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Rebus Immigrazione

Sciortino, Giuseppe. Rebus ImmigrazioneBolognail Mulino2017174p.

As políticas de gestão das migrações internacionais no continente Europeu são o foco do livro Rebus Immigrazione de Giuseppe Sciortino, professor de sociologia na Universidade de Trento. O livro, não muito extenso, prioriza uma abordagem histórica, buscando interpretar o universo dos deslocamentos populacionais à luz do “meio ambiente” demográfico, cultural, político, econômico e jurídico de referência.

Desde a Paz de Augusta, no século XVI, até os recentes Regulamentos de Dublin, o gerenciamento das migrações foi caracterizado por tensões e conflitos, principalmente no que se refere à dialética entre o direito de migrar dos indivíduos e o direito dos estados de determinar quem pode entrar e residir em seu território. Essa tensão, ainda hoje não resolvida, molda os desafiadores processos de negociação na elaboração e implementação das políticas migratórias.

Mas não é a única tensão. De acordo com Sciortino, as atuais políticas migratórias de contenção, apesar de limitar sensivelmente os deslocamentos, não alcançam plenamente seus objetivos basicamente por três fatores estruturais: a tensão entre os sistemas políticos e a economia de livre mercado; a tensão entre a vontade política particularista e o ordenamento jurídico focado em princípios universalistas; a tensão gerada pelas radicais desigualdades em nível mundial (p. 34). Essas tensões acabam tornando quase que impossível o estancamento dos fluxos migratórios.

Assim, a título de exemplo, os sistemas de controle não conseguem bloquear a chegada de migrantes especialmente porque são respeitadas as normas jurídicas de cunho universalistas - como a convenção de Genebra. Neste caso, há uma clara tensão entre as prioridades políticas dos países europeus e o ordenamento jurídico de referência. O autor infere que a Europa continua recebendo migrantes por optar por um conjunto de valores e princípios que caracterizam sua identidade (p. 36-37). No entanto, cabe lembrar que esses valores e princípios não parecem orientar os países do continente quando o tema é o acirramento das desigualdadese e das assimetrias geradas pela sacralizada economia de mercado em nível mundial. Na mesma esteira, o foco axiológico muda radicalmente quando engenhosas escamotagens são criadas para impedir a chegada ao continente de possíveis titulares dos direitos de refúgio, como, por exemplo, no caso das assim chamadas “políticas de vizinhança”.

Seja como for, esse exemplo confirma a abordagem de fundo da reflexão de Sciortino: há complexas tensões que envolvem o gerenciamento das migrações internacionais na Europa. A este propósito, o autor fala da União Europeia como de um “monstro gentil” - citando a expressão de Hans Enzensberger - que se apresenta como muito severo, mas acolhedor, ranzinza, mas não cruel (p. 130-131), sempre à procura de uma mediação entre interesses heterogêneos e, até, conflitivos.

Em sua ágil exposição do desenvolvimento histórico do gerenciamento das migrações, o autor aponta também continuidades e, principalmente, descontinuidades no processo diacrônico. Chama a atenção, com certeza, o fato de que nos séculos XVI e XVII os legisladores preocuparam-se, sobretudo, em reconhecer e promover o direito de emigrar (ius emigrandi), num contexto em que a preocupação não estava na imigração - considerada um fato natural e positivo - e sim na fuga de súditos, numa conjuntura caracterizada pelos conflitos religiosos e pela perseguição de minorias. Dito de outra forma, buscava-se estancar a “emigração clandestina”. Mas com o tempo as coisas mudaram. O autor mostra de forma coerente e fundamentada como transformações econômicas, políticas e demográficas levaram a uma gradativa mudança de foco, sobretudo a partir da Primeira Guerra Mundial. A emigração deixa de ser um problema para tornar-se benéfica a fim de reduzir a população em excesso, garantir remessas e promover a homogeneidade étnica do país. Por outro lado, a imigração começa gradativamente a ser objeto de suspeitas, por prejudicar os trabalhadores autóctones, por razões raciais e culturais ou, inclusive, pelos riscos de comprometer as hierarquias das “civilizações” (p. 79).

O processo, no entanto, não é linear. A análise de Sciortino, sempre enraizada no contexto diacrônico de transformação social, mostra a dinamicidade e as oscilações das políticas de gestão das migrações. Assim, por exemplo, a época imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial apresenta um renovado interesse na acolhida de trabalhadores migrantes (temporários), bem como uma forte preocupação na estruturação de um Regime internacional de proteção a refugiados. Em outros termos, o gerenciamento dos deslocamentos humanos é variável e flexível, sempre produto de negociações entre interesses contextuais, diversos e, por vezes, conflitivos.

Por outro lado, é interessante notar também a existência de alguns elementos de relativa continuidade, sobretudo nas últimas décadas, como a reticência por parte dos países europeus em aceitar uma coordenação supranacional dos deslocamentos humanos, a preocupação com a proteção da mão de obra autóctone e, sobretudo, uma visão claramente instrumental do fenômeno migratório, onde a prioridade está antes na negociação entre os interesses divergentes dentro dos estados, do que nas necessidades de quem busca proteção.

O último capítulo do livro é dedicado às possíveis soluções. O próprio autor reconhece que não é o foco de seu trabalho. Talvez seja a parte menos aprimorada do texto. Apresentam-se algumas respostas, sem trazer novidades, mas reafirmando pistas de ação que, em muitos casos, dependem apenas da vontade política ou da capacidade de negociação entre os diferentes atores envolvidos. Sublinha-se também a necessidade de recolocar a questão da imigração ao “estado laical”, enquanto mero “problema” a ser “gerenciado” (p. 160).

Em nossa opinião, é importante que o “estado laical” não seja interpretado como sinônimo de ausência de compromisso ético, que a imigração não seja considerada aprioristicamente um “problema” e que o “gerenciamento” leve em conta que não estamos lidando com mercadorias, e sim com seres humanos, portadores de direitos, que, em muitos casos, fogem de conflitos e inseguranças alimentares produzidos, sincrônica e diacronicamente, pelos próprios europeus - fato, aliás, pouco aprofundado no livro, ou seja, a Europa enquanto produtora de migrações forçadas no mundo inteiro. Em outros termos, como sustenta o antropólogo Marco Aime, quando se desloca uma questão humana para o mero plano “administrativo” corre-se o risco de transferir a questão “da un piano etico a un piano gestionale, dove non c’è più spazio per la morale1 1 AIME, Marco. Senza sponda. Perché l’Italia non è più una terra d’accoglienza. Utet, 2015, p. 28. .

Como se afirma justamente na contracapa do livro, não é questão de bons ou maus sentimentos, mas é, sim, questão de direitos, de direitos humanos, que devem ser respeitados independentemente das aproximações afetivas e, inclusive, prioritariamente aos demais interesses envolvidos.

A todos os que tenham interesse na temática recomenda-se fortemente a leitura do livro, principalmente por mostrar a evolução histórica das políticas de gestão da imigração na Europa e os intricados processos de negociação inerentes.

  • 1
    AIME, Marco. Senza sponda. Perché l’Italia non è più una terra d’accoglienza. Utet, 2015, p. 28.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    01 Nov 2017
  • Aceito
    23 Nov 2017
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