Acessibilidade / Reportar erro

Uma análise crítica do direito à diferença

Resenhas

Uma análise crítica do direito à diferença

Ciladas da diferença.

PIERUCCI, Antônio Flávio.

São Paulo: 34, 1998. 222p.

Muito pouco se discutem os efeitos políticos e as conseqüências sociais de um determinado tipo de discurso, típico dos movimentos sociais de esquerda: o discurso do "direito à diferença". Ciladas da diferença, de Antônio Flávio Pierucci, é um livro que se presta a fomentar esse debate, e como o próprio título nos sugere, aponta os dilemas e os riscos de se eleger a atenção social à diferença como um princípio das lutas políticas.

Formalmente, o livro se divide em sete capítulos, distribuídos em duas partes, e resulta da compilação de artigos já publicados pelo autor em periódicos, conferências e capítulos de outros livros. Grande parte dos argumentos desenvolvidos por Pierucci tem o apoio de dados empíricos colhidos e analisados pelo autor em pesquisas anteriores, tendo como sujeitos pessoas pertencentes às camadas médias da cidade de São Paulo. A seguir, destaco os principais temas e teses em que o autor se detém, sem necessariamente seguir a ordem em que eles aparecem. Interessa mais, para os fins desta resenha, sublinhar a necessidade de analisarmos com maior cuidado o "discurso da diferença". Vale dizer, antes de tudo, que o autor não está questionando a diferença de fato, a condição singular de cada pessoa, mas a emergência de "novos" modos de se exigir o reconhecimento político e social da diferença.

O primeiro argumento desenvolvido por Pierucci é na verdade uma lembrança, encoberta pelo "charme" e pelo "fascínio" dos discursos de esquerda que afirmam o primado da diferença. Trata-se do fato de que a obsessão pela diferença é originalmente uma característica da direita política. É a direita que, historicamente, nega-se a aceitar o princípio de igualdade entre os seres humanos, justificando a desigualdade pelo fato "concreto" das diferenças entre os grupos coletivos étnico-culturais. Assim, tudo o que parece inovador nos discursos da diferença é na verdade um retorno a uma velha pauta de princípios da direita. O próprio racismo está centrado na ênfase à diferença, no caso, rejeitando-a e a indicando como a fonte "natural" da desigualdade social. Em razão disso, Pierucci assinala a aproximação dos discursos de esquerda que enunciam o "direito à diferença" aos velhos argumentos da direita, pelo fato de ambos apoiarem a diferença em um dado natural e sensível: o corpo.

O contraste entre a direita e a esquerda em relação à diferença se realiza pelo fato de que, para a segunda, não há razão em se optar ou pela igualdade ou pela diferença. Supõe-se, inclusive, nos meios intelectualizados de esquerda, que a desigualdade nada tenha a ver com a diferença. Para Pierucci, é nesse ponto que reside o equívoco que constitui uma das "ciladas" da diferença: a crença de que a defesa da diferença possa se desvincular das relações de valor que fundamentam a desigualdade. A partir do antropólogo Luis Dumont, o autor demonstra que não há como enfatizar a diferença sem afirmar ao mesmo tempo uma distinção de valor. Por essa razão, anunciar a condição de "diferentes, mas iguais", ou de "igualdade na diferença" é correr o risco de eleger uma luta possível mais no discurso do que na realidade. Nesse sentido, a conclusão do autor é que anunciar o "direito à diferença" é uma postura mais coerente na direita do que na esquerda política.

Estranha Pierucci que certos movimentos identitários de esquerda tenham como mote a ênfase numa diferença sensível (cor da pele, sexo etc), através de discursos pautados em políticas do corpo que lembram o peso fornecido pela direita aos dados naturais. Para o autor, a esquerda sempre esteve mais próxima das lutas pela igualdade, que implicam uma postura de abstração das particularidades, enquanto a direita é que tem enfatizado os dados concretos oferecidos à esfera sensível. Se antes era a direita que exigia a manutenção de mecanismos de pertencimento dos sujeitos que valorizam dados naturais, agora é a esquerda que defende políticas do corpo que se utilizam dessas estratégias políticas.

Pierucci esforça-se em elucidar seus argumentos à luz da análise de acontecimentos de nível internacional e que demonstram como podem se evidenciar as "ciladas da diferença". Um deles é a efervescência política e conceitual gerada no campo jurídico norte-americano através do caso Sears, onde duas posições opostas de diferentes vertentes do movimento feminista entraram em confronto, no intuito de verificar a presença de discriminação sexual nos processos de contratação de uma grande empresa varejista nos Estados Unidos. Entre a demanda política pela igualdade dos sexos e a emergência do discurso da "diferença" da experiência das mulheres, engendrou-se um debate histórico de repercussões até hoje discutidas.

Cumpre destacar que uma das autoras feministas enquadradas por Pierucci como representante do "discurso da diferença" é a historiadora Joan W. Scott. Essa autora, analisando os dilemas do feminismo a partir do caso Sears sob a ótica pós-estruturalista, desconstrói o pensamento dicotômico que opõe a igualdade à diferença.1 1 SCOTT, Joan. W. "Igualdade versus diferença: os usos da teoria pós-estruturalista." Debate Feminista (Cidadania e Feminismo), nº especial, 2000, p. 203-222. Para ela, tais aspectos, no contexto das relações de gênero, estão em uma relação de interdependência onde "a igualdade não é a eliminação da diferença, e a diferença não exclui a igualdade" (Ibid. p. 209). Embora aponte os riscos que a ênfase na diferença incorre, como o da naturalização dessa condição, Scott propõe que não se perca o poder analítico dessa categoria. Seu argumento aponta a relevância de se insistir no caminho da diferença como a principal forma de se superar o absolutismo do masculino. Na análise de Scott, o reconhecimento da diferença e o resgate das "experiências das mulheres" são estratégias políticas necessárias ao movimento feminista.

Pierucci se contrapõe ao ponto de vista da autora, mostrando ser difícil ir a fundo na lógica diferencialista sem incorrer em algum modo de discriminação. A tentativa de conciliar a luta pela igualdade com a defesa do "direito à diferença", para o autor, ignora a impossibilidade de se separar a diferença dos atributos sociais de valor. Nesse sentido, aprofundar esse debate inclui considerar que "o jogo político é também uma guerra semântica" (p. 43).

É na tese da produtividade da diferença que o autor sofistica sua análise, mostrando o quanto a diferença se destina a gerar mais diferença. O discurso do direito à diferença tem como pauta principal a contraposição ao princípio universalista moderno, defendendo que a condição específica de alguns sujeitos não está contemplada nesse âmbito social e político. É o caso do movimento feminista de "segunda onda", nos termos do autor, cuja ênfase na não adequação dos "direitos humanos" à condição da mulher resulta por exigir o "direito à diferença". Afirmando que os sujeitos são sexualmente engendrados, essa vertente do movimento feminista aponta a inexistência do sujeito abstrato dos direitos humanos e a necessidade de se incluir a "diferença" das mulheres nesse contexto. É nesse ponto que se produz a grande "cilada da diferença" proposta por Pierucci, instalando-se um dilema entre abstrato/universal e concreto/particular. Esse discurso, ao se desvincular do compromisso com a abstração das particularidades, assume a demanda pelo reconhecimento e pela valorização de novas diferenças que atravessam seu caminho. No exemplo de Pierucci, tão logo se observou a diferença das mulheres, emergiram as "diferenças de dentro": as mulheres não-brancas passaram exigir que se contemplasse sua diferença, não mais de gênero, mas de etnia. O argumento permanece o mesmo: a noção de "mulher universal" é criticada como mera abstração, válida apenas para as mulheres brancas. É próprio da diferença, portanto, abrir demandas pelo aparecimento de outras diferenças, sempre pautadas no que é no fundo um dado natural e visível. O aspecto irônico de todo esse processo, para o autor, traduz-se no fato de que são esses mesmos discursos os primeiros a se contraporem a todo tipo de essencialismo.

No apogeu da produção da diferença Pierucci identifica as perspectivas que se anunciam como "multiculturalistas", tão comentadas no meio acadêmico atual. Junto com as críticas pós-modernas ao sujeito universal, afirma-se cada vez mais o primado da diferença, onde as "múltiplas etnicidades", as "múltiplas culturas", são categorias de análise que caracterizam todo o processo gerado pela valorização da diferença no mundo contemporâneo. O autor resume esse processo dizendo que se trata do desdobramento da igualdade na diferença e desta última nas diferenças presentes em todo tipo de "múltiplos" que se defende nas teorias pós-modernas. Por isso, diz Pierucci, "a diferença jamais é uma só, mas sempre já-plural, sempre sobrando, muitas; sem unidade e sem união alguma possível" (p. 150).

Pierucci não se arrisca tão explicitamente a apontar algum caminho, mas dá indícios de que um modo de superarmos os dilemas da diferença é reconstruir o "geral", sem essencializar as diferenças. Reconhece o autor que, a despeito de seus efeitos perversos, o discurso da diferença tem produzido interessantes formas de emancipação humana. No entanto, ao denunciar os labirintos que construímos pela ênfase na diferença, alerta-nos contra as ciladas que possamos eventualmente cair sem considerar as implicações dos lemas que embandeiramos.

ADRIANO HENRIQUE NUERNBERG

  • 1
    SCOTT, Joan. W. "Igualdade versus diferença: os usos da teoria pós-estruturalista."
    Debate Feminista (Cidadania e Feminismo), nº especial, 2000, p. 203-222.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2002
    • Data do Fascículo
      2001
    Centro de Filosofia e Ciências Humanas e Centro de Comunicação e Expressão da Universidade Federal de Santa Catarina Campus Universitário - Trindade, 88040-970 Florianópolis SC - Brasil, Tel. (55 48) 3331-8211, Fax: (55 48) 3331-9751 - Florianópolis - SC - Brazil
    E-mail: ref@cfh.ufsc.br