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Artefatos de gênero na arte do barro: masculinidades e femininidades

Gender in ceramic artifacts: masculinities and femininities

Resumos

Este é um estudo sobre gênero na produção artística de peças de cerâmica em algumas comunidades de artesãos do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, onde tradicionalmente apenas as mulheres chamadas "paneleiras" praticavam esse ofício, que era transmitido de mãe para filha. Naquela região, assim que a arte do barro se tornou uma fonte alternativa de renda, vários homens decidiram entrar para o ofício. A entrada de homens na arte do barro provocou reconfigurações nas relações de gênero. Um ponto muito importante a ser observado aqui é que apesar de tradicionalmente transmitida por mulheres e pela ação feminina, a arte do barro tem incorporado valores de masculinidade: ao se aproximarem de um ofício tradicionalmente feminino, os homens passaram a retirar dele recursos simbólicos de representação de masculinidade.

cerâmica; gênero; antropologia


This is a gender study on the artistic production of ceramic in some communities of Jequitinhonha Valley, Minas Gerais, Brazil. Traditionally only women, who were called 'potters', produced this kind of craft in that region and it used to be taught from mothers to daughters. As ceramic artifacts became an alternative source of income, men decided to produce them. The entrance of men in the craft caused some re-elaboration of gender relations in those communities, and allowed us to detect gender not as a set of fixed corporifications, but as something under constant construction. A very important point here is that, although transmitted by women and a result of feminine activity, the production of ceramic incorporated male values. When men gained access to a traditionally defined feminine activity, they were able to draw from the craft symbolic resources for the representation of masculinity.

ceramic; gender; anthropology


Artefatos de gênero na arte do barro: masculinidades e femininidades

SÔNIA MISSAGIA DE MATOS

Resumo: Este é um estudo sobre gênero na produção artística de peças de cerâmica em algumas comunidades de artesãos do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, onde tradicionalmente apenas as mulheres chamadas "paneleiras" praticavam esse ofício, que era transmitido de mãe para filha. Naquela região, assim que a arte do barro se tornou uma fonte alternativa de renda, vários homens decidiram entrar para o ofício. A entrada de homens na arte do barro provocou reconfigurações nas relações de gênero. Um ponto muito importante a ser observado aqui é que apesar de tradicionalmente transmitida por mulheres e pela ação feminina, a arte do barro tem incorporado valores de masculinidade: ao se aproximarem de um ofício tradicionalmente feminino, os homens passaram a retirar dele recursos simbólicos de representação de masculinidade.

Palavras-chave: cerâmica, gênero, antropologia.

Em suas relações com os outros, as pessoas sexuam os órgãos. Eles se tornam evidências da ativação bem sucedida daquelas relações.1 1 STRATHERN, 1988, p. 208.

Este artigo é um estudo sobre gênero na produção artística de peças de cerâmica em algumas comunidades de artesãos do Vale do Jequitinhonha, região nordeste de Minas Gerais.2 2 Este artigo é uma adaptação do quarto capítulo de minha tese de doutorado, defendida em setembro de 1998, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unicamp, sob a orientação da Prof.ª Drª Suely Kofes. A pesquisa de campo foi realizada entre março de 1997 e fevereiro de 1998. Com seus vários municípios, o Vale cobre uma área equivalente a 14,5% da superfície do estado. Grande porcentagem de sua população está em bairros rurais, definidos por Queiroz como "os agrupamentos sócio-econômicos e culturais fundamentais, nos quais se tecem as relações entre as famílias de sitiantes que neles habitam e que servem de intermediários entre a unidade familiar e a sociedade mais ampla".3 3 QUEIROZ, 1979, p. 14. É comum as pessoas residirem como proprietários, agregados ou posseiros em pequenas localidades, onde praticam a policultura, baseada no trabalho familiar, sem assalariados. A economia da região se concentrou nas atividades agrícolas após o esgotamento do ciclo da mineração, que se desenvolveu nos séculos XVII e XVIII, o que explica o nome de tantas cidades do Vale como Diamantina, Pedra Azul, Turmalina, Carbonita, Berilo, entre outras.

Essa região que hoje é nacional e internacionalmente conhecida pela pobreza econômica de sua gente e pela riqueza natural de seu sub-solo,4 4 São encontrados no Vale os seguintes minerais: diamante, ouro, quartzo, manganês, cromo, cianita, alumínio, caulim, ferro, feldspato, mica, berilo, crisoberilo, fosfato, grafita, turmalina, minérios de lítio, calcário-dolomito, talco-esteativo, espinélio, lazulita, sulfetos, platina, turquesa-wavelita e turfa. Desses minérios, no que se refere aos recursos oficialmente marcados, são significativos o diamante, minérios de lítio (100% da produção brasileira), grafita (45% da produção brasileira) e cianita (26,5% das reservas medidas brasileiras). Tudo isso não tem sido levado em conta, como fator natural, para contribuir com o desenvolvimento regional. As melhores lavras estão entregues a grandes mineradoras, que recebem a concessão por tempo indeterminado e não cumprem as exigências dos órgãos ambientais na implementação de práticas de controle e recuperação de impactos ambientais. "Caravana do Jequitinhonha: 3 a 9 de outubro de 1995". Documento do PT (acessoria especial José Graziano), p. 46-47. também o é pela beleza de seu artesanato, que abrange a olaria, a tecelagem, o trançado com fibras vegetais e trabalhos em renda, couro, madeira e bordados. Esse artesanato nasceu ligado às atividades cotidianas, que compreendem técnicas de produção como a agricultura e a criação de pequenos animais. Ele é desenvolvido nas camadas de renda mais baixa do Vale, revelando alguns traços em comum com aqueles apontados por Antonio Candido, Lia Freitas de Assis Fukui e Lecoq Müller em seus estudos sobre a cultura brasileira: a rarefação da população, o isolamento, o trabalho familiar, o mutirão, o uso das terras na categoria de sitiantes, posseiros ou agregados, o sentimento de parentela, o compadrio.

Quando pela primeira vez fui ao Vale do Jequitinhonha, com a intenção de desenvolver esta pesquisa, levava comigo um projeto sobre o artesanato de barro da região, um locus que eu havia definido como privilegiado para estudos de gênero. Havia escolhido o artesanato de barro por tratar-se de um saber que vem sendo transmitido de mãe para filha por gerações e gerações. Tal fato não me parecia reduzir-se a um mero ensinar de técnicas. Eu perguntava: o que estaria sendo transmitido de mãe para filha, de geração para geração, de mulher para mulher junto com esse saber manipular o barro? O que me parecia é que havia no desenvolvimento de seus trabalhos a imagem que elas construíam de si próprias e do mundo em que viviam. Assim, vivendo a memória dada a elas mesmas e aos outros, elas aprendiam a tornar-se mulheres.5 5 BEAUVOIR, 1970.

Mas outro fato passou a me intrigar: a participação de homens na elaboração dessas peças de barro, nessa atividade que na região sempre foi predominantemente feminina. A entrada de homens no exercício desse trabalho — embora recente e de percentagem reduzida — parecia significativa, tendo em vista minhas indagações sobre gênero. Não estaria ocorrendo aqui um questionamento de valores culturais? Uma subversão do cotidiano e de relações cristalizadas? Também os homens passariam essa arte de pai para filho, imprimiriam nela valores de masculinidade que também os construiriam?

Apesar da validade e da pertinência do esforço inicial da elaboração do projeto, os fatos e as situações com as quais fui me deparando no decorrer do trabalho de campo, assim como a intensificação das leituras e das reflexões — principalmente centradas nas teorias feministas, mas aliadas à intensificação de leituras e reflexões sobre as teorias antropológicas —, foram multiplicando minhas perguntas e dúvidas. A procura de respostas para as novas questões que surgiam levou-me a ampliar minhas observações e meu modo de entender gênero. Assim, posso agora avaliar que, se minha motivação inicial estava limitada a uma determinada área dos estudos feministas, os "Estudos de Mulheres", com a intensificação dos trabalhos minha busca foi se modificando e, sem desconsiderar como as relações podem ser marcadas pela dominação e pela subordinação, não só me dei conta da dimensão relacional entre homens e mulheres, como também passei a entender gênero para muito além dessas relações.

Um dos pontos importantes que essa reavaliação me proporcionou foi a constatação de que o esforço para fazer avançar os estudos sobre gênero não tem o significado de impor a esses estudos uma claridade conceitual, ou remover deles toda a ambigüidade, porque os debates que esses estudos instauram não pretendem apenas descrever as diversidades sociais colocadas sob questionamento, mas desvelar interesses que estão por trás de tais descrições.

Assim, no decorrer do processo tive a oportunidade de constatar também que muito embora certos comportamentos, certos acontecimentos, possam ser vistos como neutros em gênero, os sinais deixados pela ação de gênero se espalham por todos os níveis do social e não apenas pelo corpo. Passei a perceber ainda que como acontece com quaisquer outros símbolos, o simbolismo de gênero não pode ser visto sem uma apreciação do lugar que lhe é específico em um sistema de significados mais abrangente e, como qualquer outro simbolismo, é investido de significados pela sociedade que o produz.

Tal como os tecidos de Roça Grande, estudados por Luciana Bittencourt, esses artefatos são símbolos, sinais portadores de referenciais que dão sentido e norteiam seus modos de estar no mundo, são uma trama onde se torna possível apreender o sentido dos acontecimentos vividos.6 6 BITTENCOURT, 1993. Como o sistema de significado e de símbolos culturais que operam nos discursos e nas práticas da reprodução do simbolismo de gênero estão nos acontecimentos vividos, ou seja, difusamente, disseminados por todos os níveis do social (família, idade, status, prestígio, trabalho, linguagem, classe), tentei relacionar o simbolismo de gênero a outros símbolos e significados culturais, assim como à forma de vida e das experiências sociais na região.

Para tal, e seguindo o trabalho de Ortner e Whitehead, levantei também algumas questões sobre os contextos político, econômico e social que podem operar na construção de gênero.7 7 Ver ORTNER e WHITEHEAD, 1992, p. 2-6. O Vale do Jequitinhonha tem passado por um processo de mudanças e transformações que está intimamente associado ao chamado "processo de modernização" daquela localidade. O impacto desse processo nas experiências de vida dessas comunidades aparece quando se leva em conta espaços mais urbanizados da região, nos quais têm sido introduzidos de forma mais intensa novos agentes sociais, como as pastorais católicas, as agências estatais de assistência, as ONGs, as várias associações e os meios de comunicação de massa (em particular o rádio e a televisão). O impacto aparece ainda quando se leva em conta que diversas pessoas, dos mais diversos locais do Vale, tiveram aumentadas as possibilidades de se locomover mais facilmente, inclusive para grandes centros urbanos, onde puderam conviver com modos diferentes de vida. Sem dúvida, a alteração do contexto pelo que se costuma chamar "desenvolvimento do Vale" acarretou mudanças que se fizeram presentes também no que concerne a gênero.

É possível observar hoje que muitos homens e mulheres daquela região romperam com algumas práticas culturais existentes, baseadas em diferenças consideradas como naturais e passaram a participar, de um modo mais igualitário, em diversas atividades políticas e domésticas. Mas, como mostra Strathern, o fato de que tanto os homens quanto as mulheres participem nas atividades políticas e domésticas não é negar a própria categorização de gênero, é "realocar o seu foco".8 8 STRATHERN, 1988, p. 68.

Mas sob que foco estariam colocados os significados que operam nos discursos e nas práticas de gênero no Vale e que fazem pressupor que diferenças entre pessoas possam ser consideradas como naturais? Através das entrevistas e das observações realizadas em campo pude verificar que, no mundo em que os ceramistas vivem e interagem, a dicotomia masculino-feminino, significando homem e mulher, é uma metáfora muito forte que separa os seres humanos em dois conjuntos e constitui-lhes as identidades. Como é comum às regiões, tanto rurais quanto urbanas, onde a dicotomia masculino-feminino opera dessa forma, é essa mesma divisão que no Vale serve de base para a internalização de esquemas de distinções na divisão de gênero na organização do trabalho. Ela torna visível a atribuição simbólica de gênero a objetos como a casa e suas divisões, a cores, a locais de interação social. Acontece, por analogia, o mesmo com a natureza e com dois níveis da experiência humana: as relações sociais em geral e o mundo das emoções e dos sentimentos.9 9 ALMEIDA, 1995. p. 60. Ver também BOURDIEU, 1995, p. 96, e 1997, p. 72-95.

É sustentando, de modo simbólico, a mesma oposição dicotômica entre as noções de "controle" e "adaptação", e assim estabelecendo um relacionamento de sujeito-objeto entre cultura e natureza, que as distinções entre "masculino" e "feminino" adquirem um sentido de oposição. Tais distinções têm um impacto mais claro em termos biológico-reprodutivos, de forma que há um constante empenho em se remeter as diferenças comportamentais para a biologia. Apesar de não concebermos sempre natureza e cultura como opostos, uma questão fundamental aqui é que, na sociedade, as noções de masculino e feminino envolvem um relacionamento de oposições hierárquicas. E, a despeito do modo pelo qual essas noções são empregadas, tende a haver uma equiparação da mulher com a natureza.10 10 Como mostra STRATHERN (1987, p. 182-185), trazemos esses termos dentro de várias outras relações, "como um continuum, um processo, uma hierarquia — essas relações são redirecionadas às categorias masculino e feminino para produzir uma série de afirmações não dicotômicas entre elas. Dessa forma, do equacionamento entre mulher e natureza, pode seguir que: as mulheres são mais "naturais" — em um ponto particular de um continuum; que o poder da natureza das mulheres pode ser controlado pelas estratégias culturais — da mesma forma que o mundo pode ser domesticado, uma questão de processo; as mulheres são avaliadas como inferiores — valor hierárquico; que elas têm um potencial generalizado de realizações, em relação ao potencial particular dos homens".

Essa construção natural de homens e mulheres funda-se em características biológicas e em idéias e atitudes a elas associadas. Entre os conceitos de nossa tradição de pensamento, os de "natureza" e "cultura", postos de modo dicotômico, são de grande importância para ajudar a entender o imaginário que elabora essa construção — uma vez que esse par binário permite entender que tudo o que existe no mundo ou é natural, dado pela natureza, ou cultural, elaborado pelo homem. Esse par de opostos, aliado a vários outros fatores, tem uma função cognitiva e serve como tentativa de explicação da realidade. Assim, homens e mulheres, embora muitas vezes participando das mesmas atividades, tanto as consideradas políticas quanto as consideradas domésticas, têm suas diferenças entendidas como "de sexo", e estas estendidas para as metas de suas ações sociais.

Ao tentar verificar possíveis reelaborações no sistema simbólico de gênero na região, como apontei acima, devidas à recente participação de homens na arte do barro como produtores de cerâmica, tento localizar alguns símbolos e significados culturais que no Vale operam nas práticas e nos discursos de reprodução de categorias de gênero. Algumas das pessoas entrevistadas pensam a divisão entre homens e mulheres como inevitável e não modificável, algo considerado como "uma coisa que Deus marcou a cada um de nós".11 11 João Moreira Santos (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998. Outros a percebem, tal como está na fala de Antônio Carlos dos Santos, como "uma questão de cultura hereditária":

Tudo começa quando a mãe está grávida. A criança começa a chutar na barriga da mãe, e esta se convence de que é um menino. Porque é mais estourado. E depois vem a arrumação do enxoval: tudo azul! Porque é feio homem usar roupa rosa, vermelha etc. Quando a criança nasce também é diferente: se for menino, solta um foguete na porta da sala; se for menina, solta na porta da cozinha. Com o passar do tempo, a criança cresce, e aí a mãe se preocupa com os coleguinhas, brinquedos, modas etc. O menino (chamado de minino-homo) deve brincar com meninos, e os brinquedos são carrinhos, bolas, vaquinhas, burrinhos etc, enquanto a menina (chamada de minina-muié) deve brincar com meninas e com bonecas, panelinhas e fogão. E ainda se diz: "que dia já se viu minino-homo brincar com menina-muié? Em Santana não há casos de homossexualismo".

12 12 Antônio Carlos dos Santos, 35 anos. Santana do Araçuaí, 15 de março de 1998.

Analisando essa fala, vemos duas formulações de gênero distintas. Na primeira, a distinção é uma condição do mundo dado. É um destino, e não há como questioná-lo, uma vez que é determinado por forças extra-sociais. Na segunda, gênero é uma formulação cultural usada para delimitar diferentes formas de comportamento. Mesmo antes do nascimento há uma preocupação em atribuir identidade sexual aos indivíduos, traduzida aqui pela cor da roupa. "É feio o homem usar roupa rosa". A atribuição de um gênero simbólico à cor faz com que ela atue no recém-nascido como um operador de diferença de gênero, ou seja, a cor está atuando como masculinizador ou femininizador.

Também estão presentes as noções de "atividade" e de "passividade", que no Vale funcionam como básicas para definir a femininidade ou a masculinidade.13 13 Essas noções de "atividade" e "passividade" funcionam também para atribuir gênero simbólico a emoções, acontecimento, ação ou situação. Essas noções operam ainda num outro nível da dicotomia sexual: o fato de homens e mulheres não serem apenas homens e mulheres, mas pessoas com papel social e conduta moral específicos. Sendo que esses papéis e condutas mudam durante a vida segundo fatores tais como idade, raça, status, classe social, perda de poder, de prestígio. ALMEIDA, 1995, p. 60. Se o feto se movimenta mais tranqüilamente é mais provável que seja menina. Porém, se "chuta", se é mais "estourado", com certeza é menino. Pelo tipo de movimentação, ou seja, pela performance, que realiza já na vida intra-uterina, a criança convence, prova à mãe que é menino. A masculinidade já se mostra como algo a ser provado, e aqui a prova é a atividade, o movimento do feto. Ou seja, espera-se que o menino seja mais estourado, que chute, que seja ativo, forte. Espera-se, ao contrário, que a menina seja mais tranqüila, mais dócil, mais passiva, mais delicada.

Essas noções acompanham as crianças nas brincadeiras que são delimitadas "de acordo com o sexo de cada um".14 14 Juliana Gonçalves Dias, 14 anos. Santana do Araçuaí, 15 de março de 1998. A partir dessas brincadeiras, comportamentos diferenciados levam à incorporação e à objetificação,15 15 Uma "dialética da internalização da externalidade e da externalização da internalidade". Ver BOURDIEU, 1997, p. 72. por meninos e meninas, como um habitus,16 16 Por habitus quero dizer, com Bourdieu, um sistema de disposições duráveis e transponíveis, predispostas a funcionar como princípios de geração e estruturação de práticas e representações que podem regular, ou ser objetivamente reguladas, sem que sejam produtos de obediência a regras objetivamente adaptadas a seus fins. Conforme Bourdieu, o sentido do jogo é o melhor exemplo dessas "disposições duráveis", pois uma vez internalizadas as regras, o jogador vai agir, no momento exato, sem se preocupar com explicitar o que deve fazer. BOURDIEU, 1997, p. 72, e 1996, p. 170. Sobre o conceito de habitus, ver ainda BOURDIEU, 1989, p. 59. de características trazidas por essas noções. Ou seja, as brincadeiras dos meninos estão baseadas em atividades mais movimentadas que envolvam chutar bola, dar pontapés, correr. Tais atividades necessitam de um espaço físico mais amplo, mais aberto. Nessas brincadeiras, como me disseram em Santana, estão incluídas também as malinezas para com os animais, como por exemplo "jogar pimenta no sapo que sai doido procurando água".17 17 Porém, matar sapos é proibido, pelo menos em Santana, porque "Deus castiga com a seca".

As meninas logo substituem as brincadeiras com as bonecas, as panelinhas e o fogão pelos serviços domésticos, porque desde bem novas aprendem a ser responsáveis para com os cuidados da casa, realizando tarefas como cozinhar, lavar roupas e vasilhas, cuidar dos irmãos menores, manter limpos o quintal e as dependências internas da casa. É interessante pensar também que o ordenamento dos lugares da casa através dos quais é comunicado aos vizinhos e parentes o nascimento das crianças, a sala para os meninos, a cozinha para as meninas, é o mesmo ordenamento que organiza, no Vale, a oposição entre o mundo da vida feminina e o mundo da cidade dos homens.

Outra preocupação que se pode ler é a ênfase na marcação da heterossexualidade, quando o entrevistado frisa a inexistência de homossexualismo na comunidade. A diferença entre masculino e feminino, como distinção entre homem e mulher, continua a ser marcada por toda a vida do indivíduo. Observando a socialização das crianças, podemos ver que, assim que vão crescendo, vários limites de comportamentos lhes são impostos; a aparência e o modo de se comportarem em público são vigiados de perto.

Ao contrário do que ocorre com os meninos, as meninas não costumam andar sozinhas na rua, porque senão ficariam mal faladas, como dizem Isnacy Alves de Andrade e Legiane Souza: "a mulher, quando sai, as pessoas ficará falando delas".18 18 Isnacy Alves de Andrade (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998. "Nós são muito desfavorecidas na boca dos outros. Se agente andar certo está errado. Se agente andar errando é a mesma coisa. É por isso que a mulher não tem valor".19 19 Legiane A. Souza (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998. Mesmo quando adolescentes, é comum que elas sejam acompanhadas, na falta de uma amiga, por um irmão que pode ser muito mais novo do que elas. Em situações em que se torna necessário estudarem à noite, é muito comum ver um irmão, mesmo que bem pequeno, ir buscá-las na escola.

É percebendo a divisão masculino-feminino que Adriana Pereira de Andrade, de apenas 12 anos, diz: "os meninos aqui não gostam de fazer serviços domésticos; mas as meninas são verdadeiras donas de casa".20 20 Adriana Pereira de Andrade, 12 anos. Santana do Araçuaí, 15 de março de 1998. Aqui vemos que, no plano masculino, as relações com os serviços domésticos são afirmadas como negativas e referidas ao "gosto". Entretanto, no que concerne às meninas, afirma-se uma relação intrínseca entre femininidade e domesticidade. Tendo em vista que essas afirmações são feitas por vários entrevistados entre 10 e 13 anos, podemos notar não só o efeito de uma socialização bem realizada, como também a afirmação do modelo ideal de família no Vale.

Para formar essa família,21 21 Com referência ao contexto sócio cultural estudado, com Klaas WOORTMANN (1987), ao dizer família estou me referindo à formação do "grupo doméstico", composto por pessoas relacionadas pelo casamento, naquele contexto, de modo geral formal, e por relações entre pais e filhos. as qualidades procuradas nos futuros cônjuges são, para o homem, a capacidade de ganhar dinheiro e a não inclinação ao vício do álcool. Devido a isso, nessa região, onde a cachaça é fabricada com intensidade em quase todos os municípios, um dos aprendizados fundamentais do adolescente é saber beber. Para as mulheres, estão entre as qualidades fundamentais para ser uma boa esposa o recato sexual e as prendas domésticas. De modo geral, a mulher naquela região espera com o casamento ter sua casa, seus filhos, e que o marido possa ser o provedor da família. Como diz Eliana Silva Neves, "quando decide casar, a gente pensa em ter um lar, ter um marido do lado da gente prá que ele possa ajudar a gente nas dificuldades".22 22 Eliana Silva Neves (entrevista feita por Irmã Sandra). Itinga. Um filho é uma figura muito importante na casa, principalmente o mais velho, pois espera-se que ele possa contribuir para o sustento da família ou mesmo assumir plenamente essa função de "garantir a casa" caso o pai não possa desempenhá-la.

O casamento, muito embora considerado um aprisionamento, é uma honra para o homem, pois produz a imagem pública do homem trabalhador, provedor de uma família. Tal imagem está contraposta à daquele que "não quer responsabilidades". Para ser homem, diz Antônio Marcos, "tem uma necessidade muito importante na minha opinião. Pode ser um homem que trabalha. Ele não tem valor na sociedade e no trabalho se não ser casado, ele não tem valores nas sociedades e nos estudos".23 23 Antônio Marcos (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998. Mas alguns solteiros, como conta Zefa, também são de "responsabilidade". É o que ela diz quando conta a história de um rapaz cujo pai estava doente e que logo depois faleceu. "Ele é que tomava conta da tropa, porque o pai já tava doente, e ele é que garantia a casa. Ele fazia compras e ia vender pelas cidades todas (...) Ele era o filho único, então, depois da morte do pai o pessoal, a família, a mãe e as irmandade toda tomava ele como o pai. Porque ele era solteiro, mas de muita responsabilidade".24 24 Zefa (entrevista). Araçuaí, 26 de março de 1997.

Apesar de o casamento ser um valor positivo para o homem, também representa um risco. José Martine diz: "acho difícil para encontrar o casamento, porque eu sou uma pessoa muito ciumenta e não confio em nenhuma garota".25 25 José Martine Ferreira Murta (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998. É comum encontrar a suspeita de que as mulheres queiram enganar os maridos, o que leva à desconfiança até mesmo das pessoas mais amigas. Segundo Liça me contou, existe o costume em alguns lugares do Vale de que "a mulher deva dormir no canto da cama e não na beira, e ela não pode pular por cima do marido para alcançar a outra ponta da cama, porque senão o marido fica cornudo".26 26 Liça. Santana do Araçuaí (entrevista). 22 de março de 1998. Os assassinatos "para lavar a honra" são comuns.

Mas, muito embora no imaginário masculino esteja sempre presente o medo de uma possível traição da mulher, no ideal do modelo doméstico, o destino da mulher é o de casar, dar à luz e criar os filhos. Na noite de 23 de junho, véspera do dia de São João, muitas moças fazem simpatias tentando saber se irão casar e com quem. Para isso "pregam" uma faca na bananeira onde, com a nódoa da bananeira, ficará marcado ou não o nome do futuro marido. Sobre essa simpatia, Silvana Gonçalves Pereira, que mora na comunidade Beira do Fanado, município de Minas Novas, escreveu os seguintes versos:

"Festa de São João"

Na festa de São João

Não tem discriminação

Igualam-se os direitos

E adeus meus preconceitos!

As gostosas quitandinhas

Colocadas nas cestinhas

Enlouquece a multidão

E todos viram criancinhas.

Os grandes potes de doce

De diversas qualidades

Uma doce diversão

Que envolve toda a cidade.

E assim prossegue a festa

Simpatia e brincadeira

Lindas noites de serestas

Ao redor de uma fogueira.

Preparamos uma faca

Prá pregar na bananeira

Prá ver se o nosso destino

Casar, ou ficar solteira.

Por volta da meia noite

Sem conversar com ninguém

Hora de arrancar a faca

E vê se tem nome de alguém.

E com muitas simpatias

Alegria e brincadeira

Assistimos raiar o dia

Na beira de uma fogueira.27 27 Silvana Gonçalves Pereira, 14 anos. Comunidade Beira do Fanado, município de Minas Novas.

As festas são ocasiões de interações amplas. Como diz o poema acima, "igualam-se os direitos", muito embora haja sempre uma grande vigilância no que diz respeito ao comportamento de meninas e moças. É comum ouvir dizer "com irmã minha não se mexe". Isso porque, antes de tudo, as meninas são filhas e irmãs, cujo comportamento moral afeta toda a família. Mesmo depois de casadas, as jovens continuam a manter um vínculo bem estreito com sua família, principalmente com as mães. Nesses encontros mães e filhas costumam trocar não só conversas, mas também receitas, bordados, além de preocupações com questões familiares como a criação e a educação de filhos, ou os contraceptivos. Algumas vezes falam sobre sexo e sexualidade e sobre questões de saúde. Dos problemas de saúde que costumam apontar, muitos estão ligados aos trabalhos pesados e rotineiros; outros, à reprodução.

Nas comunidades rurais do Vale, costuma ser tarefa da mulher até mesmo limpar as paredes da casa, se não com cal, com batinga, um barro branco. É também a mulher que limpa o terreiro, busca a lenha28 28 A rigor a obrigação de fazer lenha e de colocá-la em casa para que a mulher possa cozinhar é do marido. Mas é muito comum, na roça, ver as mulheres carregando pelas estradas pesados feixes de lenha. e faz o fogo; em muitos casos busca também a água, cuida do jardim e do quintal, chegando mesmo a fazer pequenos trabalhos de reparo na casa. De modo geral, só quando a mulher está doente o homem costuma "ajudá-la" em algumas tarefas da casa. Como em todas as regiões, rurais ou urbanas, onde gênero é uma metáfora forte para designar sexo, o ponto central da casa no Vale é a cozinha e está sob o "comando" das mulheres. Conforme a renda familiar, menos nos centros mais urbanizados, as casas costumam ter duas cozinhas. A mais usada é a que tem fogão à lenha. Esse local é muito importante para a sociabilidade familiar (incluindo a parentela, o compadrio e alguns vizinhos), pois é aqui que se costuma passar a maior parte do tempo, e onde são realizadas as tarefas costumeiras do preparo das refeições. A outra funciona mais como um mostruário, onde estão dispostos os objetos de prestígio, como o fogão a gás e, nos lugares onde há luz elétrica, a bateria de alumínio, impecavelmente areada, e outros eletrodomésticos.

A grande maioria dos homens, depois do trabalho, volta para a casa para tomar banho e se alimentar; depois juntam-se em pequenas vendas, lugares de sociabilidade masculina. Nelas os homens partilham com outros homens um espaço que, ao contrário do espaço da casa, é masculinizante. Esses locais funcionam como centros de trocas de notícias e informações e de encontro com os amigos. Lá muitos homens costumam consumir bebidas alcoólicas, principalmente a cachaça, considerada de excelente qualidade. Nesses pontos de encontro, fala-se de política e esportes (principalmente o futebol), de determinados acontecimentos locais, de bebedeiras, trabalho, dinheiro, diversões, conflitos, brigas e sexo. A ênfase na diferença entre masculino e feminino está presente inclusive nas lendas, como a da "Mulher Cachorra" e a do "Bicho Pedra Azul".

"Mulher Cachorra"

Vamos contar o caso da cadela que aparece.

Tem cabeça de moça, assim no mundo padece.

Sendo o corpo de cachorra, vive ela numa masmorra

Da mãe dela não se esquece.

Não consegui mais detalhes sobre essa lenda. Resumidamente ela fala sobre uma moça que desobedeceu a mãe e que a espancou ao ser repreendida. Sendo amaldiçoada pela mãe, a moça virou um tipo de lobisomem que costuma aparecer uivando na noite da Sexta-feira Santa para assombrar as pessoas. Quando pedi a Ana Rodrigues dos Santos que me contasse a lenda, pois me falaram que quem sabia era ela, ela pôs a mão na boca e disse: "É tão horrível, tão horrível que nem tenho coragem de falar".29 29 Ana Rodrigues dos Santos (entrevista). 29 de junho de 1998.

Tornar-se um Bicho Pedra Azul é a maldição que recai sobre o filho que desrespeita a mãe. Encontramos várias versões dessa lenda, por todo o Vale. Segundo relato de Maria Orlete,

as pessoas mais velhas contam a história do Bicho Pedra Azul, que é a história de um rapaz que estava judiando de seu cavalo, apertando-o por demais na barrigueira. A mãe dele viu a cena e o repreendeu. O rapaz furioso disse à mãe que faria com ela o mesmo que fizera com o cavalo. Aí colocou a sela na mãe e usou-a como montaria. A mãe o amaldiçou, dizendo que ele jamais encontraria salvação. Logo após sua morte, o rapaz começou a assombrar as pessoas da região, aparecendo para elas em forma de carneiro, cachorro, burro, porco, carro sem farol, viajante etc. E as pessoas lhe deram o nome de Bicho Pedra Azul, Bicho Joaquim Antônio, Bicho da Fortaleza. Essa figura, que às vezes parece o lobisomem, e que outras vezes parece o demônio, por vezes aparece também como uma coisa sem forma e cheia de cabelo, assombrando as pessoas da região, e quem a vê tem certeza de que era o Bicho mesmo.

30 30 Maria Orlete (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 20 de setembro de 1997.

Por terem desrespeitado a mãe, tanto a moça quanto o rapaz se tornam monstros. O que no seu aspecto mais óbvio nos diz sobre a importância atribuída ao respeito à mãe. Mas além disso a moça, conforme a lenda, espanca a mãe após ser repreendida por seu comportamento em relação à sexualidade. O filho também espancou a mãe, mas por ter sido repreendido por um ato cruel no trabalho. Qual foi a reação do filho? Dizer que faria com a mãe o mesmo que teria feito com o animal, isto é, apertar-lhe a barriga. Assim, se a lenda remete disjuntivamente, no plano moral, à diferença de gênero, também gênero se mostra nos dois casos, pelo que remetem à importância da mãe nos atos dos filhos.

Os ceramistas estão vivendo e interagindo com esse sistema de significados culturais que, naquele universo cultural, assim como em outros que têm o sexo como base de gênero, conforme apontado acima, operam nos discursos e nas práticas de reprodução das categorias de gênero. Pensando particularmente o processo tradicional, através do qual a arte do barro é aprendida, podemos observar como são codificadas as diferenças de gênero. A arte do barro sempre fez parte do mundo doméstico e até hoje é feita sem quebrar a continuidade com as atividades que correspondem aos cuidados da casa: varrer, cozinhar, lavar as vasilhas da cozinha e a roupa, cuidar das crianças, por vezes buscar água e lenha, "ajudar" na roça. A gravidez não é um empecilho para que essa tarefa seja realizada, e as mulheres só param de trabalhar quando estão bem próximas às imediações do parto. As crianças pequenas, apesar de dificultar, não impedem o trabalho das mães. Elas costumam ser colocadas dentro de um balaio e penduradas nas vigas de sustentação do teto da casa, e vez por outra são retiradas e colocadas num pequeno colchão ao lado da mãe.31 31 Hoje, apesar de os ceramistas não estarem organizados em linhagens formais ou fechadas, e de o parentesco estar, a uma primeira vista, diluído entre as relações de amizade e vizinhança, há fortes indícios de que essa é uma dimensão importante, que nos permite olhar a arte do barro para além de sua importância econômica. Para entendermos a preservação desse patrimônio cultural do Vale do Jequitinhonha, como ultrapassando os limites da unidade doméstica familiar, e abarcarmos as relações entre as famílias, a partir de observações em campo, penso que, muito embora o núcleo doméstico e a família extensa não estejam opostos, seria necessária uma pesquisa mais aprofundada, principalmente entre os ceramistas que se dedicavam a esse ofício no contexto anterior à "modernização e [ao] desenvolvimento do Vale". São de muita importância para levantarmos o desenvolvimento de práticas para preservar a arte do barro, através do parentesco, os estudos de MOURA, 1978, SEYFERTH, 1985, e Ellen WOORTMANN, 1995.

Desde que nascem, estando nesse espaço femininizado, as crianças, meninos e meninas, costumam aprender a lidar com o barro, entre brincando e trabalhando. No que diz respeito à aprendizagem da técnica de modelagem e ao tratamento do barro, ambos são potencialmente ceramistas. À medida em que crescem, as meninas quase sempre continuam o treinamento, mas os meninos, como é comum ouvir, "começam a perder o jeito, a paciência".

De certa forma, tal como nos ritos estudados por Read, esse "perder o jeito, a paciência" parece ter uma função sociológica, que pode ser entendida como servindo para separar os membros novos, do sexo masculino, da comunidade femininizante e introduzi-los na organização dos homens. Pensando assim, parece bem clara a idéia de que os sexos devem ser separados, e isso, de acordo com Read, expressa a rígida dicotomia de sexo da cultura, a comunidade de interesses masculinos e a oposição essencial desses interesses à esfera das mulheres, além de designar sucessivos estágios de crescimento psicológico e social.32 32 READ, Kenneth. Nama Cult of the Central Highlands of New Guinea. Citado por STRATHERN, 1988, 54.

É na convicção de que são homens que os meninos negam saber manipular o barro, um atributo categorizado como feminino. Esse ato de negação tende a consagrar, ou a legitimar, um limite arbitrário, ou seja, a fazer com que esse limite seja desconhecido como arbitrário e reconhecido como legítimo e natural. O que importa aqui não é a negação em si, mas a linha de separação que ela instaura. Na realidade, o mais importante, e o que em geral passa despercebido, é a divisão que essa linha opera entre o conjunto das que legitimamente poderão continuar a trabalhar na arte do barro (meninas e mulheres) e o conjunto dos que não são legitimados para tal (meninos e homens). O grupo dos meninos vai se definir por antagonismo em relação ao grupo das meninas, que fica oculto.33 33 Ver BOURDIEU, 1996.

O principal efeito dessa negação é que, ao posicionar diferentemente os meninos e as meninas, ela consagra uma diferença de gênero, tida como diferença sexual, que é ao mesmo tempo a instituição de uma identidade sexual unitária, uma essência social que, como lemos em Bourdieu, é um direito de ser, mas também um dever. Ou seja, embora esses homens possam ser os mais frágeis dos homens, ao instaurar o limite eles são separados, como diz Bourdieu, "por uma diferença de natureza, de essência, mesmo da mais masculina, da maior e da mais forte dentre as mulheres".34 34 BOURDIEU, 1996, p. 99. É uma estratégia de afirmação de masculinidade. Para perpetuar essa estratégia, ou para continuar demarcando e legitimando seu pertencimento ao mundo masculino na vida adulta, os homens passam a fazer, na arte do barro, os serviços que por exigirem força física são considerados masculinizantes. Os serviços "pesados" o legitimam enquanto homem. Da mesma forma eles assumem também o papel de "protetor" da mulher, saindo para comerciar o produto, outro modo de alcançar legitimação enquanto homem perante a comunidade masculina. O que se vai observar na prática do dia a dia, como fala Devani Gomes da Silva, é que

muitos maridos ajudam as mulheres, trazendo o barro. Eles trazem o barro do barreiro, porque é um serviço pesado, que tem que pegar a enxada, e vai assim nas paredes do barreiro e vai tirando o barro, e depois eles levavam no burro de carga, e pra poder depois socar e fazer a massa. Eles costumavam também vender o artesanato. Quando tem uma exposição, ou nas feiras, aí as mulheres às vezes ficam inseguras de viajar sozinhas, e os maridos vão prá poder vender as peças.

35 35 Devani Gomes da Silva. Turmalina, 24 de abril de 1997.

Analisando esses fatos com Bourdieu, podemos dizer que esse ordenamento de opostos, aqui inscrito tanto nos brinquedos quanto na casa e no resto do mundo, é progressivamente somatizado, inscrito nos corpos de homens e mulheres, que o incorporam como se essa oposição fizesse parte da sua própria natureza. Tal como é mostrado por Bourdieu, a progressiva somatização das relações fundamentais constitutivas da ordem social vai resultar na instituição de duas 'naturezas' diferentes. Ou seja, vai resultar na instituição de dois sistemas de diferenças sociais naturalizadas que são inscritas na hexis corporal, sob a forma de duas classes opostas e complementares de posturas, de atitudes, de gestos etc. "Esses dois sistemas não são apenas inscrições no exterior dos corpos, pois também são inscritos dentro das mentes que os percebem através de uma série de oposições dualistas que parecem miraculosamente ajustadas, mas que eles próprios contribuíram para produzir. Tais oposições permitirão reencadear todas as diferenças registradas dentro do uso dos corpos, dentro das disposições éticas".36 36 BOURDIEU, 1990, p. 8-9. Ver também: BOURDIEU, 1995, p. 96.

Através das experiências de vida acima relatadas, vemos que na região, assim como em todas as outras onde o gênero está calcado em sexo, a polaridade entre masculino e feminino é uma imagem muito forte para marcar diferenças entre homens e mulheres concretos. Para uma abordagem mais geral, no que concerne a gênero, torna-se necessária uma breve incursão teórica sobre algumas das implicações dessa questão. É importante lembrar aqui que a divisão entre masculino e feminino nem sempre foi entendida desse modo.

Thomas Laqueur situa no final do iluminismo a criação do espaço para a redefinição da "natureza da mulher", e a do homem, por contraposição, através da determinação de se fundamentar nas distinções biológicas descobertas o que se insistia serem diferenças básicas entre os sexos. Devido a isso, os sexos foram considerados diferentes em todos os aspectos que se poderia conceber, do corpo e da alma, em todos os aspectos físicos e morais. Laqueur diz que o sexo antes do século XVIII era uma categoria sociológica e não ontológica e mostra, baseando-se em evidências históricas, que tudo o que se quer dizer sobre sexo, de qualquer modo que sexo seja entendido, já tem uma referência a gênero. Assim, o sexo é situacional e explicável apenas dentro dos contextos das batalhas de gênero e poder.37 37 LAQUEUR, 1987, p. 8-11.

Foi justamente ao redor da idéia de "natureza", no momento da consolidação do pensamento científico, que foi sendo construído todo um sistema de naturalização do sexo e de discriminações e exclusões entre os sexos, para que a diferença entre homens e mulheres pudesse ser política, cultural e socialmente marcada. A oposição entre mulher e homem fundada dessa forma serve para estabelecer verdades totalmente desconectadas do gênero e do corpo. O poder dessas verdades vem do modo através do qual elas funcionam como dadas, como premissas primeiras de ambos os lados de um argumento, de forma que os conflitos dentro dos campos discursivos são estruturados mais para segui-las do que para questioná-las. Elas possibilitam não só manipular conceitos e definições, mas também implementar o poder institucional e político.38 38 SCOTT, 1988.

Almeida lembra que, embora as mudanças político-sociais não sejam elas próprias explicações para reinterpretações de corpos, a biologia, que procurou fundamentar diferenças hierárquicas entre os corpos de homens e mulheres, emergiu precisamente quando os fundamentos da velha ordem social e política estavam em transformação. Estão situados aqui o surgimento da reforma protestante, a teoria política iluminista, o desenvolvimento de novos tipos de espaço público no século XVIII, as idéias de Locke sobre o casamento como contrato, as possibilidades de mudança social pós-Revolução Francesa, o sistema industrial com a reestruturação da divisão sexual do trabalho, o surgimento da economia de mercado e o aparecimento das classes sociais. Muito embora de modo particular nenhum desses acontecimentos tenha sido a causa da invenção de um novo modo de sexualizar corpos de homens e mulheres, essa "reinterpretação", esse reordenamento hierárquico desses corpos é, ele próprio, intrínseco a essas mudanças, que, apoiadas na biologia, arquitetam arranjos que deslocam a culpa das evidentes desigualdades sociais, políticas e econômicas para a natureza.39 39 ALMEIDA, 1995.

Foi justamente questionando os arranjos convencionais dos relacionamentos que reduzem a caracteres biológicos (naturais) a determinação hierárquica de lugares e postos para homens e mulheres na sociedade que emergiram os movimentos e os estudos feministas. Num primeiro momento, o campo dos debates feministas centrou-se nos estudos sobre a especificidade das experiências vividas pelas mulheres, partindo da constatação de que as teorias sociais e de ação social existentes eram profundamente androcêntricas.40 40 Hoje, quando as mulheres põem em discussão o pretenso universalismo dos direitos, falam expressamente para ambos os sexos e mencionam os dois lados, masculino e feminino. Ver BONACCHI, 1995.

Mas foi o avanço por esses mesmos debates que possibilitou críticas às polaridades dicotômicas existentes em nosso modo de pensar, assim como o questionamento do subtexto de gênero presente nas entrelinhas tanto de nossas teorizações quanto de nossas instituições sociais. Como mostra Costa, foi criticando e desconstruindo polaridades de categorias do conhecimento (objetividade x subjetividade, por exemplo), de categorias sociais (esfera pública, política ou domínio da produção x esfera privada, íntima, domínio da reprodução) ou de identidades sociais (como trabalhadores, clientes, consumidores ou cidadãos) que a crítica feminista revelou que as categorias sociais são categorias de gênero, relacionadas também com etnia, classe, orientação sexual e outras.41 41 Ver COSTA, 1994, p. 142-143. E assim essa crítica desvela uma miríade de homens e mulheres vivendo em complexos de classe, raça e gênero historicamente elaborados.42 42 Várias feministas, BIDDY e MONHANTY (1986), preocuparam-se com certas tendências dentro do próprio movimento de mulheres que identificavam o feminismo com outra categoria totalizadora, a Mulher Branca Ocidental. Preocupadas com a manutenção da visibilidade das diferenças dentro das diferenças, elas advertiram sobre a necessidade de se "transformar a suposição de que os termos de um discurso feminista totalizador são adequados à função de articular a situação de todas as mulheres.

Tanto o movimento quanto os estudos feministas enfrentaram, como a um desafio, o artifício da rigidez dessas separações, quer mostrando que a discriminação entre os sexos não se encontra pré-determinada na constituição do corpo, quer considerando que as diferenças sociais entre homens e mulheres, embora pareçam tão naturais quanto as diferenças biológicas entre órgãos sexuais e funções reprodutivas, mudam. Judith Butler, por exemplo, em Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identity, descreve e propõe um conjunto de exercícios de paródia, baseados numa teoria performativa de desempenho de gênero, como estratégia para desnaturalizar e ressemantizar as categorias corporais. Tais exercícios desconstroem as usuais categorias de corpo, sexo, gênero e sexualidade e ocasionam sua re-significação para além da estrutura binária".43 43 BUTLER, 1990, p. x. Segundo BUTLER (1990, p. 146), "essas paródias servem para re-comprometer e reconsolidar a própria distinção entre uma configuração de gênero naturalizada e privilegiada e aquela que aparece como derivada, fantasmática e mimética — como se fosse uma cópia fracassada".

Numa recusa às divisões binárias, Butler mostra que não há uma oposição necessária entre o simbólico e o material, o abstrato e o concreto, o individual e o social, a psiquê e o institucional, o subjetivo e o político. Ela tenta confundir todas essas distinções mostrando que a aparente claridade delas é necessária para esconder o fato de que são atitudes produzidas para ancorar "atitudes naturais". Infelizmente, segundo ela, a atitude natural não pode ser refutada pela força da lógica ou do repúdio. Ela tem que ser desnaturalizada, e isso requer um entendimento de que ela opera como uma ideologia que constitui as experiências subjetivas de gênero, que produz mulheres e reforça subjetividades normativas, e não apenas como um abstrato sistema lógico.

Um dos aspectos importantes do debate feminista foi a compreensão de que o limite estabelecido entre as áreas de ação para homens e mulheres é, ele próprio, uma imagem cuja função é criar uma diferença de valor entre tipos de ação. Assim, essa fronteira, que produz um efeito na busca dos indivíduos pela identidade unitária, e influencia na valoração assimétrica e desigual das atividades de homens e mulheres, é ela própria uma imagem. Uma imagem baseada em estereótipos sustentados pela divisão sexual. Como a pessoa concreta não se identifica inteiramente com os estereótipos determinados para seu sexo, a dicotomia entre masculinidade e femininidade, que segue a divisão sexual, não pode ser sobreposta a homens e mulheres concretos.

Quando se desvelam os interesses que estão por trás dessas metáforas, podem-se detectar qualidades de masculinidades e femininidades acessíveis a ambos, homens e mulheres concretos. Ou seja, uma pessoa de qualquer sexo pode se comportar de forma feminina ou masculina. Assim, como diz Strathern, "as mulheres podem se dissociar de seu handicap de serem fêmeas, da mesma forma que os homens têm que provar que podem utilizar o seu potencial de serem machos".44 44 STRATHERN, 1992, p. 178. Além do mais, entre os ceramistas, as noções de masculinidade e femininidade estão alicerçadas em e se nutrem de questões culturais específicas, tal como o prestígio, como veremos.

As noções de masculinidade e femininidade, podendo ser usadas para valorar outras idéias, mostram que gênero não existe apenas sobre homens e mulheres. Os estudos atuais sobre gênero, nem sempre deixando de lado o sexo,45 45 Aqui há uma discussão interessante, que é precisamente uma das críticas que Donna HARAWAY (1991, p. 198) faz a respeito da distinção sexo/gênero na história recente da teoria feminista. Segundo ela, "assim como a natureza é tão somente a matéria-prima da cultura, apropriada, preservada, escravizada, exaltada, ou de outros modos, tornada flexível para ser utilizada pela cultura na lógica capitalista, de modo similar, o sexo é apenas a matéria do ato de gênero (...) o sexo é 'recuperado' para ser re-apresentado como gênero que 'nós' podemos controlar". não consideram gênero como apenas uma metáfora para explicar diferenças de base sexual, mas sim, como mostra Kofes, "um instrumento que mapeia um campo específico de distinções, aquele cujos referentes falam da distinção sexual. Quer onde estão sujeitos concretos, substantivos, homens e mulheres, quer onde nem mesmo encontramos esses sujeitos".46 46 KOFES, 1993, p. 28. Gênero abarca um universo muito mais amplo. Por isso é que por gênero quero me referir, com Strathern, àquelas "categorizações de pessoas, artefatos, acontecimentos, seqüências, e outras mais, que se nutrem em um imaginário sexual, sobre os modos através dos quais a distinção das características de macho e fêmea torna concretas as idéias das pessoas sobre a natureza dos relacionamentos sociais".47 47 STRATHERN, 1988, p. ix.

Ao usar gênero para mapear outros valores, pode-se falar em masculinidades e femininidades como atributos tanto de homens quanto de mulheres, e pode-se detectar a mobilidade e a transitoriedade de gênero, e assim pensar reelaborações de gênero efetivadas pelos sujeitos concretos. Buscando esses sujeitos concretos e também ações, artefatos, categorizações, ou seja, mantendo gênero em relação com a referência sexual, mas desnaturalizando sexo, podemos ver que, mesmo em lugares como o Vale — onde existe uma fronteira cultural sobrepondo categorias como "fêmea, mulher, femininidade" e situando-a como oposta a outra sobreposição de categorias, "macho, homem, masculinidade" —, na prática, a ação gênero não tem a fixidez pretendida, é dinâmica.

Quando focalizamos, por exemplo, os pequenos proprietários rurais, entre os quais está concentrada a maioria dos ceramistas, pode ser observado um sistema de oposições muito marcado entre o território da "roça" e o da "casa", além de uma associação entre os serviços considerados "pesados" (a "roça") e a masculinidade, e os serviços considerados "leves" (a "casa") e a femininidade. Mas, embora no plano ideacional permaneça uma demarcação tida como natural, que pode ser percebida na fala das crianças — "Quando eu crescer vou fazer tantas coisas, igual o papai: fazer casa, tirar leite de vaca e trabalhar na enxada e na foice", diz Serginho (Sérgio Dias Costa), de 6 anos48 48 Segundo Serginho, o trabalho de homem é cortar o mato com a foice. Sérgio Dias Costa (Serginho), 6 anos (entrevista). Belo Horizonte, 8 de março de 1998. —, na prática da vida cotidiana há diluições desses limites. Tais diluições são provenientes de estratégias de manutenção e reprodução do grupo que lá são chamadas de precisão. Como diz Salete, uma ceramista, "na hora da precisão não tem esse negócio de trabalho de homem ou de mulher não. Todo mundo faz o que for preciso".49 49 Salete Dias Costa (ceramista, mãe de Serginho). Comercinho, 8 de novembro de 1997. A respeito da noção de precisão ver EIGNHEER, 1982.

Dois dos ceramistas cujas peças exercem uma grande atração nos observadores e nos compradores, Ulisses Pereira Chaves (Caraí) e Ulisses Mendes (Itinga), afirmaram ter aprendido a trabalhar com o barro desde pequenos, com a mãe, mas não se dedicaram desde pequenos à arte do barro. Agindo de uma forma que fazia sentido cultural para eles, ambos abandonaram a modelagem, saber considerado femininizante, e marcaram seu pertencimento na comunidade dos homens passando a desempenhar serviços que, por invocar a força física, são considerados masculinizantes, tais como "tirar e trazer o barro do barreiro", "socar o barro e fazer a massa", "vender as peças".50 50 Devani Gomes da Silva. Turmalina, 24 de abril de 1997.

Muito embora, com os programas de desenvolvimento, muitos homens tenham passado a se dedicar à modelagem dessas peças, a tradição ainda permanece, como disse um ceramista: "o trabalho ainda é mais de mulher. Os homens auxilia. A gente vê que eles talha e ajudam a alisar as peças. Mas os homens mais trabalha na lavoura e outros serviços e as mulheres ficam fazendo cerâmica. Quem mais sabe fazer cerâmica no Vale são as mulheres".51 51 Ulisses Mendes. Itinga, 8 de março de 1997. No contexto alterado pela "modernização", os homens decidiram dedicar-se à arte do barro ou voltar para o lado do limite contrário àquele que a sociedade consagra como masculino.

Como homens e mulheres que participam nesse ofício, em particular os homens cuja presença é recente na produção, reelaboram o discurso de gênero? Penso que a melhor maneira de abordar o assunto é ouvir algumas falas dos próprios ceramistas, que são narrativas de suas vidas. É aqui que podemos apreender o gênero, não como um conjunto de corporificações fixas, mas com algo que afeta e é afetado por outras esferas sociais. Nessas narrativas onde aparecem os meandros da vida cotidiana e as interações carregadas de poder, gênero mostra-se como processo e como prática. Como conta Ulisses Mendes, de Itinga,

Os ceramistas masculinos é pouco. Pode contar nos dedos. Tem o lado do preconceito. Quando o homem pega no barro, a primeira preocupação dele é: será que vou dar conta? Será que a peça vai dar conta do recado? Porque às vezes, as pessoas preferem trabalhar a dia, e viver daquilo. E quando ele pega no barro e começa a trabalhar a peça para fazer dinheiro, aí vem a responsabilidade. Às vezes ele faz uma peça que vale 15 dias de trabalho de um camponês. Faz num dia. Mas quem é que vai comprar essa peça? Ele tem que ter muita paciência. Ele tem que mexer de um lado e do outro até pegar aquela carreira. Tem também que administrar o dinheiro. Mas a maior dificuldade disso é não acreditar no barro. Os homens não põe fé no trabalho de cerâmica. Acha que isso não vai vender, que eles não vão ganhar dinheiro com isso. Porque a arte não é só fazer a cerâmica. Tem que ser artista prá fazer e prá vender. Ele tem que saber fazer e depois correr atrás da vendagem. Porque lá prá vender é outra batalha. Tem que saber lidar com os fregueses, com o povo, com a cidade.

O preconceito que existe na cidade local é bem maior do que o que existe na cabeça do artista. E quando ele se dispõe livre, "isso aqui é um trabalho bom, eu vou dar conta", aí ele tem que passar por esse outro lado. Só que o preconceito local nunca que acaba, ele vai ter que controlar. Ele pode sair em revistas, pode sair em TV, pode sair em tudo, mas sempre tem as pessoas que não acreditam no trabalho dele. O homem, quando põe a mão no barro, em uma comunidade como a do Pasmado, ele se sente mulher. Aqui tem uma comunidade onde moram uns parentes meus, onde os homens não pegavam no barro mesmo. Só as mulheres. Quando um homem não está trabalhando, eles dizem: "Você está bom de fazer é panela, não quer fazer nada, tem que fazer panela". Então significa que é um trabalho baixo para eles. Eles acham que um trabalho bom, um trabalho de homem mesmo, é cortar de foice. E esse preconceito veio e existe porque o trabalho de cerâmica nunca teve um valor suficiente igual aos outros trabalhos. Até hoje, se for englobar tudo, a cerâmica é mais barata. O homem vê que a mulher está ganhando mais dinheiro, mas ele não bota a mão no trabalho porque daquele modo machista de ser. "Eu não vou fazer peça de barro não porque daqui a pouco o pessoal vai caçoar de mim". E aí, quando ele põe a mão no barro ele tem que fazer esculturas. Aí não pode fazer nem panelas, nem bulhão, nem nada. Senão ele vira mulher na mentalidade da própria família. Então, o trabalho dele de cerâmica é queimar e vender. Ele não consegue pôr isso na cabeça. Ele queima e sai prá vender. Na região do Pasmado é muito assim. O preconceito da cerâmica é muito. Vai ser difícil acabar isso.

52 52 Ulisses Mendes. Itinga, 9 de março de 1997.

Quando eu estava aprendendo, eu tinha um irmão que falava: "Mãe, põe esse vagabundo prá ir pro mato pegá lenha! Fica aí só mexendo com bolo de barro!" Então a gente que está aprendendo é que tem que ter a força de vontade. E mostrar que vai prá frente. E eu decidi. Eu não sei como consegui essas coisas. Então, quando as pessoas me perguntam "como é que você se sente aqui na cidade de Itinga, no seu lugar?", a primeira coisa que a gente se sente é discriminado. A gente não é acolhido e a gente se sente sozinho. É muito poucas pessoas que aceita, que compreende a gente como a gente é. Prá dizer numa palavra dessas, a gente fica até achando que está no meio de uma floresta, onde os animais fogem da gente, achando que a gente é um caçador. "Você ainda faz aqueles bolos de barro?" São palavras que a gente tem que se preparar muito para poder entender".

53 53 Ulisses Mendes. Itinga. Março de 1997.

Ulisses Mendes tem vários alunos. Um deles, Dalton, que costuma trabalhar em sua oficina, fala sobre a resistência que muitos demonstram a sua dedicação a esse trabalho: "Eu trabalhando aqui e nem mostro prá ninguém não, porque eles ficam gozando a cara da gente. Meu pai mesmo. Eu fui fazer um forno no quintal lá de casa e ele pegou e quebrou. Ulisses também falou que quando ele começou a fazer passou pela mesma coisa".54 54 Dalton, 17 anos. Itinga, março de 1997. Não apenas os dois Ulisses, mas vários outros homens entraram para uma área de trabalho que "ainda é mais de mulher". É o que Glória Pereira de Andrade fala sobre João Pereira Alves:

O primeiro homem que apareceu fazendo isso foi o João. Mãe deu um curso com a Codevale, mas já estava ensinando a ele antes.

55 55 Foi a partir dos anos 70 que a produção desses objetos de cerâmica passou a ser incentivada através de programas governamentais visando a implementação de uma política de incentivo e difusão de bens simbólicos que, no Vale, eram desenvolvidos através da Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha). A Codevale é uma autarquia estadual, dotada de personalidade jurídica própria e vinculada ao Sistema Estadual de Planejamento de Minas Gerais. Foi organizada nos termos da Lei Constitucional n. 12, de 6 de outubro de 1964, e da Lei n. 3.764, de 12 de fevereiro de 1966, com a finalidade de elaborar, coordenar e executar planos, programas, projetos e atividades de aproveitamento dos recursos da região, com vistas a seu desenvolvimento econômico e social.

Ele ficava separado dos outros, mas era porque já estava mais adiantado. Porque os outros estavam começando, senão fazia muita confusão.

O primeiro homem a trabalhar aqui com o barro foi ele. Eu nunca vi ninguém falar nada. Agora, eu achava meio esquisito. Eu não sei, eu achava que ele não ia levar a sério. Era antes da gente casar que ele já trabalhava com isso. Eu achava que aquilo era uma brincadeira, que ele estava fazendo aquilo prá estar perto de mim. Mas não era. Era isso mesmo que ele queria. A primeira peça que ele fez foi uma peça diferente, foi uma casinha. Nós estava trabalhando e ele chegou e pediu se podia pegar um pedaço de barro prá ele experimentar. Aí, ele abriu o barro na tábua e fez os pedacinhos e encaixou para fazer a casinha. Aí mãe disse 'Ah! João, você tem jeito para aprender'. Aí, no dia seguinte ele voltou e depois passou a fazer jarra com bacia, umas moranguinhas, aí ele foi fazendo. E foi praticando. Foi aí que eu vi que ele estava levando a sério mesmo. Eu não acreditava. Pensei que ele estava indo ali porque eu estava lá. Prá ver. Mas não era. Mas eu achava esquisito. Mas nunca falei, estou falando agora. Eu estava acostumada com mãe trabalhando, mulher e tudo. Eu achava diferente, mas depois eu acostumei, porque ele levou a sério mesmo e ele não achava diferente nada. Hoje eu vejo que é tudo normal, que não tem nada a ver. Não interfere em nada na vida das pessoas. Nessa época Amadeu trabalhava com açougue. Ele já era casado. Ele não tinha jeito não. Aquela mãozona muito pesada. Aí a mulher dele começou a trabalhar. Aí mãe falou: "Vão embora gente, vão embora a família, todo mundo mexer com isso. João entrou na família e já está trabalhando". Aí foi que Amadeu começou.

56 56 Glória Pereira de Andrade (filha de Isabel Mendes, entrevista). Santana do Araçuaí, 30 de julho e 03 de agosto de 1997.

Há alguns homens que, apesar de estarem envolvidos na produção de cerâmica, não assumem sua entrada na "arte das paneleiras", com contou Glória: "Ontem mesmo mãe tava falando prá mim que tem uma artesã que trabalha e que foi aluna de mãe e que o marido dela trabalha no barro, mas que é escondido. E quando chega uma pessoa assim, quando chega algum comprador que vai na casa, ou uma pessoa de fora, ele esconde. Pode estar ajudando a ela do jeito que for, mas quando chega uma pessoa ele corre. Vai lá esconder.

57 57 Glória. Santana do Araçuaí.

Essas experiências nos possibilitam ver que, mesmo nesse grupo, onde as fronteiras de gênero parecem tão rigidamente separadas, há plasticidade. As pessoas se movimentam entre categorizações masculinizantes e femininizantes, muito embora o homem tenha sempre que usar as mais variadas estratégias para provar que é homem. O homem pode "pôr a mão no barro" e assumir tudo o que isso significa. Eles têm que adaptar o próprio corpo para o novo ofício; por exemplo, eles terão que adaptar "a mãozona muito pesada", acostumada a trabalhar no açougue, símbolo de masculinidade, para poder fazer movimentos finos, leves, que na cultura local são femininizantes. Mas para não perder a masculinidade, ou para legitimá-la, como disse Ulisses Mendes, "ele tem que fazer esculturas. Aí não pode fazer nem panelas, nem bulhão, nem nada. Senão ele vira mulher na mentalidade da própria família".

Ou seja, ao cruzar a linha e entrar num espaço que "põe em risco" a masculinidade, uma ação subseqüente a esse cruzamento é a reordenação. E é o próprio objeto produzido e seu circuito que permitem tal reordenação. A escultura traz prestígio no mercado. Ela é comprada por consumidores que pertencem a uma "elite econômica e cultural". Esse prestígio eleva a honra e o prestígio do ceramista dentro da comunidade. Assim, ao mesmo tempo em que ele transgride o limite arbitrário da cultura que delineia lugares e ações legítimos para homens e mulheres, marca culturalmente sua distinção. É marcada sua diferença como homem no trabalho de barro, que é investido como um valor masculino.

Quando perguntei a João se as pessoas não haviam estranhado o fato de ele ter se dedicado aos trabalhos de cerâmica, ele me disse que não se lembrava de ter ouvido nenhuma brincadeira a respeito disso. Disse ainda que ele incentivou um casal a aprender o ofício e que por algum tempo eles trabalharam com o barro também: "eles viram que eu casei. Essa casa do lado já era uma casa que eu tinha arrendado. Eles viram que eu paguei meu móvel de casa todo com esse trabalho. Então eles viram que tinha condição prá fazer alguma coisa. Prá mim, eu acho que foi um incentivo prá eles, porque eles não trabalhavam com isso não".58 58 João Pereira Alves. Santana, 6 de novembro de 1997.

Tanto na fala de João quanto na de Ulisses Mendes estão presentes as estratégias de manter e reproduzir o dinheiro, que é um símbolo do produto do trabalho. Mesmo entrando para um trabalho tradicionalmente feminino, o dinheiro que eles ganham permite que negociem outros valores de masculinidade. Simbolicamente, esse dinheiro é mostrado na comunidade. O ceramista mostra, por exemplo, que é capaz de casar e de ser o provedor da família, de comprar os móveis, de manter os filhos estudando em outras cidades. E nesse mostrar ele negocia simbolicamente a masculinidade. Mostra ainda que é um bom administrador, como está na fala acima; o ceramista diz que não basta ganhar o dinheiro, "tem também que administrar".

As mulheres também fazem esculturas. Também vendem, ganham dinheiro e sabem administrar. Portanto, a presença dos homens na arte do barro não está em contradição com a presença das mulheres. E esses homens não estão apenas imitando a produção das mulheres. O ponto mais importante é que estão retirando da arte do barro, um ofício tradicionalmente feminino, recursos simbólicos de representação e afirmação de masculinidade. Pode até parecer paradoxal que os homens possam afirmar sua masculinidade associando-se a um ofício tradicionalmente feminino. Esse paradoxo ocorre por estarmos acostumados a pensar através de classificações e exclusões. Essas classificações e exclusões, no que se refere a gênero, ficam claras no depoimento de Antônio, citado no início deste artigo: "que dia já se viu minino-homo brincar com menina-muié?"59 59 Antônio Carlos dos Santos, 35 anos. Santana do Araçuaí, 15 de março de 1998.

O que normalmente se espera é que um homem se torne mais homem associando-se a coisas definíveis como exclusivamente masculinas; assim, um atributo intrínseco (masculinidade) teria que ser elaborado com atributos extras da mesma natureza (mais masculinidade).60 60 Ver STRATHERN, Marilyn, 1988, p123. Todos os homens que entraram e persistiram na arte do barro, pelo menos todos os que pude contatar, fazem esculturas. O próprio fato de terem que provar sua masculinidade na vivência do dia a dia, o que se efetiva de modo geral através de atos, gestos, palavras, posturas e, no caso sob enfoque, no trabalho com esculturas, mostra que gênero não se reduz a caracteres sexuais, mas sim a um conjunto de categorizações morais, a um conjunto de comportamentos socialmente sancionados e constantemente reavaliados, negociados, lembrados. Aqui é a escultura, e não o órgão sexual daquele que a modela, que negocia e renegocia a masculinidade, que será reavaliada e legitimada por ele e por seu grupo. Um ponto muito importante a ser pensado é que, mesmo investindo em afirmar a masculinidade, modelando esculturas, os ceramistas recorrem a sentimentos e emoções que no cotidiano são considerados femininos. Mas ao fazê-lo desenvolvem outras estratégias de afirmação da masculinidade.

Assim, o que importa não é o fato de corpos de homens e mulheres portarem diferenças — ou mesmo se é necessário considerar ou não a diferença biológica que existe entre homem e mulher — mas sim o fato de que certas circunstâncias políticas, sociais, econômicas e culturais criam discursos de corpos hierarquicamente construídos, através da redefinição um fato natural como social. Porque gênero não se refere apenas aos corpos de homens e mulheres, mas ao arranjo convencional dos relacionamentos entre eles; esses arranjos, por sua vez, adquirem na ação novos valores funcionais, novas avaliações práticas, sempre assimilando algum conteúdo empírico novo.61 61 SAHLINS, 1990. A arte do barro transmitida por mulheres e pela ação feminina tem incorporado valores de masculinidade e presença de homens sem deixar de remeter às diferenças de gênero.

[Recebido para publicação em novembro de 2000]

Gender in ceramic artifacts: masculinities and femininities

Abstract: This is a gender study on the artistic production of ceramic in some communities of Jequitinhonha Valley, Minas Gerais, Brazil. Traditionally only women, who were called 'potters', produced this kind of craft in that region and it used to be taught from mothers to daughters. As ceramic artifacts became an alternative source of income, men decided to produce them. The entrance of men in the craft caused some re-elaboration of gender relations in those communities, and allowed us to detect gender not as a set of fixed corporifications, but as something under constant construction. A very important point here is that, although transmitted by women and a result of feminine activity, the production of ceramic incorporated male values. When men gained access to a traditionally defined feminine activity, they were able to draw from the craft symbolic resources for the representation of masculinity.

Keywords: ceramic, gender, anthropology.

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  • 1
    STRATHERN, 1988, p. 208.
  • 2
    Este artigo é uma adaptação do quarto capítulo de minha tese de doutorado, defendida em setembro de 1998, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Unicamp, sob a orientação da Prof.ª Drª Suely Kofes. A pesquisa de campo foi realizada entre março de 1997 e fevereiro de 1998.
  • 3
    QUEIROZ, 1979, p. 14.
  • 4
    São encontrados no Vale os seguintes minerais: diamante, ouro, quartzo, manganês, cromo, cianita, alumínio, caulim, ferro, feldspato, mica, berilo, crisoberilo, fosfato, grafita, turmalina, minérios de lítio, calcário-dolomito, talco-esteativo, espinélio, lazulita, sulfetos, platina, turquesa-wavelita e turfa. Desses minérios, no que se refere aos recursos oficialmente marcados, são significativos o diamante, minérios de lítio (100% da produção brasileira), grafita (45% da produção brasileira) e cianita (26,5% das reservas medidas brasileiras). Tudo isso não tem sido levado em conta, como fator natural, para contribuir com o desenvolvimento regional. As melhores lavras estão entregues a grandes mineradoras, que recebem a concessão por tempo indeterminado e não cumprem as exigências dos órgãos ambientais na implementação de práticas de controle e recuperação de impactos ambientais. "Caravana do Jequitinhonha: 3 a 9 de outubro de 1995". Documento do PT (acessoria especial José Graziano), p. 46-47.
  • 5
    BEAUVOIR, 1970.
  • 6
    BITTENCOURT, 1993.
  • 7
    Ver ORTNER e WHITEHEAD, 1992, p. 2-6.
  • 8
    STRATHERN, 1988, p. 68.
  • 9
    ALMEIDA, 1995. p. 60. Ver também BOURDIEU, 1995, p. 96, e 1997, p. 72-95.
  • 10
    Como mostra STRATHERN (1987, p. 182-185), trazemos esses termos dentro de várias outras relações, "como um
    continuum, um processo, uma hierarquia — essas relações são redirecionadas às categorias masculino e feminino para produzir uma série de afirmações não dicotômicas entre elas. Dessa forma, do equacionamento entre mulher e natureza, pode seguir que: as mulheres são mais "naturais" — em um ponto particular de um
    continuum; que o poder da natureza das mulheres pode ser controlado pelas estratégias culturais — da mesma forma que o mundo pode ser domesticado, uma questão de processo; as mulheres são avaliadas como inferiores — valor hierárquico; que elas têm um potencial generalizado de realizações, em relação ao potencial particular dos homens".
  • 11
    João Moreira Santos (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998.
  • 12
    Antônio Carlos dos Santos, 35 anos. Santana do Araçuaí, 15 de março de 1998.
  • 13
    Essas noções de "atividade" e "passividade" funcionam também para atribuir gênero simbólico a emoções, acontecimento, ação ou situação. Essas noções operam ainda num outro nível da dicotomia sexual: o fato de homens e mulheres não serem apenas homens e mulheres, mas pessoas com papel social e conduta moral específicos. Sendo que esses papéis e condutas mudam durante a vida segundo fatores tais como idade, raça, status, classe social, perda de poder, de prestígio. ALMEIDA, 1995, p. 60.
  • 14
    Juliana Gonçalves Dias, 14 anos. Santana do Araçuaí, 15 de março de 1998.
  • 15
    Uma "dialética da internalização da externalidade e da externalização da internalidade". Ver BOURDIEU, 1997, p. 72.
  • 16
    Por
    habitus quero dizer, com Bourdieu, um sistema de disposições duráveis e transponíveis, predispostas a funcionar como princípios de geração e estruturação de práticas e representações que podem regular, ou ser objetivamente reguladas, sem que sejam produtos de obediência a regras objetivamente adaptadas a seus fins. Conforme Bourdieu, o sentido do jogo é o melhor exemplo dessas "disposições duráveis", pois uma vez internalizadas as regras, o jogador vai agir, no momento exato, sem se preocupar com explicitar o que deve fazer. BOURDIEU, 1997, p. 72, e 1996, p. 170. Sobre o conceito de
    habitus, ver ainda BOURDIEU, 1989, p. 59.
  • 17
    Porém,
    matar sapos é proibido, pelo menos em Santana, porque "Deus castiga com a seca".
  • 18
    Isnacy Alves de Andrade (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998.
  • 19
    Legiane A. Souza (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998.
  • 20
    Adriana Pereira de Andrade, 12 anos. Santana do Araçuaí, 15 de março de 1998.
  • 21
    Com referência ao contexto sócio cultural estudado, com Klaas WOORTMANN (1987), ao dizer família estou me referindo à formação do "grupo doméstico", composto por pessoas relacionadas pelo casamento, naquele contexto, de modo geral formal, e por relações entre pais e filhos.
  • 22
    Eliana Silva Neves (entrevista feita por Irmã Sandra). Itinga.
  • 23
    Antônio Marcos (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998.
  • 24
    Zefa (entrevista). Araçuaí, 26 de março de 1997.
  • 25
    José Martine Ferreira Murta (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 23 de março de 1998.
  • 26
    Liça. Santana do Araçuaí (entrevista). 22 de março de 1998.
  • 27
    Silvana Gonçalves Pereira, 14 anos. Comunidade Beira do Fanado, município de Minas Novas.
  • 28
    A rigor a obrigação de fazer lenha e de colocá-la em casa para que a mulher possa cozinhar é do marido. Mas é muito comum, na
    roça, ver as mulheres carregando pelas estradas pesados feixes de lenha.
  • 29
    Ana Rodrigues dos Santos (entrevista). 29 de junho de 1998.
  • 30
    Maria Orlete (depoimento escrito). Ponto dos Volantes, 20 de setembro de 1997.
  • 31
    Hoje, apesar de os ceramistas não estarem organizados em linhagens formais ou fechadas, e de o parentesco estar, a uma primeira vista, diluído entre as relações de amizade e vizinhança, há fortes indícios de que essa é uma dimensão importante, que nos permite olhar a arte do barro para além de sua importância econômica. Para entendermos a preservação desse patrimônio cultural do Vale do Jequitinhonha, como ultrapassando os limites da unidade doméstica familiar, e abarcarmos as relações entre as famílias, a partir de observações em campo, penso que, muito embora o núcleo doméstico e a família extensa não estejam opostos, seria necessária uma pesquisa mais aprofundada, principalmente entre os ceramistas que se dedicavam a esse ofício no contexto anterior à "modernização e [ao] desenvolvimento do Vale". São de muita importância para levantarmos o desenvolvimento de práticas para preservar a arte do barro, através do parentesco, os estudos de MOURA, 1978, SEYFERTH, 1985, e Ellen WOORTMANN, 1995.
  • 32
    READ, Kenneth.
    Nama Cult of the Central Highlands of New Guinea. Citado por STRATHERN, 1988, 54.
  • 33
    Ver BOURDIEU, 1996.
  • 34
    BOURDIEU, 1996, p. 99.
  • 35
    Devani Gomes da Silva. Turmalina, 24 de abril de 1997.
  • 36
    BOURDIEU, 1990, p. 8-9. Ver também: BOURDIEU, 1995, p. 96.
  • 37
    LAQUEUR, 1987, p. 8-11.
  • 38
    SCOTT, 1988.
  • 39
    ALMEIDA, 1995.
  • 40
    Hoje, quando as mulheres põem em discussão o pretenso universalismo dos direitos, falam expressamente para ambos os sexos e mencionam os dois lados, masculino e feminino. Ver BONACCHI, 1995.
  • 41
    Ver COSTA, 1994, p. 142-143.
  • 42
    Várias feministas, BIDDY e MONHANTY (1986), preocuparam-se com certas tendências dentro do próprio movimento de mulheres que identificavam o feminismo com outra categoria totalizadora, a Mulher Branca Ocidental. Preocupadas com a manutenção da visibilidade das diferenças dentro das diferenças, elas advertiram sobre a necessidade de se "transformar a suposição de que os termos de um discurso feminista totalizador são adequados à função de articular a situação de todas as mulheres.
  • 43
    BUTLER, 1990, p. x. Segundo BUTLER (1990, p. 146), "essas paródias servem para re-comprometer e reconsolidar a própria distinção entre uma configuração de gênero naturalizada e privilegiada e aquela que aparece como derivada, fantasmática e mimética — como se fosse uma cópia fracassada".
  • 44
    STRATHERN, 1992, p. 178.
  • 45
    Aqui há uma discussão interessante, que é precisamente uma das críticas que Donna HARAWAY (1991, p. 198) faz a respeito da distinção sexo/gênero na história recente da teoria feminista. Segundo ela, "assim como a natureza é tão somente a matéria-prima da cultura, apropriada, preservada, escravizada, exaltada, ou de outros modos, tornada flexível para ser utilizada pela cultura na lógica capitalista, de modo similar, o sexo é apenas a matéria do ato de gênero (...) o sexo é 'recuperado' para ser re-apresentado como gênero que 'nós' podemos controlar".
  • 46
    KOFES, 1993, p. 28.
  • 47
    STRATHERN, 1988, p. ix.
  • 48
    Segundo Serginho, o trabalho de homem é cortar o mato com a foice. Sérgio Dias Costa (Serginho), 6 anos (entrevista). Belo Horizonte, 8 de março de 1998.
  • 49
    Salete Dias Costa (ceramista, mãe de Serginho). Comercinho, 8 de novembro de 1997. A respeito da noção de
    precisão ver EIGNHEER, 1982.
  • 50
    Devani Gomes da Silva. Turmalina, 24 de abril de 1997.
  • 51
    Ulisses Mendes. Itinga, 8 de março de 1997.
  • 52
    Ulisses Mendes. Itinga, 9 de março de 1997.
  • 53
    Ulisses Mendes. Itinga. Março de 1997.
  • 54
    Dalton, 17 anos. Itinga, março de 1997.
  • 55
    Foi a partir dos anos 70 que a produção desses objetos de cerâmica passou a ser incentivada através de programas governamentais visando a implementação de uma política de incentivo e difusão de bens simbólicos que, no Vale, eram desenvolvidos através da Codevale (Comissão de Desenvolvimento do Vale do Jequitinhonha). A Codevale é uma autarquia estadual, dotada de personalidade jurídica própria e vinculada ao Sistema Estadual de Planejamento de Minas Gerais. Foi organizada nos termos da Lei Constitucional n. 12, de 6 de outubro de 1964, e da Lei n. 3.764, de 12 de fevereiro de 1966, com a finalidade de elaborar, coordenar e executar planos, programas, projetos e atividades de aproveitamento dos recursos da região, com vistas a seu desenvolvimento econômico e social.
  • 56
    Glória Pereira de Andrade (filha de Isabel Mendes, entrevista). Santana do Araçuaí, 30 de julho e 03 de agosto de 1997.
  • 57
    Glória. Santana do Araçuaí.
  • 58
    João Pereira Alves. Santana, 6 de novembro de 1997.
  • 59
    Antônio Carlos dos Santos, 35 anos. Santana do Araçuaí, 15 de março de 1998.
  • 60
    Ver STRATHERN, Marilyn, 1988, p123.
  • 61
    SAHLINS, 1990.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2002
    • Data do Fascículo
      2001

    Histórico

    • Recebido
      Nov 2000
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