe, em São Paulo, e foi atriz, produtora teatral, política e feminista. Leonor Xavier (1943-2021) imigrou com o marido e os filhos em 1975-1987, para São Paulo e Rio de Janeiro, onde se tornou escritora e jornalista de veículos do Brasil e de Portugal. Uma análise de conteúdo de suas autobiografias Maria Ruth e Casas contadas permite abordá-las como exemplos de “intelectual mediador” de novos olhares a papéis sociais de mulheres. Ao tratar da trajetória intelectual e adesão ao feminismo de relevantes intelectuais luso-brasileiras, é notada a importância da imigração de ambas para a ruptura com um legado masculino e conservador, e inserção na reflexão sobre gênero.

Palavras-chave:
Gênero; história de intelectuais; memória; mulheres; portuguesas no Brasil

Resumen:

El debate de género apareció en la vida y obra de Ruth Escobar y Leonor Xavier, portuguesas que renovaron sus miradas sobre los roles sociales de la mujer después de emigrar a Brasil en el siglo XX. Ruth Escobar (1935-2017) se instaló con su madre en São Paulo a los 16 años y fue actriz, productora de teatro, política y feminista. Leonor Xavier (1943-2021) inmigró con su esposo e hijos en 1975-1987 en São Paulo y en Río de Janeiro, donde se convirtió en escritora y periodista de vehículos en Brasil y Portugal. Un análisis de contenido de sus autobiografías Maria Ruth y Casas contadas permite abordarlas como ejemplos de “intelectual mediador” sobre los roles sociales de la mujer. Al abordar la trayectoria intelectual y la adhesión al feminismo de relevantes intelectuales luso-brasileñas, destacase la importancia de la inmigración de ellas por la ruptura con un legado masculino y conservador y la inserción en la reflexión sobre género.

Palabras clave:
Género; historia de intelectuales; memoria; mujeres; portuguesas en Brasil

Abstract:

The gender debate features in the lives and works of Ruth Escobar and Leonor Xavier, Portuguese women who renewed their views on the social roles of women after immigrating to Brazil in the 20th century. Ruth Escobar (1935-2017) at age 16, settled with her mother in São Paulo, and was an actress, theater producer, politician, and feminist. Leonor Xavier (1943-2021) immigrated with her husband and children in 1975-1987 to São Paulo and Rio de Janeiro, where she became a writer and journalist for media outlets in Brazil and Portugal. A content analysis of their autobiographies Maria Ruth and Casas contadas allows us to approach them as examples of “mediating intellectuals” for new perspectives on women’s social roles. In dealing with the intellectual trajectory and adherence to feminism of relevant Luso-Brazilian intellectuals, the importance of emigration for both of them is evident in the rupture with a masculine and conservative legacy, and their participation in the reflection on gender.

Keywords:
Gender; History of intellectuals; Memory; Women; Portuguese women in Brazil

Introdução

A produtora teatral Ruth Escobar (1935-2017) e a jornalista Leonor Xavier (1943-2021) interpelaram temas públicos e íntimos no teatro e na imprensa, mas foram suas autobiografias que eternizaram olhares a questões de gênero. Em Maria Ruth e Casas contadas, contribuíram à maior difusão de ideias sobre os papéis sociais de mulheres. Por tais obras literárias e por suas carreiras, assumiram o papel de “intelectuais mediadores”, que Angela de Castro Gomes e Patricia Hansen (2016GOMES, Angela de C.; HANSEN, Patricia Santos (Orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 10) definiram como a “produção de conhecimentos e comunicação de ideias, direta ou indiretamente vinculados à intervenção político-social” que caracterizou tais atores estratégicos na cultura e política. Este artigo faz opção teórica recente na história de intelectuais de tomar Ruth e Leonor como orientadas por projetos individuais e coletivos com dimensões políticas e socioculturais e, como viram Gomes e coautoras (2018) em outros casos - imersas em redes de sociabilidade fundamentais à formação de seu perfil de intelectual.1 1 Agradeço pela leitura e comentários das pareceristas da Revista Estudos Feministas sobre este artigo e de Lis Vilaça e Daniel Moutinho sobre uma versão preliminar.

Portuguesa de Campanhã (Porto) que emigrou na juventude, em 1951, Ruth criou uma revista da comunidade lusa em São Paulo, montou espetáculos com valores artístico e político como empresária de teatro, iniciou presidiários na arte teatral e divulgou o feminismo (neste caso, como ativista da sociedade civil, deputada estadual entre 1983 e 1991 e - nosso foco - escritora de uma autobiografia). Radicada no Brasil entre 1975 e 1987, a lisboeta Leonor entrou no mercado de trabalho depois de imigrar e, no Rio de Janeiro dos anos 1980, passou a se reconhecer e ser reconhecida como jornalista e escritora, inicialmente especializada em “escrever sobre Portugal no Brasil e sobre o Brasil em Portugal” (Leonor XAVIER, 2016XAVIER, Leonor. Portugueses do Brasil e brasileiros de Portugal. Alfragide: Oficina do Livro, 2016., p. 10). Foi uma correspondente do Diário de Notícias, no Rio, colaboradora da Manchete e Jornal do Brasil e redatora do jornal Mundo Português.

As vidas e as obras das duas intelectuais têm aproximações e distanciamentos notáveis e o fato de suas autobiografias terem sido editadas só no país de residência definitiva das autoras torna ainda mais oportuno mirar as obras da mulher de teatro célebre no Brasil e da autora prolífica em Portugal com um só livro recente editado aqui - o ensaio Passageiro clandestino: diário de vida (XAVIER, 2015XAVIER, Leonor. Passageiro clandestino: diário de vida. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.), sobre sua experiência com o câncer.

Maria Ruth, de título alusivo ao nome da autora sem o sobrenome assumido de um dos maridos, teve duas edições (1987, pela Guanabara e remetida para lançamento em Portugal, e 2003, pela Arx) e uma tradução na França (Les cheveux du serpent, editora Sylvie Messinger).2 2 Essa versão, lançada em outubro de 1989 e de título vinculado à figura da medusa, é citada por Machado (2020). Casas contadas remete a 13 casas onde Leonor viveu, ganhou o Prêmio Máxima de Literatura 2010 e um título editado por selos do grupo LeYa em 2009 e 2018. São autobiografias argutas que ilustram a ideia simples, bem expressa pelo escritor argentino Juan José Saer (1997SAER, Juan José. El guardión de mi hermano [1965]. El concepto de ficción. Proyecto Scriptorium. Epublibre, 1997. p. 233-237.), de que “a autobiografia nem sempre é um feixe de hipocrisia amarrado com a sólida alça de vaidade e presunção de um determinado autor” (SAER, 1997SAER, Juan José. El guardión de mi hermano [1965]. El concepto de ficción. Proyecto Scriptorium. Epublibre, 1997. p. 233-237., p. 235, tradução própria). Daí serem repositórios de olhares de certo período.

O trabalho focaliza escritas confessionais como fontes úteis para captar percepções das duas intelectuais sobre os papéis sociais das mulheres - assim, revalorizam-se os legados de ambas, nem sempre bem realçados nos dois países onde viveram. Ruth e Leonor não estão, por exemplo, no dicionário português Feminae (João ESTEVES, Zília O. de CASTRO, 2013ESTEVES, João; CASTRO, Zília Osório de (Orgs.). Feminae: Dicionário contemporâneo. Lisboa: CIC, 2013.). Já o Dicionário Mulheres do Brasil (Schuma SCHUMAHER; Erico V. BRAZIL, 2000SCHUMAHER, Schuma; BRAZIL, Erico Vital (Orgs.). Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.) traz um verbete sobre Ruth, que ressalta seus êxitos como atriz, empresária cultural, política e feminista, mas omite a escrita de obras memorialísticas (ESCOBAR, 1982ESCOBAR, Ruth. Dossiê de uma rebelião. São Paulo: Global, 1982.; 1987). Outrora, atentei a percepções nessas autobiografias ao fluxo migratório de que ambas participaram (Mario GRANGEIA, 2019GRANGEIA, Mario Luis. “Renascidas no Brasil: Ruth Escobar, Leonor Xavier e a imigração como reinvenção”. Convergência Lusíada, v. 30, n. 42, p. 221-231, jul./dez. 2019.).

Neste trabalho, reaprecio o valor documentário desses livros agregando aos estudos feministas uma leitura fértil a partir de autobiografias, gênero literário usualmente preterido em pesquisas. Quanto ao foco aos papéis sexuais, ressalte-se que tal termo, segundo Christine Delphy (2018DELPHY, Christine. “Pensar o género: problemas e resistências”. In: BAPTISTA, Maria Manuel. Género e performance: textos essenciais - vol. 1. Coimbra: Grácio Editor, 2018. p. 197-213.), situou-se numa perspectiva sociológica parsoniana e foi usado longamente, desenvolvendo-se de forma crítica nos anos 1940-1960 e tendo como herdeiro o conceito de gênero.

O papel é o aspecto ativo do status (...). Esta perspetiva é claramente sociológica, no bom sentido do termo: os lugares e as atividades dos indivíduos não são considerados como decorrentes da sua natureza ou das suas próprias capacidades, mas da organização social. Nestas condições, falar de “papéis” de mulheres e homens é dar um grande passo em direção à desnaturalização das posições e das ocupações respetivas dos sexos (DELPHY, 2018DELPHY, Christine. “Pensar o género: problemas e resistências”. In: BAPTISTA, Maria Manuel. Género e performance: textos essenciais - vol. 1. Coimbra: Grácio Editor, 2018. p. 197-213., p. 199).

As próximas seções recuperam percepções de papéis sociais das mulheres em geral (e das autoras) nas autobiografias de Ruth Escobar e Leonor Xavier. Distinções estão associadas, entre outros fatores, a suas histórias familiares e rotinas profissionais - em especial, a papéis sociais ocupados no Brasil e em Portugal. Seus relatos autobiográficos expõem a presença inicial de visões tradicionais da mulher e a adoção progressiva de olhares mais modernos, sobretudo após a imigração. Em seguida, são articuladas percepções das autoras sobre papéis sociais de mulheres com suas práticas de “mediação” (usa-se o termo, aqui, no sentido adotado por autores como Jesús MARTÍN-BARBERO, 2003MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: Comunicação, cultura e hegemonia. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003.). A conclusão enfatiza como esse par de percursos intelectuais ilustra possibilidades de mediação de vivências de mulheres durante o século XX.

Ruth Escobar, a mãe “castradora” e o cinto de castidade

Desde menina, Ruth Escobar3 3 Todas as citações da autora, salvo quando explicitado, são de Maria Ruth (ESCOBAR, 1987). deu mais atenção à rua do que a casa. “Não consigo me lembrar de nada dentro de casa, sequer do quarto, da cor do quarto, é um apagado irredutível” (Ruth ESCOBAR, 1987ESCOBAR, Ruth. Maria Ruth. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987., p. 21). Essa preferência foi atribuída pelo psicanalista Hélio Pellegrino (1987PELLEGRINO, Hélio. “Memoráveis memórias”. In: ESCOBAR, Ruth. Maria Ruth. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987. p. 9-12.), no prefácio da autobiografia, ao mistério na atmosfera familiar onde esbarrava o esforço de decifrar coisas e achar o lugar que lhe cabia. A rua foi central à Ruth, que se viu como mediadora de saberes ao avaliar que sua história poderia atrair mulheres e homens por realçar descaminhos que geram gente como ela: “minha história pode interessar às mulheres, quem sabe também a alguns homens, por mostrar de quantos descaminhos surge uma pessoa que já anda sozinha, com a confiança e com a alegria de se deixar estar, assim, sem mais nem menos, para ver o que vai acontecer” (p. 14). Escrever uma autobiografia, conforme se lê, era um meio de divulgar lições pelo exemplo - e de reforçar o papel de “intelectual mediadora” antes do termo.

Maria Ruth viveu no Porto até os 16 anos, quando sua mãe Marília e ela, nascida de uma relação extraconjugal do pai, partiram para São Paulo em busca de futuro melhor para ela fora de Portugal, segundo a mãe. Marília conseguiu trabalho de costureira e Ruth dividiu o estudo com a venda de anúncios da Revista das Indústrias. Instruções maternas eram tão desconcertantes que não saíram da memória da autora, que definiria a relação com sua mãe como “primária, repressiva e castradora” (p. 37).

Mamãe dizia: (...)

“Porta-te direito, como uma menina. Já estás em idade de casar, tens que ter bons modos, honestos, para merecer um bom marido” (...).

“Não te esfregues em qualquer rapaz, faze-te de rogada, olha que eles só procuram as mais difíceis e só casam com aquelas que resistem à tentação do demônio, vê lá o que fazes com a tua mãe” (p. 37).

Enquanto a mãe via mulheres como fadadas ao casamento mediante a castidade, Ruth desejava sair de casa e ficar independente. Ela logo quis editar uma revista sua, Ala Arriba, voltada à colônia portuguesa e com notícias do além-mar e da comunidade. Ruth se casou aos 18 anos com o francês J. mais por um gesto solidário do arquiteto-desenhista e colega para tirá-la do convívio com a mãe repressora, que lhe deu a vontade de fugir e até se suicidar.

Suas mudanças íntimas foram impulsionadas ao se afastar da mãe. Meses depois, Ruth engravidou e Marília a obrigou a realizar um aborto, com a conivência do marido daquele casamento forjado, o que a fez depois se sentir uma “fêmea desorganizada, sem idéias e sem vontade” (p. 44-45). Ainda aos 18 anos, viajou à Ásia, desejando trazer notícias de colônias lusas; a viagem incluía China, Vietnã e Índia portuguesa e foi paga por anúncios da cervejaria Caracu, matérias freelancer e a venda de seu apartamento e móveis. Em suas memórias, a grávida submissa se tornava uma viajante destemida.

A visão confucionista sobre a mulher a marcou em Saigon, onde acabou lembrando da visão da mulher tutelada pelo homem em Portugal nos tempos do ditador António Salazar. Vale atentar ao relato crítico à condição das vietnamitas:

Caminhava sempre três passos atrás do marido. Um homem podia ter quantas mulheres e concubinas quisesse, mas a adúltera era condenada a ter a cabeça raspada e posta a ferros, ou a ser esmagada debaixo das patas dos elefantes; uma viúva era fiel à memória do marido para todo o sempre e, se fosse surpreendida em atitude suspeita, era decapitada. Agora, um marido vietnamita podia livrar-se da mulher, só por ela ser tagarela (p. 65).

Ruth casou e teve filhos com o filósofo Carlos Henrique Escobar (Christian e Patrícia), com o cenógrafo Wladimir Cardoso (Anna Ruth e Inês), com o crítico de arte Nelson Aguilar (Nelson) e, com o engenheiro Daryl Paffenroth (sem filhos, em 1992), construiu um teatro e escreveu nunca querer ser objeto de apoio e consumo de homens. Revisando fatos após décadas, teceu balanço significativo sobre como via o status da mulher, após testemunhar relações de gênero em Portugal, no Brasil e outros países. Avaliou, por exemplo, que “ser mulher” era algo absoluto para ela, que disse querer entender mais as mulheres após séculos de autodestruição. “Ao tentar desenrolar o novelo e desatar meus nós, muitas mulheres me entenderão, e quem sabe minha história as ajude a se contar, a se enxergar, a se apaixonar por sua identidade como eu me apaixonei pela minha” (p. 52, leia-se aqui uma autoimagem mediadora). Ser mulher exige, enfim, superar tal tradição secular de autodestruição e conhecer melhor essa identidade.

No hiato entre desejo e realidade, Ruth selou pacto com Wladimir para usar um cinto de castidade adaptável às calcinhas e com a chave do cadeado carregada no pescoço dele. Esse “exibicionismo amoroso” de meses, em seus termos, rendeu tanto marcas psicológicas quanto problemas de saúde e o receio de que seu “amuleto do amor” fosse visto nos bastidores - até a amiga e atriz Cacilda Becker intervir após ficar ciente do artefato. “Com seu jeito de rainha, revestida de autoridade e plena de afeto, fez-me ver a exótica anomalia de tal subordinação. Obrigou-me a jurar que chegaria em casa e jogaria no lixo não só o cadeado mas todas as calcinhas perfuradas” (p. 123). Na memória de Ruth, a admiração à amiga se articulou com a admissão da subordinação.

Artista entre feministas em Portugal e o engajamento no Brasil

Ao repassar sua vida, Ruth atribuiu a atração pelo feminismo ao contato, na Lisboa de 1973, com as autoras de Novas Cartas Portuguesas, livro pioneiro do feminismo em Portugal, do ano anterior.4 4 Escrito por Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta (“as três Marias”), Novas Cartas Portuguesas foi um marco do pensamento feminista na literatura de Portugal, país que não reconhecia a emancipação feminina e estava vivendo os anos finais do regime ditatorial (1933-1974). Para a produtora teatral, que ficou meses na temporada local de Cemitério de Automóveis,5 5 Texto de Fernando Arrabal, dirigido por Victor Garcia, com encenação autorizada apenas na cidade de Cascais. as autoras de NCP e duas amigas suas em Lisboa a fizeram repensar o tema e, acrescente-se, familiarizar-se a ideias que viria a difundir em solo brasileiro em intervenções públicas (entrevistas, montagens...) e, mais adiante, na autobiografia. O convívio com uma delas, a atriz e militante feminista brasileira Norma Bengell, fez Ruth associar debates da emancipação feminina à crítica da ditadura no Brasil, Portugal e América Latina.

Nada sabia de feminismo, de consciência de ser mulher, de opressão. Comecei, a partir duma informação nova e revolucionária, a reestruturar meu edifício. Li pela primeira vez O segundo sexo e Novas cartas portuguesas.

Nessa releitura de mim mesma, comecei a ver como meus símbolos e sentimentos tinham sido todos importados de um universo estritamente masculino.

Havia construído um teatro, feito um espetáculo fantástico, tinha trazido minha mãe e meus filhos, enfim, organizado todo um espaço que tu, o meu M., deveria refletir de volta para mim, como filtro de minha imagem (ESCOBAR, 1987ESCOBAR, Ruth. Maria Ruth. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987., p. 144-145).

As discussões com feministas renovaram a perspectiva sobre a vida, como se questões cotidianas perdessem peso: “tudo parecia irreal, como se eu estivesse num aquário lisérgico. (...) Minha religiosidade e meu messianismo afundaram-se no poço. De noite falava até a exaustão, depois dormia o dia todo, carregando as baterias para poder, de novo, voltar do fim do sono” (p. 145). Reflexões profundas precederam a adesão irrestrita à causa feminista.

No capítulo “A descoberta”, de sua autobiografia (25o dos 30, sucedidos por correspondências e anotações ditas “fragmentos do agora”), ela reviu sua iniciação ao feminismo e fez curtas considerações sobre escritores que depreciaram mulheres (São Tomás, Rousseau, Roger de Caen e Pierre Damian) e mulheres admiradas por ela (George Sand, Flora Tristan e Simone de Beauvoir). A intelectual que escrevia na segunda metade dos anos 1980 julgava então que o romantismo do século XIX fizera a mulher passar de “sacripanta bruxa a musa idealizada sobre um pedestal” (p. 147). Ela opôs a essas figuras um novo tempo aberto por mulheres fortes e escritoras (caso dela, como se pode acrescentar ou ler nas entrelinhas). Vendo-se no centro da revolução, em 1973, Ruth passou a se enxergar outra. “Ia nascer uma mulher! E, se o meu despertar de feminista se fez sobre a história da luta das mulheres em França, logo descobri as inglesas, as americanas e a longa história de horror e mutilação de nossas irmãs africanas” (p. 148).

Após apresentações de Cemitério de automóveis em outros países, Ruth voltou ao Brasil disposta a se renovar. Tanto que situou em 1974/1975 seu progressivo envolvimento com o movimento de libertação feminina, em paralelo à luta pelo fim da ditadura instalada no Brasil desde 1964, sem deixar de lado espetáculos e encontros em seu teatro. Foram tempos de intenso questionamento sobre seus investimentos pessoais até então e futuros. “Não sabia o que doía mais - o grande amor interrompido, toda uma vida sem clareza, uma carreira conturbada, um bando de filhos, a solidão” (p. 154). A dor aguda de Clarice Herzog, viúva do jornalista Wladimir Herzog, assassinado por agentes da ditadura que simularam seu suicídio, marcou e incitou novas mobilizações.6 6 Em 1975, o diretor de Jornalismo da TV Cultura foi depor sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro no DOI-Codi/SP, onde seria preso, torturado e assassinado. A versão oficial inicial foi de suicídio usando seu cinto. “Ela [Clarice] me dá, até hoje, o senso de segurança de ser mulher, o animal que emerge do soberbo, como um relâmpago diante da hecatombe. (...) Um novo desafio me lastreava - participar, resistir, conspirar. Mudei minha paisagem humana, comecei a participar de reuniões” (p. 156-157). Repitam-se aqui as ações do novo desafio da intelectual: “participar”, “resistir” e “conspirar”. Como notou Mariza Correa (2011CORREA, Mariza. “Gênero, ou a pulseira de Joaquim Nabuco”. In: BOTELHO, André; SCHWARCZ, Lilia M. (Orgs.). Agenda brasileira: temas de uma sociedade em mudança. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 224-233.), as feministas no Brasil se definiram melhor durante a luta contra a ditadura, embora sua história fosse mais longeva.

O Teatro Ruth Escobar (inicialmente cogitado como Gil Vicente) virou endereço relevante à cultura e à política. Para o crítico Jefferson Del Rios (apud Eder RODRIGUES, 2015RODRIGUES, Eder Sumariva. O embate além do sangue e da carne de Ruth Escobar: facetas de uma guerreira. 2015. 387fl. Doutorado (Teatro) - Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, Florianópolis, SC, Brasil., p. 87), foi “um dos pontos de resistência à ditadura, uma das tribunas pelas liberdades públicas, o que termina com o movimento das Diretas Já. É um mérito de Ruth. O local foi ainda local de debates de movimentos feministas e de negros”. Tal referência sobre eventos pela causa negra sugere um ativismo menos segmentado.

Esse ativismo político é mais testemunhado em Dossiê de uma rebelião (ESCOBAR, 1982ESCOBAR, Ruth. Dossiê de uma rebelião. São Paulo: Global, 1982.), sobre o trabalho da equipe liderada por ela para criar um grupo de teatro num presídio em São Paulo. Como notou o advogado Heleno Fragoso ao apresentar o livro, o trabalho teve enorme influência na vida carcerária até ser interrompido após motim no Natal de 1980. “Este volume dá notícia do trabalho de uma mulher admirável, que trouxe esperança e alegria onde existe somente tristeza e desolação” (apud ESCOBAR, 1982, p. 10). O livro fecha com cartas de detentos a Ruth, denúncias sobre a penitenciária e notícias do referido motim. Avessa à ditadura, a atriz tinha sido detida tantas vezes que não se lembrava, respondia a processos e viria a ser alvo de atos de terrorismo psicológico e de ameaças de bomba em seus espetáculos.7 7 No ataque mais violento, em 18 de julho de 1968, Marília Pera, outros atores do elenco de Roda viva (peça de Chico Buarque) e parte do público foram espancados e o teatro depredado pelo grupo paramilitar de extrema direita Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

Na década de 1980, Ruth Escobar acrescentou ao teatro o foco na política, elegendo-se deputada estadual em São Paulo por dois mandatos (1983-1991), pelo Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), e foi a primeira presidente do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (1985-1986). A autobiografia foi lançada após a saída desse cargo, mas seu período nele e seu primeiro mandato na Assembleia Legislativa não foram revisitados na obra. Na segunda edição, de 2003, informa-se, na “orelha”, que a escritora lançaria outro volume onde narraria os fatos vividos a partir da campanha eleitoral. A saúde, porém, impediu aquele plano: ela foi diagnosticada com Alzheimer em 2000 e toda a sua memória e atividade profissional se comprometeria, até ela falecer na primavera de 2017. Anos depois, veio a público a ricamente ilustrada biografia Metade é verdade, de Alvaro Machado (2020MACHADO, Alvaro. Metade é verdade: Ruth Escobar. São Paulo: Sesc São Paulo, 2020.).

Leonor Xavier e o estado civil que distingue as mulheres8 8 Todas as citações da autora, salvo quando explicitado, são de Casas contadas (XAVIER, 2018).

Em suas memórias, Leonor Xavier fez uma interessante opção narrativa: escreveu os capítulos fazendo referência direta às casas onde viveu. Eis a razão para o título Casas contadas, que remete a 13 endereços que dão nome aos capítulos. A autobiografia começa na casa dos avós maternos, em Lisboa, Portugal, onde ela nasceu na primavera de 1943 e viveu os três primeiros anos, e avança até a casa de campo no Ribatejo, refúgio concluído em 1995.

As lembranças dos anos 1940 abrangeram quem transitava no cotidiano e visitantes em dias de festa, como as tias-avós. Mulheres da mais antiga geração citada foram descritas por características visíveis, como os olhos esbugalhados ou a voz quieta, até ser feita menção a qualidades comuns a elas:

Todas difusas imagens, matriarcas mais ou menos bem-sucedidas, ou solteiras destinadas ao silêncio de opinião. Família em que as mulheres tinham papel de algum mando, e em que os homens mantinham as suas profissões liberais, com nome reconhecido e provas de competência prestadas. Dos tios-avós, nada que me lembre guardei. E dos filhos deles, guardei os nomes, Maria da Graça, João, Maria Leonor. Nomes repetidos até hoje, na sucessão da casa (XAVIER, 2018XAVIER, Leonor. Casas contadas. 2 ed. Alfragide: Bis, 2018., p. 18).

Leonor Xavier retratou assim a associação então naturalizada entre as identidades das mulheres e sua inserção na vida familiar: se casadas, com papel de algum mando nas famílias; se solteiras, “destinadas ao silêncio de opinião”. Chama atenção que suas memórias sobre as tias-avós contrastam com o esquecimento sobre os tios-avôs (“nada que me lembre guardei”), inclusive pelo maior contato com elas do que com eles num contexto de maior conservadorismo familiar.

Ocorreu em casa, mas fora da família, sua iniciação sobre aspectos da vida amorosa, já menina e em visitas à casa dos avós. A cozinheira Desidéria lhe deu lições como a de que o primeiro beijo roubado é o melhor de todos e fazia paralelos como entre o corpo do namorado e o leite-creme macio, enfeitado com corações de canela na travessa. Tal falta de decoro era reconhecida pela criança, por ser tema interditado a cada interlocutora, pela idade ou pela profissão.

A distância entre patrões e empregadas, por sua vez, era lição conhecida desde cedo. No capítulo 2, do lar habitado a partir de 1947, Leonor Xavier notaria que as criadas “viviam num mundo à parte e não tinham de saber dos assuntos que não lhes pertenciam” (p. 22). Daí recordar seus pais falando temas privados em francês à mesa diante da criada chamada ao toque da sineta de metal. O analfabetismo das empregadas fez a menina Leonor não se alhear a certas questões e sentimentos delas: tornou-se confidente ao atender a pedidos para redigir cartas ditadas a ela. O trabalho doméstico, como a autobiógrafa retratou, era exclusividade feminina e, naquele meio social, restrito a empregadas.

Sua descrição da mãe exprimia uma perspectiva inquieta com o olhar dela a questões íntimas. Nascida em 1908, foi descrita bela e com modos, “doce e discreta”, poliglota, jogava tênis, andava de bicicleta e nadava. “Teve pretendentes e apaixonados, e já eu era mulher, ria-se sem grandes explicações, se houvesse alguma alusão à sua feminilidade, à força da sua personalidade, à sua maneira irônica de apreciar tudo à sua volta” (p. 24). Para Leonor, a mãe ocultou de si até a morte suas emoções de sensualidade. Sem detalhar, escreveu que ela “exprimia, pelo brilho dos olhos, os bons momentos da juventude, logo ensombrados pelos desgostos que cedo lhe chegaram, na idade adulta” (p. 24). A autobiógrafa ignorou, por exemplo, a razão (sempre silenciada) para a mãe não ter mais contato com sogros e cunhados.

A aproximação entre Leonor e Alberto Xavier, o primeiro marido, remontou ao liceu, onde ele fazia graça com o alfabeto grego nas aulas do idioma. Casaram-se após sete anos de namoro. Ela se licenciou em Filologia Românica na Universidade de Lisboa e ele se formou advogado - para o pai dela, sua entrada na universidade era o grande estatuto de sua emancipação. Ela sentia parecido, considerando um estatuto superior ir à universidade, estudar por gosto e namorar sem limites. A vida conjugal não se alinhou a seus anseios de emancipação, notou ao citar o rito do matrimônio: “Na minha idade, vestida de branco, mal sabia eu que seria difícil submeter-me em todas as ocasiões futuras ao que me dizia a Epístola aos Efésios: ‘Que as mulheres obedeçam aos maridos como ao Senhor’” (p. 51-52).

Lê-se um olhar mais vivido sobre o casamento no quarto capítulo, após Leonor rever fotos de mais jovem. Dizendo-se quase comovida ao ver a pele lisa e olhar ingênuo, repensava seu hábito de dizer “nós” para falar de seus gostos, escolhas e decisões, remetendo a uma unidade com duas pessoas.

Como se concretizasse a ideia de que homem e mulher são um só corpo e uma só alma pelo casamento, eu assim exprimia o suposto consenso com o meu marido, fossem grandes ou pequenos de importância os assuntos. As ideias, os sentimentos, as impressões não seriam diferentes, entre nós (p. 82).

Sem ir ao cinema, teatro, restaurante e festa sem o marido, lembrou-se com desconforto de tantos anos até se expressar no singular.

O estado civil de casada era para mim estatuto de mulher livre da obediência aos pais, era o direito a não pedir licença para praticar os actos que me pareciam mais atrevidos, libertários, independentes. Sempre a dois, escolher os tempos, as leituras, os horários, as saídas, os divertimentos. (...) Achando-me senhora de mim, o meu corpo não me pertencia, não sabia o que fazer dele, que nessas horas me ultrapassava, e achando eu que a própria natureza era assim, sem artifícios ardilosos na hora de fazer amor.

Aparentemente, cumprimos o perfeito modelo de casal em uso nos anos 60, que eu seguia como se o mundo lá fora evoluísse sem conflitos, sem rupturas nem convulsões (XAVIER, 2018XAVIER, Leonor. Casas contadas. 2 ed. Alfragide: Bis, 2018., p. 82-83).

A escritora remetia a lutas de libertação das colônias ultramarinas do domínio luso, responsáveis por cisões familiares sentidas por outras mulheres, mas não por ela, pois uma deformidade nata no pé de Alberto livrou-o do serviço militar. Leonor acabou associando o fato ao não aprendizado dela da precariedade, da distância e da insegurança, o que a distinguiria de tantas amigas suas. Uma situação peculiar com o marido, porém, levou Leonor a reinventar a vida no estrangeiro.

Imigração e novos olhares de uma escritora às mulheres

Com a volta da democracia em Portugal, em 1974, após regimes fechados desde 1926, as mudanças foram sentidas mais por famílias como os Xavier: secretário do Planeamento nos 40 dias anteriores à Revolução dos Cravos, Alberto foi afastado do cargo de professor de Direito na Universidade de Lisboa. Por isso, ele, Leonor e os filhos Leonor, Maria e Gonçalo imigraram para São Paulo em março de 1975. Ela só soube o destino três dias antes e seus pais lhe pagaram a passagem para o voo.

Começou ali “a grande guinada de minha vida” (p. 106), pois Leonor até então não trabalhava e acabou se tornando jornalista e escritora no Brasil. A falta de conhecimento e planejamento na partida se vê na hesitação das roupas a levar: “sem noção do frio ou do calor, da chuva ou do bom tempo que iríamos descobrir naquele outro lado do mundo totalmente desconhecido para mim, e distante de toda a minha imaginação até ao momento em que soube e obedeci à ordem de partida” (p. 107). Note-se neste trecho sua autoimagem subalterna.

Entre 1975 e 1979, a família morou em São Paulo, onde Alberto virou professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e sócio de escritório de advocacia. Leonor viveu no Brasil “a descoberta da vida rasgada, ali clandestinamente à minha espera. Eu, de olhos abertos de pasmo, sem imaginar que construção teria o futuro, porque nunca antes tinha pensado senão na continuidade serena de todas as coisas, para sempre” (p. 134). Ela diria ter dívida impagável de gratidão com o país. A imigração renovou o olhar a papéis da mulher.

Nos quatro anos em São Paulo, foi de dona de casa com rede crescente de contatos a professora particular de francês e revendedora porta a porta de plásticos Tupperware e, depois, de cosméticos Jafra, vivendo anos “decisivos na minha história de mulher” (p. 221). A reinvenção teve exemplos como o da empregada Marlene, baiana de 19 anos com quem diz ter aprendido autoestima, independência sem raiva e desrespeito, liberdade na fala e execução de tarefas braçais sem subserviência. Outro aprendizado no país foi a sociedade de consumo.

Não desperdiçou oportunidades de viver novidades - como a ida no carnaval carioca de 1976, quando viu o desfile de escolas de samba; desfilaria anos depois. O deslocamento ao Brasil rompera com papéis sociais da mulher de modo sem paralelos com as condições dadas em Portugal. Leonor testemunhou inúmeros casos de perto, sobretudo entre as famílias sob efeito da transição democrática após a Revolução dos Cravos.

(...) mulheres que reagiram aos acontecimentos, recusando a amargura, a queixa, a zanga, a revolta contra a nova ordem política em Portugal. Mulheres de boas famílias que raramente exerciam uma profissão, por poucos estudos e fracas habilitações. Que tinham sido preparadas para seguir estruturas tradicionais, e deixaram o país por obediência aos seus maridos, nunca outra hipótese para elas haveria, senão essa. Já no Brasil, sendo os salários dos homens insuficientes para as despesas da família, elas deixaram a ordem da casa e partiram para o espaço da rua, empenhando-se no trabalho, tentando uma brecha no espaço a que pudessem chegar. E houve então grandes revelações (XAVIER, 2018XAVIER, Leonor. Casas contadas. 2 ed. Alfragide: Bis, 2018., p. 185).

A autobiógrafa relembraria, em seguida, a afirmação do filósofo Agostinho da Silva de que os imigrantes portugueses descobriam no Brasil a existência de um espaço exterior igual a seu espaço interior. Ela concordava, acrescentando que mulheres descobriram isso antes, tanto que muitas tinham se revelado empreendedoras à frente de pequenos comércios e serviços. Mais adiante, viu tais exemplos próximos como “mulheres que agarraram a vida com gana, e logo perceberam as novas regras no novo mundo” (p. 235). Outro país, outras mulheres - uma observação que, diga-se de passagem, se vê descrita entre mulheres letradas e com condições materiais notoriamente mais favoráveis do que grande parte daquelas que integraram esse fluxo.

Em cartas da época, reviu numa das enviadas aos pais sua (auto)crítica sobre as mães de filhos pequenos em São Paulo, vistas como “escravas das horas e do trânsito, das aulas de ballet e inglês, da actividade física nos clubes, das práticas religiosas devidas” (p. 188). Em carta a uma amiga, fez defesa de personagens femininas de Jorge Amado. “A repressão do coronel Jesuíno fazia lembrar o governo Geisel. E a luta das mulheres de Ilhéus pela liberdade, contra o machismo, a arbitrariedade, a impunidade, dava muito que pensar a quem pensava sobre estas coisas todas” (p. 212). Em São Paulo ou no interior da Bahia, mulheres se viam face a desafios distintos e a escritora sublinhava ambos a seus destinatários.

A família mudou-se para o Rio de Janeiro em 1979, quando Alberto abriu a filial do escritório. Leonor comparou a mudança a imigrar em local de colônia lusa de mentalidade restrita, fechada a temas brasileiros, sempre em grupo e a dizer mal. Tornou-se jornalista para veículos do Brasil, como O Mundo Português, Jornal do Brasil e revista Mulher de Hoje (na qual dizia dar palpites sobre mulheres), e de Portugal, como Diário de Notícias e Tempo. No Rio, lançou Atmosferas (XAVIER, 1980XAVIER, Leonor. Atmosferas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1980.), ensaio sobre seu início no Brasil e reminiscências de Portugal, dois livros de entrevistas - Entrevistas (1982) e Falar de viver (1986) - e o romance Ponte aérea (XAVIER, 1983XAVIER, Leonor. Ponte aérea. Rio de Janeiro: Nórdica, 1983.).

A autora sentiu sua vida particular seguir mal - ao contrário da vida pública -, com o crescente desencontro de interesses no casal. “A mudança de país e de mentalidade ia fracturando a unidade que afirmámos, na celebração do casamento. As diferenças acentuavam-se por andanças opostas no dia-a-dia” (p. 266). E atribuiu à imigração e seus efeitos a crise que levou à separação, em 1984. As consequências desse divórcio não tardaram:

Em tempo de adaptação ao meu novo estatuto de mulher desquitada, sozinha, primeira pessoa individual, responsável por mim própria no Rio de Janeiro, passei por várias convulsões. Ora estava cheia de segurança e afirmação, ora me sentia abandonada, insegura e sem graça, a achar que tinha de entrar outra vez em dieta, por estar gorda. (...) Percebi que são as mulheres a comandar os homens e não o contrário, analisei o comportamento das mulheres chamadas allumeuses e o mesmo nas falsas ingénuas, que se fazem de sonsas e são o diabo (XAVIER, 2018XAVIER, Leonor. Casas contadas. 2 ed. Alfragide: Bis, 2018., p. 289).

O debate sobre papéis sociais das mulheres faz rara aparição em Falar de viver na entrevista com a poetisa açoriana Luiza de Mesquita. No dizer da então assistente de negócios culturais no Consulado dos Estados Unidos no Rio de Janeiro, “a liberalização da mulher passa por essa independência: mulher liberada não pode em tudo depender do marido, ela tem de poder realizar-se por um trabalho ou por uma ideia” (Luiza de Mesquita apudXAVIER, 1986XAVIER, Leonor. Falar de viver. São Paulo: Difel, 1986., p. 235). Leonor não fez mais considerações sobre a questão, mas, por visões como essas, fechou tal texto declarando ganhar a cada dia um enriquecimento maior pelo que aprendia dos outros.

A escritora retornou a Lisboa em 1987, reencontrando-se com uma identidade nunca perdida. O retorno foi decidido após ela cobrir a visita do presidente Mário Soares ao Brasil e ver que sua identidade brasileira (obtivera dupla nacionalidade) não superava a de suas raízes. Na capital portuguesa, uniu-se ao célebre ator Raul Sonado, de quem escreveu uma biografia. Na mídia, tornou-se uma das jornalistas da revista feminina Máxima.

No capítulo final, onde Leonor remete à sua casa de campo no Ribatejo, sua vizinha Luísa é destacada como exemplo de mulher madura, mais sábia do que muitas mulheres de sociedade insensíveis e sem inteligência. A hesitação de chamar “mulher de trabalho” ou “mulher de mão-cheia” sugere dúvida sobre novas visões da mulher.

Disposta a compartilhar lições acumuladas com leitores, Leonor expôs a metáfora da mulher madura que tirou de resposta da atriz Tônia Carrero quando a indagou de pretendentes a ela, “que sempre estava no auge”: “Agora eu não preciso de namorado, tenho um homem em casa. Meu neto João, de quatro anos, que fica perto de mim me perguntando que roupa vou usar, qual o penteado, qual o creme, e me dá atenção, e me acha bonita” (Tônia Carrero, 198? apudXAVIER, 2018XAVIER, Leonor. Casas contadas. 2 ed. Alfragide: Bis, 2018., p. 370). Ainda que a maior mediação cultural da autora fosse entre pessoas de Portugal e Brasil, Leonor agiu como mediadora não só nas relações luso-brasileiras, mas em tópicos de comportamento, como diferenças e desigualdades de gênero.

Percepções sobre mulheres e mediação cultural

Em suas autobiografias e outros canais, Ruth e Leonor contribuíram para a circulação de ideias sobre as mulheres e seus papéis sociais. Compartilha-se aqui a ideia de Gomes e Hansen (2016GOMES, Angela de C.; HANSEN, Patricia Santos (Orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.) de que o “intelectual mediador” - notável entre profissionais das artes, jornalismo e outras áreas - “se aperfeiçoa nas atividades de mediação e no uso de linguagens e estratégias com a sua experiência e com aquela acumulada ao longo do tempo” (GOMES, HANSEN, 2016GOMES, Angela de C.; HANSEN, Patricia Santos (Orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 19). Com mais nitidez na atriz-política que na jornalista-escritora, elas pareceram ter ganhado perícia em atingir públicos não especializados no feminismo.

Chama a atenção nas obras literárias e entrevistas dessas luso-brasileiras que elas vivenciassem conhecimentos explícitos e tácitos do feminismo que ajudaram a divulgar. É natural notar distinções entre os pontos de partida e de chegada das duas, mas, cada qual à sua maneira, ambas assumiram protagonismo como “intelectuais mediadoras” em seu tempo e a seus públicos. Ao valorizar tal faceta dessas mulheres, visa-se a reduzir uma lacuna longeva, um déficit nos estudos não apenas delas como “intelectual mediador”, mas de ambos os sexos.

Apesar da atividade de mediação cultural ser indispensável e incontornável, em qualquer sociedade - a educação talvez seja sua melhor expressão -, com frequência o intelectual mediador - que a ela [mediação cultural] dedica tempo, esforços e tem sempre um projeto político-cultural -, sobretudo quando exclusivamente dedicado à mediação, não é nem mesmo reconhecido como intelectual, sendo negligenciado nas análises e considerado de valor secundário, quando não supérfluo (GOMES; HANSEN, 2016GOMES, Angela de C.; HANSEN, Patricia Santos (Orgs.). Intelectuais mediadores: práticas culturais e ação política. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016., p. 17).

A análise comparativa aqui contida propiciou não só uma compreensão ampliada sobre cada uma dessas intelectuais, mas uma apreensão límpida do par de elementos caro à história de intelectuais: a trajetória intelectual - com respectivos meios, redes e lugares - e a geração. De um lado, atentou-se a uma portuense que, desde menina, se chocou com as noções mais tradicionais da mulher que eram parte dos repertórios da mãe e de seus maridos J. e Wladimir. De outro, a lisboeta que, desde a infância até o início da vida adulta, tomou o estado civil como um marco da identidade das mulheres. Enquanto uma entrou em contato com o feminismo em Portugal, em meio a mulheres da cena cultural, a outra passou a repensar os papéis sociais da mulher no Brasil, dado o exemplo de imigrantes que, como ela, foram instadas a se reinventar.

Esgotara meu repertório de reconciliações com a realidade. Acabara o festim do grande amor, a ilusão do príncipe, senhor, marido e amante, realizador da síntese de todos os sonhos da mulher-menina-aventureira-sedutora. Era um fragmento gigante cheio de fendas profundas e escuras. Onde o cimento para preenchê-las? (ESCOBAR, 1987ESCOBAR, Ruth. Maria Ruth. Rio de Janeiro: Guanabara, 1987., p. 148).

Deixaram preconceitos de classe, simplificaram as rotinas, abriram as suas casas de modo fraterno, mais humanas se tornaram. Firmes, acompanharam os seus homens, superaram as crises pessoais e conjugais, ganharam uma visão alargada do mundo e da vida (XAVIER, 2018XAVIER, Leonor. Casas contadas. 2 ed. Alfragide: Bis, 2018., p. 185).

Em trechos autobiográficos como estes, essas intelectuais - nem sempre assim reconhecidas em grande medida por seu papel social de mediação cultural - corroborariam involuntariamente as críticas de autores como a socióloga Andrée Michel ao que Delphy (2018DELPHY, Christine. “Pensar o género: problemas e resistências”. In: BAPTISTA, Maria Manuel. Género e performance: textos essenciais - vol. 1. Coimbra: Grácio Editor, 2018. p. 197-213., p. 200) denominou “acantonamento das mulheres em papéis tradicionais e a noção de que isso é bom para elas e para a sociedade”. Ao exercer o papel de “intelectuais mediadoras”, Ruth e Leonor interpelaram, por meio da memória - e de forma tácita -, a perspectiva de papel social, de alto valor histórico como categoria analítica (embora progressivamente preterida em prol do conceito de gênero). Lucila Scavone (2018SCAVONE, Lucila. “Estudos de gênero: uma sociologia feminista?” Rev. Estudos Feministas, v. 16, n. 1, p. 173-186, jan./abr. 2018.) observou que o conceito francês rapports sociaux de sêxe (relações sociais de sexo) se assemelharia à construção do sexo social, apesar de sua base materialista marxista mais explícita que o conceito de gênero, mais atrelado às teorias pós-estruturalistas e pós-modernas.

Não mais com ilusões como a do homem apto a realizar seus sonhos de mulher, numa ruptura atribuída na autobiografia ao contato com o feminismo de fontes no hemisfério norte, a atriz e produtora teatral revisou fases de seu engajamento em entrevista para Leonor Xavier. Nessa oportunidade, explicitou estratégias de divulgação do feminismo no fim dos anos 1970:

Em 1978, reuníamo-nos todas as segundas-feiras num grupo de vinte, trinta mulheres, quase todas universitárias, para almoçar em minha casa. Daí nasceu a Frente Nacional de Mulheres e saíram as grandes lideranças femininas brasileiras. O movimento de mulheres ganhou tal amplitude, que começamos a ter debates à segunda-feira à noite no meu teatro. Fazíamos coisas revolucionárias, como convidar o Luiz Carlos Prestes, líder do Partido Comunista Brasileiro, recém-regressado ao Brasil, para falar das suas experiências, ou convidar várias prostitutas a dar os seus testemunhos pessoais sobre a condição das mulheres. Comecei a denunciar a violência contra as prostitutas, com o apoio da Igreja (ESCOBAR, 2002 apudXAVIER, 2016XAVIER, Leonor. Portugueses do Brasil e brasileiros de Portugal. Alfragide: Oficina do Livro, 2016., p. 177-178).

O relato de Ruth demonstra seu comprometimento com a introdução do feminismo no Brasil, sendo que ela trabalhou para difundi-lo via ambientes domésticos (almoço caseiro) e arenas públicas como o próprio Teatro Ruth Escobar. Edições do jornal Ruthilante, do primeiro mandato da deputada, foram revisitadas pelo pesquisador Eder Rodrigues na sua tese sobre facetas da artista-política. A edição de estreia trazia o texto “Ser mulher e parlamentar”, com considerações instigantes dela sobre o papel de parlamentar desempenhado por mulheres:

A política em nosso país sempre foi um negócio de homens. Na tribuna, nós mulheres, somos vistas como figuras estranhas ou aves raras. E nossas palavras para muitos têm pouco sentido. Na verdade tanta coisa ainda está para ser feita para que possamos aparecer diante de cada Estado e de toda a Nação como força real, marcante, plena de criatividade no que concerne à transformação da condição de vida da mulher e como reforço acentuado de nossa luta libertadora. (...)

O desafio é grande e a batalha é árdua, porém, acredito na nossa vitalidade e na nossa capacidade de estilhaçar velhas fórmulas de poder, sem que tenhamos de nos transformar em “homens honorários”. Não vamos arredar os pés! (ESCOBAR, 1984 apudRODRIGUES, 2015RODRIGUES, Eder Sumariva. O embate além do sangue e da carne de Ruth Escobar: facetas de uma guerreira. 2015. 387fl. Doutorado (Teatro) - Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC, Florianópolis, SC, Brasil., p. 272).

A imagem externa das mulheres na tribuna como “aves raras” aparece ao lado do olhar de Ruth à sua missão de “estilhaçar velhas fórmulas de poder”. Em sua tese, Eder Rodrigues reconstituiu a trajetória de Ruth destacando oito facetas de sua vida: aventureira, novata, produtora, rebelada, organizadora, resistente, feminista e ressurgida. A abordagem, baseada em fontes orais e em documentos escritos (textos na imprensa e da censura oficial, sobretudo), ressaltou quão multifacetado foi o percurso dessa agente cultural, chamando atenção para sua contribuição ao teatro no Brasil. Não se perca de vista, porém, que sua vida e obra - no teatro e, como se frisou aqui, na literatura - deram contribuições ricas, entre outras, ao ativismo da sociedade civil nos anos 1970/80 e a diálogos culturais entre Brasil e Portugal.

Fosse como agitadora cultural, ativista política ou autobiógrafa, ela construiu seu rumo de tal forma que suas visões sobre o feminino merecem atenção ainda neste século XXI, pois não se trata de olhares anacrônicos, sujeitos a perderem interesse a depender de conjunturas. Tal observação também se aplica às visões de papéis sociais das mulheres na autobiografia de Leonor Xavier, que complementam as de Ruth pelos traços singulares de cada trajeto pessoal.

Os percursos de Ruth e Leonor voltaram a se cruzar quando, no começo da década de 2010, a jornalista participou em congresso sobre a mulher imigrante e citou a produtora teatral e duas outras imigrantes no Brasil - a economista Maria da Conceição Tavares e a dramaturga Maria Adelaide Amaral - como mulheres exemplares da diáspora portuguesa. Em sua fala, ela indicou que portuguesas como elas reverteram a emigração numa saída de condicionamentos.

Hoje, as mulheres portuguesas deixaram, em absoluto, de corresponder ao modelo da dedicação exclusiva ao casamento, à maternidade, ao serviço e ordenamento da casa. Quando emigram, libertam-se dos parentescos e vizinhanças que tantas vezes ainda nas suas terras de origem as condicionam. Nos países de destino, as menos qualificadas valorizam-se e ganham conhecimentos para melhorar a sua condição no trabalho. Aprendendo auto-estima e concorrência, lutam por funções de chefia, querem alcançar lideranças, anular as desigualdades.

Crescendo na sociedade, descobrem-se a conviver com o diferente, tomam consciência de justos direitos adquiridos, experimentam a partilha de tarefas domésticas. Elas tomam cuidados de saúde, seguem métodos de planeamento familiar, acompanham a adaptação dos filhos aos códigos da sociedade onde passaram a viver (XAVIER, 2011XAVIER, Leonor. Novos domínios de afirmação da mulher na diáspora. Mulher migrante em congresso. Espinho, 2011. Disponível em Disponível em http://mulhermigranteemcongresso.blogspot.com/2011/11/leonor-xavier-painel-cidadania-e.html . Acesso em 13/09/2021.
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).

Leonor tinha visto mudanças na sua autoimagem de mulher já dois anos após imigrar: em cartas a amigas referidas em Casas contadas, ela não mais conjugava na primeira pessoa do plural os verbos para decisões familiares. “Passei já a escrever sobre estes temas na primeira pessoa do singular, mostrando que a minha vontade de mulher teria também importância, na organização da família” (XAVIER, 2018XAVIER, Leonor. Casas contadas. 2 ed. Alfragide: Bis, 2018., p. 187). Como profissional das letras e, a rigor, como intelectual, realçava como mudanças na sua linguagem relacionavam-se a suas próprias mudanças.

Os primeiros livros de não ficção de Leonor ignoravam temas femininos; e mulheres são a minoria dos entrevistados (cinco dos 51 nomes de Entrevistas [1982] e dez entre os 50 de Falar de viver [1986]), ao contrário de Portugal Tempo de Paixão (XAVIER, 2000XAVIER, Leonor. Portugal tempo de paixão. Lisboa: Editorial Notícias, 2000.), no qual elas deram a metade dos 100 depoimentos sobre como 1975 foi vivido nesse país europeu. No livro de entrevistas de 1982, a autora ressalvou não ser feminista como Teresa Costa Macedo, entrevistada como secretária de estado da Família e que teve destacada uma fala sobre a condição feminina: “Não defendo igualdade para as mulheres, mas paridade e complementaridade em relação aos homens” (Tereza MACEDO apud XAVIER, 1982, p. 75). Leonor disse ter registrado e adotado essa frase.

Em outra entrevista, ouviu da escritora Lygia Fagundes Telles que ela via enganos e muitas frustrações entre as mulheres. “As feministas atrapalham a cabeça daquelas mulheres que não têm vocação intelectual. A insistência com que as feministas dizem que as mulheres têm de sair de casa é reacionária e radical” (Lygia F. TELLES apudXAVIER, 1982XAVIER, Leonor. Entrevistas. Rio de Janeiro: Reta Alfa Centauro, 1982., p. 109). Sem fazer juízo de valor, Leonor transcreveria a ideia da escritora de que as feministas teriam a mesma vontade dos machistas de pisar, dominar e tornar-se arrogantes.

Mais do que divulgar pontos de vista de entrevistados sobre temas os mais sortidos a brasileiros e portugueses, a entrevistadora deu exemplo de mudança de papel social da mulher ao retornar para seu país, em 1987. Segundo o diplomata e escritor Marcello Duarte Mathias (2015MATHIAS, Marcello Duarte. Diário da Abuxarda: 2007-2014. Lisboa: D. Quixote, 2015.), a mulher de histórico burguês, crescida na Lisboa tradicional, mergulhou no universo sem fronteiras da vida brasileira, voltando ao país natal uma mulher distinta da que emigrara.

A burguesinha crescida dentro dos parâmetros de uma Lisboa tradicional, tão burguesmente educada e casada, mergulhada de súbito no universo sem fronteiras da vida brasileira! Vai-se menineira para o Brasil, de lá se vem mulher. É o lado tocante deste livro: a dívida de gratidão ainda emocionada de quem não se esquece das seduções em tempos vividas. Todo o livro de memórias é uma ponta lançada entre várias margens (MATHIAS, 2015MATHIAS, Marcello Duarte. Diário da Abuxarda: 2007-2014. Lisboa: D. Quixote, 2015.).

Ruth Escobar e Leonor Xavier testemunharam, por meio de narrativas autobiográficas e manifestações na imprensa e debates, a emancipação da mulher como uma construção, e não condição dada. Tomando-se emprestada a expressão dedicada por Marcello Duarte Mathias à autobiografia de Leonor, pode-se ler essa obra e a de Ruth como “ponta lançada entre várias margens”. Como notou Mathias, há vários entrelaces nas memórias lidas - ilustremos citando margens de Portugal e Brasil, da infância e vida madura, da meninice e feminice, entre outros. Com esses entrelaçamentos, as memorialistas registraram suas práticas culturais de mediação.

Considerações finais

A história de intelectuais é um campo de estudos fértil e, na contramão da maioria do campo, este artigo focalizou a vida e a obra de intelectuais mulheres, atestando, inclusive, que a categoria “intelectual mediador” está longe de ser aplicável apenas a homens. Aliás, as figuras híbridas de escritores-jornalistas e jornalistas-intelectuais foram objeto de bons estudos entre autores brasileiros (ex.: Cristiane COSTA, 2005COSTA, Cristiane. Pena de aluguel: escritores-jornalistas no Brasil: 1904-2004. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.; Fábio PEREIRA, 2011PEREIRA, Fábio. Jornalistas-intelectuais no Brasil. São Paulo: Summus Editorial, 2011.), mas o potencial de estudos sobre os trajetos de mulheres intelectuais (jornalistas ou não) persiste subexplorado. Ao mesmo tempo que se reconstituiu como duas mulheres que exerceram papéis de mediação cultural, na qual são minoria, discutiu-se como a atriz e produtora teatral Ruth Escobar e a jornalista e escritora Leonor Xavier difundiram, em suas autobiografias, percepções de papéis sociais de mulheres: filha, esposa, mãe, profissional, imigrante, empreendedora, ativista cultural, militante política, intelectual etc. Tal seleção de corpus atestou, de modo categórico, como autobiografias podem ser fontes relevantes para captar percepções sobre um tema como este em dado tempo e lugar.

A análise de conteúdo das obras de Ruth e de Leonor permitiu contrastar mulheres de origens sociais e trajetos singulares e com certos traços comuns, como a imigração no Brasil do século XX - mesmo quando não definitiva. Além disso, acentuou a emergência de novos papéis sociais de mulheres vividos por elas após a imigração (uma imigrou em 1951 e a outra, em 1975). Nos relatos de Ruth e Leonor, documenta-se como a apreensão do feminino variou com o passar das gerações: um indicador é a crítica feita a uma visão mais tradicional sobre o casamento como aspiração feminina - visão que a mãe de Ruth buscou transmitir à filha e que se naturalizara entre as tias-avós de Leonor e, mesmo, na primeira fase do casamento da autora.

É singelo como mudanças em sua linguagem acompanharam mudanças atitudinais: a primeira pessoa do plural dá vez ao singular à medida que a esposa se vê mais como indivíduo do que como parte de um casal. Leonor e outras migrantes tiveram a saída da terra natal como divisor de águas na construção de identidades autônomas como mulheres. Ruth, filha de mãe solteira que emigrou com ela antes da maioridade, escreveu sobre seus olhares à condição feminina a partir de seu exemplo de vida e de amigas como Norma Bengell e Clarice Herzog.

As duas autobiografias apresentam testemunhos de que a independência de mulheres pode representar uma conquista a depender de antecedentes de cada história de vida. Mais do que o dualismo dependente-independente, a prosa das duas escritoras dá concretude a papéis seus e de tantas mulheres no teatro, imprensa, literatura, política, enfim, na mediação de temas como o feminismo. Essa questão foi central para Ruth a partir dos anos 1970 e, para Leonor, que mostrou admiração por essa atriz e outras portuguesas imigrantes no Brasil, a tônica da luta feminista deveria ser a paridade e complementaridade, e não a igualdade entre mulheres e homens. Seja qual for a perspectiva à causa feminista, ambas trataram dos papéis sociais das mulheres com originalidade e argúcia que provam a importância das duas também à literatura.

Na cena intelectual de um país ao fim do regime ditatorial e retomada da democracia, as presenças de Ruth Escobar e Leonor Xavier marcaram pelo modo como, no teatro, política, textos ou falas, buscaram se comunicar com públicos não especializados, fosse no feminismo, ação política ou temas luso-brasileiros, por exemplo. Dirigindo-se ora para públicos amplos, ora segmentados - como as mulheres ou comunidade imigrante - elas demonstraram ter captado mudanças em curso na vida das mulheres. E, ao se inteirarem das mudanças, não guardaram para si aqueles fatos e significações, preferindo vivê-los e divulgá-los para leitores e ouvintes.

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  • XAVIER, Leonor. Falar de viver São Paulo: Difel, 1986.
  • XAVIER, Leonor. Novos domínios de afirmação da mulher na diáspora. Mulher migrante em congresso Espinho, 2011. Disponível em Disponível em http://mulhermigranteemcongresso.blogspot.com/2011/11/leonor-xavier-painel-cidadania-e.html Acesso em 13/09/2021.
    » http://mulhermigranteemcongresso.blogspot.com/2011/11/leonor-xavier-painel-cidadania-e.html
  • XAVIER, Leonor. Passageiro clandestino: diário de vida Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
  • XAVIER, Leonor. Ponte aérea Rio de Janeiro: Nórdica, 1983.
  • XAVIER, Leonor. Portugal tempo de paixão Lisboa: Editorial Notícias, 2000.
  • XAVIER, Leonor. Portugueses do Brasil e brasileiros de Portugal Alfragide: Oficina do Livro, 2016.
  • 1
    Agradeço pela leitura e comentários das pareceristas da Revista Estudos Feministas sobre este artigo e de Lis Vilaça e Daniel Moutinho sobre uma versão preliminar.
  • 2
    Essa versão, lançada em outubro de 1989 e de título vinculado à figura da medusa, é citada por Machado (2020).
  • 3
    Todas as citações da autora, salvo quando explicitado, são de Maria Ruth (ESCOBAR, 1987).
  • 4
    Escrito por Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta (“as três Marias”), Novas Cartas Portuguesas foi um marco do pensamento feminista na literatura de Portugal, país que não reconhecia a emancipação feminina e estava vivendo os anos finais do regime ditatorial (1933-1974).
  • 5
    Texto de Fernando Arrabal, dirigido por Victor Garcia, com encenação autorizada apenas na cidade de Cascais.
  • 6
    Em 1975, o diretor de Jornalismo da TV Cultura foi depor sobre suas ligações com o Partido Comunista Brasileiro no DOI-Codi/SP, onde seria preso, torturado e assassinado. A versão oficial inicial foi de suicídio usando seu cinto.
  • 7
    No ataque mais violento, em 18 de julho de 1968, Marília Pera, outros atores do elenco de Roda viva (peça de Chico Buarque) e parte do público foram espancados e o teatro depredado pelo grupo paramilitar de extrema direita Comando de Caça aos Comunistas (CCC).
  • 8
    Todas as citações da autora, salvo quando explicitado, são de Casas contadas (XAVIER, 2018).
  • Como citar esse artigo de acordo com as normas da revista:

    GRANGEIA, Mario Luis. “Papéis sociais das mulheres em memórias de Ruth Escobar e Leonor Xavier”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 31, n. 2, e83894, 2023
  • Contribuição de autoria:

    A versão original deste artigo foi traduzida para o inglês por Tony O’Sullivan (osullivan.tony@gmail.com
  • Financiamento:

    Não se aplica
  • Consentimento de uso de imagem:

    Não se aplica
  • Aprovação de comitê de ética em pesquisa:

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Set 2021
  • Revisado
    24 Ago 2022
  • Aceito
    14 Mar 2023
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