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Feminismo materialista na França: sócio-história de uma reflexão

Materialist Feminism in France: Socio-history of a Reflection

Resumo:

O feminismo materialista constitui uma das correntes mais importantes do feminismo francês. São identificadas com essa perspectiva diversas análises antinaturalistas para as quais o conceito de relações sociais tem uma centralidade - notadamente aquelas produzidas por Christine Delphy, Colette Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu e Monique Wittig. Este artigo se propõe a apresentar a emergência dessas teorizações no bojo das intensas mobilizações da década de 1970 e algumas de suas ideias centrais. Partindo de diferentes tipos de fontes como panfletos, textos de revistas militantes e outros materiais não publicados, o objetivo é abordar tais teorias no contexto histórico e teórico no qual emergiram.

Palavras-chave:
teorias feministas; movimento feminista; feminismo materialista; esquerda; história das ideias

Abstract:

Materialist feminism is one of the main theoretical currents of French feminist thought. This reflection, promoted by authors like Christine Delphy, Colette Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu and Monique Wittig emerges amidst intense feminist mobilizations in the 1970s in France and produces inescapable contributions to the feminist debate in that country. This article proposes to present the emergence of these theorizations and some of their central ideas. Starting from different types of sources such as pamphlets, texts from militant magazines and other unpublished materials, the objective is to address such theories in the historical and theoretical context in which these analyzes have emerged.

Keywords:
Feminist theories; Feminist movement; Materialist feminism; Left; History of ideas

A crise atual do capitalismo neoliberal teria modificado a paisagem do pensamento feminista, afirmava Nancy FRASER em 2010. A desestabilização do sistema financeiro mundial, o declínio da produção e do emprego e a perspectiva de uma recessão prolongada teriam imposto a crise capitalista como um pano de fundo incontornável para toda teorização crítica, incluindo a teoria feminista (FRASER, 2012FRASER, Nancy. “Entre marchandisation et protection sociale. Les ambivalences du féminisme dans la crise du capitalisme”. In: FRASER, Nancy. Le féminisme en mouvements. Des années 1960 à l’ère néolibérale. Paris: La Découverte, 2012., p. 309). Essa é certamente uma das razões pelas quais se presencia, nos últimos anos, a emergência de críticas a perspectivas teóricas consideradas pouco atentas às desigualdades de classe e aos aspectos materiais da dominação nas teorizações feministas e nos estudos de gênero de uma forma mais geral. Essa crítica vem acompanhada, em alguns casos, de uma reapropriação de um referencial marxista. Na bibliografia anglófona, evoca-se uma ‘virada materialista’ ou ‘econômica’ para caracterizar diversos empreendimentos que procuram articular queer, crítica ao neoliberalismo e materialismo/marxismo (Alain SEARS, 2005SEARS, Alan. “Queer Anti-Capitalism: What's Left of Lesbian and Gay Liberation?”. Science and Society, v. 69, n. 1, 2005.; Kevin FLOYD, 2012FLOYD, Kevin. La reification du désir. Vers un marxisme queer. Paris: Édition Amsterdam, 2012.); na França diversos números especiais de revistas, livros e seminários tendo por tema central o feminismo materialista foram publicados nos últimos três anos.1 1 Cahiers du genre. “Analyse critique et féminismes matérialistes” hors-serie (2016); Comment s’em sortir, n. 4, “Matérialismes féministes” (2017); CERVULLE, Maxime; QUEMENER, Nelly; VOROS, Florian (Dir.). Matérialismes, culture & communication, Tome 2. Paris: Presses des Mines, 2016. Vê-se também um renovado interesse pelo feminismo materialista que surge nos anos 1970. Mas é preciso ressaltar que os sentidos atribuídos ao termo ‘materialismo’ e ‘feminismo materialista’2 2 Para um outro tipo de materialismo, que não tem as mesmas filiações teóricas dos materialismos mencionados neste texto, chamado também de ‘novo materialismo’, ver, por exemplo, ALAIMO, Stacy; HEKMAN, Susan. New Materialism: Interviews & Cartographies. Reino Unido: Open University Press, 2012 e, para uma síntese, MÖSER, Cornelia. “Neo-matérialisme. Um nouveau courant féministe?”. In: CERVULLE, Maxime; QUEMENER, Nelly; VOROS, Florian (Dir.). Matérialismes, culture & communication, Tome 2. Paris: Presses des Mines, 2016. Em português, ver: ALAIMO, Stacy. “Feminismos transcorpóreos e o espaço ético da natureza”. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 2, p. 909-934, 2017 e COSTA, Claudia; FUNCK, Susana. “O Antropoceno, o pós-humano e o novo materialismo: intervenções feministas”. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 2, p. 903-908, 2017. variam historicamente e geograficamente e tais categorias não podem ser tratadas de forma a-histórica e descontextualizada.

Neste artigo, o objetivo é analisar a emergência de um feminismo materialista num contexto específico:3 3 Este artigo é parte da tese Politizando a anatomia: antinaturalismo e materialismo no pensamento feminista francês (1960-1980), defendida na Unicamp, em 2016, sob orientação de Angela Araújo e com financiamento da FAPESP. A primeira parte deste texto foi publicada originalmente em francês na revista Comment s’en sortir, n. 4, 2017. Diversos arquivos foram consultados para este trabalho, notadamente: Archives de la Bibliothèque de la Maison des Sciences de l’homme (Paris); Archives de Recherches Cultures lesbiennes (ACRL-Paris); Fonds Anne Zelensky, Bibliothèque Marguerite Durand (Paris); RECUEILS. Bibliothèque National de France (BnF-Paris). Todos os trechos citados ao longo deste artigo foram traduzidos pela autora. a França dos anos 1970. São identificadas com essa perspectiva diversas análises antinaturalistas para as quais o conceito de relações sociais tem uma centralidade.4 4 Para algumas definições de ‘feminismo materialista’, ver: CURIEL, Ochy; FALQUET, Jules. “Introdução”. In: FERREIRA, Verônica; ÁVILA, Maria Betânia; FALQUET, Jules; ABREU, Maira (Org.). O Patriarcado Desvendado: teorias de três feministas materialistas. Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu. Recife: SOS Corpo, 2016; BERENI, Laure; CHAUVIN, Sébastien; JAUNAIT, Alexandre; REVILLARD, Anne. Introduction aux études sur le genre. Bruxelles: De Boeck, 2008; PFEFFERKORN, Roland. Inégalités et rapports sociaux. Paris: La Dispute, 2007. Christine Delphy, Colette Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu, Paola Tabet, Monique Wittig5 5 Informações biográficas sobre as autoras podem ser consultadas nas minibiografias no final deste artigo. e a revista Questions Féministes (1977-1980) são frequentemente consideradas as principais representantes dessa perspectiva.6 6 Mais recentemente, outras autoras, Danièle Kergoat, Anne-Marie Devreux, para mencionar somente autoras que começaram a produzir nos anos 1970-1980, também se reivindicam materialistas. Diversas outras autoras, porém, se identificam com essa perspectiva, tal como Danièle Kergoat. Essa reflexão emerge em meio a intensas mobilizações feministas na França e produz aportes incontornáveis para o debate feminista nesse país tais como os conceitos de classe de sexo, sexo social, sexagem e relações sociais de sexo.

Procuraremos apresentar essa reflexão que só nos últimos anos começou a ganhar alguma difusão no Brasil,7 7 Com exceção dos textos de Danièle Kergoat, outras autoras identificadas com essa perspectiva praticamente não tinham sido objeto de tradução até 2014. Os únicos textos disponíveis eram: um de Christine Delphy (1978) e Guillaumin (1994). A tradução em 2014 de algumas autoras ligadas a essa perspectiva como Colette Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu, Paola Tabet (FERREIRA, Verônica; ÁVILA, Maria Betânia; FALQUET, Jules; ABREU, Maira (Org.). O Patriarcado Desvendado: teorias de três feministas materialistas. Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu. Recife: SOS Corpo, 2014), a publicação, em 2015, de uma tradução do texto “O inimigo principal”, de Delphy (2015) e a publicação de alguns artigos de pesquisadoras que se reivindicam como parte dessa tradição, por exemplo Jules Falquet, alteraram esse quadro. dentro de um contexto mais amplo no qual esta emerge e que lhe serviu de base. Desta forma, visa-se a evitar uma história que avalia o passado a partir de questões do presente, imputando a este último questões que não eram relevantes ou não se apresentavam da mesma forma num certo contexto histórico, buscando chamar atenção para os “contextos linguísticos, retóricos, políticos e sociais no seio dos quais os discursos, teorias, argumentos e slogans ganham sentido” (Arnault SKORNICKI; Jérôme TOURNADRE, 2015SKORNICKI, Arnault; TOURNADRE, Jérôme. La nouvelle histoire des idées politiques. Paris: La Découverte, 2015., p. 5).

Uma parte importante das reflexões feministas nos anos 1970 foi forjada no bojo do movimento feminista ou em estreita relação com o mesmo e se materializou frequentemente sob a forma de panfletos, revistas militantes com pequena tiragem, brochuras e outros materiais. Para o trabalho de historicização aqui proposto, esses materiais constituem uma fonte fundamental, pois nos permitem tirar o foco dos grandes ‘clássicos’ do feminismo e ver o movimento social como igualmente produtor de teoria. Foram realizadas também entrevistas8 8 Foram realizadas entrevistas com Christine Delphy, Colette Guillaumin, Colette Capitan Peter, Emmanuelle de Lesseps, Danièle Kergoat e Anne-Marie Devreux em Paris entre 2012 e 2015. que permitem revisitar as sociabilidades intelectuais, os momentos de encontro, assim como outros elementos que não deixaram traços escritos.

Um feminismo materialista em ruptura com um certo marxismo

Amplos setores do movimento feminista da ‘segunda onda’ recorreram ao marxismo, de forma mais ou menos ortodoxa, para desenvolver suas teorizações. Neste período, muitas mulheres começaram a questionar a forma como a esquerda havia tematizado até então a chamada “questão feminina”. Para muitas feministas, tratava-se de não mais aceitar ser um “post-scriptum [PS] de Marx ou de Mao Tsé-tung” (QUELQUES MILITANTES, 1970QUELQUES MILITANTES. “Présentations”.Partisans, n. 54-55, p. 3-8, 1970., p. 6) e de recusar “utilizar velhas análises de esquerda e colocar pedaços de feminismo com durex” (DOCUMENTS, 1978DOCUMENTS. “Résumé du texte des hollandaises féministes-socialistes”. Questions Féministes, n. 2, p. 92-94, 1978., p. 93). Era necessário elaborar novas perspectivas teóricas capazes de analisar a opressão feminina a partir de novas bases e o feminismo materialista foi uma delas.

No contexto francês, um texto fundador dessa reflexão foi “O inimigo principal”, publicado sob o pseudônimo de Christine Dupont (1970DUPONT, Christine. “L’ennemi principal”.Partisans, n. 54-55, p. 157-172, jul.-set. 1970. (Publicado em português em: DURAND, Emmanuelle et al. Liberação da mulher: ano zero. Belo Horizonte: Interlivros, 1978)) por Christine Delphy em um número especial da revista Partisans,9 9 Partisans (1961-1972) foi uma revista publicada pela editora Maspero. Posicionada na “esquerda da esquerda”, tratava-se, segundo Jean-Pierre Debourdeau (DEBOURDEAU, Jean-Pierre. “Maspero”. In: ARTOUS, Antoine et al. La France des années 1968. Paris: Syllepse, 2008), da publicação “que mais influenciou a juventude radicalizada da época” (p. 393). Tinha como eixo central a causa terceiro-mundista, embora estivesse aberta a outras temáticas, como o movimento negro, sexualidade etc. O número 54-55 da revista, intitulado Libération des femmes. Année zero e publicado no segundo semestre de 1970, é considerado a primeira publicação coletiva do movimento e é composto por textos escritos por feministas francesas e traduções de textos estadunidenses. intitulado Libération des femmes année zero, que é considerada a primeira publicação coletiva do nascente Mouvement de Libérationdes Femmes (MLF). Neste texto, a autora propõe fornecer algo que ela considera fundamental para o movimento, “as bases para uma análise materialista da opressão das mulheres” (Christine DUPONT, 1970DUPONT, Christine. “L’ennemi principal”.Partisans, n. 54-55, p. 157-172, jul.-set. 1970. (Publicado em português em: DURAND, Emmanuelle et al. Liberação da mulher: ano zero. Belo Horizonte: Interlivros, 1978), p. 158). Para analisar a opressão feminina, afirma a autora, deve-se partir do materialismo histórico e de sua análise dos antagonismos sociais em termos de classe, isto é, do lugar ocupado no processo de produção. Nesse sentido, ela parte do trabalho doméstico, assumindo que este definiria a posição das mulheres nas relações de produção. Este trabalho, de responsabilidade exclusiva das mulheres e não remunerado, seria a base de um sistema de exploração, o patriarcado. O trabalho doméstico deveria ser analisado não em termos de produção de valor, mas da exploração de uma forma de excedente específico, a qual estaria na base de um modo de produção específico, o modo de produção doméstico ou patriarcal, distinto do modo de produção capitalista e coexistiria com este último.10 10 Sobre essa questão, Delphy afirma, em 1976: “O modo de produção doméstico, como modelo, como conjunto de relações de produção, existia anteriormente ao modo de produção capitalista. Ele é diferente, não há vínculo teórico entre os dois. Mas, há, evidentemente, vínculos concretos” (DELPHY, 2009 [1976], p. 248).

Esse texto teve uma grande importância para reflexão do nascente movimento e, de uma forma mais geral, para o pensamento feminista que se elaborou a partir de então, embora tenha sido também bastante criticado.11 11 Como afirma Danièle LÉGER (1976), o artigo teria “provocado e continua a provocar muita polêmica” (DELPHY, Christine; LÉGER, Danièle. “Débat: capitalisme, patriarcat et lutte des femmes”. Revue Premier Mai, n. 2, p. 37-43, 1976). Para críticas à Delphy, ver, por exemplo, BARRETT, Michèle; McINTOSH, Mary. “Christine Delphy: Towards a Materialist Feminism?”. Feminist Review, n. 1, p. 95-106, 1979. Para Françoise Picq (1983PICQ, Françoise. “Féminisme, matérialisme, radicalisme”. La revue d’en face, n. 13, p. 38-57, 1983.), a análise de Delphy, ao fornecer argumentos teóricos para a luta autônoma das mulheres, teria amparado teoricamente o nascente movimento de mulheres em seu embate contra as concepções dominantes na esquerda e favorecido reposicionamentos das feministas vinculadas a essas concepções (p. 53). Elsa Galerand e Danièle Kergoat (2014GALERAND, Elsa; KERGOAT, Danièle. “Les apports de la sociologie du genre à la critique du travail”. La nouvelle revue du travail, n. 4, 2014.) ressaltam como tal texto foi “um marco para a reflexão feminista” e indicam alguns de seus aportes fundamentais como a ruptura com equações que associavam termo a termo “capitalismo” e “exploração”, “exploração” e “conflitos do trabalho” e que operavam, desta forma, a partir de uma série de reduções: “trabalho = trabalho assalariado; exploração = exploração salarial; emancipação = superação da contradição capital/trabalho”.

A construção de uma análise materialista, que Delphy compreende como uma “necessidade objetiva do movimento” (DUPONT, 1970DUPONT, Christine. “L’ennemi principal”.Partisans, n. 54-55, p. 157-172, jul.-set. 1970. (Publicado em português em: DURAND, Emmanuelle et al. Liberação da mulher: ano zero. Belo Horizonte: Interlivros, 1978), p. 158), teria surgido simultaneamente em diferentes locais, embora não de maneira articulada e deliberada. Ela se refere a feministas tais como a canadense Margaret Benston,12 12 Margaret Benston (1937-1991) foi uma militante feminista canadense. Ela era química e lecionou na Universidade Simon Fraser, na qual foi uma das fundadoras de um programa de women’s studies. a argentina Isabelle Larguia e Susie Olah. Delphy cita também um artigo publicado no jornal L’idiot International, em maio de 1970, e “um manifesto inédito do grupo F.M.A”.13 13 O grupo Feminino, Masculino, Ação se radicaliza a partir de 1968 e ganha o nome “Feminismo, marxismo, ação”. A referência não aparece na versão publicada em livro (DELPHY, 2009). Ao centrar a “análise da opressão das mulheres na sua participação específica na produção (e não somente na reprodução)” e considerar o trabalho doméstico e a criação dos filhos como “tarefas produtivas”, essas propostas constituiriam um “embrião de uma análise feminista radical fundada em princípios marxistas” (DUPONT, 1970, p. 158). Restringir-nos-emos aqui a analisar os textos franceses.

Monique WITTIG, Gilles WITTIG, Maria ROTHENBURG e Margaret STEPHENSON publicam, em maio de 1970, no jornal L’idiot international, o texto ‘Combat pour la libération de lafemme’.14 14 Tal texto foi republicado em 2009 num livro que reuniu panfletos e manifestos do período (COLLECTIF, mlf// Textes premiers. Paris: Stock, 2009). Segundo Monique Wittig, foi ela mesma quem preparou a base deste texto: “Eu reli fervorosamente ‘A origem da família’, reli Marx o quanto pude e fabrico a minha pequena teoria feminista e marxista” (WITTIG, Monique. “Monique Wittig raconte...”. Prochoix, n. 46, p. 67, 2008. Entrevista realizada no final dos anos 1970 por Josy Thibaut). Neste texto, a função econômica da ‘servidão’ das mulheres na família é ressaltada. Essa função, “cuidadosamente dissimulada” daquelas que a exercem, é vista como algo que faria a força das mulheres e como um elemento de ameaça à “ordem estabelecida” (ROTHENBURG; STEPHENSON; WITTIG; WITTIG 2009ROTHENBURG, Marcia; STEPHENSON, Margaret; WITTIG, Gille; WITTIG, Monique. “Combat pour la libération de la femme”. In: COLLECTIF. Paris: Stock, 2009. (Publicado originalmente em: L’idiot international, n. 6, 1970) [1970], p. 32).

Podemos encontrar essas mesmas ideias em diversos outros textos do movimento dessa primeira metade da década. Emmanuelle de Lesseps e Claude Hennequin, em 1972LESSEPS, Emmanuele de; HENNEQUIN, Claude. “Trois ans de MLF”. Actuel, n. 25, p. 6-7, 1972., denunciam uma “outra exploração econômica, o trabalho doméstico gratuito, verdadeira sobrevivência da servidão” (LESSEPS; HENNEQUIN, 1972LESSEPS, Emmanuele de; HENNEQUIN, Claude. “Trois ans de MLF”. Actuel, n. 25, p. 6-7, 1972., p. 6) e afirmam que “é essa especialização (dita ‘natural’) das mulheres no trabalho doméstico e na criação das crianças que está na base de toda a nossa opressão específica” (Ibidem, 1972). Considerando que ela condiciona, inclusive, “nosso status” no campo do trabalho assalariado, as autoras concluem que a luta contra o patriarcado é “o nosso combate principal” (LESSEPS; HENNEQUIN, 1972).

Pode-se dizer que o materialismo representa, em um primeiro momento, um recurso para a construção de uma análise não naturalista da opressão, uma via que possibilitava afirmar que não é a biologia, nem as funções reprodutivas, que constitui a base da opressão das mulheres. O fundamento da opressão deveria ser buscado no trabalho doméstico que alimentaria um antagonismo que não poderia ser reduzido ao antagonismo capital-trabalho.

Diversas outras autoras no mundo anglo-saxão procuraram também formular novas análises numa perspectiva de esquerda. Muita tinta correu nos anos 1970 procurando fomentar um “casamento entre feminismo e marxismo” - para usar aqui a famosa metáfora de Heide Hartmann (1981HARTMANN, Haidi. “The unhappy marriage of marxism and feminism”. In: SARGENT, Lydia (Org.). Woman and Revolution: the unhappy marriage of Marxism and feminism. Boston: South and Press, 1981.). Um debate particularmente importante se desenvolveu nas páginas de revistas marxistas como New Left Review, Monthly Review, Capital and Class. Margaret BENSTON, ao escrever ‘The Political Economy of Women’s Liberation’, publicado na revista Monthly Review em 1969, foi uma das pioneiras nesse debate. Para a autora, as raízes do ‘status inferir’ das mulheres se encontram na economia, isto é, “o status das mulheres tem um fundamento material”, “não somos somente objeto de uma discriminação, somos exploradas” (BENSTON, 1970BENSTON, Margaret. “Pour une économie politique de la libération des femmes”. Partisans, n. 54-55, p. 23-31, 1970., p. 30).

Diversos outros textos comporiam o que ficou conhecido como domestic labour debate. Esse debate recobre diferentes questões, tais como o caráter produtivo ou não do trabalho doméstico, a produção de mais-valia, a existência de diversos modos de produção, a relação entre eles etc. Eva Kaluzynska (1980KALUZYNSKA, Eva. “Wiping the Floor with Theory: a survey of writings on housework”. Feminist review, n. 6, p. 27-54, 1980.) listava, em 1980, mais de cinquenta artigos publicados na década anterior nos EUA e Inglaterra sobre essas questões.

Todas essas análises estavam em ruptura com uma concepção que norteou a política dos partidos comunistas e, de forma mais geral, de diferentes setores de esquerda ao longo do século XX. Essa concepção criticada tinha por pressuposto a diluição da ‘questão feminina’ nas relações de classe (essas últimas frequentemente confundidas com relações de propriedade). Partindo da ideia de que a origem da opressão das mulheres tem por base a propriedade privada dos meios de produção, a abolição desta última foi considerada como um elemento praticamente suficiente para eliminar a hierarquia que esta teria engendrado. Nessa lógica, toda a atividade militante deveria ser canalizada para a abolição do sistema capitalista. A persistência de desigualdades nas sociedades consideradas como socialistas é atribuída a razões ‘superestruturais’ ou ‘ideológicas’.

Essas análises materialistas se opunham à ideia, bastante difundida, segundo a qual a opressão feminina seria um problema de ‘mentalidades’. Colette Guillaumin (1978GUILLAUMIN, Colette. “Odile DHAVERNAS, Droit des femmes, pouvoir des femmes”. Paris: Ed. Du Seuil, 1978. (coll. “Libre à elles”)” [resenha]. Questions Féministes, n. 4, p. 102-103, 2016.), numa entrevista informal à revista Parti pris, critica essa visão:

Não se é somente ‘perverso’ com as mulheres, tira-se vantagens consideráveis delas. Isso não é somente coisa da nossa cabeça, são relações reais, concretas. Eu fico embasbacada que possamos falar de mentalidades numa situação onde isso salta aos olhos e na qual são tiradas vantagens consideráveis das mulheres (p. 10).

Mas essas relações sociais reais e concretas apontadas por Guillaumin não são (ou não são somente) as relações capitalistas. A afirmação de que existem relações sociais que não são redutíveis às relações de classe marca uma ‘virada’ nas reflexões feministas. Trata-se de um elemento fundamental que distingue essas reflexões das análises precedentes, modificando completamente a forma de apreender o problema. Antes de tudo, permite sustentar a existência de uma opressão ou exploração específica das mulheres, especificidade que começa a permear até mesmo as análises que ainda localizam no capital a causa última dessa ‘opressão’. É somente a partir do momento no qual a opressão específica das mulheres é separada, no plano da análise, das relações de classe, que as tentativas de articular relações sociais tornam-se possíveis.

Uma resenha do número de Partisans (Libération des femmes année zero), publicada na revista marxista L’homme et la société, nos fornece alguns elementos para compreender as/os interlocutoras/es dessas teorizações. Segundo este texto, tal número de Partisans seria composto por dois tipos de análise: aquele cuja ênfase recaía sobre a “situação econômica da mulher” e aquele de artigos que abordavam a “opressão sexual” como algo a que a mulher estaria submetida por conta do “chauvinismo masculino” (Christiane ROLLE; Nello ZAGNOLI, 1971ROLLE, Christiane; ZAGNOLI, Nello. “Partisans. Libération des femmes 1970”. L’homme et la société, v. 19, n. 1, p. 218-221, 1971. (Resenha), p. 218). Se as análises do primeiro tipo são consideradas, em sua maioria, como “notáveis”, aquelas do segundo tipo são criticadas como abordagens que visam à relação homem-mulher “destacada de seu contexto social” (Ibidem, 1971), de modo que “não se percebe mais sobre o que [a opressão] repousa” (ROLLE; ZAGNOLI, 1971, p. 220).

Seria justamente para mostrar sobre o que essa opressão repousa que se desenvolveu essa perspectiva. Liliane KANDEL ressalta que, naquela época, era fundamental provar, faceando as provocações oriundas da extrema esquerda, que “as mulheres não eram somente acossadas e maltratadas” (DELPHY; KANDEL, 2001DELPHY, Christine. “Le patriarcat: une oppression spécifique”. (Entrevista feita por Louis Astre com a participação de Liliane Kandel). In: DELPHY, Christine. L’ennemi principal 2. 2001. [1988] [1988], p. 58). Assim, as primeiras tentativas de explicação da opressão das mulheres a partir de uma base material foram vazadas frequentemente em termos econômicos. Alguns títulos são bastante explícitos em relação à importância dada a este fator: “L’interdiction de l’avortement, exploitation économique” (A proibição do aborto, exploração econômica), assinado por “algumas militantes” (que Delphy identifica como Claude Hennequin, Emmanuelle de Lesseps e ela própria), publicado em 1970, ou ainda a dissertação de mestrado (maîtrise) de Emmanuelle de Lesseps, Le divorce comme révélateur et garant d’une fonction économique de la famille (O divórcio como revelador e garantia de uma função econômica da família) defendida em 1973 (apudGUILLAUMIN, 1978GUILLAUMIN, Colette. “Odile DHAVERNAS, Droit des femmes, pouvoir des femmes”. Paris: Ed. Du Seuil, 1978. (coll. “Libre à elles”)” [resenha]. Questions Féministes, n. 4, p. 102-103, 2016.).

Delphy afirma, numa entrevista em 2004DELPHY, Christine. “Fonder en théorie qu'il n'y a pas de hiérarchie des dominations et des luttes. Entretien avec Christine Delphy”. Mouvements, n.. 35, p. 119-131, 2004. (Entrevista realizada por Giraud Véronique, Jami Irène, Sintomer Yves), que estaria, na época, “sob influência de uma versão mais economicista do paradigma marxista” (DELPHY, Véronique GIRAUD; Irène JAMI; Yves SINTOMER, 2004DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1. Economie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2004., p. 123). Tratar-se-ia, de certo modo, de uma resposta a um marxismo economicista, orbitando, até certo ponto, seus próprios termos. Pode-se dizer que o fundamento econômico da opressão feminina, para usar as palavras de Delphy a propósito de outra teoria (da mais-valia), tinha uma “utilidade retórica, uma força de convicção em relação a um público preciso, em um contexto histórico e social preciso” (DELPHY, 2015DELPHY, Christine. Pour une théorie générale de l’exploitation. Des différentes formes d’extorsion de travail aujourd’hui. Paris: Syllepse/Saint-Joseph-du-Lac, M. Éditeur, 2015., p. 86). A partir de meados dos anos 1970 essas análises seriam reformuladas.

Feminismo revolucionário e o Mouvement de Libération des femmes

Três são as principais ‘tendências’ comumente identificadas no seio do MLF:15 15 Esses nomes eram reivindicados pelas próprias militantes. Porém, a visão de que essas constituiriam “correntes” foi considerada como simplificadora por algumas autoras (cf.PICQ, 2011; FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique. “Controverses et anathèmes au sein du féminisme français des années 1970”. Cahiers du genre, n. 39, p. 13-26, 2005). Deve-se ressaltar a historicidade dessas denominações e do conteúdo das mesmas. feminismo revolucionário, feminismo luta de classes e Psicanálise e Política. As análises acima apresentadas surgem em estreita relação com o feminismo revolucionário, orientação com a qual se identificavam Delphy, Wittig, Lesseps, Hennequin, para citar aqui somente aquelas que fariam parte da revista Questions Féministes. Um elemento unificador, no início dos anos 1970, era a ideia de que as mulheres formariam um “nós”, para além de outras diferenças como aquelas de classe.

Esse “nós”, no entanto, não implicava necessariamente uma adesão à ideia de classe tal como exposta acima, como elas próprias afirmam no jornal do movimento Le Torchonbrûle: “Entre nós, algumas pensavam que isso fazia das mulheres uma classe, outras, uma casta; e muitas se contentavam em pensar simplesmente que todas as mulheres têm alguma coisa em comum e que era desse comum que era necessário partir” (FÉMINISTES RÉVOLUTIONNAIRESFEMINISTES REVOLUTIONNAIRES. Le torchon brûle, n. 5, p. 8-10, [s.d.]., n. 5, p. 8, [s.d.].). Segundo Christine Delphy, a maioria dessas feministas considerava que as mulheres deveriam organizar-se entre elas e as concebiam em termos de classe, num sentido amplo, mas não no sentido dado por ela mesma, isto é, como categoria social “fundada em uma exploração econômica” (DELPHY; GIRAUD; JAMI; SINTOMER; 2004DELPHY, Christine. L’ennemi principal 1. Economie politique du patriarcat. Paris: Syllepse, 2004., p. 121).

Essa orientação se diferencia, por um lado, de uma tendência considerada ‘naturalista’ ou ‘diferencialista’, Psicanálise e Política, mas também de setores mais próximos das organizações de esquerda conhecidos como “feminismo luta de classes”. Embora esse último fosse crítico ao naturalismo e considerasse, diferentemente de alguns setores de esquerda da época, que a opressão feminina não poderia ser apreendida em termos individuais ou de mentalidades, não havia acordo com as feministas revolucionárias sobre qual seria a base material da opressão, sobre a possibilidade de se conceber uma unidade das mulheres para além das diferenças de classe e sobre quem se beneficiaria dessa opressão. Um trecho de um dos jornais publicado pela tendência luta de classes ilustra as diferenças entre essas duas tendências:

Nós nos separamos de outras correntes do MLF por conta da nossa análise da opressão das mulheres: esta não tem como base a ‘perversidade’ dos machos em geral, mas o sistema capitalista que cria relações de opressão e utiliza os homens como instrumentos dessa opressão [...] Nós também não pensamos que essa opressão seja a mesma para uma mulher operária e uma mulher burguesa: as vantagens que esta última tira do sistema contribui para afastá-la do combate pela sua libertação que passa pela Revolução socialista (PETROLEUSES, 1974, p. 2).

Questions Féministes

É em meados da década que se dão alguns momentos de encontro de algumas dessas feministas revolucionárias com outras feministas com trajetórias distintas que constituiriam o embrião da revista Questions Féministes. Destacamos dois deles: o Laboratório Sociologia da Dominância (LSD) e o Grupo Franco-Britânico. O LSD era um grupo informal que reuniu durante a primeira metade dos anos 1970 nomes como Colette Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu e Colette Capitan Peter. Segundo Guillaumin, este era “inteiramente centrado na análise dos sistemas hierárquicos e de dominação” (GUILLAUMIN, 1992GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique du pouvoir. Paris: Côté-femmes, 1992. [1977], p. 5). Dado o seu caráter informal, não temos praticamente registros do mesmo.

O Grupo Franco-Britânico “Catégories de sexe et catégories de classe/Economic Relations in Domestic Groups” era um grupo mais institucionalizado, ligado à Maison des Sciences de l’Homme, na França, e ao Social Science Research Council, na Inglaterra. Promoveu reuniões entre pesquisadoras francesas e inglesas como Jalna Hanmer, Jean Gardiner, Maxine Molyneux, Noëlle Bisseret, Capitan Peter, Delphy, Guillaumin, Lesseps, Mathieu e Monique Plaza. Alguns dos objetivos centrais do grupo eram discutir questões como “articulação entre patriarcado e capitalismo” e a “ideologia naturalista nas ciências sociais nas suas análises sobre classes sexuais” (MSH INFORMATION, 1976MSH INFORMATION. “Catégories de sexe et catégories de classe”. M.S.H Information. Bulletin de la Fondation Maison des Sciences de L’homme, n. 13, p. 18-19, juin 1976., p. 18).

Desses e de outros encontros, ocorridos em meados dos anos 1970, e em torno de uma perspectiva em comum, surge a ideia de criação de uma revista. Segundo Delphy, num texto de meados da década de 1980, a ideia partiu de um “grupo de trabalho de quatro mulheres” e da constatação de que a reflexão feminista não possuía um espaço apropriado na imprensa da época:

Não existia nenhum suporte para textos de mais de 3 páginas na imprensa da época; os textos longos eram impublicáveis nas revistas masculinas - e todas eram - científicas, políticas ou literárias, à exceção ocasionalmente de Les Temps modernes graças à presença de Simone de Beauvoir (DELPHYDELPHY, Christine. La revue Nouvelles Questions Féministes, [s.d.]. Dossiê por autor - Archives Recherches Cultures lesbiennes. (mimeo), [s.d.], p. 1).

O objetivo era criar uma revista teórica16 16 Estamos num contexto no qual a separação entre textos considerados “teóricos” e produções militantes é fortemente criticada (GUILLAUMIN, 1981). A teoria é pensada como algo que deveria ser uma “atividade de todo mundo” e que “cada uma possa não somente consumi-la mas também produzi-la” (COLLECTIF. “Variations sur des thèmes communs”. Questions Féministes, n. 1, p. 3, 1977). Apesar do perfil dos seus membros, a revista não se concebe como uma revista acadêmica ou universitária, diferentemente de revistas publicadas no mesmo período como, por exemplo, Signs e Feminist review. feminista radical.17 17 “Feminismo revolucionário” e “feminismo radical” são frequentemente usados como sinônimos nesse contexto. No editorial do primeiro número de Questions Féministes, os dois termos são empregados de forma intercambiável. A partir do final dos anos 1970, a expressão “feminismo radical” acaba se impondo por razões que desconhecemos. Em novembro de 1977 é lançado o primeiro número, tendo como coletivo de redação Colette Capitan Peter, Christine Delphy, Emmanuelle de Lesseps, Nicole-Claude Mathieu e Monique Plaza e, como diretora de publicação, Simone de Beauvoir. Colette Guillaumin, Claude Hannequin e Monique Wittig integram o coletivo posteriormente. Oito números foram publicados entre novembro de 1977 e maio de 1980. O editorial do primeiro número, Variations sur des thèmes communs, escrito de forma coletiva, pode ser considerado como uma síntese do projeto político da revista.

Uma grande parte do editorial constitui uma crítica virulenta à ideia de uma natureza feminina e de uma “diferença entre os sexos”. Para o coletivo, as categorias homens e mulheres devem ser compreendidas como uma construção histórica e, enquanto tais, passíveis de ser eliminadas através da destruição do sistema de relações que as constitui: “Destruir a diferença de sexo”, afirmam, é “suprimir a hierarquia que existe atualmente entre dois termos no qual um está em referência a outro e inferiorizado nessa comparação” (QUESTIONS FÉMINISTES, 1977, p. 5).

Em diversos momentos do texto ressalta-se que a existência social de homens e mulheres não tem relação com a existência de “macho ou de fêmea, da forma do seu sexo anatômico” (QUESTIONS FÉMINISTES, 1977, p. 5). O centro da reflexão deve ser as relações sociais de dominação que estruturam uma forma de dominação e forjam categorias pretensamente naturais. Essa crítica ao naturalismo, central nas reflexões do coletivo, seria objeto de diversos artigos publicados ao longo dos três anos de existência da revista.

O coletivo se posiciona também contra alguns setores mais próximos às organizações de esquerda. Além de recusar a ingerência de grupos político-partidários no feminismo, considera noções como ‘luta principal’ e ‘luta secundária’, assim como o que chamam de “terrorismo da explicação única pelo capitalismo” como falsas (QUESTIONS FÉMINISTES, 1977, p. 6). As tentativas de articular luta das mulheres e luta de classes a partir da teoria marxista não teriam conseguido questionar lacunas dessa teoria de referência. Nessas tentativas, o monopólio da classe operária e de um só sistema opressivo, o capitalismo, continuava como inquestionável.

Essas análises são consideradas como insuficientes também porque situam o ideológico e instituições sexistas somente no plano das mentalidades. Uma análise materialista deveria vincular “as mentalidades, as instituições, as leis sexistas às estruturas sócio-econômicas que as sustentam” (QUESTIONS FÉMINISTES, 1977, p. 29). Essas estruturas formam um sistema específico em relação ao capitalismo: o patriarcado.

O objetivo do feminismo é justamente denunciar esse sistema de opressão, as relações sociais que são a base dessa forma de organizar a sociedade, mostrando a possibilidade de superação dessas hierarquias:

Feministas, nós devemos mostrar o caráter histórico, social e, portanto, arbitrário e reversível dessa hierarquia de sexos e que não há ‘mulheres’ senão em relações de força desiguais que faz da opressão e da exploração de um grupo social a condição de poder do outro (QUESTIONS FÉMINISTES, 1977, p. 19).

A proposta é de uma subversão total desse sistema. Trata-se de “transformar agora relações sociais, econômicas e políticas que nos conduzem a classificar hierarquicamente, em grupos ditos ‘de sexo’, indivíduos identicamente humanos, de analisar, para destruir, o sistema de sexos sociais” (QUESTIONS FÉMINISTES, 1977, p. 18).

Cabe ainda mencionar que o fato de recusar a ideia de ‘mulher’ imposta pela sociedade como premissa essencialista não implicava, contudo, uma recusa em assumir essa categoria como possível meio de articulação política de um sujeito “mulheres”. Questions Féministes propõe partir da marca “anatômica” que o opressor criou e usou contra as mulheres para travar uma luta contra o sistema que engendrou tal marca:

Se é a partir da nossa anatomia de mulheres que nós fomos obrigadas a nos reunir politicamente, é também para não esquecer que essa categoria biológica é política, constituída por uma relação social de opressão e pela ideologia do opressor. Para não esquecer, para ter a coragem de reconhecer que se nós reunimos nossas forças de mulheres anatômicas, é para nos destruir enquanto mulheres sociológicas e, ao mesmo tempo, destruir os homens enquanto homens sociológicos (QUESTIONS FÉMINISTES, 1977, p. 17).

Apesar da sua existência efêmera (novembro de 1977-maio de 1980), foi um importante instrumento de divulgação de ideias do feminismo radical e marcou a cena feminista francesa da época e subsequente. Em 1980, debates em torno da questão da lesbianidade e do engajamento feminista (Claudie LESSELIER, 1991LESSELIER, Claudie. “Les regroupements de lesbiennes dans le mouvement féministe parisien: positions et problèmes 1970-1982”. In: GEF. Crises de la société, féminisme et changement. Paris: Éditions Tierce, 1991. p. 87-103.; Christine BARD, 2004BARD, Christine. “Le lesbianisme comme construction politique”. In: GUBIN, Éliane; JACQUES, Catherine et al. Le Siècle des féminismes. Paris: Les éditions de l’Atelier, 2004.; Cornelia MÖSER, 2013MÖSER, Cornelia. Féminismes en traductions. Théories voyageuses et traductions culturelles. Paris: Éditions des Archives Contemporaines, 2013.) provocam uma cisão no coletivo de redação e o fim da publicação. Seus membros se dispersam em outras iniciativas. Quatro, dentre elas, Delphy, Hennequin, Lesseps e Beauvoir lançam, em 1981DELPHY, Christine. “Le patriarcat, le féminisme et leurs intellectuelles”. Nouvelles Questions Féministes, n. 2, p. 58-74, 1981., uma nova revista, Nouvelles Questions Féministes, que existe até os dias atuais. Outras participam de outras iniciativas, como da revista estadunidense Feminist Issues.

Os caminhos seguidos por essas autoras nos anos subsequentes não foram os mesmos e essas teorizações ganharam desdobramentos particulares. Foge do escopo deste trabalho uma análise mais minuciosa de cada uma dessas autoras. O objetivo é mostrar algumas grandes linhas dessa reflexão. Para isso, partiremos de dois grandes ‘pilares’ dessa perspectiva: o antinaturalismo e o materialismo.

Antinaturalismo

A mulher não existe, é uma das criações do patriarcado destinadas a massacrar as mulheres.18 18 Frase de um questionário distribuído durante uma atividade do movimento e reproduzido em Politique Hebdo, n. 9, 3-9 dezembro de 1970.

A crítica ao naturalismo, que constituiu a plataforma crítica para a reflexão de muitas feministas do MLF, aparece já nos primeiros escritos do movimento e constitui um elemento central nas reflexões materialistas em questão. O antinaturalismo, também chamado de antiessencialismo, é usado aqui num sentido amplo, enquadrando diversos empreendimentos teóricos e militantes que se opunham ao uso da biologia para explicar fenômenos sociais. Essas teorias antinaturalistas ganharam contornos particulares nas diferentes correntes feministas e países. Podemos dizer que o elemento unificador é a crítica à ideia de uma “essência feminina” não somente quando essa era usada para fins opressivos (violência, desigualdade salarial, feminicídio), mas também nas formas consideradas mais “positivas” (apologia de valores femininos, valorização de elementos da biologia feminina etc.). Seria uma perspectiva que nos dias atuais poderia ser chamada de “construtivista”. Embora muitas análises atuais considerem o feminismo dos anos 1970 como essencialista e afirmem que suas proposições pressupõem uma ideia biológica do sexo, as autoras em questão neste trabalho não se posicionavam nesses termos.

Mathieu, desde o início dos anos 1970, contesta a forma como as ciências sociais abordavam a categoria “sexo”. Ela critica o caráter “trivial e fetiche” do sexo que repousaria sobre sua “evidência biológica” e afirma, em 1973, que “os sexos como produto social de relações sociais não parece[m] ter sido até o momento um objeto de interrogação” (Nicole-Claude MATHIEU, 1973MATHIEU, Nicole-Claude. “Homme-culture et femme-nature?”. L'homme, revue française d'anthropologie, v. XIII, n. 3, p. 101-113, 1973., p. 101). Ainda no início dessa década ela critica o uso do conceito de “papéis sexuais” por pressupor uma separação entre biologia e social que constituiria um obstáculo a uma definição sociológica do sexo. A ideia de “papéis”, afirma a autora, tem a vantagem de apresentar “os fatos do sexo” como “sistema no qual ambas as categorias estariam envolvidas” e ressaltar que há “modalidades sociológicas” que seriam elaboradas sobre as categorias biológicas de sexo. Entretanto, “corre-se o risco - contrariamente ao seu propósito - de confirmar a reificação das categorias de sexo sobre o biológico, que subentende o discurso científico habitual (como aquele da sociedade global) e cria obstáculo para uma definição propriamente sociológica do sexo (MATHIEU, 1977MATHIEU, Nicole-Claude. “Paternité biologique, maternité sociale”. In: MICHEL, Andrée (Org.). Femmes, sexisme et sociétés. Paris: PUF, 1977. p. 39-48. [1974], p. 39).

Guillaumin, a partir de outros caminhos teóricos, tendo como ponto de partida trabalhos sobre o racismo, mostrava, já no início dos anos 1970, como havia mecanismos comuns de naturalização das raças e dos sexos, notadamente o “tratamento análogo” ao qual estão submetidas “as diversas categorias alienadas ou oprimidas em nome de um final biológico irreversível” (GUILLAUMIN, 2002GUILLAUMIN, Colette. L’idéologie raciste. Genèse et langage actuel. Paris: Gallimard, 2002. [1972], p. 17).

Os grupos naturalizados, afirma Guillaumin, são justamente aqueles que se encontram numa relação desigual e são objeto de apropriação (GUILLAUMIN, 2016GUILLAUMIN, Colette. “Odile DHAVERNAS, Droit des femmes, pouvoir des femmes”. Paris: Ed. Du Seuil, 1978. (coll. “Libre à elles”)” [resenha]. Questions Féministes, n. 4, p. 102-103, 2016. [1978], p. 8). Seria somente em relações sociais determinadas (de dependência, de exploração) que se postularia a existência de “entidades naturais heterogêneas” (GUILLAUMIN, 2016 [1978], p. 168). Desta forma, a colonização e a apropriação a partir da escravidão, a apropriação do corpo das mulheres (tanto no casamento, “apropriação privada”, como uma “apropriação coletiva”) “induziram à proclamação de uma natureza específica dos grupos que estavam submetidos ou estão a essas relações” (Ibidem, p. 169).

A invenção da natureza não pode ser separada da dominação e da apropriação de seres humanos. [...] São relações sociais nas quais estes [grupos naturalizados] estão engajados (escravidão, casamento, trabalho imigrante) que os fabricam enquanto tal a cada instante; fora dessas relações eles não existem, eles não podem nem mesmo ser imaginados. Eles não são dados da natureza, são dados naturalizados de relações sociais (GUILLAUMIN, 1992GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique du pouvoir. Paris: Côté-femmes, 1992. [1977] [1977], p. 193-194).

Guillaumin (1992GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique du pouvoir. Paris: Côté-femmes, 1992. [1977]) critica algumas análises que mantêm uma ideia de realidades anatômico-fisiológicas, sobre as quais existiriam “ornamentos sociais” como “papéis” e “rituais” (p. 74). Incapazes de considerar as mulheres como classes, afirma, consideram-nas no máximo como “categorias naturais afetadas de adornos sócio-rituais” (GUILLAUMIN, 1992GUILLAUMIN, Colette. Sexe, race et pratique du pouvoir. Paris: Côté-femmes, 1992. [1977], p. 74). Para ela, é preciso romper também com a ideia de realidades fisiológicas sobre as quais se erigiriam diferenças.

Para Wittig, o primado da diferença sexual e a ideia que esta precede a sociedade seria o fundamento do pensamento straight. O sexo não teria existência a priori, isto é, anterior à sociedade, mas, pelo contrário, seria um produto da dominação, de uma dominação social das mulheres exercida pelos homens (WITTIG, 2007WITTIG, Monique. La Pensée Straight. Paris: Éditions Amsterdam, 2007., p. 38).

O que mostra uma análise materialista é que o que nós tomamos por causa ou por origem da opressão não é, na verdade, senão a marca que o opressor impõe aos oprimidos [...] A marca não preexiste à opressão (WITTIG, 2007WITTIG, Monique. La Pensée Straight. Paris: Éditions Amsterdam, 2007. [1980], p. 45).

Masculino e feminino, macho e fêmea são categorias que servem para “dissimular o fato [de] que as diferenças sociais advêm sempre de uma ordem econômica, política e ideológica” (WITTIG, 2007WITTIG, Monique. La Pensée Straight. Paris: Éditions Amsterdam, 2007. [1982], p. 36). Mas Wittig vai além. Para ela, embora a ideia de natureza tenha sido colocada em xeque em diversos domínios, restaria ainda um “nódulo de natureza” não questionado: a heterossexualidade. Esta é compreendida como um regime político fundado sobre relações de exploração, opressão e apropriação das mulheres pelos homens, ideia cujos desdobramentos não serão possíveis abordar aqui.

Trata-se de um contexto de ascensão de tendências “bionaturalistas” (GUILLAUMIN, 1975GUILLAUMIN, Colette. “Sciences sociales et biologie”. Bulletin du CERPP, n. 1, p. 3-10, 1975., p. 5) tanto dentro do movimento como fora. Nas ciências humanas, uma de suas manifestações foi a sociobiologia.19 19 Sobre esse contexto, ver: LEMERLE, Sébastien. Le singe, le gène et le neurone. Du retour du biologisme en France. Paris: PUF, 2014. Nessa configuração, o antinaturalismo torna-se um polo de reunião e de elaboração teórica das autoras que faziam parte do coletivo de redação de Questions Féministes. Christine Delphy, em 1981DELPHY, Christine. “Le patriarcat, le féminisme et leurs intellectuelles”. Nouvelles Questions Féministes, n. 2, p. 58-74, 1981., sintetizava as proposições do grupo:

Para resumir de maneira muito esquemática nosso trabalho, pensamos que o gênero - as posições sociais respectivas de mulheres e homens - não é construído sobre a categoria (aparentemente) natural do sexo; mas, ao contrário, o sexo tornou-se um fato pertinente e, portanto, uma categoria da percepção, a partir da criação da categoria de gênero, isto é, da divisão da humanidade em dois grupos antagonistas, dos quais um oprime o outro, os homens e as mulheres (p. 228).

Essas pequenas amostras indicam a radicalidade do antinaturalismo proposto por essas autoras ainda no final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Se algumas das primeiras formulações do conceito de gênero no contexto anglófono visando a confrontar uma perspectiva de correspondência obrigatória entre sexo e gênero20 20 Para diferentes formas de se conceituar a relação entre “sexo” e “gênero”, ver: NICHOLSON, Linda. “Interpretando o gênero”. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 2, 2000 e Mathieu (1991). representavam um avanço teórico e foram muito úteis no “combate aos determinismos biológicos”, não estendiam seu intento construtivista até a categoria sexo e natureza (Donna HARAWAY, 2004HARAWAY, Donna. “‘Gênero’ para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra”. Cadernos Pagu, n. 22, jan.-jun. 2004., p. 218). Esse questionamento seria realizado posteriormente. Outro aspecto, apontado por Eleni Varikas (2006VARIKAS, Eleni. Penser le sexe et le genre. Paris: PUF , 2006. (Parcialmente traduzido como Pensar o sexo e o gênero. Campinas: EDUnicamp, 2016)), é que se esse conceito, tal como foi concebido originalmente, contestava o caráter natural da bicategoriazação, mas pouco levava em consideração a dimensão política, a conflitualidade e a historicidade intrínsecas às práticas de diferenciação, estando assim afinado com um “funcionalismo dominante nas ciências sociais” (p. 56).

As autoras apresentadas neste artigo vêm de um referencial teórico distinto, para os quais a noção de conflitualidade, de antagonismo eram fundamentais. É justamente a articulação entre materialismo e antinaturalismo que torna essa perspectiva inovadora e frutífera e as faz escapar de uma reificação do sexo biológico.

Materialismo

Como se pode perceber, o antinaturalismo é concebido em relação direta com um certo materialismo. Não é na biologia que devem ser buscadas as causas da opressão, mas em relações sociais.

Se a relação com o marxismo foi de interlocução, foi também de crítica, ideia resumida na fórmula de Christine Delphy segundo a qual o marxismo foi o “inimigo principal e o interlocutor privilegiado” para o movimento. O materialismo do qual se trata aqui não é sinônimo de marxismo, embora este último fosse, como afirma Wittig, “a tradição na qual se formaram” (WITTIG, 2007WITTIG, Monique. La Pensée Straight. Paris: Éditions Amsterdam, 2007., p. 49). Para Delphy, quem cunhou o epíteto “feminismo materialista” no contexto francês,21 21 Delphy escreve, em 1975, o texto Pour um féminisme matérialiste, publicado em um número especial da revista L’Arc sobre Simone de Beauvoir. trata-se de uma apropriação de alguns elementos do marxismo.22 22 Ver, por exemplo, DELPHY, Christine. “Féminisme et marxisme”. In: MARUANI, Margareth (Org.). Femmes, genre et sociétés, l'état des savoirs. Paris: La Découverte, 2005. p. 32-37. Ela afirma ter tomado do marxismo as análises do capitalismo, bem como a ideia da “onipresença na história humana de grupos cujos interesses são antagônicos em decorrência da exploração de uns pelos outros, e, de outro lado, a hipótese de que os grupos não são constituídos a priori, mas, ao contrário, precisamente pela dominação” (DELPHY, 2010, p. 84). A fórmula “materialismo” permitiria mostrar a proximidade com o marxismo, mas uma adesão somente parcial das teorizações e usos do mesmo (DELPHY, 2009, p. 25).

Um exemplo de apropriação heterodoxa é aquele feito com o conceito de classe. Não se trata de relações sociais de produção ou do conceito de classe social tal como definido pelo marxismo. Não que o seu uso fosse negado para se analisar outros elementos da sociedade capitalista. Mas, para analisar o patriarcado, essas categorias precisariam ser reformuladas. É sobretudo a ideia de conflitualidade, de hierarquia, de reciprocidade dialética e de processo que é herdada desses conceitos oriundos do marxismo. Delphy ressalta a importância de uma análise em termos de “dominação de grupos sociais”, de conflito e de “sistema social” (DELPHY, 1975DELPHY, Christine. “Pour un féminisme matérialiste”. L’Arc, n. 61, p. 61-67, 1975., p. 62). Adotar uma “problemática de classes”, afirma, implica que a ênfase seja colocada na “relação que constitui mulheres e homens em grupos não somente diferentes mas, sobretudo e primeiramente, hierarquizados” (DELPHY, 1981, p. 66). É nesse sentido que o conceito de classe não se confunde com a ideia de “grupos” diferentes.

Guillaumin sublinha a importância da noção de processo na definição do materialismo (GUILLAUMIN, 1981, p. 56) como, por exemplo, na forma de se conceber os grupos naturalizados como constituídos por relações sociais entendendo que esses grupos não existem fora dessas relações. Ela ressalta que o seu trabalho foi guiado pelo princípio segundo o qual se deve partir de fatos materiais para se analisar as relações sociais.

O materialismo de Guillaumin - tanto nas suas análises do racismo como do sexismo - rompe não somente com algumas análises marxistas que diluem as relações de sexo e de raça nas relações de classe, como com um pretenso materialismo que afirma partir da matéria, da natureza, sem compreender que essa ideia de natureza é fruto de relações de dominação e, nesse sentido, constitui dados naturalizados de relações sociais.

Cabe ainda mencionar, sem intenção de aprofundar, que, a partir do final dos anos 1970, emerge uma série de reflexões, na esteira dos trabalhos apresentados, mas, ao mesmo tempo, críticos ao que consideram ser uma excessiva centralização das análises precedentes na família e à falta de esforço em articular patriarcado e capitalismo, sexo e classe social. Essas reflexões ganham força a partir de um frutífero debate entre a sociologia do trabalho e o pensamento feminista e são gestadas num debate coletivo realizado em diferentes espaços como congressos, grupos de trabalho e seminários e envolve pesquisadoras como Danièle Kergoat, Helena Hirata, Dominique FOUYGEROLLAS, Anne-Marie Devreux, entre outras. Essas reflexões procuraram, num primeiro momento, articular categorias como trabalho e família, produção e reprodução, concebidas muitas vezes como esferas separadas, e se opõem à ideia de que a base do patriarcado poderia ser localizada exclusivamente ou prioritariamente na família e depois se expandiriam para o conjunto da vida social. A ideia de articulação pretendia mostrar que não era possível pensar a esfera produtiva e reprodutiva de forma separada. Pouco depois, mesmo a ideia de articulação é considerada pouco apropriada e formula-se o conceito de relações sociais de sexo, concebido como uma relação que perpassa toda a realidade social.23 23 O livro Le sexe du travail (COLLECTIF. Le sexe du travail. Grenoble: Presse Universitaire de Grenoble, 1984) foi um dos primeiros resultados dessa reflexão coletiva. Para uma apresentação geral de algumas das ideias e conceitos que emergem desse debate, ver: BATTAGLIOLA, Françoise; COMBES, Danièle; DAUNE-RICHARD, Anne-Marie; DEVREUX, Anne-Marie; FERRAND, Michèle; LANGEVIN, Anette. A propos des rapports sociaux de sexe. Parcours épistemologiques. Paris: CSU, 1990; Pfefferkorn (2007).

Materialismos feministas

O marxismo, nas suas diferentes variações, foi um ponto de referência para diferentes setores da chamada “segunda onda” feminista. Se consideramos “materialismo” como sinônimo de “marxismo”, podemos reconhecer uma pluralidade de análises “materialistas” no feminismo dos anos 1970. Mas, no contexto francês, esse termo foi usado para fazer referência a um grupo preciso de autoras. Os nomes de Delphy, Guillaumin, Mathieu, Tabet e Wittig são invariavelmente citados. Plaza e Lesseps figuram menos nessa lista. Com exceção de Tabet, todas as outras fizeram parte da revista Questions Féministes. Algumas delas se reivindicavam “feministas revolucionárias” e, posteriormente, “feministas radicais”. É só posteriormente que o epíteto “feminismo materialista” passa a ser usado para caracterizar o trabalho dessas autoras.

Como procuramos mostrar, no início dos anos 1970, a ideia de uma “análise materialista” tem como principal foco a crítica a uma certa forma de se conceber a opressão feminina predominante nos meios de esquerda. Contrapondo-se a uma subsunção total dessa forma de opressão nas relações de classe, diversas autoras propõem partir de uma base material para explicar a opressão, sem, contudo, identificar essa base com as relações de classe. Essas primeiras tentativas atribuíram-lhe um sentido em grande medida econômico. Na segunda metade dos anos 1970, o contexto é outro e o centro da reflexão se altera. Com o crescimento das tendências biologizantes dentro e fora do movimento cria-se um polo de oposição ao naturalismo no feminismo. Esse polo teria como uma das suas mais importantes expressões a revista Questions Féministes, que reuniu feministas com diferentes trajetórias que compartilhavam a necessidade de produzir uma crítica ao naturalismo. Essa questão ganha uma preeminência em relação às discussões sobre a materialidade da opressão, embora coexista com a mesma. A noção de materialismo também se altera em relação ao período anterior. Grosso modo, pode-se dizer que os conceitos de relações sociais e de classe ganham um sentido mais “amplo”. As relações sociais não são apreendidas em termos de relações sociais de produção e a ideia classe, quando empregada para as mulheres, não remetia necessariamente a uma posição nas relações de produção.

Podemos localizar um terceiro momento, mais recente - e que não foi abordado neste trabalho - no qual se desenvolve uma série de teorias, notadamente no contexto estadunidense, identificadas como ‘pós-modernas’, ‘pós-estruturalistas’ e queer.24 24 Nesse tipo de debate essas categorias são usadas na França como quase intercambiáveis. Sobre isso, ver: Clair; Cervulle (2017). A chegada dessas teorizações no contexto francês dá novas colorações aos debates feministas neste país. Deve-se ressaltar que a recepção dos trabalhos de Judith Butler e de outras autoras identificadas como ‘pós-modernas’ ou ‘pós-estruturalistas’ - termos que nesse contexto de crítica são usados frequentemente como sinônimos no contexto francês - foi marcada por polêmicas.25 25 Para alguns elementos dessa polêmica, ver: Varikas (2016) e Möser (2013). Muitas se insurgem contra o que elas consideram como “o abandono da análise das relações sociais concretas” (MATHIEU, 2014MATHIEU, Nicole-Claude. “Dérive du genre/stábilité des sexes”. In: MATHIEU Nicole-Claude. L’anatomie politique 2. Paris: La Dispute, 2014a. [1994]a [1994], p. 323), isto é, “os aspectos simbólicos, discursivos e paródicos do gênero são privilegiados, em detrimento da realidade material e histórica de opressões sofridas pelas mulheres” (MATHIEU, 2014MATHIEU, Nicole-Claude. “Sexe et genre”. In: MATHIEU, Nicole-Claude. L’anatomie politique 2. Paris: La Dispute, 2014b. [2000]b [2000], p. 29-30). Em reação a essas teorizações surge um polo ‘materialista’ e é justamente nesse contexto que a fórmula ‘feminismo materialista’ começa a ser utilizada de forma mais frequente para se referir não somente às teorias desenvolvidas por Delphy, mas para um conjunto de autoras que davam centralidade às relações sociais e se opunham, em maior ou menor medida, às proposições pós-estruturalistas. Nos anos 2000, essa polarização transforma-se num dos grandes debates no seio dos estudos de gênero na França. Diversos autores procuraram tematizar as diferenças e afinidades entre essas duas perspectivas, tal como Marie-Hélène [agora Paul] Bourcier (2003BOURCIER, Marie-Hélène. “La fin de la domination masculine. Pouvoir des genres, féminismes et post-féminisme queer”. Multitudes, n. 12, p. 69-80, 2003.), Elsa Dorlin (2007DORLIN, Elsa. “Le Queer est un matérialisme”. In: COLLECTIF. Femmes, genre, féminisme. Paris, Syllepse, p. 47-58, 2007.), Sophie Noyé (2016NOYÉ, Sophie. “Féminisme matérialiste et queer Politique(s) d’un constructivisme radical. 2016. Tese (Ciência Política) - Institut d’Etudes Politiques de Paris, Paris, França.), Maxime Cervulle e Isabelle Clair (2017CERVULLE, Maxime; CLAIR, Isabele. “Lire entre les lignes: le féminisme matérialiste face au féminisme poststructuraliste”. Comment s’en sortir, n. 4, 2017.).

É, portanto, nesse período - anos 1990-2000 - e nessa configuração teórica particular que surge a ideia de uma corrente de pensamento estruturada e com os contornos que são mais conhecidos no momento atual. Nesse novo panorama, outras autoras, com outras trajetórias teóricas, como Danièle Kergoat e Anne-Marie Devreux, se apresentam mais recentemente como “feministas materialistas” (KERGOAT, 2012KERGOAT, Danièle. Se battre, disent-elles. Paris: La dispute, 2012.; Anne-Marie DEVREUX, 2004DEVREUX, Anne-Marie. Les propriétés formelles des rapports sociaux de sexe. Mémoire pour l’habilitation à diriger des recherches. Paris: Université Paris 8, 2004.). O elemento-chave dessa polarização não é a questão da “diferença sexual”, mas a “materialidade” da opressão. Há, portanto, um retorno à centralidade dos debates sobre a materialidade, compreendidos num sentido diferente daquele presente nos primeiros debates dos anos 1970.

Essas reflexões materialistas - nas suas versões traduzidas, atingindo assim um público mais amplo - chegam ao Brasil num momento de crise e regressões sociais. Nesse contexto, presencia-se descontentamento, por parte de alguns setores, tanto na pesquisa como na militância, com análises que não integram as diferenças de classe assim como a materialidade das relações de dominação. Trata-se de um momento particularmente fecundo para que o feminismo materialista seja debatido no Brasil. Esperamos que o diálogo com essa perspectiva contribua para novos debates e questionamentos na teoria e prática feminista no país.

Minibiografias

Christine Delphy é socióloga e pesquisadora do CNRS (Centre National de Recherche Scientifique), no qual entrou em 1970. Iniciou sua militância feminista no FMA (Féminin, Masculin, Avenir), participou ativamente das primeiras atividades do nascente MLF a partir de 1970 e da criação do grupo lésbico Gouines Rouges. Foi membro do comitê editorial da revista Questions Féministes (1977-1980) e Nouvelles Questions Féministes (1981-até hoje). Os seus principais artigos teóricos seriam republicados, a partir de 1998, em L’ennemi principal (dois tomos).

Colette Guillaumin (1934-2007) foi uma socióloga e foi pesquisadora do CNRS. Autora de L’ideologie raciste, publicado em 1972 (uma versão da sua tese defendida em 1969), escreveu diversos artigos sobre raça e racismo e, a partir de meados dos anos 1970, seus trabalhos se voltam também para os debates feministas. Uma parte da sua produção foi reunida e publicada, em 1992, na antologia de textos Sexe, race et pratique du pouvoir, reeditada no ano passado. Foi membro do comitê editorial da revista Questions Féministes e de outras como Le genre humain.

Nicole-Claude Mathieu (1937-2014) foi antropóloga. Em 1971, ela entra no Laboratoire d’Anthropologie sociale como redatora-chefe da revista L’homme e, posteriormente, da coleção “Les Cahiers de l’Homme”. Em 1990 ela torna-se professora (maître de conference) da École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Publicou, a partir de 1970, artigos relacionados à discussão sobre “sexo social”. Uma parte da sua produção foi reunida no livro L’anatomie politique, publicado em 1991 e republicado em 2015, e L’anatomie politique 2, publicado em 2014.

Monique Wittig (1935-2003) foi ensaísta, romancista e tradutora. Autora de diversos romances como L’Opoponax (1964) - com o qual ganhou o Prêmio Médicis -, Les Guérillères (1969), Le Corpslesbien (1973). Participou desde o início do MLF e de outras iniciativas lésbicas como o Gouines Rouges. Em 1976 ela se muda para os Estados Unidos, onde escreve a maior parte dos seus ensaios teóricos. Participa a distância da revista Questions Féministes. Alguns dos seus principais textos teóricos foram reunidos no livro, nos EUA, The Straight Mind and Other Essays em 1992 e publicado na França em 2001.

Emmanuelle de Lesseps é tradutora e começou sua militância feminista no FMA. Participou dos eventos fundadores do MLF. É autora do texto “Le viol” na primeira publicação coletiva do movimento, Partisans (Libération des femmes année zero) e traduziu para o francês obras como Scum manifesto, de Valeria Solanas, e diversos romances. Compôs o coletivo de redação da revista Questions Féministes. Nesta revista, publicou alguns artigos, entre eles o polêmico “Heterossexualidade e feminismo” (1980) no mesmo número em que saiu o artigo de Wittig “La pensée straight”. Esses artigos fazem parte de uma controvérsia que levaria ao fim dessa publicação em 1980. Fez parte do comitê de redação dos primeiros números da revista Nouvelles Questions Féministes.

Referências

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  • WITTIG, Monique. La Pensée Straight Paris: Éditions Amsterdam, 2007.
  • 1
    Cahiers du genre. “Analyse critique et féminismes matérialistes” hors-serie (2016); Comment s’em sortir, n. 4, “Matérialismes féministes” (2017); CERVULLE, Maxime; QUEMENER, Nelly; VOROS, Florian (Dir.). Matérialismes, culture & communication, Tome 2. Paris: Presses des Mines, 2016.
  • 2
    Para um outro tipo de materialismo, que não tem as mesmas filiações teóricas dos materialismos mencionados neste texto, chamado também de ‘novo materialismo’, ver, por exemplo, ALAIMO, Stacy; HEKMAN, Susan. New Materialism: Interviews & Cartographies. Reino Unido: Open University Press, 2012 e, para uma síntese, MÖSER, Cornelia. “Neo-matérialisme. Um nouveau courant féministe?”. In: CERVULLE, Maxime; QUEMENER, Nelly; VOROS, Florian (Dir.). Matérialismes, culture & communication, Tome 2. Paris: Presses des Mines, 2016. Em português, ver: ALAIMO, Stacy. “Feminismos transcorpóreos e o espaço ético da natureza”. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 2, p. 909-934, 2017 e COSTA, Claudia; FUNCK, Susana. “O Antropoceno, o pós-humano e o novo materialismo: intervenções feministas”. Revista Estudos Feministas, v. 25, n. 2, p. 903-908, 2017.
  • 3
    Este artigo é parte da tese Politizando a anatomia: antinaturalismo e materialismo no pensamento feminista francês (1960-1980), defendida na Unicamp, em 2016, sob orientação de Angela Araújo e com financiamento da FAPESP. A primeira parte deste texto foi publicada originalmente em francês na revista Comment s’en sortir, n. 4, 2017. Diversos arquivos foram consultados para este trabalho, notadamente: Archives de la Bibliothèque de la Maison des Sciences de l’homme (Paris); Archives de Recherches Cultures lesbiennes (ACRL-Paris); Fonds Anne Zelensky, Bibliothèque Marguerite Durand (Paris); RECUEILS. Bibliothèque National de France (BnF-Paris). Todos os trechos citados ao longo deste artigo foram traduzidos pela autora.
  • 4
    Para algumas definições de ‘feminismo materialista’, ver: CURIEL, Ochy; FALQUET, Jules. “Introdução”. In: FERREIRA, Verônica; ÁVILA, Maria Betânia; FALQUET, Jules; ABREU, Maira (Org.). O Patriarcado Desvendado: teorias de três feministas materialistas. Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu. Recife: SOS Corpo, 2016; BERENI, Laure; CHAUVIN, Sébastien; JAUNAIT, Alexandre; REVILLARD, Anne. Introduction aux études sur le genre. Bruxelles: De Boeck, 2008; PFEFFERKORN, Roland. Inégalités et rapports sociaux. Paris: La Dispute, 2007.
  • 5
    Informações biográficas sobre as autoras podem ser consultadas nas minibiografias no final deste artigo.
  • 6
    Mais recentemente, outras autoras, Danièle Kergoat, Anne-Marie Devreux, para mencionar somente autoras que começaram a produzir nos anos 1970-1980, também se reivindicam materialistas.
  • 7
    Com exceção dos textos de Danièle Kergoat, outras autoras identificadas com essa perspectiva praticamente não tinham sido objeto de tradução até 2014. Os únicos textos disponíveis eram: um de Christine Delphy (1978) e Guillaumin (1994GUILLAUMIN, Colette. “Enquanto Tivermos Mulheres para nos Darem Filhos”. Revista Estudos Feministas, número especial, p. 228-233, 1994.). A tradução em 2014 de algumas autoras ligadas a essa perspectiva como Colette Guillaumin, Nicole-Claude Mathieu, Paola Tabet (FERREIRA, Verônica; ÁVILA, Maria Betânia; FALQUET, Jules; ABREU, Maira (Org.). O Patriarcado Desvendado: teorias de três feministas materialistas. Colette Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu. Recife: SOS Corpo, 2014), a publicação, em 2015, de uma tradução do texto “O inimigo principal”, de Delphy (2015) e a publicação de alguns artigos de pesquisadoras que se reivindicam como parte dessa tradição, por exemplo Jules Falquet, alteraram esse quadro.
  • 8
    Foram realizadas entrevistas com Christine Delphy, Colette Guillaumin, Colette Capitan Peter, Emmanuelle de Lesseps, Danièle Kergoat e Anne-Marie Devreux em Paris entre 2012 e 2015.
  • 9
    Partisans (1961-1972) foi uma revista publicada pela editora Maspero. Posicionada na “esquerda da esquerda”, tratava-se, segundo Jean-Pierre Debourdeau (DEBOURDEAU, Jean-Pierre. “Maspero”. In: ARTOUS, Antoine et al. La France des années 1968. Paris: Syllepse, 2008), da publicação “que mais influenciou a juventude radicalizada da época” (p. 393). Tinha como eixo central a causa terceiro-mundista, embora estivesse aberta a outras temáticas, como o movimento negro, sexualidade etc. O número 54-55 da revista, intitulado Libération des femmes. Année zero e publicado no segundo semestre de 1970, é considerado a primeira publicação coletiva do movimento e é composto por textos escritos por feministas francesas e traduções de textos estadunidenses.
  • 10
    Sobre essa questão, Delphy afirma, em 1976: “O modo de produção doméstico, como modelo, como conjunto de relações de produção, existia anteriormente ao modo de produção capitalista. Ele é diferente, não há vínculo teórico entre os dois. Mas, há, evidentemente, vínculos concretos” (DELPHY, 2009 [1976], p. 248).
  • 11
    Como afirma Danièle LÉGER (1976), o artigo teria “provocado e continua a provocar muita polêmica” (DELPHY, Christine; LÉGER, Danièle. “Débat: capitalisme, patriarcat et lutte des femmes”. Revue Premier Mai, n. 2, p. 37-43, 1976). Para críticas à Delphy, ver, por exemplo, BARRETT, Michèle; McINTOSH, Mary. “Christine Delphy: Towards a Materialist Feminism?”. Feminist Review, n. 1, p. 95-106, 1979GUILLAUMIN, Colette. “Sexes: nous avons dit classes...”. Partis pris, n. 8, p. 9-15, março 1979. (Entrevista).
  • 12
    Margaret Benston (1937-1991) foi uma militante feminista canadense. Ela era química e lecionou na Universidade Simon Fraser, na qual foi uma das fundadoras de um programa de women’s studies.
  • 13
    O grupo Feminino, Masculino, Ação se radicaliza a partir de 1968 e ganha o nome “Feminismo, marxismo, ação”. A referência não aparece na versão publicada em livro (DELPHY, 2009).
  • 14
    Tal texto foi republicado em 2009 num livro que reuniu panfletos e manifestos do período (COLLECTIF, mlf// Textes premiers. Paris: Stock, 2009). Segundo Monique Wittig, foi ela mesma quem preparou a base deste texto: “Eu reli fervorosamente ‘A origem da família’, reli Marx o quanto pude e fabrico a minha pequena teoria feminista e marxista” (WITTIG, Monique. “Monique Wittig raconte...”. Prochoix, n. 46, p. 67, 2008. Entrevista realizada no final dos anos 1970 por Josy Thibaut).
  • 15
    Esses nomes eram reivindicados pelas próprias militantes. Porém, a visão de que essas constituiriam “correntes” foi considerada como simplificadora por algumas autoras (cf.PICQ, 2011PICQ, Françoise. Libération des femmes, quarante ans de mouvement. Brest: Éditions Dialogues, 2011.; FOUGEYROLLAS-SCHWEBEL, Dominique. “Controverses et anathèmes au sein du féminisme français des années 1970”. Cahiers du genre, n. 39, p. 13-26, 2005). Deve-se ressaltar a historicidade dessas denominações e do conteúdo das mesmas.
  • 16
    Estamos num contexto no qual a separação entre textos considerados “teóricos” e produções militantes é fortemente criticada (GUILLAUMIN, 1981). A teoria é pensada como algo que deveria ser uma “atividade de todo mundo” e que “cada uma possa não somente consumi-la mas também produzi-la” (COLLECTIF. “Variations sur des thèmes communs”. Questions Féministes, n. 1, p. 3, 1977). Apesar do perfil dos seus membros, a revista não se concebe como uma revista acadêmica ou universitária, diferentemente de revistas publicadas no mesmo período como, por exemplo, Signs e Feminist review.
  • 17
    “Feminismo revolucionário” e “feminismo radical” são frequentemente usados como sinônimos nesse contexto. No editorial do primeiro número de Questions Féministes, os dois termos são empregados de forma intercambiável. A partir do final dos anos 1970, a expressão “feminismo radical” acaba se impondo por razões que desconhecemos.
  • 18
    Frase de um questionário distribuído durante uma atividade do movimento e reproduzido em Politique Hebdo, n. 9, 3-9 dezembro de 1970.
  • 19
    Sobre esse contexto, ver: LEMERLE, Sébastien. Le singe, le gène et le neurone. Du retour du biologisme en France. Paris: PUF, 2014.
  • 20
    Para diferentes formas de se conceituar a relação entre “sexo” e “gênero”, ver: NICHOLSON, Linda. “Interpretando o gênero”. Revista Estudos Feministas, v. 8, n. 2, 2000 e Mathieu (1991).
  • 21
    Delphy escreve, em 1975, o texto Pour um féminisme matérialiste, publicado em um número especial da revista L’Arc sobre Simone de Beauvoir.
  • 22
    Ver, por exemplo, DELPHY, Christine. “Féminisme et marxisme”. In: MARUANI, Margareth (Org.). Femmes, genre et sociétés, l'état des savoirs. Paris: La Découverte, 2005. p. 32-37.
  • 23
    O livro Le sexe du travail (COLLECTIF. Le sexe du travail. Grenoble: Presse Universitaire de Grenoble, 1984) foi um dos primeiros resultados dessa reflexão coletiva. Para uma apresentação geral de algumas das ideias e conceitos que emergem desse debate, ver: BATTAGLIOLA, Françoise; COMBES, Danièle; DAUNE-RICHARD, Anne-Marie; DEVREUX, Anne-Marie; FERRAND, Michèle; LANGEVIN, Anette. A propos des rapports sociaux de sexe. Parcours épistemologiques. Paris: CSU, 1990; Pfefferkorn (2007).
  • 24
    Nesse tipo de debate essas categorias são usadas na França como quase intercambiáveis. Sobre isso, ver: Clair; Cervulle (2017).
  • 25
    Para alguns elementos dessa polêmica, ver: Varikas (2016) e Möser (2013).
  • Maira Abreu (mairabreu@yahoo.com) é pós-doutoranda em Sociologia na Universidade de São Paulo com bolsa da FAPESP. Doutora em Ciências Sociais (2016) pela Universidade Estadual de Campinas e mestre em Sociologia (2010) pela mesma universidade. É autora de Feminismo no exílio: o Círculo de Mulheres Brasileiras em Paris e o Grupo Latino-Americano de Mulheres em Paris (São Paulo: Alameda, 2016) e uma das organizadoras da coletânea de artigos de autoras feministas materialistas francesas Patriarcado desvendado: teorias de três feministas materialistas, publicada pela Editora SOS-Corpo em 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2018
  • Data do Fascículo
    2018

Histórico

  • Recebido
    24 Nov 2017
  • Aceito
    10 Abr 2018
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