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Memória e feminino em Simone de Beauvoir: o problema da recepção

Memory and the feminine in Simone de Beauvoir: the reception problem

Resumos

A revisão do pensamento de Simone de Beauvoir nas últimas décadas ressoa em abordagens variadas, exigindo, em sua análise, o uso de uma metodologia que realce a sutileza de sua escrita. Este texto se assenta numa concepção triádica de suas obras de memória e nos efeitos que seus escritos causam à interpelação da cultura. Bastante crítica dos parâmetros discursivos da tradição, que se consagram em princípios lógicos e ontológicos, Beauvoir propõe novas vias de reflexão. De uma perspectiva metodológica, este artigo aborda questões temáticas em níveis de leitura, a saber: o conceitual, o histórico e o hermenêutico. Toma-se o feminino como a personagem principal de seus textos filosófico-literários, em sua dimensão de subjetividade e alteridade, enquanto um dado provocativo em busca da redefinição do sentido de simetria estética.

alteridade e identidade; memória e estética da recepção


The review of the legacy of Simone de Beauvoir in recent decades has centered in various approaches, with its analysis requiring the use of a methodology that highlights the subtleties of her writings. This article will focus on a triadic concept in her autobiographical oeuvre and on the effects her texts have on cultural interpolation. Deeply critical of the discursive parameters of tradition, which are devoted to logical and ontological principles, Beauvoir proposes new ways of thinking. From a methodological perspective, this article will address this theme in various levels of reading, namely: the conceptual, historical and hermeneutical. It will focus on the feminine as the principal character in its philosophical-literary texts, in terms of its subjectivity and alterity, while being a provocative fact in the search of a redefinition for the meaning of aesthetic symmetry.

Alterity and Identity; Memory and Aesthetics of Reception


ARTIGOS TEMÁTICOS

Memória e feminino em Simone de Beauvoir: o problema da recepção

Memory and the feminine in Simone de Beauvoir: the reception problem

Magda Guadalupe dos Santos

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

RESUMO

A revisão do pensamento de Simone de Beauvoir nas últimas décadas ressoa em abordagens variadas, exigindo, em sua análise, o uso de uma metodologia que realce a sutileza de sua escrita. Este texto se assenta numa concepção triádica de suas obras de memória e nos efeitos que seus escritos causam à interpelação da cultura. Bastante crítica dos parâmetros discursivos da tradição, que se consagram em princípios lógicos e ontológicos, Beauvoir propõe novas vias de reflexão. De uma perspectiva metodológica, este artigo aborda questões temáticas em níveis de leitura, a saber: o conceitual, o histórico e o hermenêutico. Toma-se o feminino como a personagem principal de seus textos filosófico-literários, em sua dimensão de subjetividade e alteridade, enquanto um dado provocativo em busca da redefinição do sentido de simetria estética.

Palavras-chave: alteridade e identidade; memória e estética da recepção.

ABSTRACT

The review of the legacy of Simone de Beauvoir in recent decades has centered in various approaches, with its analysis requiring the use of a methodology that highlights the subtleties of her writings. This article will focus on a triadic concept in her autobiographical oeuvre and on the effects her texts have on cultural interpolation. Deeply critical of the discursive parameters of tradition, which are devoted to logical and ontological principles, Beauvoir proposes new ways of thinking. From a methodological perspective, this article will address this theme in various levels of reading, namely: the conceptual, historical and hermeneutical. It will focus on the feminine as the principal character in its philosophical-literary texts, in terms of its subjectivity and alterity, while being a provocative fact in the search of a redefinition for the meaning of aesthetic symmetry.

Key Words: Alterity and Identity; Memory and Aesthetics of Reception.

Introdução

A revisão, nas últimas décadas, do legado filosófico-literário de Simone de Beauvoir tem gerado abordagens variadas, novas incursões exigindo uma adoção de alternativas metodológicas capazes de realçar a sutileza de sua escrita e de suas interpelações à história da cultura.

Em texto publicado em 1947, Pour une morale de l'ambiguïté, ela aborda a complexa e ambígua relação entre "a necessária afirmação da finitude humana" ("l'affirmation de notre finitude") e as consoladoras "abstrações teóricas do infinito" ("de l'infini"),1 1 Simone de BEAUVOIR, 1983, p. 228. realçando sua descrença na leitura de apaziguamento exibida nos sistemas de estilo hegeliano, por entender que a existência humana deve-se voltar para a "verdade da vida" ("la verité de la vie").2 2 BEAUVOIR, 1983, p. 229. Essa verdade se sustenta sem a necessidade de garantias alheias para assegurar suas metas, sendo, pois, no encontro do indivíduo consigo mesmo, no confronto com sua identidade, que tal facticidade se demonstra. Em suas obras autobiográficas, o desafio de pôr em prática tais princípios, atrelando a sua vida ao seu tempo, apresenta-se como façanha sui generis e de grande exponencial reflexivo.

Meu objetivo é ler esse pensamento tão rico e complexo, que se molda, nos dizeres de Isabel Capeloa Gil,3 3 Isabel Capeloa GIL, 2010. como uma "escrita duplamente performativa" e uma abertura de novos caminhos para se chegar à realidade histórica, fazendo-o por meio justamente de "um pensamento outro sobre o feminino",4 4 GIL, 2010, p. 16. pelo viés do sentido dialético de se estar em situação num mundo regido por normas morais e sociais de difícil modificação. Não apenas nos ensaios filosóficos, mas especificamente em seus textos de memória, encontram-se variadas possibilidades hermenêuticas de compreensão da existência humana que impõem a necessidade de descrevê-la e de construí-la por escrito.

Este texto se assenta em dois pressupostos de ordem teórica e metodológica que cumpre desde logo explicitar. Por um lado, adoto uma abordagem triádica das obras de memória de Simone de Beauvoir e dos efeitos que seus escritos causam no tradicional sistema de reflexão filosófica, submetendo-as a três níveis de leitura, a saber: a) o das bases conceituais; b) o histórico; e c) o hermenêutico. Por outro lado, tenho a intenção de considerar, de certa perspectiva estética, a questão de sua longevidade, investigando-a por meio de diversos níveis de abordagem, para o que tomo, como ferramenta metodológica capaz de realçar os três níveis de leitura que me parecem importantes, a "estética da recepção", sobretudo na vertente desenvolvida pelos estudiosos da Escola de Constanza.

O primeiro nível de leitura pretende abordar tanto o sentido do texto de memória e de sua recepção no século XX quanto problematizar o lugar dos textos autobiográficos de Beauvoir no âmago da relação entre memória e recepção. O segundo toma como pressuposto a relação dos textos de memória com as experiências de vida da filósofa e de seu próprio tempo, enquanto o registro da cultura de uma era. Finalmente, o último se apresenta como um modo dialético-interpretativo e de sustentação dos dois primeiros, defendendo-se a ideia de que a construção textual do feminino – a grande personagem vivida pela própria Beauvoir – propiciará a ligação necessária entre o texto e seus leitores. Tal ligação se faz também entre Beauvoir e o texto autobiográfico, permitindo-lhe criar uma identidade própria, a de uma filósofa do século XX capaz de ler e de escrever, em linguagem própria, o seu próprio tempo.

As bases conceituais de leitura

A fim de obter uma compreensão mais refinada dos textos de memória de Simone de Beauvoir, considerando-se dois eixos que interagem entre si – ou seja, o sentido e a recepção do texto de memória no século XX e o lugar de seus textos autobiográficos na relação entre memória e recepção –, busco amparo teórico em alguns estudiosos da escrita autobiográfica. Segundo Georges Gusdorf,5 5 Georges GUSDORF, 1991. a escritura do eu tem diferentes dimensões, a saber: "auto", a identidade do eu consciente de si mesmo; e "bio", a trajetória vital, como a continuidade e a variação existencial em torno do tema fundamental que é esse mesmo eu. Surge, entre auto e bio, uma difícil relação do que é essencial com o que aparece na dimensão da escrita como tal, na verdade uma relação que supõe dois níveis epistemológicos distintos, a ontologia e a fenomenologia. A escrita deverá fazer essa difícil interlocução entre o que é essencial à vida e a forma como o eu aparece na composição textual.6 6 GUSDORF, 1991, p. 70.

Contudo, essa relação não é algo simples de ser apreendido pelo sujeito da escrita. Conforme análise de Miraux,7 7 Jean-Philippe MIRAUX, 2005. se o eu é um indivíduo inacabado, sua autobiografia será o complexo lugar de uma "relação de juízo", de valoração do que se foi pelo ponto de vista do que se é. A decisão de escrever corresponde à decisão de buscar essa identidade, como uma reconquista de si; mas é também a constituição de uma distância entre o eu que descreve e o eu vivido, entre a vida e a representação. Representar-se a si mesmo pelo gesto escritural corresponde ao que Gusdorf entende como um risco duplo: o risco da incompletude e o risco da coagulação.8 8 GUSDORF, 1991, p. 73. Por um lado, o projeto de dizer-se não coincide com o intento de dizer-se de modo total ou integralmente, já que sempre restariam alguns resíduos a serem descritos. A vida estará sempre diante do eu que a descreve, não podendo esse jamais encerrar, com um ponto final e terminativo, o seu projeto autobiográfico. Além disso, o risco também se torna duplo quando se percebe que o eu que se descreve e o eu que é descrito jamais se juntam no espaço da escritura.9 9 MIRAUX, 2005, p. 15. Isso se deve ao fato de que o encerramento do sujeito no corpo textual não encontra equivalência no processo contínuo de sujeito da escrita. Esse se projeta na vida em busca de novas experiências e a descreve para dar sentido a essa mesma vida.

Esse lugar textual é, na verdade, o lugar da incompletude e deverá ser preenchido pelas experiências de leitura. Se há ali possibilidades de conclusões gerais, essas ficam a cargo do leitor.10 10 MIRAUX , 2005, p. 17. É, pois, devido a tal complexidade que Philippe Lejeune11 11 Philippe LEJEUNE, 2008. entende haver no texto autobiográfico um pacto entre autor e leitor, em que se discutem os termos do nome e da identidade do autor. Numa variação de pactos dispostos em sua obra, o que aqui nos interessa é o que se denomina por pacto ou contrato de leitura12 12 LEJEUNE , 2008, p. 44. e equivale ao problema da recepção tão bem trabalhado por Hans Robert Jauss13 13 Hans Robert JAUSS, 1979. e por Wolfgang Iser.14 14 Wolfgang ISER, 1984.

Pactos de leitura e a dimensão histórica

Em vista de um necessário afunilamento que nos levará aos textos autobiográficos de Simone de Beauvoir, vale reiterar a complexidade conceitual da autobiografia por meio dos modos de leitura dos textos e dos efeitos que esses produzem no leitor. Dessa perspectiva, é preciso levar em conta a dimensão histórica que envolve tais pactos de leitura, realçando o lugar do indivíduo-leitor no contexto temporalizado em que as possibilidades de recepção ocorrem. O que se constata é que os textos de Beauvoir primam pela pontuação temporalizada e despertam o leitor tanto para a situação histórica por ela descrita quanto para a reflexão acerca do valor da historicidade textual.

Vale lembrar, com Jauss, que a tarefa hermenêutica da literatura equivale "a diferenciar metodicamente dois modos de recepção",15 15 JAUSS, 1979, p. 46. aclarando o processo atual em que se concretizam o efeito e o significado do texto para o leitor, se esse já está, inclusive, em época diversa daquela do autor do texto. Desta feita, está-se diante do desafio contínuo de saber reconstruir o processo histórico pelo qual o texto é sempre recebido e interpretado de forma variada por leitores de tempos diversos. O que se cria no processo de leitura são os juízos estéticos que surgem quando se relaciona, de alguma forma, o efeito atual de uma obra de arte – e, em especial, um texto literário autobiográfico – com o desenvolvimento histórico de sua experiência. Essa relação é indispensável para que se possa "discernir como a expectativa e a experiência se encadeiam" e para que se tente compreender se há ali produção de "um momento de nova significação".16 16 JAUSS, 1979, p. 50.

Há de se asseverar ainda que o lugar dos textos autobiográficos é o da revisão – e, no caso dos de Beauvoir, constituem eles um tópos de revisão da identidade feminina e também da própria identidade humana –, o que se esboça a partir da comunicação entre o texto e o leitor. Amplamente tomada, tal comunicação pode revelar-se por enunciados que demonstrem, nos termos de Iser,17 17 ISER, 1984, p. 283. aberturas ou vazios a serem preenchidos, os quais, ao mesmo tempo, contêm exigências de mudanças de representações projetivas habituais a serem propostas com certas variáveis da recepção.18 18 Acerca das diversas e relevantes perspectivas dessa corrente de leitura, veja-se, em especial, Rainer WARNING, 1979. É curioso notar as diferentes nuanças, em especial entre Jauss e Gadamer, no que tange ao problema da literatura enquanto provocação.

Dessa perspectiva, retomar o pensamento e os textos autobiográficos de Simone de Beauvoir equivale a verificar em seu discurso a capacidade de nos propor "a reação e não a indiferença", assim como "o incômodo e não o sossego".19 19 Manuel Cândido PIMENTEL, 2010, p. 11. Deve-se, principalmente, acreditar na atualidade de sua proposta sempre viva de "reinscrição contínua do feminino com algo que vale a pena ser pensado"20 20 PIMENTEL, 2010, p. 12. numa nova era de cultura. Com Beauvoir, abre-se a possibilidade de que, sobretudo na dimensão corpórea vivida culturalmente pelo feminino, possam se expressar alguns direitos reclamados e, entre eles, o "direito a se pensar a identidade no feminino",21 21 GIL, 2010, p. 16. até mesmo em moldes diferenciados, com novas possibilidades interpretativas distintas daquelas propostas pela filósofa.

Inconclusão e revisão da existência

Os escritos autobiográficos de Beauvoir permitem variadas correlações conceituais. A questão de estarem exatamente no registro autobiográfico ou no registro de memórias não é de abordagem simples. Ademais, como menciona Huamán Andía,22 22 Bethsabé Huamán ANDÍA, 2008. enquanto discursos que rompem as fronteiras dos gêneros literários tradicionais, as memórias e a autobiografia em muito se confundem. Trata-se, nos dois casos, de uma "escritura autorrepresentativa", sem diferenças fixas. Convenciona-se que a autobiografia possa equivaler à "vida de uma pessoa escrita por ela mesma", enquanto as memórias têm como cerne a "narração que privilegia o contexto histórico vivido pelo autor".23 23 ANDÍA, 2008, p. 19.

Nos textos de Beauvoir ambos os pressupostos se encontram e dão a tônica ambígua e incitante de suas obras. Evidenciam tanto um falar de si que fala principalmente do outro como são a descrição da história de que ela faz parte e que ela ressignifica no processo de elaboração da escrita. Seus escritos realçam, com singularidade, o lugar da comunicação como o projeto de dizer algo de si, sem que isso, contudo, coincida com a necessidade de dizer-se toda. Esse é também o lugar de realce do feminino na cultura, do feminino em situação contingencial e diante da possibilidade de questionar a história pelo viés da ética da ambiguidade.

Verifica-se surgir em seus textos, como ponto de partida, a questão da inconclusão da existência e uma relação de juízos morais pelos quais se registra o que teria sido e vivido pelo viés daquilo que ela é, exatamente, no ato da escrita. O valor de se retomarem seus textos e seu pensamento se assenta também, nesse caso, na compreensão do estatuto de identidade que os textos autobiográficos constroem.

Beauvoir demonstra saber se locomover com maestria e naturalidade nessa complexidade textual, realçando os acontecimentos de uma era, instigando os deslocamentos de compreensão da existência. Como afirma Julia Kristeva,24 24 Julia KRISTEVA, 2008. é no "fluxo gráfico que capta e secciona" o espaço em suas variações peculiares que os textos da filósofa francesa reconstroem algo de si em um processo de "autoanálise e mensagem social".25 25 KRISTEVA, 2008, p. 13. Beauvoir trafega com naturalidade e "generosa vitalidade" em sua "capacidade de encarnar uma filosofia política da liberdade no microcosmo do íntimo".26 26 KRISTEVA, 2008, p. 13.

É na revisão axiológica e hermenêutica da existência que ela traz novos referenciais ao corpo textual da autobiografia. Em livro publicado em 1960, La force de l'âge, ela afirma lhe parecer importante rever suas conversas, especialmente aquelas com Sartre, no propósito de examinar seus equívocos, lembrando que "esses exprimiam uma realidade: a de nossa situação" ("car elles exprimaient une réalité: celle de notre situation").27 27 BEAUVOIR, 1984, p. 19. E tal ideia de situação propicia ao campo dos textos de memória um aspecto normativo de valor. Se não é possível traduzir a humanidade pelo impossível viés da totalidade ou da universalidade, pensar a situação equivale, contudo, a não se travar nos limites impostos pela cultura. Equivale a pensar a diferença para além dos crivos da mesmidade histórica.

Mas é preciso ler sua vida e seu pensamento. Seus textos autobiográficos mostram-se sustentados por questões de relevo que nos ajudam a entender tanto a recepção e o sentido do texto de memória no século XX quanto o lugar que ela passa a ocupar, enquanto filósofa e feminista, no cerne da relação entre memória e recepção estética. Beauvoir evidencia a complexidade da relação entre a nomeação daquilo que se foi e do que se viveu, com a valoração desse eu vivido por parte de um eu narrador. Ainda em La force d l'âge ela escreve que, na ousadia e no risco da escrita, audácia e circunstância se sustentavam. Viver para escrever não lhe parece façanha simples, pois a vida é dotada de um "múltiplo esplendor" ("la multiple splendeur de la vie").28 28 BEAUVOIR, 1984, p. 19.

Diante da profundidade da vida vivida e das possibilidades de descrevê-la, o horizonte de situação é por ela trazido à pauta das análises como meio de refletir a confluência axiológica entre os vários tempos manifestos no texto, o passado narrado e o presente que o valora.

Relações paradoxais

As comentadoras de Beauvoir se debruçam sobre o valor de seus textos e sobre a vivacidade de seu pensamento. Susan Bainbrigge29 29 Susan BAINBRIGGE, 2005. admite que ela antecipa diversas dúvidas expressas na última metade do século XX no que diz respeito à relação entre a experiência e sua representação autobiográfica, assim como entre identidade e sua configuração na autobiografia.30 30 BAINBRIGGE, 2005, p. 12. Para a comentadora, apesar das controvérsias aparecidas nos anos 1980 acerca da posição que ela assume com relação à valoração existencialista – se seria ela de dicção masculina ou realmente feminista –, hoje não há mais lugar para se problematizarem tais questões, levando-se em consideração os vários estudos feitos nas últimas décadas sobre o lugar que Beauvoir ocupa no campo literário e filosófico.

Nesse sentido, as sutilezas interpretativas que envolvem vida, escrita e pensamento de Beauvoir em muito aguçam a complexidade de seus textos. Eleanore Holveck31 31 Eleanore HOLVECK, 1995. interpreta a recusa de Beauvoir em se considerar uma filósofa justamente porque, até aquele momento, "a filosofia que ela estudava e ensinava gastou muito tempo com nada".32 32 HOLVECK, 1995, p. 69. Ursula Tidd33 33 Ursula TIDD, 2008. entende que, até meados dos anos 1990, a reação à obra de Beauvoir era um tanto ambivalente. E isso porque a recepção de suas obras foi relacionada à natureza de sua "colaboração filosófica" com o pensamento de Sartre, assim como ao papel da mulher na filosofia e na história intelectual e, sobretudo, ao "status de Le deuxième sexe".34 34 TIDD, 2008, p. 200.

Entretanto, para Bainbrigge, sua obra autobiográfica se vincula a uma singular relação com a questão da morte e seus textos autobiográficos se expressam como uma "autothanatographia".35 35 BAINBRIGGE, 2005, p. 10. Daqui se extrai que a dimensão de thánatos se sobrepõe à dimensão do bíos, o que, numa aparentemente paradoxal relação, expressa justamente a vitalidade de sua obra. Tanto Beauvoir parece fascinada pelo tema da representação da morte em seus vários textos de memória e de ficção quanto o próprio gênero ou estilo autobiográfico ressoa, segundo a comentadora, em sua impossibilidade de completude e na sua estrutura enquanto um "projeto em sua fragmentada totalidade".36 36 BAINBRIGGE, 2005, p. 20. Na vinculação do projeto autobiográfico com o tema da morte, há de se mencionar a relevância das personagens dominantes, envolvidas nessa complexidade relacional, lidas sob certa ótica e em momentos específicos, tais como sua amiga Zaza, sua Mãe e o próprio Sartre. Não se podem também desconsiderar, correlativamente a essa perspectiva de autotanatografia, dois temas específicos: o da velhice, capaz de simbolizar a ótica social de uma era, bastante desapontada consigo mesma, pelo viés do indivíduo "situado corporalmente em seu eu";37 37 BAINBRIGGE, 2005, p. 27. e o do feminino, sobre o qual discorrerei.

Ora, dessa perspectiva, a composição tripartida descrita por Gusdorf acabaria por perder uma de suas peculiaridades, havendo, assim, substituição de bíos por thánatos. Se bíos corresponde, para Gusdorf, à "trajetória vital",38 38 GUSDORF, 1991, p. 10. à continuidade, ao ímpeto de remodelar a figura do eu em cada frase, em cada expressão metafórica, em Bainbrigge a relação apresenta outro teor de complexidade e mesmo de ambiguidade. Evidencia os contornos narrativos da mortalidade enquanto tópico de reavaliação de relacionamentos intersubjetivos e possui certa "função reparativa".39 39 BAINBRIGGE, 2005, p. 27. Tais temas se encontram bem explicitados, entre outros e de forma exemplar, em texto publicado em 1964, Une mort très douce, dando aos contornos da vida uma coloração de necessária realidade. Acrescente-se ainda que, para Bainbrigge, nos textos autobiográficos de Simone de Beauvoir depara-se também com a relação entre "a morte e o feminino", ambos enquanto aquilo que "não pode ser representado",40 40 BAINBRIGGE, 2005, p. 21. a não ser pela figura da alteridade.

O nível de leitura histórica

O segundo nível de leitura que proponho é de base histórica. Tomo como pressuposto a relação dos textos de memória com a descrição das experiências de vida da filósofa e de seu próprio tempo. É justamente para isso que Beauvoir chama a atenção de seu leitor, enfatizando como as situações individuais e políticas dão o registro da cultura de uma era. Sua autobiografia traduz, de certa forma, as questões vividas no século XX e as propostas deixadas para os séculos posteriores. Conforme mencionam Claude Francis e Fernande Gontier,41 41 Claude FRANCIS e Fernande GONTIER, 1979. Beauvoir é uma "testemunha atenta e apaixonada de uma época em fusão", cuja mobilidade social e política "encontram eco na complexidade de sua obra".42 42 FRANCIS e GONTIER, 1979, p. 11.

Sua autobiografia versa, principalmente, sobre certa personagem que se realça na dificultosa trajetória histórico-cultural daquele século e que ganha destaque, pois é vista a partir de várias angulações no corpo da escrita. Tal personagem é bem a que denomino de feminino em sua dimensão de subjetividade e alteridade. Não penso ser possível denominá-la apenas como a mulher do século XX. O vocábulo feminino traz o registro dos dilemas, dos paradoxos e das sutilezas enfrentadas pelas personagens que ganham corpo em seus textos autobiográficos e que, dialeticamente, vão moldando o semblante de questionamentos e provocações de uma era, remodelando valores e condutas. A mulher sobre quem ela escreve nos textos autobiográficos é a própria Beauvoir, mas sempre em situações específicas, no processo dialógico com os outros e com a realidade, no enfrentamento de só saber falar de si à medida que fala de uma imagem criada de si no confronto com o mundo. Mas essa dimensão situacional não implica uma restrição de perspectivas, mas sim uma tomada de posição crítica diante das posições de abstrata universalidade.

O feminino enquanto lugar da alteridade

Enquanto um dado provocativo em busca da redefinição de simetria e de igualdade, tal personagem, em suas variações, constrói-se em moldes estéticos de enfrentamento da condição humana. Vale aqui, desde já, reiterar que, ao usar o termo "feminino", o estamos considerando como um vocábulo nada simples. Beauvoir, principalmente na introdução de Le deuxième sexe, usa os termos féminité, féminin, femelle, femme.43 43 BEAUVOIR, 1986b, p. 12-13. A opção que faço por "feminino" pretende sublinhar a provocação instaurada no próprio termo, em sua ambiguidade conceitual. Tal veio provocativo está também no cerne de Le deuxième sexe, o qual, apesar das discrepâncias temporais, nos termos de Dorothy Kaufman,44 44 Dorothy KAUFMAN, 1986. é bem "o lugar de nascimento do feminismo contemporâneo".45 45 KAUFMAN, 1986, p. 128. Também Jo-Ann Pilardi46 46 Jo-Ann PILARDI, 1993. ressalta a relevância da obra para a história dos movimentos feministas contemporâneos e "para o diálogo entre o feminismo francês e o americano".47 47 PILARDI, 1993, p. 54 . Será, pois, no âmago do feminismo que a figura do feminino enquanto provocação cultural ganhará relevo – e, tanto no ensaio de 1949 quanto nos textos autobiográficos de Beauvoir, essa personagem torna-se a grande interlocutora da história.

Dá-se, pois, plena razão a Fátima Silva,48 48 Maria de Fátima SILVA, 2010. ao considerar que Le deuxième sexe aponta as dificuldades da condição feminina no processo de conformação da humanidade, sem, contudo, negar "a importância que a história teve na construção da situação contemporânea" de Simone de Beauvoir.49 49 SILVA, 2010, p. 85. Por meio, principalmente, da "sobrevivência teimosa das tradições mais antigas", segundo os termos da própria Beauvoir,50 50 BEAUVOIR, 1986a citada por SILVA, 2010, p. 85. é no diálogo com o tempo que as demarcações culturais se sobressaem e se impõem, no árduo processo de integração do feminino nas veredas do patriarcado.

Deve-se, contudo, reconhecer, com Suely Kofes,51 51 Suely KOFES, 2008. a importância não apenas tópica de seus escritos, mas do conjunto da obra da filósofa, dotada de uma "teoria própria".52 52 KOFES, 2008, p. 2. Já em 1975, Jean Leighton53 53 Jean LEIGHTON, 1975. asseverava ser "a mulher o tema por excelência" de sua produção, um tema "capaz de unificar todos os demais" de que ela trata.54 54 LEIGHTON, 1975, p. 18. Nos textos de memória, tal personagem ganha relevo e ambígua significação, pois se mostra como o eu e o outro que descreve a imagem das controvérsias humanas e se distingue pela interlocução da autora consigo mesma e com o mundo que a cerca. O feminino ganha, então, uma amplitude maior em sua conotação provocativa, inclusive da perspectiva das várias interpretações feministas ao longo das últimas décadas.

Simone de Beauvoir aponta, por meio dos textos de memória, uma concepção de sujeito que emerge da ausência conceitual estipulada pela cultura, pelo menos de uma ausência valorativa de reconhecimento. Ergue-se tal sujeito – o feminino – de um lugar que deve conquistar um traçado autêntico, pois ainda não é reconhecido como sujeito genuíno, mas, ao mesmo tempo, não se deixa abater pelos estigmas da inferioridade. Nesse entrelugar, pleno de indefinições mas também de projetos, ela recusa para si valores estigmatizados e eleva outros tantos a um sentido maior. Também em La force de l'âge Beauvoir descreve sua relação com a filosofia. Pergunta como alguns escritores se deixam levar pelo "delírio que é um sistema" ("ce delire concerte qu'est un système"), entendendo como verdadeira obstinação o valor das chaves de respostas universais, afirmando que "a condição feminina não se predispõe a esse gênero de obstinação" ("la condition féminine ne dispose pas à ce genre d'obstination")55 55 BEAUVOIR, 1984, p. 254. e não vendo nenhum sentido em expor, desenvolver, julgar, criticar as ideias dos outros.

Ao falar de si, da mulher de uma era, do feminino em suas contradições culturais, ela se permite não se considerar uma filósofa. Tal possibilidade não deveria ser, contudo, considerada como autocensura ou menosprezo por sua capacidade reflexiva. Possivelmente, o que ela recusava para si era o lugar da filosofia enquanto um tópos caricatural, sempre assumido por homens durante toda a tradição histórico-metafísica e, portanto, com suas determinações distorcidas de poder.

Certamente, pode-se atribuir plena razão a Eleanore Holveck, ao mencionar as considerações de Beauvoir acerca da filosofia como "uma reflexão abstrata que tenta explicar todas as coisas por um ponto de vista universal",56 56 HOLVECK, 2005, p. 69. o que equivale a se manter, por meio dela, distanciada das questões da realidade prática e da ação. Além disso, sua compreensão metafísica do mundo se esclarecia muito bem em sua obra literária. Ela era capaz de dar vida às explicações filosóficas abstratas por meio das experiências vividas a cada dia, mesmo que apenas nas folhas imaginárias dos textos de ficção e, principalmente, em sua aplicação à "realidade política das mulheres".57 57 HOLVECK, 2005, p. 72.

Beauvoir recusava também enclausurar-se como pensadora e como mulher na esquadria de um sistema de pensamento e, pois, de comportamento já determinado pela história. A condição feminina deveria, então, se voltar para novas vias de ação, de argumentação e de reflexão que não as mesmas trabalhadas pelos homens na história da cultura. Françoise Rétif58 58 Françoise RÉTIF, 1998. entende que Simone de Beauvoir faz filosofia, mas sem procurar constituir um sistema, voltando-se para feitos pontuais e para opções práticas, e não para uma "suma filosófica"59 59 RÉTIF, 1998, p. 27. que banisse as possibilidades dialógicas.

Acredito que seu processo de autocompreensão, na elaboração da escrita, lhe dá qualidades filosóficas especiais. Já em texto autobiográfico posterior, La force des choses, datado de 1963, ao problematizar seu ensaio Pour une morale de l'ambiguïté, publicado em 1947, ela escreve que, de todos os seus livros, este era o que mais lhe causava irritação. Considerava, no entanto, válida a defesa do existencialismo. Não se podiam "escamotear a morte e o fracasso" ("la mort et le l'échec"). Levantava ali, outrossim, problemas acerca do "papel dos intelectuais" ("le rôle des intellectuels")60 60 BEAUVOIR, 1986a, p. 99. em determinados regimes políticos.

Por um lado, o feminino surge nas entrelinhas de sua dicção atenta aos novos valores do mundo; por outro lado, esse ainda só se revela lentamente na reserva da escrita.

O feminino e a dicção filosófica

Se a recusa da qualificação de filósofa lhe pareceu necessária em La force de l'áge, já em La force des choses a dicção filosófica para criticar, inclusive, um de seus mais profundos ensaios de filosofia é bastante evidente. Sua crença na validade do existencialismo a faz reforçar sua defesa contra as qualificações de suposta frivolidade ou licenciosidade imputadas a essa doutrina. Por meio das bases existencialistas, ela sustenta a necessidade de se enfrentar, entre outros temas, a questão da morte, sendo, pois, pelo viés da filosofia que o feminino e a morte ganham interlocução em seus textos de memória. Ainda no texto em análise, ela observa ser-lhe possível "Escrever um romance histórico sem ter filosofia da história, mas não fazer uma teoria da ação" ("Je pouvais écrire un roman historique sans avoir de philosophie de l'histoire, mais non faire une théorie de l'action").61 61 BEAUVOIR, 1986b, p. 100. A dimensão moral lhe parecia dever ser revista em um período de pós-guerra.

Sem dúvida, o fracasso e a morte apontados no excerto exibem-se como dados paradoxais para pontuar a força da continuidade da vida, vivida, descrita, questionada na borda da escrita. O recomeço de uma nova era lhe parecia questão primordial. Não há aqui como deixar de reconhecer, com Bainbrigge, o vigor com que o tema da morte (thánatos) invade seus escritos. Contudo, não se pode também deixar de constatar, com Gusdorf, que a dimensão da vida (bíos) é um dos elementos necessários à interlocução do sujeito da escrita. Esse tem ciência da morte que pontuará posteriormente sua vida física, mas não sua vida descrita. Mas é, sobretudo, nos fundamentos da filosofia que Beauvoir recupera a longevidade textual e as bases axiológicas em que seus escritos se assentam. Esses escritos têm como sujeito textual a mulher que se descreve e traça os rumos interpretativos de uma era; a profundidade do feminino relegado a um patamar de diferença que ela assume em sua positividade.

Nas inter-relações temáticas, suas críticas às abstrações reflexivas, tanto em relação ao pensamento da tradição quanto aos seus próprios textos, se mostram bem delineadas em seus escritos autobiográficos. Justamente numa linguagem nova, que ela constrói de si, para si e no diálogo com o mundo, bases filosóficas de valor e peso propiciam novos rumos à condição humana.

As variações do eu descrito

O efeito estético de que ela parece ter consciência, em especial em La force des choses, traz o tom de amadurecimento filosófico que envolve o processo ou o pacto de leitura inerente a sua obra. Ela escreve: "Como o anterior, este livro solicita a colaboração do leitor: apresento, em ordem, cada momento da minha evolução, e é preciso ter a paciência de não fechar a conta antes do fim".62 62 "Comme le précédent, ce livre demande au lecteur sa collaboration: je présente, en ordre, chaque moment de mon évolution et Il faut avoir la patience de ne pas arrêter les comptes avant la fin" (BEAUVOIR, 1986b, p. 10).

Essa personagem, o feminino, na variação de seu eu profundo que conforma um registro próprio a partir do encontro com os outros, seus amigos, amores, acontecimentos políticos e culturais, apenas ganha registro escrito nos contornos dialógicos do tempo. A escrita é capaz de identificar, num processo mnemônico, o quadro evolutivo das personagens descritas, tais como a menina burguesa que se transforma, pela força da memória, em la jeune fille rangée, a escritora envolta com questões político-sociais, a feminista que dialoga com o tempo por meio de seus próprios textos e, em especial, por meio de Le deuxième sexe. Todas essas personagens criadas e vividas no corpo do texto se revelam como uma voz descentrada em relação aos paradigmas morais e sociais tradicionais, uma voz que se pretende fazer ouvir enquanto diferença não similar aos protótipos masculinos de escrita. Ela então assevera ter-se habituado a sua pele de escritora e não lhe acontecia olhar para aquela personagem nova, dizendo a si mesma: "sou eu" ("c'est moi").63 63 BEAUVOIR, 1986b, p. 71. De certa forma, as novidades ao seu respeito pareciam-lhe necessárias e instigantes.

Numa gradual leitura do mundo e de si mesma, como ser no mundo, Beauvoir vai decifrando a imagem do feminino. Essa é a um só tempo a sua própria imagem e a imagem que ela constrói para o seu tempo, com efeitos em larga escala nos tempos futuros. Ainda em La force des choses ela escreve acerca das feridas causadas por "certos olhares masculinos" ("certains regards masculins") que debochavam da mulher existencialista que ela, então, era. Contudo, apesar das dificuldades, parecia-lhe normal que "a liberação, ao transformar o mundo, tivesse mudado a sua vida" ("la libération en transformant le monde eût changé ma vie").64 64 BEAUVOIR, 1986b, p. 71. Mas também as mudanças eram sentidas com certa parcimônia e moderação.

Nas variações do eu descrito e do feminino que se esboça no corpo textual, é preciso observar que sua autobiografia traz também uma feição especial, a da ausência e do significado que essa alcança no texto de memória. Nas esferas topográficas da escrita autobiográfica, ao falar de si, ao falar da mulher do século XX, Beauvoir, na verdade, fala da literatura, da filosofia, da política, de seus amigos e, sobretudo, de Sartre, seu alter ego. O lugar da ausência e da alteridade alcança uma posição privilegiada nesse segundo nível, pois é do lugar do outro que o feminino reluz na opacidade de seu traçado histórico.

Para Ursula Tidd,65 65 TIDD, 2006. tanto em sua filosofia quanto em sua autobiografia, Beauvoir reforça as bases de uma "relação ética entre o Eu e o Outro enquanto recíprocas intersubjetividades".66 66 TIDD, 2006, p. 234. A personagem feminina que descreve e é descrita na letra da memória pressupõe, como fio narrativo de suas memórias, negar e criticar o supérfluo e caricatural da tradição, recompor e esboçar um perfil feminino em novos padrões axiológicos, mas sabe que o caminho é delicado e a construção vai-se dando de forma oblíqua, com o auxílio da dimensão especular que o próprio texto autobiográfico oferece. Assim, pode-se concordar com Miraux, entendendo-se, de forma analógica, que, em Simone de Beauvoir, a "escritura da existência transforma a existência em escritura" e, mesmo que datas, fatos e cronologia sejam respeitados, há a edificação do eu como realidade representada pela escrita.67 67 MIRAUX, 2005, p. 16. Um eu que não se exalta a si mesmo, mas se demonstra e se reconhece ao longo dos textos de memória.

O nível de leitura hermenêutico

Este terceiro nível de leitura pretende assumir o papel de, num modo dialético-interpretativo, sustentar os dois primeiros. Defende-se a ideia de que a construção textual do feminino – a grande personagem vivida pela própria Beauvoir – propiciará a ligação necessária entre o texto e seus leitores. Tal ligação se faz também entre Beauvoir e o texto autobiográfico, permitindo-lhe criar uma identidade própria, a de uma filósofa do século XX capaz de ler e de escrever, em linguagem própria, o seu próprio tempo. Assim, a interlocução entre seus textos autobiográficos nos serve como um firme apoio metodológico.

A interação entre vida e escrita é palco de discussão em suas obras autobiográficas, em termos da intensidade de uma em relação à outra, sem que a escolha de uma possa significar a renúncia da outra. Segundo Françoise Rétif, é também porque a autobiografia se situa no "espaço dialético" que uma profunda sinceridade, que anuncia algo não visível e não tangível, pode ser, então, apreendida. Tal espaço atinge um horizonte de realidade e "efetiva a aspiração e a busca fundamental de toda uma vida".68 68 RÉTIFF, 1998, p. 134.

Beauvoir não apenas explana sobre a realidade, por meio de uma ótica da diferença, mas se abre a variações interpretativas, com longo alcance para os modelos hermenêuticos da atualidade. Ann V. Murphy69 69 Ann V. MURPHY, 2006. assume o pensamento de Beauvoir nos moldes de uma filosofia original em meio à tradição francesa. Ela nos aponta o seu comportamento pouco ortodoxo diante dos cânones da tradição filosófica e do comportamento social burguês.70 70 MURPHY, 2006, p. 263. Também para a comentadora, especificamente, no texto Pour une morale de l'ambiguïté, evidencia-se seu distanciamento teórico em relação ao pensamento de Sartre no que diz respeito à elaboração da relação intersubjetiva e, em especial, aos princípios de "generosidade e de violência", que já integram "as linhas gerais de sua política revolucionária".71 71 MURPHY, 2006, p. 264. Mas justamente nesse texto exibe-se, outrossim, o impacto da recepção. Segundo Murphy, na citada obra Beauvoir "insta seus leitores" a ponderar acerca da "complexidade de cada situação concreta antes de proceder a algum julgamento" acerca de seu teor de generosidade ou de violência.72 72 MURPHY, 2006, p. 264. A discussão da relação entre ética e política encontra, assim, registro em sua "filosofia da temporalidade",73 73 MURPHY, 2006, p. 267. que leva em consideração a ineficácia das éticas abstratas.

Contrariamente ao universal impessoal, disposto nos modelos éticos da tradição, Beauvoir propõe a pluralidade das particularidades concretas. E é bem para tais particularidades que ela se volta nas obras autobiográficas. Falar da complexidade e do esvaziamento do eu e das dificuldades das relações intersubjetivas equivale a clamar por uma prática de ação que merece ser continuamente interpretada.

Axiologia textual

A escrita é também uma forma de agir para tentar mudar o mundo. Por meio dos textos surge a possibilidade de repensar a gradação valorativa em que o eu se reconstrói historicamente. Nos compassos dos textos autobiográficos de Simone de Beauvoir, que podem ser lidos no movimento dialético que os constitui, vai-se interpretando sua capacidade de alterar as vozes paradigmáticas masculinas. Ela passa a discutir, na dimensão autobiográfica – dimensão ambígua, pois textual e de vivências –, o valor de uma visão e de uma dicção do feminino sobre e no mundo – dicção instigante e provocativa na cultura. Ela insere, no contexto das questões filosóficas, a mulher em sua dimensão de alteridade para, justamente, apontar a fragilidade conceitual da razão universal e sistêmica da tradição.

Ao denunciar a moral burguesa do século XX, Beauvoir abre as portas de sua vida privada ao leitor. Aponta a fenda do sujeito feminino que deve transitar das normas morais compostas de posturas e condutas conservadoras à irreverência e provocação de comportamentos e ousadia. Descreve-se a partir da construção de uma vida de independência, fora dos cânones do casamento e da maternidade, considerados como protótipos de realização de toda mulher ainda naquele século. Assim, ela reinterpreta e renomeia o semblante feminino, ampliando-lhe as perspectivas de dignidade e existência possíveis, reformando a interlocução entre o eu e o outro, culturalmente estigmatizados.

Karen Vintges74 74 Karen VINTGES, 2006. entende que o conceito de eu em Beauvoir é bastante significativo para a crítica pós-moderna, em suas várias concepções, inclusive as multiculturais em sua dimensão de "autonomia do eu".75 75 VINTGES, 2006, p. 214. A esse propósito vale indagar se a tônica do feminino, que ela evidencia nos variados textos e nos diversos gêneros literários por ela adotados, esboça justamente essa possibilidade múltipla de dizer o eu, de moldar e conceituar o eu de perspectivas não essencialistas.

Ademais, na construção da imagem paradoxal do feminino na cultura, que é a imagem composta à luz da reflexão da vida e da escrita do eu em diálogo com o outro, Beauvoir se transforma na grande filósofa política do século XX. Lembra Michel Kail76 76 Michel KAIL, 2006. que, embora se possa supor que sua filosofia não transite num campo político pelas "consequências que ela tira de uma argumentação conceitual em princípio apolítica", na verdade "sua dimensão política advém do próprio motivo que a inspira".77 77 KAIL, 2006, p. 41. Pode-se mesmo dizer que sua dimensão política ganha peso justamente na forma como interpreta o mundo, reescrevendo-o como um projeto autobiográfico de longo alcance.

O círculo hermenêutico

A leitura do texto filosófico é, sem dúvida, um ato interpretativo. Tal ato leva o leitor à construção de um círculo hermenêutico no qual a/o intérprete – cada uma/um de nós – se vê interpretada/o pelos pressupostos da cultura e pelas exigências conceituais de cada situação histórica. Os textos de Simone de Beauvoir podem ser lidos dentro desse movimento hermenêutico construído pela interrogação de seus leitores, assim como pelas questões – como o feminino – que nos lançam em um novo espaço de significação. Mas é preciso levar em consideração que a complexa imagem do feminino que emerge dos textos de memória é também aquela que aponta para uma linguagem crítica de seu tempo e de si mesma. Bem no "Epílogo" de La force des choses, ela ressalta que, ao revisar/rememorar a sua história, se encontrava sempre aquém ou além de algo que nunca se realizou: "apenas seus sentimentos foram vividos como uma plenitude" ("seuls mes sentiments ont été éprouvés comme une plénitude").78 78 BEAUVOIR, 1986b, p. 504. Noutros termos, o ato de escrever lhe possibilitava escapar à petrificação no momento exato da escrita.

Nesse terceiro momento de leitura, constituído em relação à dimensão hermenêutica, as normas da escrita beauvoiriana demonstram o caráter ambíguo da existência que os textos de memória sabem captar nos movimentos dialéticos temporalizados. Esses se demonstram, inclusive, com variações axiológicas que ela exibe na procura e na construção de sua identidade como mulher no século XX. Sua narrativa memorialística apresenta a busca do sujeito por si mesmo, do sujeito-feminino que descreve sua história para outrem e para si mesmo, como outrem que se lê e se reconstitui na dimensão do tempo.

Para Jauss, não se pode comparar a experiência estética com uma simples interpretação do significado de uma obra nem com a "reconstrução da intenção de seu autor". A experiência de um texto se efetiva na "sintonia com seu efeito estético" e nos modos de fruição da obra. E isso porque o texto foi feito para o leitor, e não para ser interpretado, pensa Jauss.79 79 JAUSS, 1979, p. 46. Mas, no espectro da comunicação, dos pactos e dos efeitos, Philipe Lejeune entende ser inegável o aspecto normativo do pacto, que se volta primordialmente para a questão da "apresentação categórica do problema da identidade",80 80 LEJEUNE, 2008, p. 55. cuja complexidade dá margem a uma mudança nos rumos costumeiros de uma discussão.

Para Beauvoir, essa identidade pressupõe a retomada crítica da cultura e o processo hermenêutico do lugar que o feminino nela deve construir. De certa forma, como todos nós somos também suas leitoras e seus leitores, é de nossas possibilidades de revisão de nossos critérios interpretativos, com relação ao lugar que buscamos e construímos na história, que a longevidade de seu pensamento e de seus textos de memória acaba por se mostrar como um efeito estético de leitura e representações.

Ademais, não se poderia deixar de ressaltar, com vigor e também com certo entusiasmo, que é pela documentação escrita das várias etapas de sua vida e de seu amadurecimento reflexivo, construído na interlocução com seus próprios textos e com sua recepção, que sua tônica feminista foi se constituindo. Ao conceber o processo de criação de si enquanto um sujeito do discurso e um sujeito histórico, ela sustenta uma concepção feminista que reconheça, no nível pessoal, um alcance político, e esse é um dos grandes efeitos de suas obras.

A memória e o sentido

De fato, vida e obra de Beauvoir giram em torno dos acontecimentos do século XX, que é um século de miragens próximas, em que se reconstruíram, arduamente, sobretudo os costumes e a moral. O ato de pensar a trajetória axiológica dessa época nos leva a refletir sobre o valor da própria memória, em sentido amplo. Essa se torna palco de redefinição do passado no momento da escrita, acalentada por um teor de liberdade que permite interrogações sobre o que se viveu. E Beauvoir nos orienta, em Tout compte fait: "Realização de um projeto original, minha vida foi ao mesmo tempo o produto e a expressão do mundo no qual ela se desenrolava, e é por isso que, narrando-a, pude falar de outras coisas que não eu mesma".81 81 "Accomplissement d'un projet originel, ma vie a té en même temps le produit et l'expression du monde dans lequel elle se déroulait, et c'est pourquoi j'ai pu, en la racontant, parler de tout autre chose que de moi" (BEAUVOIR, 1972, p. 39-40).

Simone de Beauvoir, de forma admirável, nos mostra os diferentes aspectos do ser humano em sua dimensão intersubjetiva, assim como as dificuldades de se pensarem a integralidade do sujeito histórico e as incongruências da memória diante da fragilidade do vivido. Filósofa da diferença, escritora atenta ao horror da filosofia à dimensão do outro, é, pois, nos gestos de Memória que ela faz representar o fio condutor entre o vivido e o narrado, sem ânsia por enclausurar seu pensamento em uma completude sistêmica e existencial. Em tais gestos, o íntimo do ser no mundo e no tempo realça a aventura humana como o mais ousado diálogo dos tempos do filosofar, o diálogo da consciência histórica consigo mesma e com o tempo de seu existir.

[Recebido em 10 de fevereiro de 2011 reapresentado em 11 de junho de 2011 e aceito para publicação em 13 de outubro de 2011]

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    Acerca das diversas e relevantes perspectivas dessa corrente de leitura, veja-se, em especial, Rainer WARNING, 1979. É curioso notar as diferentes nuanças, em especial entre Jauss e Gadamer, no que tange ao problema da literatura enquanto provocação.
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  • 81
    "Accomplissement d'un projet originel, ma vie a té en même temps le produit et l'expression du monde dans lequel elle se déroulait, et c'est pourquoi j'ai pu, en la racontant, parler de tout autre chose que de moi" (BEAUVOIR, 1972, p. 39-40).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      Dez 2012

    Histórico

    • Recebido
      10 Fev 2011
    • Aceito
      13 Out 2011
    • Revisado
      11 Jun 2011
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